Resumo
O objetivo foi caracterizar a atuação da atenção primária à saúde (APS) no cuidado aos usuários com COVID-19, identificando fatores facilitadores e os constrangimentos para a resposta das equipes de APS no enfrentamento à pandemia. Estudo transversal com amostra representativa das unidades básicas de saúde (UBS) brasileiras, na forma de inquérito. Participaram do estudo 907 UBS das cinco regiões do país. A coleta de dados foi entre julho e novembro de 2021, por meio de questionário on-line. Os resultados mostram que as UBS das regiões Sul e Sudeste tiveram melhores condições de enfrentamento da pandemia em termos de equipamentos de proteção e estrutura de comunicação e as UBS das regiões Norte e Nordeste tiveram melhor desempenho nas ações relacionadas à vigilância em saúde, atividades educativas, busca ativa de contatos, monitoramento de casos e notificação no sistema de vigilância de síndrome gripal. O processo de vacinação contra a COVID-19 ocorria em 70% das UBS em nível nacional, 28% tiveram que suspender a vacinação da primeira dose por falta do imunizante e 25% da segunda dose. Conclui-se que a APS brasileira realizou importante trabalho no enfrentamento à pandemia apesar das dificuldades decorrentes da ausência de uma coordenação nacional.
Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde; SARS-CoV-2; COVID-19; Atenção à saúde; Condições de Trabalho
Abstract
The aim of this study was to describe the role of PHC in the delivery of care to COVID-19 patients, identifying facilitating factors and constraints to the response of PHC teams to the pandemic. We conducted a cross-sectional survey-based study with a nationally representative sample of primary health care centers (PCCs). A total of 907 PCCs from the country’s five regions participated in the study. Data was collected between July and November 2021 using an online survey. The results show that PCCs in the South and Southeast were better prepared to respond to the pandemic in terms of availability of personal protective equipment and communications facilities, while PCCs in the North and Northeast performed better for health surveillance actions, educational activities, contact tracing, case monitoring and notification of cases in the influenza surveillance system. Seventy per cent of PCCs administered COVID-19 vaccines at national level and 28% and 25% had to suspend the first and second doses of the vaccine, respectively. The findings show that primary care services played an important role in the response to the pandemic despite challenges caused by the lack of national coordination.
Key words: Primary Health Care; SARS-CoV-2; COVID-19; Health care; Working conditions
Introdução
A pandemia de COVID-19 se constituiu no mais grave evento sanitário dos últimos cem anos, com mais de 700 mil mortes no Brasil e de 6,9 milhões no mundo, segundo dados oficiais, embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) estime que o número real de mortes associadas direta ou indiretamente à pandemia, pode chegar a 15 milhões1.
Esperava-se que países com sistemas de saúde públicos e universais apresentassem melhores respostas no enfrentamento à pandemia, em grande medida pela estrutura desses sistemas que contam com amplas redes de atenção2. Embora isso não tenha sido evidenciado, melhores performances foram associadas a países de alta renda3, com população de até 14 milhões de habitantes, maiores gastos em saúde em relação ao Produto Interno Bruto e níveis mais altos dos índices de governança pública4.
Embora o governo federal brasileiro tenha realizada uma gestão temerária, ao adotar uma estratégia de propagação do SARS-CoV-25, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi reconhecido, por todos os setores da sociedade como fundamental, impedindo um ainda maior número de mortes.
Ainda que tenha havido importante centralidade e maior investimento financeiro no atendimento hospitalar, com aumento do número de leitos, compra de respiradores e ampliação de unidades de terapia intensiva, na maior parte dos municípios brasileiros, a Atenção Primária à Saúde (APS) foi a linha de frente deste cuidado. As diversas maneiras de enfrentamento da pandemia na APS em âmbito nacional e internacional foram condicionadas por modelos organizacionais desse nível de atenção e sua inserção nos sistemas nacionais de saúde, assim como pelas conjunturas sociopolíticas locais. Com poucas exceções, pode-se dizer que se perdeu a oportunidade de uma maior atuação da APS6.
Neste artigo busca-se caracterizar a atuação da APS no cuidado aos usuários com COVID-19, identificando fatores facilitadores e os constrangimentos que podem ter influenciado a capacidade de resposta das equipes de APS.
Métodos
Este artigo é parte da pesquisa intitulada “Desafios da Atenção Básica no enfrentamento à pandemia de COVID-19 no SUS - 2ª onda”. Trata-se de um estudo transversal, na forma de inquérito, com amostra representativa das Unidades Básicas de Saúde (UBS) do país, registradas no Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES), em dezembro de 2020.
