Resumo
O objetivo deste artigo é estimar a prevalência de comprometimento cognitivo e analisar sua associação com o controle da pressão arterial em idosos hipertensos. Trata-se de um estudo transversal realizado com 383 idosos hipertensos no estado do Piauí, Brasil. Foram coletados dados sociodemográficos, clínicos, realizada aferição da pressão arterial e avaliação da função cognitiva utilizando o teste Montreal Cognitive Assessment (MoCA). Utilizou-se regressão de Poisson com variância robusta. A prevalência de comprometimento cognitivo foi de 74,4%, sendo maior na faixa etária entre 80 anos ou mais de idade e naqueles com menor escolaridade. A prevalência de pressão arterial não controlada foi de 61,6%, com maior proporção entre os idosos com comprometimento cognitivo. Observou-se associação entre o comprometimento cognitivo e pressão arterial não controlada (RPAjustada: 3,98; IC95% = 2,51-6,33). A associação significativa entre função cognitiva e controle pressórico sugere que comprometimento cognitivo é um importante fator de risco para pressão arterial não controlada em pessoas idosas. A inclusão de medidas de rastreamento para possíveis déficits cognitivos podem ser úteis para melhor monitoramento da elevação dos níveis pressóricos entre idosos hipertensos.
Palavras-chave: Idoso; Cognição; Envelhecimento; Hipertensão; Estratégia Saúde da Família; Atenção primária à saúde
Abstract
This article aims to estimate the prevalence of cognitive impairment and analyze its association with blood pressure control in elderly hypertensive individuals. Cross-sectional study of 383 elderly hypertensive individuals in the state of Piauí, Brazil. The authors collected sociodemographic and clinical data, performed blood pressure measurement, and assessed cognitive function using the Montreal Cognitive Assessment (MoCA) test. Poisson regression with robust variance was used. Overall prevalence of cognitive impairment was 74.4%, higher in the age group 80 years and over and among older persons with less schooling. Prevalence of uncontrolled blood pressure was 61.6%, with a higher proportion in the elderly with cognitive impairment. An association was observed between cognitive impairment and uncontrolled blood pressure (aPR: 3.98; 95%CI = 2.51-6.33). The significant association between cognitive function and blood pressure control suggest that cognitive impairment is an important risk factor for uncontrolled blood pressure in older persons. The inclusion of screening measures for possible cognitive deficits may be useful for better monitoring blood pressure levels among elderly hypertensive individuals.
Key words: Elderly; Cognition; Aging; Hypertension; Family Health Strategy Primary healthcare
Introdução
A hipertensão arterial sistêmica (HAS) é uma doença crônica não transmissível, considerada um dos principais riscos globais para a mortalidade no mundo1. A prevalência da hipertensão aumenta significativamente com o avançar da idade, sendo mais prevalente entre os idosos do que na população jovem e de meia-idade2. No Brasil, a HAS atinge 32,5% (36 milhões) dos indivíduos adultos e mais de 60% dos idosos, contribuindo direta ou indiretamente para 50% das mortes por doença cardiovascular3.
Apesar de representar importante problema de saúde pública, ocasionando altos custos ao sistema de saúde devido às complicações que acarreta, a HAS ainda apresenta baixas taxas de controle, aumentando o risco de morbimortalidade cardiovascular4.
Pesquisa recente realizada com hipertensos na faixa etária de 60 anos ou mais revelou que 58,8% dos participantes estavam cientes de sua condição clínica, dos quais 96,5% estavam em tratamento. Entre participantes tratados, apenas 24,5% tinham pressão arterial (PA) controlada, destacando a importância de fortalecimento da atenção primária5. Estudos brasileiros também mostraram baixo controle pressórico em idosos, variando de 27% a 50,8%6-7.
O controle dos níveis de PA está relacionado a diversos fatores, tais como características sociodemográficas (sexo, idade, escolaridade, renda), comportamento em saúde (sedentarismo) e adesão ao tratamento8. Adicionalmente, o comprometimento cognitivo (CC) tem sido descrito como um importante fator de risco associado ao controle pressórico9. O CC representa um risco para as atividades diárias de autocuidado10 indispensáveis para a manutenção da PA dentro de níveis adequados. Como a memória (a capacidade de recuperar informações) influencia diversos aspectos da vida e a comunicação é o elemento-chave para o bem-estar e a sobrevivência11, seu desajustamento pode interferir na adesão aos medicamentos e no autocuidado, e portanto no controle da PA em pacientes hipertensos.
