Resumo
Este texto apresenta uma discussão a respeito das pessoas com transtorno mental em conflito com a lei no Brasil e os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, instituições inseridas no sistema prisional e consideradas híbridas entre a saúde e a justiça. Ao apresentarmos a realidade no contexto nacional, evidenciamos que a Reforma Psiquiátrica não alcançou essas instituições e esses indivíduos seguem estigmatizados, tendo os seus direitos humanos violados. Fundamentamos a necessidade de avançarmos o debate e trazemos alguns questionamentos na tentativa de fomentar a criação de novas saídas para o enfrentamento do problema, bem como a garantia de cuidado em saúde bem estruturado e baseado em evidências científicas.
Palavras-chave:
Transtorno mental; Medida de segurança; Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico
Abstract
This text discusses people with mental disorders in conflict with the law in Brazil and the Custody and Psychiatric Treatment Hospitals, institutions included in the prison system and considered a hybrid between health and justice. When we present the reality in the national context, we show that the Psychiatric Reform did not reach these institutions, and these individuals continue to be stigmatized, and their human rights are violated. We substantiate the need to advance the debate and raise some questions to establish new solutions to tackle the issue and ensure well-structured, scientific evidence-based health care.
Key words:
Mental illness; Security measure; Custody and Psychiatric Hospital
Segundo Goffman11 Goffman E. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC; 2019., os indivíduos estigmatizados lutam constantemente na tentativa de construir sua identidade social. Essas pessoas são excluídas das relações sociais e, consequentemente, não encontram espaço, função ou papel, nem tampouco têm voz ou podem ser sujeitos da ação11 Goffman E. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC; 2019.. Goffman22 Goffman E (1952). Acalmando o otário: Alguns aspectos de adaptação à falha. Rev Progr Pos-Grad Sociol USP 2009; 16(1):195-211. também estabelece o conceito de morte social. Segundo o autor, “um processo de seleção e classificação ocorre, em que os socialmente mortos vêm a ser definitivamente ocultados de nós”22 Goffman E (1952). Acalmando o otário: Alguns aspectos de adaptação à falha. Rev Progr Pos-Grad Sociol USP 2009; 16(1):195-211.(p.10). Uma das formas de ocultar tais indivíduos e decretar a sua inexistência é inseri-los nas chamadas instituições totais.
Os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) são as instituições totais que abrigam as pessoas com transtorno mental em conflito com a lei. O primeiro HCTP do Brasil foi fundado em 1921, no Rio de Janeiro33 Carrara SL. Crime e loucura. Rio de Janeiro: Eduerj; 1998. e, desde 1940, são as instituições preconizadas pela legislação para o cumprimento da Medida de Segurança (MS), caracterizada como uma sanção penal aplicada aos indivíduos inimputáveis ou semi-imputáveis44 Brasil. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940 alterado pela Lei nº 7.209 de 1984. Diário Oficial da União 1940; 31 dez.. O principal objetivo da MS é a prevenção geral sobre a sociedade e a proteção especial sobre o indivíduo, mediante a oferta de tratamento compulsório44 Brasil. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940 alterado pela Lei nº 7.209 de 1984. Diário Oficial da União 1940; 31 dez.. Quando instaurada, pode ser detentiva ou restritiva, ou seja, cumprida sob regime de internação nos HCTPs ou sob tratamento ambulatorial44 Brasil. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940 alterado pela Lei nº 7.209 de 1984. Diário Oficial da União 1940; 31 dez.. Sendo assim, existe uma estreita relação entre o sistema de justiça criminal, a saúde mental e o sistema prisional e esses indivíduos são considerados duplamente estigmatizados: pelo transtorno mental em si (“loucos”) e pelo crime cometido (“criminosos”)33 Carrara SL. Crime e loucura. Rio de Janeiro: Eduerj; 1998..
De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional, atualmente, existem 2.679 pessoas em cumprimento de MS no país, sendo, aproximadamente, 86% na modalidade de internação psiquiátrica e 14% em tratamento ambulatorial55 Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional. Período de julho a dezembro de 2020 [Internet]. [acessado 2021 jan 21]. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen.
https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen...
