Open-access Cuidados em saúde bucal a crianças e adolescentes com paralisia cerebral: percepção de pais e cuidadores

Resumo

Objetivou-se avaliar os cuidados em saúde bucal de crianças/adolescentes com Paralisia Cerebral (PC) segundo a gravidade, através da percepção dos pais/cuidadores. Estudo série de casos realizado em serviços de saúde de Pernambuco com 94 mães/cuidadores de sujeitos com PC entre 5 e 18 anos. Avaliaram-se fatores socioeconômicos, demográficos, cuidados em saúde bucal e uso de serviços odontológicos (SO). O Sistema de Classificação da Função Motora Grossa mostrou 67% com comprometimento motor grave. Indivíduos com PC grave tiveram frequência significantemente maior de pertencerem a famílias com renda mais baixa (89%, p < 0,001), residirem no interior (44%, p < 0,005), terem dificuldades de transporte (60%, p = 0,04) e acessibilidade aos SO (88%, p = 0,009) e maior necessidade de higiene bucal (67%, p = 0,008) realizada pelas mães (94%, p < 0,001). Apesar das barreiras de acesso aos SO, o mesmo foi facilitado para aqueles com PC grave, com uso precoce dos SO, mas com baixa oferta de dentistas e de humanização. Esses resultados informam problemas relacionados aos cuidados diários em saúde bucal, contexto de vida das famílias, de apoio institucional e de qualidade dos SO a serem enfrentados com políticas públicas socioeconômicas e de saúde integrais inclusivas e equânimes.

Palavras-chave Paralisia cerebral; Criança; Adolescente; Odontologia para pessoas com deficiência; Condições sociais

Abstract

The aim was to evaluate the oral health care of children/adolescents with Cerebral Palsy (CP) according to severity through the perceptions of parents/caregivers. A case series study was conducted at health services in the state of Pernambuco, Brazil with 94 mothers/caregivers of subjects with CP from 5 and 18 years old. Sociodemographic factors, oral health care and use of dental services (DS) were evaluated. The Gross Motor Function Classification System showed 67% with severe motor impairment. Subjects with severe CP had significantly higher frequencies of belonging to families with lower income (89%, p < 0.001), living in the interior (44%, p < 0.005), having transportation difficulties (60%, p = 0.04), difficulty regarding access to DS (88%, p = 0.009) and a greater need for oral hygiene (67%, p = 0.008), which was performed exclusively by the caregiver (94%, p < 0.001). Despite identified access barriers, dental care was facilitated for those with severe CP, early DS use, but low availability of dentists and low degree of humanization were cited as major problems. These results reveal problems related to daily oral health care, family living context, institutional support and quality of DS that should be addressed in comprehensive, inclusive, equitable social and economic public policies.

Key words Cerebral palsy; Child; Adolescent; Dental care for disabled; Social conditions

Introdução

A Paralisia Cerebral (PC) é uma desordem não progressiva da postura e do movimento, causada por uma lesão no sistema nervoso central, representando a forma mais comum de deficiência neuromotora em crianças. As manifestações clínicas são variadas, dependendo da extensão da lesão e da área neurológica comprometida1.

Grupos de indivíduos com PC têm sua condição de saúde bucal caracterizada em estudos nacionais e internacionais2-6 e já se confirma uma maior experiência de cárie, doença periodontal, maloclusão, bruxismo e quantidade de biofilme dentário2 nessa população com necessidades especiais7,8, o que pode aumentar com a idade da criança e variar com a gravidade da PC4,9.

A vulnerabilidade à cárie está associada à exposição mais intensa aos fatores de risco sociodemográficos, familiares, clínicos e comportamentais aos quais este grupo está exposto6,10. Diferentes estudos informam que são as crianças com PC submetidas à privação social aquelas que concentram os níveis mais elevados de cárie4,10,11. Dentre os fatores de risco proximais destacam-se as dificuldades na realização de atividades de autocuidado da vida diária, como comer, andar, banhar-se, vestir-se, conversar, como também de escovar os dentes2-4. Somando-se a estes estão o tipo de alimentação4,7 e a movimentação anormal da musculatura facial, os quais favorecem a retenção prolongada de alimentos na cavidade bucal6,7.

Apesar do reconhecimento das necessidades de saúde bucal apresentadas pelos pacientes com PC5,6, que requerem políticas públicas específicas e integrais de saúde bucal12, são relatados obstáculos à utilização de serviços odontológicos5,13-15. Dentre as barreiras destacadas estão a disponibilidade, a proximidade e a acessibilidade aos serviços odontológicos além de aspectos referentes às atitudes e crenças dos cuidadores, dentistas e pessoas com deficiência, entre outros13,14,16.