Nesse contexto, embora alguns estudos tenham demonstrado que o déficit cognitivo está associado à PA não controlada9,12, ainda são escassas as informações sobre a associação entre o CC e o controle dos níveis pressóricos, sobretudo na população idosa. Para tanto, este estudo teve como objetivo estimar a prevalência do CC e analisar a sua associação com o controle da PA em idosos hipertensos.
Método
Desenho do estudo, população e amostra
Trata-se de um estudo epidemiológico transversal, realizado na cidade de Picos, Piauí, Brasil, no período de junho a novembro de 2019. O município está localizado na região centro-sul do estado do Piauí, a 314 Km da capital Teresina, e conta com 36 equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), 25 na zona urbana e 11 na zona rural, com 100% de cobertura populacional pela ESF.
Os critérios de inclusão para participação no estudo foram: idosos de 60 anos ou mais, adscritos na ESF da zona urbana de Picos, com diagnóstico médico de HAS e que faziam uso de medicamento anti-hipertensivo. Os critérios de exclusão foram: idosos com diagnóstico prévio de demência, história de acidente vascular cerebral, deficiência visual e/ou auditiva grave que impossibilitassem a realização da avaliação cognitiva, transtornos psiquiátricos e idosos institucionalizados ou hospitalizados.
Para se obter o número total de idosos com HAS no município de Picos, inicialmente foi organizada uma lista por ESF contendo os nomes e os contatos dos profissionais enfermeiros (coordenadores da equipe) e de seus respectivos agentes comunitários de saúde (ACS). Em seguida, o número total de 3.524 idosos com HAS foi obtido com a própria ESF, a partir do levantamento em todas as equipes de ESF do município (100% de cobertura).
Para a estimativa do tamanho da amostra, foram utilizados os seguintes parâmetros: prevalência estimada de 50%8 para obter o maior tamanho amostral, tamanho populacional de 3.524 idosos com HAS acompanhados na ESF da zona urbana, erro de estimativa de 5%, 95% de intervalo de confiança e acréscimo de 10% para possíveis perdas e recusas. A amostra mínima estimada foi de 382 idosos hipertensos. Os participantes foram selecionados por amostragem aleatória, com distribuição proporcional do tamanho amostral entre os idosos hipertensos cadastrados em cada ESF.
Após perdas e recusas, a amostra final do estudo totalizou 383 idosos. As perdas corresponderam aos participantes não localizados após três visitas, mudança de endereço e óbito. O contato com os idosos selecionados foi realizado pelos seus respectivos ACS da ESF de referência, que esclareceram os idosos acerca dos objetivos e da participação no estudo. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Coleta dos dados
A coleta de dados ocorreu por meio de entrevista face-a-face realizada por meio de visita domiciliar mediante agendamento. Os dados foram coletados por equipe treinada, composta por 39 entrevistadores (estudantes do curso de graduação em enfermagem) e sob a supervisão de dois enfermeiros.
Os questionários foram cuidadosamente elaborados, pré-testados e eram acompanhados de um manual de instruções detalhando as perguntas e orientando sobre como proceder em caso de dúvidas. O controle de qualidade dos dados era reforçado por meio de reuniões regulares com todos os entrevistadores e supervisores.
Os entrevistadores foram devidamente treinados e certificados e os mesmos cuidados eram mantidos semanalmente a cada entrega dos questionários, que eram cuidadosamente revistos pelos supervisores da equipe de coleta.
Por se tratar de uma pesquisa de campo realizada com a participação de grande número de entrevistadores, desse modo sujeita a ampla margem de erro, todos os procedimentos eram acompanhados de manual de instruções para correto preenchimento do questionário, padronização de técnicas de avaliação antropométrica e aferição de PA. Os entrevistadores e supervisores também participaram de reuniões periódicas, a fim de sanar dúvidas em relação ao instrumento de coleta e abordagem ao idoso.
