Open-access Do empreendedor de si mesmo à medicalização da performance: reflexões sobre a flexibilização no mundo do trabalho

Resumo

O presente ensaio crítico-reflexivo busca discutir a medicalização da performance a partir de reflexões sobre a flexibilização no mundo do trabalho e o fenômeno do empreendedorismo de si. Em um contexto de financeirização da economia, reestruturação produtiva e fragilização do Estado como esfera garantidora dos direitos sociais, impera a precarização e a informalidade, onde a flexibilização do trabalho ocorre em consonância com estratégias político-ideológicas de inspiração neoliberal. Emergem então, modos de individualização atrelados à construção de um trabalhador disposto a desenvolver variadas habilidades, que passa a ser um potencial empreendimento e ter como princípio a mesma dinâmica mercadológica deste. O empreendedor de si mesmo precisa investir em si para manter-se valorizado e em boas condições de funcionamento, de modo a evitar a sua descapitalização. Para dar condições ao sujeito de sustentar a imagem de sucesso e de autor de sua própria história, a utilização de medicamentos, estimulantes e polivitamínicos, tem sido usada como estratégia em busca de alta performance. Problematizar os “empreendedores de si”, as novas formas de subjetivação e o sofrimento advindo destas, bem como a maquinaria que os produzem é necessário, e se constitui um desafio para a saúde coletiva.

Palavras-chave: Mercado de trabalho; Substâncias para melhoria do desempenho; Saúde Pública

Abstract

This critical-reflective essay seeks to discuss the medicalization of performance based on reflections on flexibility in the world of work and the phenomenon of self-entrepreneurship. In a context of economy financialization, productive restructuring and State’s weakening as guarantor of social rights, precarization and informality are increasingly prevailing, where the promotion of labour flexibilization occurs in line with political-ideological strategies of neoliberal inspiration. There emerge ways of individualization tied to the construction of a multifunctional worker, available to develop multiple abilities, which becomes a potential enterprise and has as a principle the same market dynamics as this enterprise. The entrepreneur of the self needs to invest in itself to keep being valuable and having great functioning conditions, in order to avoid, to the fullest, its own decapitalization. Therefore, in order to enable conditions to sustain the image of success and of author of its own story, the usage of medicines, stimulants and multivitamins has been used as a strategy in search of high performance. To reflect on “the entrepreneur of the self”, the new ways of subjectivity and the suffering derived from those, as well as the apparatus that produces them, is necessary and consists in a challenge for community health.

Key words: Job market; Performance-enhancing substances; Public Health

Para os homens, a liberdade, na maioria dos casos, não é outra coisa senão a faculdade de escolherem a servidão que mais lhes convém”.

Gustave Le Bom

Introdução

O presente ensaio crítico-reflexivo busca discutir a medicalização da performance a partir de reflexões sobre a flexibilização no mundo do trabalho e sobre o fenômeno do empreendedorismo de si. Para isso abordaremos inicialmente a crise estrutural do capitalismo, segundo Istvan Mészaros, seguindo com reflexões sobre a precarização do trabalho em tempos de crise e a construção social do “empreendedor de si mesmo” até chegarmos na medicalização da performance na pós-modernidade.

Cada vez são mais comuns frases como: “Empreendedorismo, 7 passos para o sucesso”, “Desemprego: como transformar o momento ruim em oportunidade”, “Trabalhe enquanto eles dormem, aprenda enquanto eles festejam, viva como eles sonham...” ou ainda “O seu sucesso depende de você”. Frases como essas passam a mensagem de que as pessoas pelo seu próprio esforço e determinação conseguirão êxito, especialmente no campo laboral e financeiro. Além disso, esse bombardeamento midiático de frases de impacto e histórias de superação cria uma cortina de fumaça para encobrir os índices crescentes de precarização do trabalho e o aumento alarmante do desemprego no Brasil, os quais têm sido fortemente associados à crise sanitária e à instabilidade econômica vividas no país. Nesse cenário, a saída “empreendedora” aparece como promessa de solução, na qual as pessoas passam a vislumbrar, no esforço individual, a principal, senão única oportunidade para sobreviver à crise1.