No Brasil, embora a implementação da Política Nacional de Saúde Bucal, a partir de 2004, tenha avançado na estruturação de uma rede de atenção em saúde bucal em todos os níveis de atenção e, de forma inédita, previu a atenção integral aos pacientes com necessidades especiais, antes praticamente inexistente – ainda persistem dificuldades de acesso e de oferta de uma atenção integral e resolutiva, segundo linhas de cuidado e condições de vida12,17,18.

Reiteradamente, para as crianças e adolescentes com necessidades especiais, como as com PC, ainda são informados problemas como a baixa oferta e dentistas capacitados, a demora no agendamento e a necessidade de anestesia geral5, além da frágil articulação entre os níveis de atenção, que comprometem a integralidade e a intersetorialidade das ações necessárias à promoção da saúde bucal desses pacientes, fatos esses que se enquadram como dificultadores do acesso10,17.

Apesar da crescente produção de estudos que abordem a compreensão dos usuários sobre a necessidade de cuidados em saúde bucal6,19 para pacientes com necessidades especiais, ela ainda é insuficiente6,20,21. Observa-se uma lacuna sobre o conhecimento mais ampliado referente à visão dos pais e cuidadores sobre os cuidados em saúde bucal que devem ser dispensados às crianças e adolescentes com PC5,6,20 que utilizam serviços de saúde em diferentes níveis de atenção no atendimento a essa população.

Diante disso, este estudo teve como objetivo avaliar os cuidados em saúde bucal de crianças e adolescentes com Paralisia Cerebral frequentadores de serviços de saúde especializados no atendimento a pacientes com necessidades especiais, através da percepção das mães e cuidadores.

Métodos

Efetuou-se um estudo observacional do tipo série de casos em três serviços de saúde, de portes diferentes, que acompanham crianças e adolescentes com Paralisia Cerebral. A pesquisa foi realizada na cidade do Recife, capital de Pernambuco, nos Serviços de Gastroenterologia Pediátrica e de Reabilitação (Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional) do Hospital das Clínicas (HC-UFPE), no Setor de Fisioterapia da Clínica Multiserviço e Home Care Pepita Duran e no setor de Fisioterapia da Fundação Giácomo e Lúcia Perrone (Fundação Perrone), no município de Jaboatão dos Guararapes/Pernambuco.

A pesquisa teve como participantes todos os responsáveis/cuidadores de crianças e adolescentes com Paralisia Cerebral que frequentaram os serviços mencionados no período de janeiro a agosto de 2017, e que se enquadraram nos critérios de elegibilidade.

Tais critérios tiveram como inclusão: ser responsável/cuidador de crianças e ou adolescentes com diagnóstico clínico de Paralisia Cerebral, com idade entre cinco e 18 anos, com comprometimento motor leve-grave de acordo com o Sistema de Classificação da Função Motora Grossa (GMFCS) e como de exclusão ser responsável/cuidador de crianças e adolescentes com Paralisia Cerebral que possuam malformação congênita não relacionada a doenças cromossômicas, deficiência auditiva e/ou visual e déficit cognitivo grave, totalizando assim, 94 participantes do estudo.

O GMFCS é um instrumento amplamente utilizado para classificar o grau de comprometimento motor em crianças e adolescentes com Paralisia Cerebral, apresentando cinco níveis ordinais (I-II: Leve; III: Moderado; IV-V: Grave) caracterizados pelas incapacidades da criança/adolescente e pelo nível de assistência de que o indivíduo necessita22.

A coleta de dados foi realizada através de entrevista com os cuidadores/responsáveis pelas crianças/adolescentes utilizando instrumento (formulário semiestruturado) elaborado pela pesquisadora e testado previamente, com a maioria de perguntas fechadas e pré-codificadas e algumas questões abertas sobre a percepção dos cuidadores/responsáveis em relação aos cuidados em saúde bucal da criança e/ou adolescente e opinião sobre sua saúde bucal.

Os pais/cuidadores foram contatados à medida que levaram suas crianças e adolescentes com PC aos serviços supracitados. Aquelas que aceitaram participar autorizando e assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foram entrevistadas – estando presentes apenas a mãe/cuidador e a pesquisadora – em um espaço reservado no próprio serviço, sendo mantido sigilo dos dados fornecidos.