Para fins de cálculo do tamanho da amostra, os estratos foram definidos como domínios de estudo. Em cada região, o tamanho da amostra foi calculado por meio da expressão algébrica para estimação de proporções:
em que P é a proporção populacional a ser estimada, tomada como sendo 0,5 o erro de amostragem a ser tolerado, e z=1,96 o valor da curva normal, correspondente ao nível de 95% para o intervalo de confiança7.
Nas regiões Norte e Centro-Oeste, o tamanho da amostra foi de 100 unidades, na região Sul de 150 unidades e no Sudeste e Nordeste, a amostra foi de 200 unidades, correspondendo a um erro amostral de 10, 8 e 7 pontos percentuais, respectivamente.
Considerando uma taxa de resposta de 80%, foram sorteadas 945 unidades. Constituiu-se, ainda, uma reserva de unidades sorteadas antecipadamente para cada região, caso as perdas em alguma das regiões fossem superiores ao esperado. Optou-se posteriormente, por considerar as 945 unidades sorteadas como sendo o tamanho da amostra a ser obtido e, dessa forma, para compensar as unidades excluídas por não pertencerem à população de estudo, foram utilizadas reservas, tendo sido contatadas 985 unidades, para a realização da pesquisa.
A fração referente a esse processo de amostragem, em cada estrato i, foi calculada por:
sendo n i o tamanho da amostra sorteada e N i , o tamanho da população. As diferentes probabilidades de sorteio utilizadas nos estratos para a seleção dos serviços da amostra foram compensadas pela introdução de pesos na etapa de análise de dados, definidos pelo inverso das frações de amostragem. Desta forma, para a região Norte foi utilizado peso igual a 20,74056, para o Nordeste 50,73106, o Sudeste 39,18846, o Sul 23,04500 e o Centro-Oeste 19,59848.
Através de contato telefônico com a UBS sorteada foi identificado o respondente, preferencialmente o gerente ou responsável pela UBS ou outro profissional de nível superior. Caso esses profissionais não quisessem responder, a unidade foi considerada como perda. O questionário ficou disponível na ferramenta de captura de dados eletrônicos REDCap8 entre julho e novembro de 2021. Para o recorte desse artigo foram selecionadas perguntas sobre: tamanho e estrutura física da UBS, disponibilidade de EPI; disponibilidade de insumos; estrutura de comunicação; cuidado referente às estratégias de acompanhamento dos pacientes com COVID-19; organização do trabalho; capacitação da equipe; transporte dos pacientes, vigilância em saúde e processo de vacinação.
A análise descritiva consistiu na caracterização da população de estudo quanto às diversas variáveis levantadas no inquérito, por meio da estimação de proporções e respectivos intervalos de confiança (nível de confiança de 95%), para cada uma das regiões e para o total do país. Diferenças entre as proporções observadas nas regiões foram estabelecidas pelo teste qui-quadrado com correção de Rao & Scott para amostras complexas, e consideradas significantes aquelas em que o valor de p foi menor que 5%. As estimativas foram calculadas considerando os pesos de delineamento aplicados às unidades da amostra, correspondentes ao inverso das frações de amostragem utilizadas nos estratos.
A pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética e Pesquisa da FSP/USP com o CAAE 31414420.8.0000.5421 e parecer 4.827.811, de 5 de julho de 2021.
Resultados
Das 945 UBS sorteadas, participaram 907 UBS (95,8%), sendo 125 (Norte), 226 (Nordeste), 248 (Sudeste), 186 (Sul) e 122 (Centro-Oeste). Entre os respondentes, 64% (IC95%: 61-67) eram gerentes das UBS e 52% (IC95%: 48-55) atuavam na unidade há mais de três anos.
A Tabela 1 apresenta informações relacionadas a estrutura física e de comunicação das UBS. No que se refere ao número de equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), 63% (IC95%: 59-66) das UBS têm apenas uma equipe e 42% (IC95%: 39-45) possuem dois ou menos consultórios. Em relação ao uso de prontuários eletrônicos, 25% (IC95%: 23-29) afirmam não utilizar nenhum sistema, sobretudo nas regiões Norte 46% (IC95%: 37-54) e Nordeste 39% (IC95%: 32-45). Em relação a “Estrutura de comunicação”, o Brasil possui 50% (IC95%: 48-53) de UBS com telefone fixo e 28% (IC95%: 25-31) com celular. Os menores percentuais foram encontrados na região Nordeste com 15% (IC95%: 11-20) de telefone fixo e 20% (IC95%: 16-26) de celulares. Ainda assim, foi no Nordeste onde ocorreu o maior uso de ferramentas on-line para o acompanhamento dos pacientes diagnosticados com COVID-19, em que o uso de WhatsApp ocorreu em 73% (IC95%: 67-78) das unidades e recursos de chamada de vídeo em 27% (IC95%: 22-33). Houve incremento da infraestrutura de comunicação das UBS em nível nacional, visando ampliar as tecnologias de acesso remoto aos usuários e, também, implementação ou reforço do acesso a internet em 31% das UBS (IC95%: 28-34), com destaque para o Nordeste com 39% (IC95%: 33-46).