A crise estrutural do capitalismo

A partir da análise da conjuntura atual, percebe-se que esse cenário de crise, mais especificamente de crise do capitalismo não se apresenta apenas como mais uma crise momentânea do capital, consequência de um mau desempenho passageiro da economia, mas trata-se de uma crise profunda, duradoura e estrutural. Situação em que a classe dominante busca, como possibilidade de saída dessa situação, a redução da remuneração da classe trabalhadora e ampliação da sua exploração1.

Segundo Istvan Mészaros2, a crise estrutural do capitalismo, inicia-se em 1973, com a crise do petróleo, e possui uma trajetória contínua de aprofundamento, apesar dos períodos de desaceleração. Segundo o autor, a crise leva a constatação de que o capital não tem limites para sua expansão, o que acarreta um processo incontrolável, destrutivo e despreocupado com as pessoas. A crise trabalhada por Mészaros2 tem como base a insustentabilidade do capitalismo com sua decrescente taxa de lucro e aumento irrefreável das desigualdades sociais e econômicas, fazendo com que haja um descompasso entre superprodução e consumo.

Nesse sentido, o Estado contemporâneo atual, impulsionado pelo contexto de crise, tem intensificado as formas de exploração do trabalho por meio da retirada de direitos trabalhistas. Sucedem-se a terceirização, a flexibilização, o contrato de zero horas (contrato que garante apenas a disponibilidade do trabalhador, mas não assegura renda), a uberização (trabalho terceirizado, com vínculos apenas digitais com a empresa que possui como grande empregadora a empresa Uber, mas há muitas outras, a Uber é apenas um exemplo), a pejotização (agora os trabalhadores em muitos setores precisam registrar uma empresa, pessoa jurídica - PJ - a fim de prestar serviços, acabando com encargos trabalhistas), o home office (atividade remota em caráter sazonal, esporádico e eventual, em que o trabalho realizado em casa deve ser igual ao realizado na empresa com idêntica jornada de trabalho), o teletrabalho (modalidade em que o a empresa não pode controlar a jornada de trabalho, nem fazer remuneração adicional, podendo apenas pagar reembolso com despesas adicionais como internet por exemplo), e o fim de qualquer forma de proteção social. Além disso, as novas tecnologias de informação e comunicação (TIC), a partir de um instrumental sofisticado de gestão e de controle da força de trabalho que determina quem pode trabalhar, como, de que forma, e em quanto tempo o trabalho deverá ser feito, qual o valor a ser recebido pela realização de tarefa, entre outros, acabam por pressionar coercitivamente os trabalhadores para serem assíduos, não negarem serviços demandados e estarem disponíveis, com base em ameaça de bloqueio e possibilidade de dispensa a qualquer tempo e sem necessidade de justificativa ou aviso prévio. Visam em última instância aumentar “exponencialmente as formas de obtenção de lucros e até mesmo de extração do mais valor”, auxiliando no aprofundamento e na potencialização das modalidades de precarização do trabalho. Para isso, as grandes empresas e plataformas digitais se utilizam de um discurso no qual propõem-se intermediar atividades entre consumidor final e trabalhadores que oferecem serviços de forma autônoma, convertendo assim a força de trabalho em clientes, eliminando a subordinação destes, e alegando que estes desfrutam de liberdade para trabalhar quando, onde e como quiserem3,4(p.33).

Desse modo, a classe trabalhadora fica desprotegida com relação à saúde, educação, habitação, renda mínima, segurança alimentar. Como se não bastasse a ausência de proteção social, o discurso empreendedor culpabiliza os indivíduos pelo seu fracasso individual, o qual costuma ser a regra3,5. O termo “classe trabalhadora” refere-se ao imenso coletivo que depende do próprio trabalho para sobreviver, pois o discurso empreendedor, apêndice do neoliberalismo, afeta a toda uma classe, seus direitos e a condição concreta de vida, não importa se são jovens ou idosos, mais ou menos pobres, todos sofrerão, com diferenças e de diferentes formas, as consequências da desproteção social que vem do Estado.