As variáveis do estudo consistiram da avaliação do perfil socioeconômico e demográfico do participante, diagnóstico do comprometimento motor, uso de anticonvulsivantes, hábitos alimentares e de higiene bucal, trajetória da criança/adolescente no acesso odontológico e opinião dos pais/cuidadores sobre sua saúde bucal e sobre a saúde bucal da criança e/ou adolescente.

As análises descritivas foram apresentadas sob a forma de valores absolutos com respectivos percentuais. Os testes do Qui-quadrado com correção de Yates para as tabelas binárias e teste exato de Fisher, quando indicado, foram utilizados para verificar associação entre as condições socioeconômicas e demográficas familiares, hábitos de higiene bucal e cuidados odontológicos com a gravidade da Paralisia Cerebral. Para esta análise a gravidade da Paralisia Cerebral foi agrupada em duas categorias: leve/moderada (graus I, II e III) e grave (graus IV e V). Adotou-se valor de p < 0,05 como estatisticamente significante.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos do Centro de Ciências da Saúde da UFPE. As crianças/adolescentes que apresentaram déficit nos cuidados odontológicos foram encaminhadas para tratamento clínico odontológico no ambulatório da disciplina de Atendimento a Pacientes com Necessidades Especiais e Odontologia Hospitalar do Departamento de Clínica e Odontologia Preventiva da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Resultados

Participaram do estudo 94 mães/cuidadores de crianças e adolescentes com diagnóstico de PC na faixa etária entre cinco e 18 anos de idade. O cuidador principal foi representado mais frequentemente pelas mães (87,2%) com discreto predomínio (38,2%) na faixa etária de 40 anos ou mais, cerca de dois terços (63,8%) tinha nove anos ou mais de escolaridade e recebiam renda mensal de até dois salários mínimos. Em relação ao grau de comprometimento motor das crianças/adolescentes avaliado através do GMFCS, 31 (33%) apresentaram comprometimento leve (níveis I, II e III) e 63 (67%) comprometimento grave (níveis IV e V). A maioria (67%) tinha idade entre cinco e nove anos, 64,9% era do sexo masculino e 66% eram procedentes do Recife e Região Metropolitana. Quanto aos cuidados odontológicos, 8,5% referiu nunca ter ido ao dentista e entre os que foram, fizeram a primeira visita entre um e cinco anos de idade.

A Tabela 1 mostra percentual significantemente maior de crianças com paralisia cerebral grave pertencente à baixa renda, com maior procedência do interior do Estado de Pernambuco, com mãe/cuidador mais jovem, em uso de anticonvulsivante, alimentando-se através de sonda/gastrostomia com alimentos de consistência líquida/pastosa.

Tabela 1
Características das mães/cuidadores e das crianças/adolescentes com paralisia cerebral de acordo com o grau de comprometimento motor. Recife, 2017.

A Tabela 2 apresenta percentual significantemente maior de higiene bucal realizada apenas pelo cuidador, com dificuldade em realizá-la, pois o paciente não coopera/morde a escova, com utilização de gaze/tecido umedecido e ausência do uso do fio dental.

Tabela 2
Hábitos de higiene bucal de crianças e adolescentes com paralisia cerebral de acordo com o grau de comprometimento motor, Recife, 2017.

A Tabela 3 mostra a percepção das mães/cuidadores sobre a sua saúde bucal e a saúde bucal da criança/adolescente. Foram observados percentuais significantemente maiores de mães/cuidadores que percebem uma maior necessidade de cuidados na higiene bucal da criança e do adolescente. A maioria (94,6%) das mães/cuidadores informou que os problemas na saúde bucal podem gerar consequências. Dentre estas, uma proporção significante maior mencionou a ocorrência de dor dente (p = 0,03), prejuízo na estética dos dentes (p = 0,01) e no comportamento da criança/adolescente (p = 0,008) com paralisia cerebral grave.

Tabela 3
Percepção das mães/cuidadores sobre sua saúde bucal e a saúde bucal da criança/adolescente com paralisia cerebral de acordo com o grau de comprometimento motor, Recife, 2017.

Na Tabela 4 apresentamos o relato das mães sobre o acesso odontológico realizado alguma vez na vida da criança/adolescente ou nos últimos 12 meses. Não observamos diferenças significantes em relação aos cuidados em saúde bucal entre os dois grupos estudados.

Tabela 4
Relato das mães/cuidadores sobre o acesso odontológico de crianças e adolescentes com paralisia cerebral de acordo com o grau de comprometimento motor, Recife, 2017.