. No entanto, infere-se que o número total de pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, no Brasil, seja ainda maior, já que, além da possibilidade de subnotificação e divergência de dados, existem registros de indivíduos que cumprem a sua MS em presídios comuns devido à falta de aparelhamento do Estado, sem nenhum tratamento diferenciado66 Lima SC, Rodrigues MS. Execução de medida de segurança no estado do Tocantins frente à ausência de Hospitais de Custódia. Rev Hum Inov 2020; 7(20):474-485.. Segundo Diniz77 Diniz D. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: Censo 2011. Brasília: Letras Livres, Editora Universidade de Brasília; 2013., essas pessoas representam “uma população majoritariamente masculina, negra, de baixa escolaridade e com periférica inserção no mundo do trabalho, que em geral cometeu infração penal contra uma pessoa de sua rede familiar ou doméstica”(p.16). Assim, a demografia do sistema prisional evidencia as vulnerabilidades e as iniquidades às quais essa população está exposta.
Ainda que possuam o nome de “Hospitais”, todos os HCTPs estão ligados aos sistemas de segurança e foram incorporados ao sistema penitenciário, sendo geridos pelas Secretarias de Administração Penitenciária88 Jacobina PV. Direito penal da loucura: medida de segurança e reforma psiquiátrica. Brasília: ESMPU; 2008.. Dessa forma, ao mesmo tempo em que fazem parte do sistema prisional e são geridas segundo os preceitos da segurança, essas instituições são consideradas locais de tratamento e cuidado em saúde. Segundo Soares Filho e Bueno99 Soares Filho MM, Bueno PMMG. Direito à saúde mental no sistema prisional: reflexões sobre o processo de desinstitucionalização dos HCTP. Cien Saude Colet 2016; 21(7):2101-2110., a dicotomia de posições entre o Sistema Único de Saúde e as normas da execução penal culminam em um modelo de tratamento determinado pela legislação criminal e não pela política pública de saúde, com inúmeras contradições: tratamento realizado na esfera judicial, com participação reduzida da rede pública de saúde/assistência social; desinternação condicionada à cessação da periculosidade; internações perpétuas, sem indicação clínica para tal e independentemente da gravidade do delito; cronificação, reforço do estigma e institucionalização dos pacientes; perda irreversível de vínculos familiares e impossibilidade de retorno ao meio sociofamiliar; consumo de recursos públicos que deveriam estar sendo utilizados para financiar os serviços abertos, inclusivos e de base comunitária99 Soares Filho MM, Bueno PMMG. Direito à saúde mental no sistema prisional: reflexões sobre o processo de desinstitucionalização dos HCTP. Cien Saude Colet 2016; 21(7):2101-2110..
No Brasil, a Lei nº 10.216/2001 assegura os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental1010 Brasil. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União; 2001.. Desde a sua promulgação, existe uma recomendação para que os HCTPs se redirecionem de acordo com os novos parâmetros da saúde mental1111 Brasil. Ministério Público Federal. Reforma psiquiátrica e manicômio judiciário: relatório final para reorientação dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. Brasília: Ministério Público Federal; 2002., entretanto, sabe-se que a Reforma Psiquiátrica não alcançou os HCTPs1212 Branco TC. A (des)legitimação das medidas de segurança no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado; 2018.
13 Oliveira AS, Dias FMV. Andando na contramão: o destino dos indivíduos com transtorno mental que cometem crimes no Brasil. Physis 2018; 28(3):e280305.-1414 Wermuth MAD, Branco TSC. Medidas de segurança no Brasil em tempos de pandemia: da biopolítica à necropolítica? Rev Juridica (FURB) 2021; 25(56):e9939.. Relatórios de inspeção publicados pelo Mecanismo Nacional de Prevenção ao Combate e à Tortura e outros trabalhos na literatura denunciam que os indivíduos submetidos a essas instituições têm os seus direitos humanos violados e não estão recebendo tratamentos em saúde adequados1313 Oliveira AS, Dias FMV. Andando na contramão: o destino dos indivíduos com transtorno mental que cometem crimes no Brasil. Physis 2018; 28(3):e280305..