Essa ideologia se materializa por meio de alterações da constituição brasileira, como a Reforma Trabalhista6 e a Reforma da Previdência7. A Reforma Trabalhista - Lei nº 13.429/20176 - abre mais espaço para relações de trabalho onde a exploração do trabalhador e a supressão de seus direitos tomam papel central, por meio de novas formas de contratação, jornada flexível, remuneração e proteção social reduzidas. A Reforma Trabalhista de 2017 amplia a liberdade dos empregadores em determinar as condições de contratação, o uso da força de trabalho e a remuneração dos trabalhadores. Os empregadores passam a definir as regras da relação de emprego às empresas de forma a restringir a participação das organizações dos trabalhadores e do Estado, trazendo insegurança e perda de direitos dos trabalhadores, bem como a diminuição da proteção social8. Nesse contexto, com salários menores, jornadas de trabalho maiores, altos índices de acidentes de trabalho e insegurança decorrentes da burla da legislação social e protetora do trabalho, a terceirização assume cada vez mais relevo na corrosão do trabalho e de seus direitos9,10. Como consequência, temos a configuração de novas imagens proletárias (como os freelancers), produzidas pelas transformações das relações salariais em tempos de produção flexível11.

Já a Reforma da Previdência Social7, trouxe significativos retrocessos para a proteção social, pois endurecimento as regras para a concessão dos benefícios não consideram a condição de vida da maioria dos brasileiros. Com essa reforma, a garantia do mínimo existencial ficou comprometida. Um grande número de trabalhadores que entregaram o seu tempo de trabalho sofrerá drásticos prejuízos no momento de maior vulnerabilidade das suas vidas, na aposentadoria. No Brasil, a previdência Social que era um instrumento em prol da dignidade humana e da erradicação da pobreza, afastou-se desses propósitos e poderá ocasionar mais desigualdades sociais com a Reforma da Previdência12.

Na realidade brasileira, emerge uma heterogeneidade de formas de contratação na classe trabalhadora. Todas marcadas pelas diversas modalidades de contratos atípicos de trabalho, por tempo indeterminado, configurados pela lógica da flexibilização produtiva. São exemplos, os contratos de trabalho temporário, de tempo parcial, de terceirização (subcontratação) de aprendizagem (estagiários), além do próprio trabalho informal11. Assim, a classe trabalhadora hoje é mais ampla, heterogênea, complexa e fragmentada do que o proletariado industrial do século XIX e XX10.

Entre as medidas em questão, está a reforma trabalhista, que, na forma da Lei nº 13.467/2017, alterou 201 pontos da legislação trabalhista e, liberalizou a terceirização e ampliou o contrato temporário.

Nesse contexto, o fomento de estratégias de flexibilização no mundo do trabalho ocorre em estreita consonância com as estratégias político-ideológicas de inspiração neoliberal que veem no redirecionamento das funções do Estado, uma condição para o bom funcionamento do mercado11. A complexa articulação entre financeirização da economia, neoliberalismo, reestruturação produtiva e as mutações no espaço microcósmico do trabalho e das empresas, tem afetado profundamente a classe trabalhadora. A lógica neoliberal é explícita em colocar o Estado a serviço das empresas em detrimento do atendimento de direitos básicos como saúde, educação e saneamento. Ou seja, o capitalismo atual apresenta um processo multiforme, no qual informalidade, precarização e insegurança se tornaram mecanismos vitais para o capital10,13.

A precarização do trabalho em tempos de crise

Em tempos de crise, especialmente de crise sanitária e econômica, semelhante com a qual estamos vivendo no Brasil e no mundo em decorrência do coronavírus a precarização das relações de trabalho e dos direitos trabalhistas revela-se uma “[...] estratégia de dominação que atinge a todos os trabalhadores, mesmo que de forma diferenciada e hierarquizada, como parte da dinâmica de desenvolvimento do capitalismo flexível no contexto da globalização e da hegemonia neoliberal”9 (p.16).

Dessa forma,

em um cenário social no qual a lógica da precarização dos direitos instala-se como um elemento constitutivo da nova configuração do mundo do trabalho, os trabalhadores veem-se obrigados a aprender a lidar com as situações de risco decorrentes da condição de transitoriedade das novas formas de ocupação e do efeito desmobilizador que estas produzem sobre o coletivo dos trabalhadores11(p.123).