Na Tabela 5 as dificuldades relatadas pelas mães/cuidadores quanto ao acesso aos cuidados em saúde bucal mostraram uma proporção maior que relatou dificuldade quanto ao transporte e à acessibilidade ao serviço odontológico entre as crianças/adolescentes com paralisia cerebral grave, ambas com significância estatística (p = 0,04 e p = 0,009, respectivamente).

Tabela 5
Dificuldades relatadas pelas 74 mães/cuidadores que enfrentaram barreiras quanto ao acesso aos cuidados odontológicos de crianças/adolescentes com paralisia cerebral de acordo com o grau de comprometimento motor, Recife, 2017

Discussão

Neste estudo foi possível conhecer a visão das mães e cuidadores quanto aos cuidados em saúde bucal dispensados às 94 crianças e adolescentes com PC, frequentadores de serviços de saúde especializados na atenção a pacientes com necessidades especiais (PNE), além de identificar a associação entre condições socioeconômicas, demográficas, familiares e de cuidados à saúde bucal – referentes aos hábitos de higiene bucal e uso de serviços odontológicos –, com a gravidade da Paralisia Cerebral nessa população infanto-juvenil.

Dentre os principais achados verificou-se um quantitativo maior de sujeitos com PC grave pertencentes a famílias com condições socioeconômicas menos favorecidas, de procedência do interior do Estado e com maiores dificuldades de transporte e de falta de acessibilidade aos serviços odontológicos. Fatores esses que apresentaram significância estatística ao nível considerado de 5%. Esses resultados estão de acordo com os estudos que revelam existir associação expressiva entre pessoas com deficiência e fatores socioeconômicos desfavoráveis, especialmente entre aqueles com deficiência grave23,24.

No Brasil, 45,6 milhões de brasileiros têm pelo menos uma deficiência, segundo estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com base em dados colhidos em 2010. Entre as pessoas com cerca de 10 anos ou mais de idade, declaradas com deficiência, 46,4% ganham no máximo um salário mínimo. Em Pernambuco, esse número chega a um pouco mais de 50 mil pessoas com deficiência motora nessa situação de renda. Este estudo também revela que a maioria das pessoas que têm deficiência está concentrada em níveis de instrução e de rendimento muito baixos25.

Discute-se ainda que cuidar de uma criança com deficiência aumenta a demanda de recursos, pois os gastos são três vezes maiores do que com crianças típicas16,23. Neste estudo, a maioria dos participantes afirmou receber benefício, que permite o acesso de idosos e pessoas com deficiência às condições mínimas de uma vida digna26,27. Contudo, também é evidenciado que mães de crianças/adolescentes deficientes pertencentes aos extratos sociais mais baixos abandonam com mais frequência seus postos de trabalho para exercer o cuidado diário dos filhos17,20,24. Por conseguinte, as condições precárias de vida observadas entre as mães/cuidadores das crianças/adolescentes, especialmente com quadros mais graves de PC, podem exercer forte influência nos cuidados em saúde bucal desses sujeitos e na qualidade de vida28 de ambos, como foi percebido pelos entrevistados.

As mães/cuidadores relataram uma dependência no cuidado diário em saúde bucal assim como uma maior necessidade desta, que foram maiores naquelas crianças e adolescentes com comprometimento motor mais grave. Outros estudos semelhantes informam que indivíduos com necessidades especiais possuem elevada dependência de um cuidador para realizar as atividades da vida diária incluindo a higiene bucal29,30. Isto acarreta uma sobrecarga aos cuidadores e consequentemente um adiamento ou esquecimento das práticas de higiene bucal que não devem ser negligenciadas6,29. São relatados também uma série de problemas enfrentados cotidianamente pelos cuidadores principais, como o cansaço, o distúrbio do sono, a cefaleia, a perda de peso, a hipertensão, as insatisfações na vida social e afetiva, o isolamento e a exclusão social, a depressão, a erosão nos relacionamentos, a perda da perspectiva de vida, entre outros20,28.

A esses problemas – que podem reduzir a qualidade dos cuidados prestados a essa população e afetar a saúde e a saúde bucal de quem recebe e dá cuidados6,28 –, são adicionados aqueles relacionados ao apoio institucional, que devem prioritariamente ser dirigidos aos cuidadores familiares em condições de vulnerabilidades sociais19,26, que necessitam de ações de saúde educativas inclusivas, de aconselhamento psicossocial e de medidas de assistência social17,26,27.