A Tabela 2 apresenta os resultados da disponibilidade de EPI, Insumos e Capacitação da equipe da UBS. Em nível nacional 45% (IC95%: 42-48) das unidades afirmaram ter disponível sempre todos os EPI questionados (máscara N95, máscara cirúrgica, face shield/óculos de proteção e avental impermeável), os piores resultados foram encontrados nas regiões Norte 34% (IC95%: 26-42) e Nordeste 36% (IC95%: 30-42). Em referência aos “Insumos” o Nordeste é a região com a pior disponibilidade 8% (IC95%: 5-12) e a região Sul com a melhor 31% (IC95%: 24-38). Capacitação para uso de EPI e capacitação para enfrentamento à COVID-19 ocorreu, respectivamente, em 57% (IC95%: 56-60) e 54% (IC95%: 50-57) das UBS em nível nacional, com menores valores nas regiões Norte e Nordeste
Consultas presenciais nas UBS continuaram a ocorrer em 64% (IC95%: 60-67) das UBS do Brasil. Segundo 85% (IC95%: 83-88) dos respondentes foram criadas unidades exclusivas para o atendimento de COVID-19 no município da UBS que se somaram à rede de UBS. Para casos confirmados ou suspeitos foram definidos fluxos específicos em 90% (IC95%: 87-92) das UBS. As equipes NASF-AB 73% (IC95%: 69-77) e equipes de Saúde Bucal 81% (IC95%: 78-84) participaram das ações de cuidado desenvolvidas nas unidades. O atendimento a pacientes graves pelas UBS foi mais elevado na região Sul 48% (IC95%: 41-55). Existiam referência para encaminhamento dos casos de COVID-19 em 98% (IC95%: 97-99) das UBS, sendo que 73% (IC95%: 70-76) das UBS do Brasil realizaram os encaminhamentos necessários. O transporte de pacientes graves era realizado por órgãos do estado em 96% (IC95%: 94-97) das UBS (Tabela 3).
No que concerne a Vigilância em Saúde, os maiores percentuais estão relacionados ao incentivo ao isolamento social 98% (IC95%: 97-99), monitoramento dos casos 90% (IC95%: 87-91) e acompanhamento do isolamento 81% (IC95%: 82-87). Os piores achados estão relacionados à coleta de testes de diagnóstico sendo 30% (IC95%: 39-33) RT-PCR e 31% (IC95%: 28-33) para teste rápido de antígeno (Tabela 3).
Em relação ao processo de vacinação contra COVID-19, 70% (IC95%: 67-76) das UBS do Brasil faziam a administração de vacinas quando responderam ao survey. Este percentual é significantemente diferente do percentual das UBS do Centro-Oeste em que apenas 39% (IC95%: 30-47) estavam administrando o imunizante. Enquanto a cadeia de frio foi um problema relatado em somente 4% (IC95%: 3-6), a aplicação da 1ª dose foi suspensa por falta do imunizante em 28% (IC95%: 25-31) das UBS, sobretudo na região Sul, com 40% (IC95%: 33-48). Já a segunda dose foi suspensa em 25% (IC95%: 22-28) das UBS (Tabela 3).
A região Centro-Oeste foi aquela onde menos unidades realizaram busca ativa de grupos prioritários 81% (IC95%: 67-90) e de indivíduos que não haviam tomado a segunda dose 77% (IC95%: 62-87). O Nordeste foi a região que menos fez notificações de efeitos adversos 68% (IC95%: 61-74) (Tabela 3).
Discussão
Os resultados da pesquisa mostram o importante trabalho realizado pela APS brasileira, ao mesmo tempo em que realça as dificuldades enfrentadas no cenário da pandemia, incrementadas pela ausência de coordenação nacional. A pesquisa reflete também as diferenças regionais e a heterogeneidade do processo de trabalho das equipes de Saúde da Família no país. A APS é fundamental para oferecer atenção de qualidade nas infecções habituais e na COVID-19, ao mesmo tempo em que realizam importantes funções de saúde pública. Diretrizes apropriadas e baseadas em evidências desempenham um papel fundamental para garantir que a qualidade dos cuidados seja mantida, particularmente durante pandemias9.