Como consequência dessa nova morfologia do trabalho, que se coloca à serviço do capitalismo com o objetivo de recuperar as formas econômicas, políticas e ideológicas da dominação de classe, tem-se, além da eliminação dos direitos trabalhistas, da seguridade social e da intensificação da jornada de trabalho, o incremento do trabalho isolado, provido de uma sociabilidade precária e distorcida pelo padrão concorrencial, sem representação sindical de classe. Assim, transitar em um mundo de instabilidade e incertezas produzidas pela fragilização dos direitos vinculados à rede de proteção ligada ao assalariamento é a característica fundamental da condição de trabalhador precarizado, situação de fragilidade e dificuldade de resistência3,10,11.

De acordo com Standing14 o precariado é uma classe em construção. Seu trabalho é de natureza frágil e instável, associado à casualização, à informalização, às agências de emprego, ao regime de tempo parcial entre outros. Para o autor, o precariado depende quase exclusivamente de salários nominais, estando normalmente sujeito a flutuações e não dispondo de um rendimento seguro, encontrando-se exposto a uma incerteza crônica, e a uma vida de incógnitas, além de possuir menos direitos do que todos os demais trabalhadores assalariados.

Assim, em um contexto social de crescente pauperização e exclusão social, produzidas pela fragilização do Estado como esfera pública garantidora dos direitos sociais, cada vez mais impera a precarização, a informalidade, o subemprego, com mais trabalhadores intermitentes, mais eliminação de postos de trabalho e menos pessoas trabalhando com seus direitos preservados. Emergem então, estratégias de individualização atreladas à construção de um tipo de trabalhador polivalente, sempre disposto a desenvolver as habilidades e obter as qualificações tidas como adequadas às mudanças de interesses do capital. Utiliza-se como subterfúgio, como forma de amenizar a gravidade desta realidade, a narrativa do indivíduo como empreendedor de si mesmo, numa espécie de empregador e assalariado de si próprio, onde os indivíduos passam a perceber-se como desvinculados de qualquer projeto coletivo10,11. Redirecionam-se, sob esse olhar, questionamentos e análises de problemas sociais para níveis individuais de resolução, transferindo-se assim a responsabilidade do Estado pelas mazelas sociais, para os próprios sujeitos15.

A construção social do “empreendedor de si mesmo”

Com a presença marcante do modelo neoliberal de governo, observa-se a valorização do indivíduo autônomo que, desassistido pelo Estado, seria capaz de gerir a si mesmo e estaria apto a sobreviver às oscilações do mercado. Desamparado pelas leis trabalhistas e pela previdência social, cada trabalhador passa a ser seu próprio vendedor e/ou empregador, tornando-se um potencial empreendimento1.

Como empreendimento individual, o empreendedor passa a “dançar conforme a música” tocada pelo modelo econômico vigente. Em um

discurso otimista no qual a resolução dos problemas causados pela crise e pelo desemprego depende apenas de um esforço pessoal no sentido de se adequar à racionalidade neoliberal que demanda subjetividades autônomas, predispostas ao risco e à competição, flexíveis e em constante movimento1(p.605).

Aponta-se para a direção política da competitividade e da meritocracia desmedida que culpabiliza o indivíduo pelo seu insucesso, ou “fracasso”16,17.

A crença difundida de que seriam as características e esforços individuais que definiriam a ascensão na hierarquia social coloca a categoria indivíduo (individualização), em um lugar de centralidade no discurso neoliberal, buscando manter os corpos produtivos e dóceis, e com isso, o bom o funcionamento da máquina capitalista18,19. Isso seria o que Monteiro et al.17 chamam de sociedade globalizada de controle, onde tudo e todos estão incluídos na lógica capitalista, marcados profundamente pelo modo individual de subjetivação, que afirma o consumo e a ascensão social como pré-requisitos de humanidade.

Além disso, parece haver também uma nova “moralidade” de mercado, uma forma de regulação que impele os indivíduos a afastarem-se de alguns princípios morais socialmente vigentes em períodos pré-globalização, e seguirem padrões e formas de sentir, pensar e atuar sob a égide da alta competitividade que marca o âmbito laboral e de busca individualista de satisfação na pós-modernidade20.