De acordo com a percepção dos entrevistados, foi revelado que a maioria das crianças/adolescentes com PC grave possui problemas de saúde bucal que podem se relacionar à ocorrência e gravidade da cárie, apesar da maioria dos cuidadores afirmar ser o responsável principal pela higiene bucal desses sujeitos, realizá-la mais de três vezes ao dia e se mostrarem preocupados quanto à necessidade de higiene bucal desse grupo. Foram referidos e, respectivamente, obtiveram significância estatística a dor de dente, o comprometimento estético e a alteração do comportamento da criança. Esses resultados corroboram com outros achados que informam serem os grupos infantojuvenis com PC, submetidos a vulnerabilidades sociais e biológicas, aqueles que concentram os níveis mais elevados de cárie4,10,11.

A esses determinantes relacionados às condições de vida, devem ser considerados os fatores de nível proximal envolvidos na manifestação e gravidade dos índices de cárie demonstrados nessa população. É evidenciada na literatura a interferência das condições sistêmicas e motoras apresentadas pelos pacientes com necessidades especiais, especialmente os com PC1, nas práticas de higiene bucal2-6,9, assim como o tipo de alimentação utilizada – predominantemente de consistência líquida/pastosa4,7 e a alta frequência de uso de medicações anticonvulsivantes com alto teor de sacarose6,8.

Corroborando tais evidências, neste estudo, aspectos relatados pelas mães/cuidadores, como a baixa cooperação das crianças/adolescentes para o alcance de uma efetiva higiene bucal, a prevalência da alimentação líquida/pastosa e um maior uso de anticonvulsivante pelos pacientes com PC grave, configuram-se como fatores que podem aumentar o risco de cárie por favorecerem a retenção dos substratos alimentares sobre a superfície dentária das crianças/adolescentes4,7,11. As maiores frequências de dor de dente percebidas no grupo com PC grave reforçam tais suposições e podem ser interpretados como um indicativo de acúmulos de riscos de diferentes domínios31, com o consequente sinergismo de fatores de risco em áreas de vulnerabilidade social31, e que começaram a incidir sobre as crianças/adolescentes em idades anteriores, a partir do nascimento.

No que se refere aos pacientes com necessidades especiais, apesar de ser preciso um acompanhamento odontológico adequado às suas condições30, um menor acesso a serviços odontológicos por crianças e adolescentes com comprometimento físico ou mental mais grave ainda é encontrado5,32, além de problemas relacionados à utilização desses serviços5,13,16. Fatos esses que devem ser analisados considerando-se as disparidades de ordem social e econômica que podem dificultar o acesso e a utilização dos serviços de saúde bucal pelas crianças e adolescentes pertencentes a extratos sociais menos favorecidos e que são constatadas nacional15,33,34 e internacionalmente13,14,23.

Nesta pesquisa, dentre as barreiras de acesso aos cuidados odontológicos citadas, aquelas referentes à dificuldade de transporte e à falta de acessibilidade foram as que tiveram maior frequência de relatos entre os cuidadores de crianças e adolescentes com PC mais grave, apesar dessa população ter o direito conquistado ao transporte adaptado de qualidade e à acessibilidade e viverem em localidades onde foi implantado o projeto “Pernambuco Conduz – caminhos para a acessibilidade”, de iniciativa estadual, que consiste do atendimento especial gratuito facilitando a mobilidade de pessoas com alto nível de deficiência35.

Considerando esses aspectos, tais achados sugerem dificuldades no cumprimento de políticas públicas intersetoriais que incluam o transporte adaptado de qualidade e a acessibilidade, que facilite a rotina das mães/cuidadores e melhore a qualidade de acesso de pessoas com PC aos serviços de saúde, como na ida ao dentista. Ademais, esses resultados corroboram outros estudos, em que o transporte e a acessibilidade aos serviços de saúde bucal são as principais dificuldades vividas pelas mães de um filho com PC5,16,24. Contudo, a maioria dos entrevistados relatou ter acesso aos serviços odontológicos para si próprios, assim como, para as crianças/adolescentes, cuja maioria utiliza serviços públicos de saúde bucal, realizou a primeira ida ao dentista precocemente, entre um e cinco anos de idade, e utilizaram esses serviços mais de uma vez nos últimos 12 meses. Tais resultados concordam com outros estudos, realizados na Atenção Básica à Saúde, que passam a identificar melhorias no acesso dos pacientes especiais aos cuidados odontológicos prestados pelas equipes de saúde bucal36,37. Contudo, problemas que prejudicam a resolutividade no atendimento odontológico a essa população também foram vistos36.