Na organização do trabalho na UBS para o cuidado dos usuários com casos ou suspeita de COVID-19, de forma geral, pode-se observar um gradiente entre a região Sul, que se destacou em relação às demais regiões, principalmente as do Norte e Nordeste. As regiões Centro-Oeste e Sudeste apresentaram resultados intermediários. A região Sul destacou-se predominantemente nas ações e serviços de atendimento individual, com melhor capacidade, disponibilidade de equipamentos, insumos para testagem e infraestrutura.
Por outro lado, as regiões Norte e Nordeste ficaram em evidência em relação aos aspectos coletivos da APS e do trabalho em equipe nas ações educativas e comunitárias, monitoramento dos casos, além da vacinação contra a COVID-19 e a busca ativa de usuários em atraso para a segunda dose.
Estudo de Castro et al. 10 demonstrou a disseminação da COVID-19 pelo Brasil por padrões distintos, resultando no que chamaram de “epidemias simultâneas de COVID-19”. Suas constatações demonstram que à medida que o vírus se deslocava para o interior, uma maior demanda por recursos escassos e distantes se intensificou, sem possibilidade de evitar fatalidades. Os autores exemplificam diferenças regionais apontando o caso do estado do Ceará no Nordeste, com circulação silenciosa do vírus por cerca de um mês (final de abril a meados de maio de 2020) antes de o primeiro caso ser oficialmente detectado. Este estado teve alta taxa de espalhamento do vírus, mas foi o antepenúltimo estado em óbitos o que sugere que mesmo com a propagação contínua do vírus, as ações locais foram bem-sucedidas na prevenção de mortes.
Os resultados do presente estudo também apontam para ações de cuidado e vigilância sendo executadas com maior frequência em UBS do Nordeste. O fato de que ações de mitigação foram tomadas tão logo os primeiros casos foram reconhecidos, fez com que os efeitos da pandemia tenham sido amenizados. Apesar das respostas terem sido bastante distintas pelos estados, dada a ausência de medidas centralizadas emanadas do governo federal, houve uma importante redução no número de óbitos pela COVID-19 nesta região, como resultado das medidas de distanciamento físico e de ações na saúde tomadas pelos governos estaduais11.
A insuficiência de EPI foi descrita na literatura, sobretudo nos meses iniciais da pandemia. Estratégias utilizadas para suprir a falta de EPI foram direcionados para profissionais que estivessem diretamente em contato com casos confirmados de COVID-1912-15. Neste estudo fica evidente que durante os picos de contaminação e transmissão de COVID-19 as UBS sofreram com a falta de EPI, sobretudo máscaras do tipo N95/PFF2.
Estudo de Giovanella et al. 16 observou que em junho de 2020 a disponibilidade de EPIs na APS era suficiente em apenas 24% dos casos, no presente estudo este percentual foi de 45% (IC95%: 42-48). O mesmo estudo mostrou que naquela data, insumos essenciais para o cuidado do paciente com COVID-19 eram escassos, 34% dos respondentes afirmaram ter oxímetros suficientes, oxigênio 35%, termômetros infravermelhos 19% e testes RT-PCR 45%. Em comparação, este estudo encontrou disponibilidade de oxímetro em 75% (IC95%: 72-78) das UBS, oxigênio 46% (IC95%: 43-49), termômetros infravermelhos 56% (IC95%: 53-59) e testes RT-PCR 46% (IC95%: 43-49).
O cuidado aos pacientes com COVID-19 alterou o funcionamento das unidades. Estudos17,18 apontam para alterações no fluxo e a criação de espaços e equipes específicas para estes casos, visando reduzir a circulação e agilizar o atendimento.
Formas de cuidado e vigilância, sobretudo o monitoramento dos pacientes com COVID-19, através de meios de comunicação como telefonemas e WhatsApp, e o incentivo ao isolamento e busca ativa de contatos, foram amplamente implementadas nas UBS brasileiras, sobretudo em unidades do Nordeste. Tais estratégias foram estimuladas pelos órgãos de saúde em outros países, sobretudo em processos de triagem e acompanhamento da evolução clínica dos casos10,19-23. Ações com foco na vigilância dos casos executados pela APS no Brasil foram incentivadas em países como China, Canadá, Malásia, Etiópia, Nigéria e Índia10,24-29.