A pós-modernidade se caracteriza como uma época marcada pela supremacia da mercadoria, pela transformação da cultura, pelo advento das sociedades neoliberais e por consequência pelo desmonte do Estado21,22, onde as normas que antes (modernidade) regiam a vida cotidiana e comunitária passam a ser substituídas pela lógica “vale-tudo” do mercado23.

A partir da produção desejante imposta pelo modelo do capitalismo contemporâneo, os desejos, aspirações e crenças do indivíduo não são exclusivamente dele, mas, produzidos nos encontros que ocorrem no campo social, que por conseguinte acabam construindo, certos tipos de subjetividade24,25.

De acordo Romanini e Detoni19, a concepção de subjetividade implica em uma produção incessante, que ocorre a partir dos encontros vivenciados com o outro, seja o outro social, a natureza, os acontecimentos, as pessoas - aquilo que produz efeitos nas maneiras de viver - não sendo passível de totalização ou de centralização no indivíduo, mas sendo essencialmente fabricada e modelada no registro do social26.

Dessa forma, com a ascensão do neoliberalismo e do espírito empreendedor em diversos âmbitos, cada sujeito tornou-se uma empresa, e passou a ter como princípio a mesma dinâmica mercadológica deste. Ou seja, há a necessidade de investir em si mesmo para manter-se valorizado, com alta cotação e com “boas condições de funcionamento”, além de estar apto à volatilidade das demandas sociais e mercadológicas, de “modo a evitar, até as últimas consequências, a sua própria descapitalização”27(p.5). Dessa forma, “a finalidade neoliberal é tornar o trabalhador [...] um empresário da unidade-empresa personificada em si e por si, sendo, ao mesmo tempo, capital, produtor e fonte de renda de si mesmo”28(p.175).

Entretanto, o protagonista da contemporaneidade parece estar sempre um passo atrás em relação às novidades do consumo, bem como às novas competências e exigências do mercado. Despido do sentimento de satisfação, encontra-se envolto no fluxo de informações irrestrito que circula pelas redes, na imposição da formação contínua e ilimitada, além da alta performance que lhe é exigida (e quase nunca alcançada) nos diversos papéis sociais que desempenha27.

Na mesma perspectiva, Goffman, em sua obra A representação do eu na vida cotidiana29, coloca que os indivíduos assumem diferentes personagens e atuam como “atores do cotidiano”, fazendo uma metáfora da vida social como um palco teatral. Para o respectivo teórico, as pessoas cooperam entre si, de modo a garantir a continuidade do espetáculo, estando preocupados com a atuação de personagens particulares ou versões de si mesmas diante das plateias com as quais se deparam, visto que o sucesso de cada atuação depende da percepção/aprovação da audiência. Na frente do palco, é representado o personagem escolhido, e nos bastidores, os atores relaxam desse papel. Ou seja, no que Goffman denominou de “perspectiva dramatúrgica”, os atores criam impressões de si mesmos e representam para plateias, ao mesmo tempo em que servem de audiência para outros atores30, elevando à última potência, na atual sociedade do espetáculo31, a máxima Hollywoodiana de que o “show não pode parar”.

O conceito de “Sociedade do Espetáculo”, desenvolvido por Guy Debord, em síntese, diz respeito a um universo onde só se é o que se vê e como se deixa ver. Nesse contexto, que parece se cristalizar em todas as esferas do cotidiano, alguém só existe de fato se tornar sua performance visível, e preferencialmente invejada pelos demais, sendo necessário assim lutar permanentemente para se sobressair em um mercado de aparências cada vez mais competitivo31,32.

Desse modo, de acordo Ehrenberg16, a sociedade contemporânea tem se encontrado sob a égide do culto à performance, onde cada vez mais é valorizada uma natureza heroica, cujo modelo instituído é de um indivíduo que não depende de ninguém e que assume os riscos pelas suas ações. Em outras palavras, o modelo almejado e cada vez menos sutilmente exigido, é o do indivíduo empreendedor.

Esse processo de coisificação, de reificação ou, transformação das pessoas em mercadorias foi teorizado por Karl Marx, nos Manuscritos Econômico-filosóficos de 184433. Marx, partindo da centralidade do trabalho, debruça-se sobre a categoria alienação. Para Marx, a alienação pode ser analisada sob quatro aspectos: a alienação do homem em relação à natureza, quando o trabalhador deixa de produzir seu alimento, sua moradia, sua roupa e passa a olhar para o meio ambiente natural com estranhamento; a alienação do trabalhador em relação ao próprio trabalho, pois seu trabalho não serve mais para si, ou para atender a necessidades próprias, mas para servir a outrem em troca de um salário; alienação do trabalhador com relação à espécie humana, quando o trabalhador não se percebe mais como pertencente à comunidade, a individualização aliena os trabalhadores com relação ao pertencimento, ao afeto, aos vínculos próprios dos humanos; e por último, Marx sugere a alienação em seu nível mais profundo e complexo, a autoalienação, quando o trabalhador se desvincula de si mesmo e não se percebe mais em seus atos, em seus desejos e em sua capacidade como agente no devir histórico.

Há que se considerar, portanto, que esse processo de reificação humana não é algo inédito na história da humanidade. É necessário contextualizar esse processo e perceber sua dramática intensificação no atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas, onde a acumulação e a produção de desigualdades sociais tomou um ritmo destruidor.

A medicalização da performance na pós-modernidade

Para atingir os ideais de performance contemporâneos, permeados pela obsessão de ganhar, de vencer, de ser alguém, e em última instância, de ser reconhecido e valorizado, o consumo em massa de substâncias farmacológicas, especialmente medicamentos psicotrópicos tem se tornado uma tentativa de extensão dos próprios limites, visando à inserção e ao atendimento das expectativas do espírito empresarial e das novas dinâmicas que movimentam a sociedade pós-moderna27,34.

Além disso, na pós-modernidade, mais do que apenas ser bem-sucedido, o discurso sobre o bem-estar e estilo de vida saudável, bem como a busca incessante pela felicidade, tornaram-se metas primordiais a serem alcançadas. “De um direito democrático, a felicidade passou a ser um imperativo”22(p.176), no qual a tecnologia farmacêutica de drogas lícitas é um caminho construído por fórmulas, prescrições e bulas, para a conquista dessa felicidade, além de um meio para tornar o indivíduo mais eficiente e capaz de responder às exigências de uma (ótima) performance permanente.

A este respeito, Binkley35 argumenta que, o imperativo de ser feliz está alinhado à tarefa de tornar-se um ator social autônomo, independente, autocentrado, controlado e empreendedor. Para ele, a felicidade seria uma “tecnologia” do governo neoliberal, na qual sua gestão otimizada e técnicas de intervenção sobre o sofrimento, e (cada vez mais) sobre a performance, tornaram-se instrumentos de governamentalidade. Governamentalidade é um conceito desenvolvido por Foucault que apresenta um sentido eminentemente político. Passou por várias conceituações, porém no presente ensaio entendemos como o encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de dominação exercidas sobre si36.

Assim sendo, para tamponar qualquer manifestação e emergência de afetos indesejados ao mercado, como insatisfação, preguiça, insegurança, medo, tristeza, entre outros, considerados negativos “pelo empreendedorismo de si”, o autocontrole passa a ser uma demanda do sujeito, que busca silenciar sua subjetividade que insiste em aparecer. Para isso, um dos apoios em busca da performance empreendedora é a utilização de medicamentos, estimulantes e polivitamínicos, que ultrapassando o uso terapêutico, torna-se cotidiano e generalizado a fim de dar condições ao sujeito de sustentar a imagem de sucesso e de autor de sua própria história37.

Sem matriz cultural ou conhecimento que propiciem outra saída, os novos trabalhadores, agora empreendedores, aceitam sua condição de vulnerabilidade e de insuficiência diante do Deus mercado e se submetem a tratamentos médicos ou automedicação. Cria-se assim um processo cíclico e vicioso em que o indivíduo aprende a se ver como consumidor de emagrecedores, estimulantes, calmantes, ansiolíticos, soníferos e outras tantas promessas de vida melhor. Por outro lado, e coerentemente, a “performance empreendedora” passa a ser encarada como obrigação, em termos de comportamentos prescritos para o sucesso. Se torna uma obsessão do sujeito pós-moderno transformado em mercadoria e consumidor sob o discurso da saúde, levando as pessoas a um processo de perda da autonomia. Segundo Illich38, esse processo de medicalização social da vida leva em geral a um decréscimo na boa saúde: a capacidade de manter, intervir e transformar de forma autônoma e socialmente compartilhada, a própria vida e o meio em que se vive, com vistas a preservar e ou aumentar o grau de “liberdade vivida”.

A mesma medicalização denunciada por Illicht38, em Nêmesis da Medicina, que trata desse processo de medicalização na relação médico-paciente é observada nos dias de hoje na relação entre “empreendedor de si” e o mercado, onde o trabalhador, agora despido de seu sindicato, de sua identidade e até mesmo de um vínculo empregatício formal, pode ser relacionada com a categoria alienação, pela matriz marxiana.

Os efeitos da medicalização da vida têm estreita relação com a alienação, pois ambas atuam no sentido da destruição de certas condições culturais e psicológicas que possibilitam a produção autônoma de valores de uso. As pessoas tornaram-se alienadas de si próprias, por isso alienaram-se de seu devir histórico enquanto classe, enquanto sujeito, enquanto comunidade. Os trabalhadores dóceis e bem avaliados, “empreendedores de si”, veem-se afastados da crítica com relação a sua situação de vida, lutam apenas para adequar-se.

Permeado pelo discurso empreendedor, onde o que vale, o que é desejado, são os resultados, medicaliza-se a performance, mais uma vez transferindo para o sujeito a responsabilidade pelo seu sucesso, num verdadeiro culto à meritocracia. O indivíduo, isolado - com uma socialização pobre e sem projetos coletivos -, desconectado da sociedade, em constante pressão, permanente disputa, nenhuma garantia e completa incerteza, passa a buscar subterfúgios (medicalização) para se manter vivo, produtivo no mercado e aceito socialmente. Tenta, a todo custo, encenar o personagem empreendedor, que travestido de escolha consciente individual, foi deliberadamente, construído para manter girando as engrenagens da dominação e exploração do capitalismo na pós-modernidade.

Esse processo de reificação das pessoas, gera sofrimento, pois estimula e, de alguma forma, promete sucesso e reconhecimento aos melhores, mas tem frustrado sobremaneira um contingente enorme de pessoas. Essas pessoas, a imensa maioria dos trabalhadores, consideram-se fracassadas, pois mesmo dedicando grande esforço e tempo para alcançar determinadas metas, não conseguem. Ou seja, a recompensa não vem. Além disso, o ciclo do empreendedor individual muitas vezes requer deslocamentos geográficos, readaptações, o que pode gerar desrespeito à própria cultura, ao tempo de cada um, culpabilização e autoculpabilização. Construiu-se assim a forma mais perversa que o processo de alienação poderia produzir: o empreendedor de si, vítima e algoz do modo capitalista de produção, que já convive com seus limites ambientais, econômicos e sociais.

Considerações finais

Essa discussão deve trazer consequências importantes para quem se preocupa com a sociabilidade humana, pois os “empreendedores de si” bem como a maquinaria que os produzem precisam ser revertidos, ou valores mínimos de convívio social, de fraternidade e solidariedade podem se perder ainda mais. A produção de identidades e de pertencimento em seu caráter comum, a produção de valores de uso voltados para o bem viver e para a qualidade de vida são urgentes, uma questão de saúde e de sobrevivência para a humanidade. Trata-se de questionar os pressupostos capitalistas e construir outras relações pautadas na vida.

Questões relativas as medidas de austeridade implementadas, a falta de acesso à diversos direitos e seguridade social, a precarização do trabalho, as novas formas de subjetivação e o sofrimento advindo destas, apresentam impactos importantes e constituem-se em desafios para a saúde coletiva, a saúde pública e o sistema de saúde brasileiro. Os problemas de saúde mental e sofrimento psíquico são uma demanda crescente nos serviços de saúde e têm sido agravados pela precarização das condições de vida e trabalho da população. Cedo ou tarde, será necessário se debruçar sobre essa temática e traçar estratégias de enfrentamento. Problematizar o contexto social, político, econômico e histórico propondo formas de entendimento dessa realidade talvez seja o primeiro passo.

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Editado por

  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Maio 2022

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2020
  • Aceito
    30 Jun 2021
  • Publicado
    02 Jul 2021
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