Esses dados podem estar relacionados às iniciativas voltadas à estruturação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPD) que busca a ampliar o acesso e qualificar o atendimento às pessoas com deficiência no Sistema Único de Saúde (SUS) e o Programa Brasil Sorridente, que incluiu a atenção integral e integrada aos pacientes com necessidades especiais12,17,18. Porém, vale ressaltar que as condições de saúde bucal das crianças/adolescentes com PC grave, informadas pelos entrevistados e somadas ao motivo da consulta mais prevalente ser para urgência/tratamento, sugerem problemas de efetividade nas estratégias de saúde promocionais e preventivas para o controle dos problemas bucais percebidos nessa população, como a dor de dente. Ao mesmo tempo, revela ainda fragilidades na oferta de ações integrais em saúde bucal pelos serviços públicos odontológicos acessados por essa população com PC36.

Nessa discussão, devem-se considerar também outras questões que foram percebidas pelos entrevistados, como a baixa oferta de dentistas e a baixa humanização dos mesmos quando do atendimento das crianças/adolescentes. A baixa oferta de dentistas para atender pacientes especiais ainda é presente no Brasil, mesmo sendo um dos quatro países que tem a especialidade odontológica em pacientes especiais, reconhecida e registrada38 e onde houve a ampliação da oferta dos serviços odontológicos e de postos de trabalhos profissionais que se intensificaram a partir de 2004, com a Política Nacional de Saúde Bucal18,31,39.

Em adição, estudos nacionais apontam uma série de barreiras profissionais que estão envolvidas na atenção odontológica prestada aos pacientes com necessidades especiais, como dificuldades de ordem técnica, emocional, defasagens formativas17,37,40 e a ausência de adequada capacitação profissional12,40. Diante dessas evidências, supõe-se que a percepção dos entrevistados sobre uma baixa humanização no atendimento odontológico pode estar relacionada a essas barreiras, demonstrando possíveis problemas para efetivar políticas de formação e qualificação profissional para o atendimento à essa população12, com vistas ao alcance do cuidado em saúde bucal ampliado e humanizado conduzido sob a coordenação das ações de ABS12,17,37,39,41. Por fim, essas dificuldades profissionais relacionadas à provisão e à humanização da atenção à saúde se configuram como fatores limitantes da qualidade do atendimento público prestado à população com necessidades especiais por interferir na motivação e vinculação dos profissionais aos usuários, além de se constituir em um dos desafios a ser enfrentado pela política de saúde bucal para garantir o acesso e a qualidade do cuidado integral e integrado ao qual essa população tem direito.

Consideram-se como limitações do estudo a baixa validade externa, por ter sido realizado em uma amostra de conveniência (série de casos). Por outro lado, têm-se como pontos fortes os cuidados metodológicos de coleta de dados para que os resultados expressassem de fato a opinião prestada pelos participantes, minimizando o viés de informação.

Este estudo demonstrou, segundo a percepção das mães/cuidadores, a ocorrência de maiores dificuldades nos cuidados diários em saúde bucal para os sujeitos com PC grave e, apesar das barreiras de acesso aos serviços públicos odontológicos identificadas, a maioria percebeu haver um acesso facilitado com a utilização desses serviços precocemente, mas com a existência de problemas na qualidade dos cuidados odontológicos prestados.

Considerações finais

Com base nos principais resultados, torna-se evidente que os problemas percebidos pelas mães e cuidadores de crianças/adolescentes com PC necessitam prioritariamente serem enfrentados com políticas públicas socioeconômicas e de saúde integrais inclusivas e equânimes com foco populacional que resultem na melhoria da qualidade de vida e do cuidado integral e humanizado em saúde bucal ao qual essa população com necessidades especiais tem direito.

Ademais, as barreiras profissionais relacionadas ao acesso ao cuidado em saúde bucal referidas necessitam de maiores investimentos em políticas de capacitação profissional, na perspectiva da educação permanente, que devem ser referenciadas pelos pressupostos da clínica ampliada e da política nacional de humanização da saúde, que promovam maior envolvimento e compromisso sanitário diante do quadro de desvantagens sociais e em saúde bucal, sob o qual, a exemplo das crianças/adolescentes com PC grave da população investigada estão submetidas.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa à Marília Lima.