As variáveis incluídas no presente estudo foram:
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Sóciodemográficas e ocupacionais: sexo (feminino e masculino); faixa etária agrupada em três categorias (60-69, 70-79 e 80 anos e mais); arranjo familiar (mora só e família/cônjugue); escolaridade (fundamental incompleto ou completo, médio incompleto ou completo, superior ou mais); ocupação (empregado, desempregado, licenciado, aposentado); plano de saúde (sim, não);
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Condição de saúde e aspectos relacionados à HAS: comprometimento cognitivo (sim, não), controle da PA (sim, não), IMC (eutrofia, baixo peso e excesso de peso/obesidade); autopercepção de saúde (muito boa/boa, regular e muito ruim/ruim); tempo de diagnóstico da HAS (≤ 10 anos e > 10 anos), adesão ao tratamento medicamentoso da HAS (aderentes, não aderentes);
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Uso dos serviços de saúde: tempo da última consulta para acompanhamento da HAS (≤ 3 meses e > 3 meses); participação em grupo de hipertensos na UBS (sim, não); avaliação do atendimento recebido pela equipe ESF (muito bom/bom, regular e muito ruim/ruim).
A função cognitiva foi avaliada com o Montreal Cognitive Assessment (MoCA test), desenvolvido especificamente para a triagem de formas mais leves de CC, com tempo de aplicação de aproximadamente dez minutos13. Os domínios que compõem o MoCA são habilidades visuoespaciais; funções executivas, atenção e concentração, linguagem, memória, capacidades visuoconstrutivas, cálculo, capacidade de abstração e orientação. O escore máximo do MoCA é de 30 pontos, escores mais altos refletem melhor desempenho13. No presente estudo foi utilizado o ponto de corte ≤ 24 pontos para presença de CC, com base nos resultados de sensibilidade e especificidade de 81% e 77%, respectivamente, no rastreio de CC em idosos brasileiros14.
A variável dependente deste estudo foi PA não controlada, definida como pressão arterial sistólica (PAS) ≥ 140 mmHg e pressão arterial diastólica (PAD) ≥ 90 mmHg. As medidas da PA foram realizadas com a utilização de aparelhos automáticos da marca OMROM, modelo HEM-7130 devidamente calibrados, e com manguito OMROM universal HEM-RML31 (22-42 cm) apropriado à circunferência do braço, conforme protocolo preconizado na VII Diretrizes Brasileira de Hipertensão Arterial Sistêmica3.
Para aferição da PA, o idoso permaneceu sentado, em ambiente silencioso, braço apoiado sobre a mesa e à altura do coração com repouso prévio de no mínimo cinco minutos, assim como ausência de esforço ou prática de exercício físico, uso de álcool ou cigarros nos últimos 30 minutos antecedentes às medidas e bexiga vazia.
Foram realizadas três medições de PA no braço esquerdo, com um intervalo de dois minutos entre elas, sendo a média das duas últimas aferições considerada a medida final. A circunferência do braço foi medida no ponto médio entre o acrômio e o olécrano do braço esquerdo, apoiado no nível do coração (quarto espaço intercostal) com o paciente sentado para aferição da PA.
Todos os participantes foram questionados sobre os medicamentos utilizados para hipertensão e orientados a mostrar as prescrições e/ou medicações em uso na ocasião da entrevista.
Para avaliar a adesão à medicação para hipertensão, utilizou-se o Brief Medication Questionnaire (BMQ), um instrumento validado para a população hipertensa15, composto por três domínios que identificam barreiras à adesão quanto ao regime, às crenças e à recordação em relação ao tratamento medicamentoso. O resultado do BMQ foi dicotomizado, considerando como não aderentes aqueles com escore ≥ 2 pontos.
O estado nutricional foi avaliado pelo índice de massa corporal (IMC), obtido pela divisão do peso, em quilogramas, pelo quadrado da altura, em metros, e classificado conforme o critério de Lipschitz16, considerando baixo peso (IMC < 22,0 Kg/m2), eutrofia (22,0 ≥ IMC < 27,0 Kg/m2) e excesso de peso (IMC ≥ 27,0 Kg/m2), com pontos de corte específicos para idosos.
A aferição do peso (kg) foi feita em balança portátil digital da marca Kikos ISON com capacidade de 150 kg e precisão de 0,1 kg, com display automático acionado com os pés do participante no momento da pesagem, sendo ele posicionado no centro da base da balança com os pés descalços e usando roupas leves. Para mensuração da altura (cm) foi utilizada fita métrica inelástica fixada à parede, com metragem máxima de 2 m e precisão de 1 mm, com o participante na posição ereta, descalço, calcanhares juntos e os braços estendidos ao longo do corpo.
Análise estatística
Realizou-se análise descritiva (frequências absolutas e percentuais/média e desvios-padrão [DP], mediana e intervalo interquartil [IQ]) para apresentar a distribuição dos dados sociodemográficos e das características clínicas, bem como o controle da PA. A normalidade dos dados foi avaliada pelo teste Shapiro-Wilk. Devido à distribuição não-normal dos domínios do MoCA, a comparação do desempenho cognitivo em cada domínio do MoCA entre os grupos com PA controlada e não controlada foi realizada pelo teste de Mann-Whitney. Para testar a associação entre variáveis categóricas, utilizou-se teste de qui-quadrado de Pearson e de tendência linear.
Foi adotada a regressão de Poisson com variância robusta para analisar a associação entre CC e o controle pressórico. As variáveis que apresentaram valor de p < 0,20 no modelo bruto (sexo, faixa etária, escolaridade, IMC, autopercepção de saúde, adesão ao tratamento medicamentoso e tempo da última consulta) foram incluídas no modelo de regressão múltipla.
O modelo foi ajustado para possíveis fatores de confusão (variáveis de controle), tendo como base a revisão de literatura. No modelo 1 foram introduzidas as variáveis sóciodemográficas (sexo, faixa etária e escolaridade); no modelo 2 acrescentaram-se as variáveis relacionadas a condição de saúde e HAS (IMC, autopercepção de saúde e adesão ao tratamento medicamentoso) e no modelo 3 foi acrescentada varáveis de uso dos serviços de saúde (tempo desde a última consulta).
Na análise ajustada foi utilizado o método de seleção de variáveis por passos (stepwise) com eliminação retrógrada. Sexo, idade e escolaridade foram considerados variáveis de controle, portanto estão presentes em todos os modelos. Na análise ajustada, permaneceram no modelo final apenas aquelas variáveis que apresentaram valor de p < 0,05.
Os dados foram duplamente digitados, corrigidos e sua consistência avaliada por meio do software Epi Info, versão 3.4.3. Todas as análises estatísticas foram conduzidas no programa R, versão 3.6.1, e os resultados expressos por meio das razões de prevalência (RP) e seus respectivos intervalos de confiança (IC) de 95%.
Aspectos éticos
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca - Fiocruz, sob o parecer n° 3.307.403, de 12 de maio de 2019, respeitando os preceitos éticos dispostos na Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.
Resultados
A maioria dos idosos hipertensos era do sexo feminino (64,2%) e idade entre 60 e 69 anos (46,5%). A maioria relatou tempo da última consulta há mais de três meses (54,3%) e não participar de grupos de hipertensos na unidade de saúde (77,5%) (Tabela 1).
A prevalência de CC aumentou linearmente de acordo com o aumento das faixas etárias e à medida em que diminuía os níveis de escolaridade. A prevalência de PA não controlada foi de 70,8% nos homens e 56,7% nas mulheres. Entre os idosos classificados com autopercepção de saúde “muito ruim/ruim”, a prevalência de PA não controlada foi mais alta (78,9%) do que entre idosos que avaliaram a própria saúde como “muito boa/boa” (65,8%), conforme a Tabela 1.A prevalência de PA não controlada foi de 61,6%. Idosos com CC apresentaram médias da PAS (144,3 [DP = 16,50] mmHg) e da PAD (85,66 [DP = 10,12] mmHg) mais elevadas do que os idosos sem CC (PAS: 124,9 [DP = 14,43] mmHg; PAD: 77,38 [DP = 9,40] mmHg; p < 0,001). O comprometimento da função cognitiva foi observado na maioria dos participantes (74,4%) e 77,5% destes apresentaram PA não controlada (p < 0,001) (dados não mostrados na tabela).