Fernandez et al. 30 descrevem a utilização da telemedicina e do uso de redes sociais para monitoramento das famílias, assim como a exclusão digital, como desafios para os profissionais da APS. Lotta et al. 31 apontam que as tecnologias, não substituem o contato face a face e a abordagem relacional e próxima que as ESF fazem nos territórios em que atuam.
O uso de telemedicina facilitou a continuidade do atendimento aos usuários com COVID-19, mas não sem desafios. É essencial que exista infraestrutura adequada para otimizar a consulta remota32. Os baixos níveis de educação e alfabetização digital, juntamente com as barreiras linguísticas, representaram os desafios predominantes para os pacientes. Os profissionais e os serviços de saúde apresentaram preocupações relacionadas à alfabetização digital, fluxos de processos clínicos e responsabilidades legais. A falta de um modelo integrado de teleassistência cobrindo diagnósticos, prescrições e fornecimento de medicamentos espelha a fragmentação existente na prestação de cuidados33.
Quanto ao início do processo vacinal, diferentes estratégias foram adotadas. Na região Centro-Oeste o processo foi realizado sobretudo em locais distintos a UBS. Ainda que em outros locais tenha havido a implementação de distintos pontos de vacinação34, a realização em somente 39% (IC95%: 30-47) das UBS chama a atenção. Em todas as regiões houve a necessidade de suspensão da administração das vacinas, tanto no caso da primeira dose, quanto no caso da segunda, chegando a serem suspensas, na região Sul, em 40% e 30% das UBS respectivamente. Segundo Hallal35 caso o governo federal tivesse dado a devida prioridade à compra de vacinas, 75% das vidas perdidas por COVID-19 poderiam ter sido salvas.
Estudo de Melki et al. 36 realizado na Tunísia, relata que a APS desempenhou um papel importante nos estágios iniciais da pandemia, ainda que tenha sido marginalizada da estratégia nacional contra a COVID-19, tal qual ocorreu no Brasil, onde foram priorizadas ações de fortalecimento às estruturas hospitalares. Estudo desenvolvido por Yang et al. 37, na China, apontou que os médicos da APS deveriam encaminhar imediatamente os casos suspeitos para hospitais especializados para diagnóstico e tratamento, uma vez que a APS possuía pouca infraestrutura e capacidade técnica para lidar com os casos.
Por outro lado, a capilaridade das UBS e das ESF no território brasileiro são vantagens que poderiam ter sido melhor aproveitadas no enfrentamento da pandemia de COVID-1917,18. Estudo de Cirino et al. 38, demonstrou o protagonismo da APS no enfrentamento da pandemia da COVID-19, ainda que aponte como desafios a reorganização dos processos locais e ambiência, fornecimento de suprimentos, comunicação institucional e articulação com os demais serviços da rede de atenção à saúde.
Conclusão
A presente pesquisa apresenta uma visão geral de como a APS atuou no enfrentamento a pandemia de COVID-19 e no cuidado aos usuários. Observa-se que, mais de um ano após o início da pandemia no Brasil, permaneceram importantes problemas na oferta de insumos, equipamentos e EPI, com piores resultados nas regiões Norte e Nordeste.
Houve a necessidade de readequação das práticas de cuidado pelas UBS visando o enfrentamento da pandemia, adotando formas de cuidado virtual, mudanças dos processos de trabalho, separação de fluxos dos usuários com síndromes respiratórias, e atendimento e monitoramento dos casos por meio digital. As ações de vigilância em saúde, como o incentivo ao isolamento social e o monitoramento dos casos, foram destaque positivo, ainda que a realização de testes diagnósticos tenha sido abaixo do ideal. Em relação ao processo de vacinação, o desafio ocorreu pela disponibilidade de doses.
Os resultados evidenciam a necessidade de investimentos na estrutura das UBS, especialmente nas regiões mais vulneráveis do país, visando o fortalecimento da comunicação, disponibilidade de EPI e insumos, capacitação da equipe e ampliação da capacidade de testagem, além de melhorias no sistema de vigilância. Embora este estudo retrate um período e pode não representar as mudanças em curso à medida que a pandemia progrediu, com adaptações nas políticas e organização das UBS, acredita-se que os resultados fornecem aos gestores do SUS e tomadores de decisão, evidências e aprendizados que podem contribuir para a formulação de políticas públicas mais efetivas no combate à COVID-19 e a outras pandemias que possam acontecer.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Dez 2023 -
Data do Fascículo
Dez 2023
Histórico
-
Recebido
29 Abr 2023 -
Aceito
08 Ago 2023 -
Publicado
10 Ago 2023