Sabe-se que há mais de um século a pessoa com sofrimento mental em conflito com a lei vem sendo segregada, distanciada da sociedade e de seus familiares sem perspectiva de retorno, impedida de exercer os seus direitos e, devido à estreita relação com o sistema de justiça, sem receber o tratamento mínimo estabelecido pela Política Nacional de Saúde Mental99 Soares Filho MM, Bueno PMMG. Direito à saúde mental no sistema prisional: reflexões sobre o processo de desinstitucionalização dos HCTP. Cien Saude Colet 2016; 21(7):2101-2110.. Em outras palavras, recebem um tratamento com mais potencial deletério do que benéfico para as suas condições de saúde. Segundo Wermuth e Branco1414 Wermuth MAD, Branco TSC. Medidas de segurança no Brasil em tempos de pandemia: da biopolítica à necropolítica? Rev Juridica (FURB) 2021; 25(56):e9939., “essa sempre foi e sempre será uma agenda não prioritária para o Estado brasileiro em todas as esferas: legislativo, executivo e judiciário”(p.17).
Assim, mais uma vez enfatizamos a necessidade de desconstrução do estigma e investimento em novos debates e possibilidades que considerem a garantia de direitos desses cidadãos. Desde 2011, o modelo de atenção em saúde mental no Brasil é fundamentado na organização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que visa à atuação em rede, baseada no tratamento oferecido em diversos dispositivos substitutivos1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2011; 23 dez.. Nos últimos anos, observamos um aumento da conscientização sobre os direitos das pessoas com transtorno mental, sua integração à comunidade, incentivo à recuperação da funcionalidade, tratamento em liberdade, a redução do tempo de internação e de leitos em hospitais psiquiátricos1616 World Health Organization (WHO). Guidance on community mental health services: promoting person-centred and rights-based approaches. Geneva: WHO; 2021.. Apesar disso, não só no Brasil como em todo o mundo, continuam a existir opiniões e mecanismos conflitantes sobre a adequação do tratamento e/ou punição para pessoas com sofrimento mental que cometem crimes1717 Melamed Y. Mentally Ill Persons Who Commit Crimes: Punishment or Treatment? J Am Acad Psychiatry Law 2010; 38(1):100-103..
Historicamente, a medida de segurança foi construída como uma estratégia de biopoder e, no sistema de justiça criminal, existe uma grande resistência em abandonar tal estrutura1212 Branco TC. A (des)legitimação das medidas de segurança no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado; 2018.. A MS é pautada na noção de periculosidade, que presume o risco de que esses indivíduos venham a cometer novos atos ilícitos1212 Branco TC. A (des)legitimação das medidas de segurança no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado; 2018.. Porém, Lebre1818 Lebre M. Medidas de segurança e periculosidade criminal: medo de quem? Responsabilidades 2013; 2(2):273-282. ressalta que “o crime não é privilégio dos ‘anormais’ e nem sempre o crime do próprio doente mental está ligado à sua patologia - razão pela qual não há falar em predisposição para o ilícito”(p.277). Ademais, existem diversos fatores que podem contribuir para a reincidência no crime, entre eles as vulnerabilidades e os determinantes sociais de saúde, aos quais toda a sociedade está exposta1919 Melnychuk RM, Verdun-Jones SN, Brink J. Geographic risk management: A spatial study of mentally disordered offenders discharged from forensic psychiatric care. Int J Forensic Mental Health 2009; 8(3):148-168.. Assim, o argumento da periculosidade acaba por legitimar o papel de controle social do indesejado exercido pelo sistema penal1818 Lebre M. Medidas de segurança e periculosidade criminal: medo de quem? Responsabilidades 2013; 2(2):273-282.. Esse argumento é reforçado quando pensamos no condicionamento da extinção da MS ao exame de cessação de periculosidade. Com base na presunção de periculosidade, a visão da doença como totalizadora e reducionista do indivíduo é reforçada e a liberação do indivíduo vai sendo continuamente adiada1212 Branco TC. A (des)legitimação das medidas de segurança no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado; 2018..
Devido a todas as particularidades envolvidas nessa população e ao duplo estigma já mencionado, essas pessoas seguem sendo excluídas das políticas criminais, de saúde e dos avanços no campo da saúde mental. Um exemplo recente é a Recomendação 62/2020, emitida pelo CNJ aos Tribunais e magistrados, com a recomendação da adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo2020 Conselho Nacional da Justiça (CNJ). Recomendação 62 [Internet]. Brasília: CNJ; 2020 [acessado 2021 jan 21]. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/2020/03/62-Recomendação.. O texto não abordou as medidas de segurança e as pessoas em sofrimento psíquico em conflito com a lei, expondo, assim, a exclusão desse tema dentro da própria política criminal brasileira1414 Wermuth MAD, Branco TSC. Medidas de segurança no Brasil em tempos de pandemia: da biopolítica à necropolítica? Rev Juridica (FURB) 2021; 25(56):e9939..