Referências

  • 1 Dougherty NJ. A review of cerebral palsy for the oral health professional. Dent Clin N Am 2009; 53(2):329-338.
  • 2 Du RY, Mcgrath C, Yiu CK, King NM. Oral health in preschool children with cerebral palsy: a case-control community-based study. Internat J Paediatr Dent 2010; 20(5):330-335.
  • 3 Jan BM, Jan MM. Dental health of children with cerebral palsy. Neurosciences 2016; 21(4):314-318.
  • 4 Huang ST, Hurng SJ, Liu HY, Chen CC, Hu WC, Tauangi YC, Hsiao SY. The oral health status and treatment needs of institutionalized children with cerebral palsy in Taiwan. J Dent Sci 2010; 5(2):75-89.
  • 5 Cardoso AMR, Brito DBA, Alves VF, Padilha WWN. O Acesso ao Cuidado em Saúde Bucal para Crianças com Deficiência Motora: Perspectivas dos Cuidadores. Pesq Bras Odontoped Clin Integr 2011; 11(4):593-599
  • 6 Soares J, Volpato LER, Castro PHS, Lambert NA, Borges AH, Carvalhosa AA. Avaliação do conhecimento sobre saúde bucal de pais e cuidadores de crianças e adolescentes com deficiência. J Health Sci Inst 2013; 31(3):239-243
  • 7 Lemos ACO, Katz CRT. Condições de saúde bucal e acesso ao tratamento odontológico de pacientes com paralisia cerebral atendidos em um centro de referência do Nordeste - Brasil. Rev CEFAC 2012; 14(5):861-871.
  • 8 Lemos ACO, Katz CRT. Cárie dentária em crianças com paralisia cerebral e sua relação com a sobrecarga dos cuidadores. Arq Odontol 2016; 52(2):100-110.
  • 9 Sedky NA. Assessment of oral and dental health status in children with cerebral palsy: an exploratory study. Int J Health Sci 2018; 12(1):4-14.
  • 10 Camargo MAF, Frias AC, Antunes JLF. The incidence of dental caries in children and adolescents who have cerebral palsy and are participating in a dental program in Brazil. Spec Care Dentist 2011; 31(6):2010-2215.
  • 11 Guerreiro PO, Garcias GL. Diagnóstico das condições de saúde bucal em portadores de paralisia cerebral do município de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. Cienc Saude Colet 2009;14(5):1939-1946.
  • 12 Caldas Júnior AF, Machiavelli JL, organizadores. Atenção e Cuidado da Saúde Bucal da Pessoa com Deficiência: introdução ao estudo Recife: Ed. Universitária, 2013.
  • 13 Nelson LP, Getzin A, Graham D, Zhou J, Wagle EM, Mcquiston J, Mclaughlin S, Govind A, Sadof M, Huntington NL. Unmet dental needs and barriers to care for children with significant special health care needs. Pediatr Dent 2011; 33(1):29-36.
  • 14 Academy of General Dentistry. Barriers and solutions to accessing care - to serve and protect the oral health of the public 2012. [acessado 2016 Abr 23]. Disponível em: https://www.agd.org/docs/default-source/advocacy-papers/agd-white-paper-barriers-to-care.pdf?sfvrsn=2
    » https://www.agd.org/docs/default-source/advocacy-papers/agd-white-paper-barriers-to-care.pdf?sfvrsn=2
  • 15 Gomes AMM, Thomaz EBAF, Alves MTSSDB, Silva AAM, Silva RA. Fatores associados ao uso dos serviços de saúde bucal: estudo de base populacional em municípios do Maranhão, Brasil. Cien Saude Colet 2014; 19(2):629-640.
  • 16 Pereira LMF, Caribé D, Guimarães P, Matsuda D. Acessibilidade e crianças com paralisia cerebral: a visão do cuidador primário. Fisioter Mov 2011; 24(2):299-306.
  • 17 Freire ALASS. Saúde bucal para pacientes com necessidades especiais: análise da implementação de uma experiência local [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2011.
  • 18 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Passo a passo das ações da Política Nacional de Saúde Bucal Brasília: MS; 2016. [acessado 2017 Out 23]. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/passo_a_passo_ceo.pdf
    » http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/passo_a_passo_ceo.pdf
  • 19 Curi DSC, Figueiredo ACL, Jamelli SR. Fatores associados à utilização dos serviços de saúde bucal pela população pediátrica: uma revisão integrativa. Cien Saude Colet 2018; 23(5):1561-1576.
  • 20 Souza SP, Silva A, Guaré RO, Santos MTBR. Qualidade de vida do cuidador e saúde bucal do indivíduo com necessidade especial. Pesq Bras Odontoped Clin Integr 2011; 11(2):257-262.
  • 21 El Ashiry EA, Alaki SM, Nouri SM. Oral Health Quality of Life in Children with Cerebral Palsy: Parental Perceptions. J Clin Pediatr Dent 2016; 40(5):375-387