Os idosos hipertensos com PA controlada apresentaram maiores pontuações de desempenho na maioria dos domínios cognitivos, com exceção da função visuoespacial/executiva, comparados aos idosos com PA não controlada. Entre os idosos hipertensos com PA controlada, a pontuação mediana do MoCA foi mais elevada (25; IQ = 19-25 pontos), comparada àqueles com PA não controlada (20; IQ = 17-23 pontos), conforme a Tabela 2. A análise de regressão bruta mostrou que idosos hipertensos com CC apresentaram 5,07 (IC95% = 3,17-8,10) vezes a prevalência de PA não controlada quando comparados aos idosos sem CC. O CC permaneceu fortemente associado à PA não controlada (RP = 5,13; IC95% = 3,25-8,09) após ajuste pelos fatores de confusão (Tabela 3).
Discussão
Semelhante às poucas pesquisas internacionais identificadas na literatura9,12, os achados deste estudo indicam que o CC está fortemente associado à PA não controlada entre os idosos. O presente trabalho amplia o conhecimento acerca da hipertensão, particularmente em torno do controle pressórico em pessoas idosas, e os resultados avançam na compreensão do déficit cognitivo como importante fator associado à PA não controlada.
Populações em todo o mundo estão envelhecendo e a HAS é uma das doenças crônicas mais comum em idosos17, sendo reconhecida como fator de risco para doenças cardiovasculares18. Diante desse cenário, há evidências de que a HAS pode desempenhar um papel na disfunção cognitiva, aumentando os riscos de doenças relacionadas, como Alzheimer e demência vascular19.
Estudo de Piotrowicz et al.9 (2016), realizado com 1.988 idosos hipertensos em uso de anti-hipertensivos há pelo menos um ano, mostrou que o CC estava associado com um risco 15% mais elevado de controle inadequado da PA. Os autores ressaltam o alto impacto desses achados para a saúde dos pacientes e a importância da avaliação geriátrica, incluindo instrumentos de avaliação de cognição, como alternativas na triagem de indivíduos com risco aumentado de baixa adesão ao tratamento medicamentoso e assim ajudar a reduzir as baixas taxas de controle da PA na população idosa. Os autores destacam ainda que os pacientes com CC devem ser acompanhados regularmente com avaliação da saúde mental. Cuidadores e famílias também podem precisar de orientações para supervisionar o tratamento anti-hipertensivo, ou até toda a terapêutica farmacológica no caso de déficit, ainda que sutil, da função cognitiva.
Os resultados desta pesquisa identificaram que os idosos hipertensos com PA não controlada apresentaram pior desempenho no escore cognitivo total e na maioria dos domínios cognitivos. Os achados estão em consonância com outros estudos que verificaram baixo desempenho cognitivo em idosos hipertensos ou com PA aumentada20,21.
Contrapondo-se a outros estudos que encontraram diferenças significativas para todos os domínios cognitivos do MoCa21,22, no presente estudo não observamos diferença estatisticamente significativa nos escores do domínio função visuoespacial e executiva entre os participantes com PA controlada e não controlada.
O desempenho nas habilidades cognitivas é dependente das funções executivas e seu declínio pode implicar comprometimentos na capacidade de planejamento, flexibilidade mental e realização de ações estratégicas23. Essas são funções importantes para a tomada de decisões e o autogerenciamento do cuidado em saúde. Existem evidências de que alterações cognitivas podem surgir precocemente, podendo ser imperceptíveis24, sobretudo na memória e nas funções executivas. Além disso, a função executiva envolve múltiplos processos cerebrais e, por conseguinte, é o domínio cognitivo mais difícil de avaliar e com maior heterogeneidade em medições nos estudos25.
Alguns fatores adicionais podem explicar a heterogeneidade nos resultados sobre o comprometimento das habilidades visuoespaciais/executivas e sua relação com o controle pressórico, tais como tempo e gravidade da doença, tipo de medicação para HAS e níveis de PAS, em especial entre os idosos com idade mais avançada.
Existem informações limitadas sobre a função cognitiva e o controle da PA nos países de média renda. No Brasil, os dados epidemiológicos a respeito da influência do CC no controle pressórico são escassos, limitando o manejo na assistência aos pacientes e a atuação nos programas de informações baseadas em evidências, que permitem um melhor gerenciamento da HAS.
Os resultados encontrados no presente estudo trazem implicações importantes do ponto de vista clínico, uma vez que idosos hipertensos com CC podem ter o autocuidado e suas atividades da vida diária prejudicados. O CC pode levar a erros não intencionais de dose ou quantidade de medicamentos, esquecimento dos dias, horários ou tipo de medicamento em uso, interrompendo a continuidade do tratamento farmacológico e comprometendo o controle adequado dos níveis de PA.
Instrumentos de rastreamento possuem suas limitações. Apesar de achados na literatura sugerirem que o MoCA é uma ferramenta de triagem rápida e precisa na identificação e no diagnóstico de comprometimento cognitivo, em comparação a outros instrumentos, como o mini exame do estado mental21, uma bateria de testes pode ser mais eficaz na identificação de déficits em domínios cognitivos específicos.
Muitos estudos foram realizados para validação do MoCA em populações diversas e diferentes pontos de corte foram propostos26. De maneira semelhante ao nosso estudo, utilizando-se ponto de corte no MoCA de 25 pontos e correção de 1 ponto em pacientes < 12 anos de escolaridade, Muela et al.21 (2017) realizaram uma subanálise do desempenho cognitivo nos pacientes com alto nível de escolaridade (≥ 9 anos de estudo) e mesmo neste subgrupo de pacientes, em que o nível de escolaridade pode ter um possível efeito protetor, observou-se que o pior desempenho cognitivo esteve associado à gravidade do nível da PA.
A baixa escolaridade observada entre a maioria dos idosos deste estudo é um dado frequentemente encontrado em pesquisas atuais27. O número de anos de estudo, considerado fator de proteção neuronal, é também elemento de confusão diagnóstica, já que o desempenho de indivíduos com instrumentos de avaliação cognitiva é fortemente influenciado pela escolaridade28.
Desse modo, a variável educação é complexa e individual, podendo refletir na vida adulta e contribuir para o declínio intelectual no idoso29. As diferenças nas pontuações de corte propostas e a influência da escolaridade em muitos estudos ressaltam a importância de conduzir validações do MoCA em populações específicas, a fim de manter sua eficácia como ferramenta de triagem.
Forças e limitações do estudo
Este estudo fornece evidências de que o CC deve ser um elemento-chave na compreensão do controle pressórico inadequado em idosos hipertensos, expandindo a literatura existente sobre essa temática que tem sido pouco estudada. Além disso, o ajuste para possíveis fatores de confusão, como idade, a fim de evitar superestimar ou subestimar os resultados, foram importantes no entendimento da associação entre CC e PA não controlada.
Não obstante, esta pesquisa apresenta algumas limitações ao interpretar os resultados. O desenho deste estudo foi transversal, portanto não nos permite estabelecer uma relação causal entre CC e PA não controlada. Ressalta-se o possível viés de causalidade reversa, o que limita as inferências sobre a direcionalidade nessa associação (CC influenciando o controle da PA).
A amostra representada por idosos, restrita a apenas um município do interior do país, limita a generalização dos resultados para outras populações. Consequentemente, estudos futuros são necessários para uma abordagem mais abrangente e aprofundada a respeito do tema, a fim de elucidar as associações.
A aferição da PA em uma única visita também dificulta saber se os níveis de PA foram estáveis em outros momentos e por isso pode não refletir os valores pressóricos habituais. Além disso, embora se tenha utilizado o ponto de corte proposto por Memória et al. (2013)14 para a população brasileira, a baixa escolaridade encontrada na maioria dos participantes pode ter trazido algumas dificuldades na compreensão do conteúdo do MoCA.
Conclusão
A associação significativa entre função cognitiva e controle pressórico em idosos com hipertensão na ESF de Picos indica que a inclusão de medidas de rastreamento para possíveis déficits cognitivos pode ser uma importante aliada na avaliação da elevação dos níveis pressóricos em pessoas idosas hipertensas na atenção primária à saúde.
Os achados que destacam a alta prevalência de CC e PA não controlada podem subsidiar a realização de estudos que avaliem possíveis efeitos do CC nos níveis de PA em idosos hipertensos. Além disso, esses resultados podem colaborar para o aprimoramento da abordagem e da assistência a essa população, contribuindo para o planejamento de intervenções conforme individualidade, contexto e com o auxílio de cuidadores de idosos, a fim de determinar um melhor controle da HAS e prevenir complicações futuras.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Maio 2022 -
Data do Fascículo
Jun 2022
Histórico
-
Recebido
08 Jun 2021 -
Aceito
03 Nov 2021 -
Publicado
05 Nov 2021