Muitos autores defendem a reorientação do modelo de atenção e a necessidade urgente da criação de estratégias intersetoriais para a desinstitucionalização dos indivíduos e extinção definitiva dos HCTPs. Há dez anos, foi publicado pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e pelo Ministério Público Federal o “Parecer sobre medida de segurança e hospital de custódia e tratamento psiquiátrico sob a perspectiva da Lei nº 10.216/2001”, que colocou como premente a extinção dos HCTPs, com o redirecionamento de todos os recursos federais e estaduais utilizados em sua manutenção para a implementação e expansão dos inúmeros dispositivos da RAPS2121 Brasil. Ministério Público Federal. Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Parecer sobre medidas de segurança e hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico sob a perspectiva da Lei nº 10.216/2001. Brasília: Ministério Público Federal; 2011.. Wermuth e Branco1414 Wermuth MAD, Branco TSC. Medidas de segurança no Brasil em tempos de pandemia: da biopolítica à necropolítica? Rev Juridica (FURB) 2021; 25(56):e9939. afirmam que “a execução das medidas de segurança de detenção, da forma como é realizada até hoje, tanto em HCTP ou em presídios, está deslegitimada e ilegal, implicando inclusive em prática de tortura”(p.15).
Soares Filho e Bueno99 Soares Filho MM, Bueno PMMG. Direito à saúde mental no sistema prisional: reflexões sobre o processo de desinstitucionalização dos HCTP. Cien Saude Colet 2016; 21(7):2101-2110. consideram que a comunidade deveria ser o lugar de cuidado desses indivíduos e a internação do paciente judiciário, o último recurso terapêutico utilizado. Segundo os mesmos autores, essa transição dos hospitais para a comunidade deveria ser embasada por políticas específicas para a desinstitucionalização e reinserção social desses pacientes, bem como a melhoria das políticas intersetoriais para a integralização do cuidado e a garantia de maiores investimentos na rede básica de saúde99 Soares Filho MM, Bueno PMMG. Direito à saúde mental no sistema prisional: reflexões sobre o processo de desinstitucionalização dos HCTP. Cien Saude Colet 2016; 21(7):2101-2110..
Nesse contexto, é importante ressaltar a atuação das “Equipes de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em conflito com a Lei” (EAP), instituídas pelo Ministério da Saúde através da Portaria MS/GM nº 94, no ano de 20142222 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação de Saúde no Sistema Prisional. Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei. Brasília: MS; 2014.. Em 2020, esta importante Portaria foi temporariamente extinta e, após mobilização da sociedade civil e de instituições do sistema de Justiça, as EAPs foram reestabelecidas. Apesar de ainda não alcançarem toda a extensão territorial brasileira, fundamentam-se no fortalecimento de redes locais, bem como a viabilização da desinstitucionalização progressiva daqueles que se encontram internados2222 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação de Saúde no Sistema Prisional. Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei. Brasília: MS; 2014..
Diante do cenário preocupante e da morosidade do alcance de mudanças, os autores propõem a “transinstitucionalização provisória” como possibilidade, em que os pacientes dos HCTPs seriam encaminhados aos hospitais psiquiátricos convencionais, com o intuito de proporcionar condições para a extinção da medida de segurança. Ao mesmo tempo, seria iniciado o processo de desinstitucionalização progressiva e construção do Projeto Terapêutico Singular por meio da RAPS e da rede de assistência social do Sistema Único de Assistência Social99 Soares Filho MM, Bueno PMMG. Direito à saúde mental no sistema prisional: reflexões sobre o processo de desinstitucionalização dos HCTP. Cien Saude Colet 2016; 21(7):2101-2110.. Os autores reconhecem que se trata de uma proposta delicada quando considerados os preceitos da luta antimanicomial, mas veem a sugestão como a possibilidade de um primeiro passo rumo ao fechamento dos HCTPs99 Soares Filho MM, Bueno PMMG. Direito à saúde mental no sistema prisional: reflexões sobre o processo de desinstitucionalização dos HCTP. Cien Saude Colet 2016; 21(7):2101-2110..
Na Itália, país considerado modelo para o Brasil na Reforma Psiquiátrica, os HCTPs já foram extintos e foram criadas as Residências para Execução das Medidas de Segurança2323 Catanesi R, Mandarelli G, Ferracuti S, Valerio A, Carabellese F. The new residential forensic psychiatric system (REMS): A one-year population study. Ital J Criminol 2019; 13:7-23.. Seguindo outra possibilidade de tratamento, na Inglaterra e no País de Gales existem as chamadas Ordens de Tratamento Comunitário Supervisionado, que obrigam os pacientes pós-alta a cumprir as condições especificadas por seus médicos, sob a possibilidade de um retorno compulsório ao hospital para nova internação2424 Weich S, Duncan C, Twigg L, McBride O, Parsons H, Moon G, Canaway A, Madan J, Crepaz-Keay D, Keown P, Singh S, Bhui K. Use of community treatment orders and their outcomes: an observational study. Southampton: NIHR Journals Library; 2020.. Em contraposição, os Artigos 12 e 14 da Convenção internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência tratam, respectivamente, do “Reconhecimento igual perante a lei” e da “Liberdade e segurança da pessoa” e fornecem subsídios para avançarmos ainda mais nessa discussão2525 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Direito é qualidade: kit de ferramentas de avaliação e melhoria da qualidade e dos direitos humanos em serviços de saúde mental e de assistência social. Brasília: MS; 2015.. Considerando os referidos artigos, há quem reivindique que a transgressão da pessoa com sofrimento mental deveria ser julgada de acordo com a forma como se julga o ato de qualquer cidadão. O fato de a inimputabilidade eximir o sujeito da culpa o impede de responder pelo ato cometido, retirando-lhe o direito da responsabilização2626 Gomes RMM. A responsabilidade como condição de humanização: a resposta de Althusser. In: Gomes RMM. Dos desvios da norma à responsabilidade pelo imprevisível: a avaliação pericial do louco do infrator. Belo Horizonte: Ed. Autor; 2020. p. 231-246.. Dessa forma, ao serem consideradas inimputáveis, as pessoas com transtorno mental são automaticamente alienadas da possibilidade de defesa e direito a justiça, bem como de qualquer implicação com o ato. Deveria o indivíduo com sofrimento mental ser considerado imputável e cumprir pena privativa de liberdade recebendo os tratamentos em saúde mental de forma semelhante aos tratamentos viabilizados para outras comorbidades?
Sabemos que a medida de segurança fracassou no cumprimento de seus objetivos e que, além de não impedir a prática de novos delitos, segrega e priva os indivíduos de acesso a tratamento adequado em saúde mental1212 Branco TC. A (des)legitimação das medidas de segurança no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado; 2018.. O trabalho direcionado ao acompanhamento continuado dos indivíduos com sofrimento mental grave e em situação de vulnerabilidade social, que possibilite a busca ativa dos casos, assistência intensiva nos momentos de crise, inserção em centros de convivência, promoção de saúde, da autonomia e da melhora do vínculo social e territorial, pode contribuir para a prevenção da ocorrência de crimes2727 Oliveira LV, Salvador PTCO, Freitas CHSM. Assistência em saúde mental aos pacientes internados nos institutos de psiquiatria brasileiros: scoping review. Rev Bras Enferm 2020; 73(Supl. 1):e20190548.. Para isso, se faz necessário o fortalecimento da RAPS mediante maior qualificação, melhora do financiamento e extensão da cobertura dos serviços substitutivos.
Diante desse complexo sistema e após todo o exposto, os questionamentos persistem: Qual seria a forma mais adequada de lidar com essas situações considerando a garantia dos direitos desses cidadãos? Os indivíduos com sofrimento mental que cometem crimes deveriam ser encaminhados para tratamento psiquiátrico compulsório ou se sujeitarem a uma determinada pena? Em caso da oferta de tratamento, qual seria a opção mais adequada? Este dilema não tem solução inequívoca e, por isso, a sua discussão deve ser cada vez mais encorajada.
Fato é que esses indivíduos continuam violentados, objetificados e experimentando diariamente o processo de “mortificação do eu”. Ainda persistem desafios importantes que só poderão ser enfrentados a partir de um diálogo consistente entre a saúde e a justiça e a definição de uma política centrada nas especificidades e prioridades dessa população, baseada no respeito aos direitos humanos e nas melhores evidências científicas disponíveis. Por fim, deixamos a reflexão proposta no poema de Brecht2828 Brecht B. Poemas: 1913-1956. São Paulo: Editora 34; 2004.: “Do rio que tudo arrasta, se diz que é violento. Ninguém diz violentas, às margens que o cerceiam”(p.155).
Referências
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1Goffman E. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC; 2019.
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2Goffman E (1952). Acalmando o otário: Alguns aspectos de adaptação à falha. Rev Progr Pos-Grad Sociol USP 2009; 16(1):195-211.
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3Carrara SL. Crime e loucura. Rio de Janeiro: Eduerj; 1998.
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4Brasil. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940 alterado pela Lei nº 7.209 de 1984. Diário Oficial da União 1940; 31 dez.
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5Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional. Período de julho a dezembro de 2020 [Internet]. [acessado 2021 jan 21]. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen
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6Lima SC, Rodrigues MS. Execução de medida de segurança no estado do Tocantins frente à ausência de Hospitais de Custódia. Rev Hum Inov 2020; 7(20):474-485.
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7Diniz D. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: Censo 2011. Brasília: Letras Livres, Editora Universidade de Brasília; 2013.
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8Jacobina PV. Direito penal da loucura: medida de segurança e reforma psiquiátrica. Brasília: ESMPU; 2008.
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9Soares Filho MM, Bueno PMMG. Direito à saúde mental no sistema prisional: reflexões sobre o processo de desinstitucionalização dos HCTP. Cien Saude Colet 2016; 21(7):2101-2110.
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10Brasil. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União; 2001.
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11Brasil. Ministério Público Federal. Reforma psiquiátrica e manicômio judiciário: relatório final para reorientação dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. Brasília: Ministério Público Federal; 2002.
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12Branco TC. A (des)legitimação das medidas de segurança no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado; 2018.
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14Wermuth MAD, Branco TSC. Medidas de segurança no Brasil em tempos de pandemia: da biopolítica à necropolítica? Rev Juridica (FURB) 2021; 25(56):e9939.
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15Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2011; 23 dez.
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19Melnychuk RM, Verdun-Jones SN, Brink J. Geographic risk management: A spatial study of mentally disordered offenders discharged from forensic psychiatric care. Int J Forensic Mental Health 2009; 8(3):148-168.
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21Brasil. Ministério Público Federal. Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Parecer sobre medidas de segurança e hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico sob a perspectiva da Lei nº 10.216/2001. Brasília: Ministério Público Federal; 2011.
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22Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação de Saúde no Sistema Prisional. Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei. Brasília: MS; 2014.
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23Catanesi R, Mandarelli G, Ferracuti S, Valerio A, Carabellese F. The new residential forensic psychiatric system (REMS): A one-year population study. Ital J Criminol 2019; 13:7-23.
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24Weich S, Duncan C, Twigg L, McBride O, Parsons H, Moon G, Canaway A, Madan J, Crepaz-Keay D, Keown P, Singh S, Bhui K. Use of community treatment orders and their outcomes: an observational study. Southampton: NIHR Journals Library; 2020.
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25Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Direito é qualidade: kit de ferramentas de avaliação e melhoria da qualidade e dos direitos humanos em serviços de saúde mental e de assistência social. Brasília: MS; 2015.
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26Gomes RMM. A responsabilidade como condição de humanização: a resposta de Althusser. In: Gomes RMM. Dos desvios da norma à responsabilidade pelo imprevisível: a avaliação pericial do louco do infrator. Belo Horizonte: Ed. Autor; 2020. p. 231-246.
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27Oliveira LV, Salvador PTCO, Freitas CHSM. Assistência em saúde mental aos pacientes internados nos institutos de psiquiatria brasileiros: scoping review. Rev Bras Enferm 2020; 73(Supl. 1):e20190548.
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28Brecht B. Poemas: 1913-1956. São Paulo: Editora 34; 2004.
Editores-chefes:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Nov 2022 -
Data do Fascículo
Dez 2022
Histórico
-
Recebido
28 Nov 2021 -
Aceito
14 Jul 2022 -
Publicado
16 Jul 2022