  • 22 Hiratuka E, Matsukura TS, Pfeifer LI. Adaptação transcultural para o Brasil do sistema de classificação da função motora grossa (GMFCS). Rev Bras Fisioter 2010; 14(6):537-544.
  • 23 Baltor M, Dupas G. Experience from families of children with cerebral paralysis in context of social vulnerability. Rev Latino-Am Enfermagem 2013; 21(4):8-15.
  • 24 Simões CC, Silva L, Santos MR, Misko MD, Bousso RS. A experiência dos pais no cuidado dos filhos com paralisia cerebral. Rev Eletr Enf 2013; 15(1):138-145.
  • 25 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico 2010. Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência Rio de Janeiro: IBGE, 2012.
  • 26 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia prático do cuidador Brasília: MS; 2008.
  • 27 Brasil. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD). Viver sem Limite - Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência Brasília: SDH, SNPD; 2013.
  • 28 Braccialli LMP, Bagagi PS, Sankako AN, Araújo RCT. Qualidade de vida de cuidadores de pessoas com necessidades especiais. Rev Bras Educ Espec 2012; 18(1):113-126.
  • 29 Campanaro M, Huebner CE, Davis BE. Facilitators and barriers to twice daily tooth brushing among children with special health care needs. Spec Care Dentist 2014; 34(4):185-192.
  • 30 Nasiloski KS, Silveira ER, César Neto JB, Schardosim LR. Avaliação das condições periodontais e de higiene bucal em escolares com transtornos neuropsicomotores. Rev Odontol UNESP 2015; 44(2):103-107.
  • 31 Cascaes AM, Dotto L, Bomfim RA. Trends in the dental surgeon workforce in Brazil 2007-2014: a time series study using data from the National Registry of Health Services. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(1):e201723615.
  • 32 Chi DL, Raklios N. The relationship between body system-based chronic conditions and dental utilization for Medicaid-enrolled children: a retrospective cohort study. BMC Oral Health 2012; 12:28.
  • 33 Schwendler A, Faustino-Silva DD, Rocha CF. Saúde Bucal na Ação Programática da Criança: indicadores e metas de um Serviço de Atenção Primária à Saúde. Cienc Saude Colet 2017; 22(1):201-207.
  • 34 Macedo AO, Melo MMDC. Factors for the Use of Dental Services Associated with Untreated Caries in Children of a Cohort and the Care Offered in the Primary Health Care of Recife, Brazil. Pesq Bras Odontoped Clin Integr 2018; 18(1):3704.
  • 35 Pernambuco. Lei nº 14.218, de 30 de novembro de 2010. Cria o Programa Pernambuco Conduz, e dá outras providências [acessado 2017 Out 24]. Disponível em: http://www.peconduz.pe.gov.br/files/LEI%20N%C2%BA%2014.218.pdf
    » http://www.peconduz.pe.gov.br/files/LEI%20N%C2%BA%2014.218.pdf
  • 36 Lawrence G, Sousa LP, Gonçalves FL, Saintrain MVL, Vieira APGF. Acesso à Saúde Bucal Pública pelo paciente especial: a ótica do Cirurgião-Dentista. Rev Bras Promoç Saude 2014; 27(2):190-197.
  • 37 Macêdo G, Lucena E, Lopes I, Batista L. Acesso ao atendimento odontológico dos pacientes especiais: a percepção de cirurgiões-dentistas da atenção básica. RCP 2018; 4(1):67-80.
  • 38 Faulks D, Freedman L, Thompson S, Sagheri D, Dougali A. The value of education in special care dentistry as a means of reducing inequalities in oral health. Eur J Dent Educ 2012; 16(4):195-201.
  • 39 Chaves LA, Jorge AO, Cherchiglia ML, Reis IA, Santos MAC, Santos AF, Machado ATGM, Andrade EIG. Integração da atenção básica à rede assistencial: análise de componentes da avaliação externa do PMAQ-AB. Cad Saude Publica 2018; 34(2):e00201515
  • 40 Jacomine JC, Ferreira R, Sant’Ana ACP, Rezende MLR, Gregui SLA, Damante CA, Zangrando MSR. Saúde Bucal e Pacientes com Necessidades Especiais: percepções de graduandos em Odontologia da FOB-USP. Revista da ABENO 2018; 18(2):45-54.
  • 41 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Básica Brasília: MS; 2012. (Série E. Legislação em Saúde)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Out 2020

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2018
  • Aceito
    11 Fev 2019
  • Publicado
    13 Fev 2019
location_on
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro