Resumo
O estudo objetiva compreender o pensar e o agir dos profissionais de saúde sobre a coordenação entre níveis assistenciais. Pesquisa qualitativa oriunda de estudo multicêntrico internacional Equity-LA II. Reescutaram-se áudios de onze entrevistas de médicos/enfermeiras de dois níveis assistenciais no Recife, 2014. Realizou-se análise de conteúdo do referencial teórico da coordenação à luz da abordagem hermenêutica. A maioria dos profissionais conhecia as atribuições da coordenação, sem identificar sua execução. O médico da atenção primária não foi reconhecido como responsável clínico, nem quanto ao seu papel pelo médico da atenção especializada, enquanto o da atenção primária ressentia-se. Emergiram falhas no uso/preenchimento dos mecanismos de referência/contrarreferência e entraves organizacionais. A indisponibilidade para o “jogo da conversação” e “fusionalidade” evidenciou-se no não reconhecimento da autoridade no caráter autoritativo do médico da atenção primária pelo da especializada, sentimento de menos valia daquele e postura tecnicista e especializada na práxis de todos. A coordenação no olhar dos profissionais revelou a condição “aí-a-ser-compreendido” carecendo se lançar no “jogo da compreensão” para construir práticas dialógicas voltadas ao cuidado integral.
Palavras-chave: Níveis de Atenção à Saúde; Gestão Clínica; Hermenêutica; Pesquisa qualitativa
Abstract
The study aims to understand the thinking and acting of health professionals about the coordination between levels of care. Qualitative research from an international multicenter study Equity-LA II. Audios were retrieved from eleven interviews of doctors/nurses of two levels of care in Recife, 2014. A content analysis of the theoretical framework of coordination was performed in the light of the hermeneutic approach. Most professionals knew the duties of coordination, without identifying its execution. The primary care physician was not recognized as responsible for the clinic, nor for his role by the specialist physician, while the primary care physician resented it. Failures in the use/completion of reference/counter-reference mechanisms and organizational barriers emerged. The unavailability for the “conversation game” and “fusionality” was evidenced in the lack of recognition of authority in the authoritative character of the primary care physician by that of the specialized, feeling of less value for that and technicist and specialized posture in everyone’s practice. The coordination in on professionals’ view revealed the “there-to-be-understood” condition that needs to be launched in the “game of comprehension” to build dialogical practices focused on integral care.
Key word: Health Care Levels; Clinical Management; Hermeneutics; Qualitative Research
Introdução
As experiências iniciais de sistemas integrados de saúde induziram a constituição de Redes de Atenção à Saúde (RAS) que se disseminaram na Europa Ocidental e Canadá1. Essas iniciativas buscaram romper a segmentação dos sistemas nacionais de saúde e a fragmentação do processo de cuidado, como estratégia de enfrentamento à ineficiência e baixa qualidade na atenção aos usuários2.
São poucos os países com sistemas públicos universais, a exemplo da Espanha e Reino Unido, que com variações privilegiam o acesso pleno, equidade, integração, regionalização e hierarquização da rede1,3,4. No Brasil, apesar dos inegáveis avanços, o sistema de saúde segue fragmentado e direcionado aos adoecimentos agudos e crônicos agudizados, reafirmando a necessidade da organização em RAS5,6.
As RAS são arranjos formados por serviços e ações, com conformações tecnológicas e atribuições diversas, organizadas complementarmente. Entre suas principais características se destacam a responsabilização sanitária por atenção contínua e integral; o compartilhamento de objetivos; a centralidade nas necessidades de saúde da população tendo a Atenção Primária à Saúde (APS) como centro de comunicação e ordenadora do cuidado; e relações horizontais entre os pontos de atenção e o cuidado multiprofissional7.
No Brasil as dificuldades para a implementação das RAS relacionam-se aos escassos recursos aliados ao desequilíbrio financeiro entre a APS e a Atenção Especializada (AE); a disponibilidade; a formação e os vínculos dos profissionais e as iniquidades regionais6,8. A APS como ordenadora do cuidado longitudinal, necessita compartilhar incumbências entre os médicos do seu nível de atenção, responsáveis clínicos pelo paciente, e os da AE5,9.
A coordenação refere-se à conexão harmoniosa entre diferentes serviços e níveis de atenção com sincronização de procedimentos destinados ao usuário necessários ao seu cuidado contínuo, na obtenção de objetivos comuns, sem conflitos e articulados. Uma melhor integração na RAS atrela-se ao maior sucesso da coordenação assistencial, existindo determinantes organizacionais, profissionais e de necessidades em saúde do usuário, que influenciam a colaboração e responsabilidade entre a APS e a AE10-12.
Para investigar a coordenação entre níveis assistenciais existem várias abordagens, como a utilizada em pesquisa multicêntrica para avaliar estratégias de melhoria e qualidade assistencial nas RAS da América Latina (Equity-LA II)13, que considera três tipos de coordenação: informação, gestão clínica e administrativa14. Entretanto, análises sob uma perspectiva teórica compreensiva não são usuais, como a hermenêutica filosófica, que interpreta o sentido atribuído pelo ser e pela compreensão da ciência como um discurso, caracterizada pela busca de validação intersubjetiva, embasada pelo compromisso com a verdade, que envolve incertezas e se produz na relação sujeito-objeto15-18.
Nessa concepção, a verdade é uma experiência hermenêutica que remete à revelação no encontro entre o familiar e o desconhecido, resultante de construções socio-históricas e culturais (tradição, preconceitos, horizonte)15,16. A coordenação assistencial ocorreria numa relação dialógica, intersubjetiva, reflexiva, caracterizada pela “boa prática”15,18, alcançada quando dois entes dialogam se entendendo sobre algo, mesmo sem concordar com a visão um do outro, mas se colocando em contato com o horizonte do outro. Assim, a construção da verdade é uma experiência aberta à ressignificação, que requer a mediação entre o conhecimento técnico-científico e o saber ser sobre ele mesmo16,19.
A compreensão dos fenômenos implica em desvelar qual o sentido conferido pelos atores que os compõem, identificados pelos profissionais enquanto autoridade, que constituem e são constituídos pelos serviços de saúde, procedimentos, processos e pelos outros com os quais se relacionam. Esses, expressam a legalidade do horizonte da tradição desse saber engendrado de pressupostos e preconceitos que caracteriza sua ação16,17,19. O objetivo do artigo é compreender o pensar e o agir dos profissionais sobre a coordenação do cuidado entre níveis assistenciais.
Métodos
Pesquisa avaliativa de abordagem qualitativa, cujos referenciais teóricos acerca da coordenação entre níveis de atenção à saúde14 foram articulados aos da hermenêutica filosófica15,19.
A investigação foi um recorte da vertente qualitativa da linha de base da Pesquisa Equity-LA II13, que analisou as dimensões da coordenação de informação (transferência da informação clínica e biopsicossocial; da coordenação de gestão clínica (seguimento adequado do paciente, acessibilidade entre níveis e coerência da atenção) e da coordenação administrativa (circuitos administrativos estabelecidos e ordenação do acesso). Os critérios de elegibilidade para selecionar os informantes foram: médicos e enfermeiros atuando há pelo menos seis meses na APS e AE, este último que atendesse em centros especializados de referência ao atendimento a pacientes com enfermidades crônicas e que aceitassem participar da pesquisa.
No presente estudo utilizaram-se os áudios de onze entrevistas semiestruturadas, mediante roteiro construído a partir do marco teórico da coordenação14, aplicadas aos médicos (três da APS e cinco da AE) e enfermeiras (duas da APS e uma da AE) no Recife, nos anos de 2014 e 2015.
O material empírico foi analisado para se compreender os sentidos expressos no discurso dos participantes a partir da interpretação hermenêutica15,19, considerando o pesquisador como um sujeito implicado na pesquisa e que esta ação é feita em um contínuo relacional, a partir do diálogo interpretativo, ainda que a totalidade compreensiva não possa ser plenamente alcançada pelos limites inerentes ao percurso metodológico em tela, que dificultaram o processo de intersubjetividade dos atores que a compuseram.
Realizou-se a análise de conteúdo, um processo sistemático, compreensivo, interativo e cíclico20 desenvolvida em três fases: 1) pré-análise do material através de reescutas dos áudios das entrevistas, para realizar a análise do discurso dos atores, inclusive características paralinguísticas, com registros de silêncios, risos e elementos de interesse analíticos; 2) leitura compreensiva das novas transcrições para aproximação do todo de cada relato e do seu conteúdo latente; seguiu-se à organização do material, com identificação das informações e separação de conjuntos dos discursos segundo características dos atores (idade, sexo, etc); unidades gramaticais (frases ou parágrafos); por evolução temporal da narração ou por combinação de vários destes aspectos; 3) elaboração de categorias empíricas ou unidades de sentido, resultantes da identificação de padrões, dados relacionados entre si, correspondentes a um tema determinado, criadas de maneira indutiva decorrente da reescuta dos áudios, dos roteiros das entrevistas e/ou da combinação de ambos (Quadro 1).
A análise foi realizada da primeira à terceira fase em cada uma das entrevistas e comparativamente entre os atores por níveis de atenção, para o estabelecimento de dissensos, contradições e consensos emergentes. Finalmente efetuaram-se a descrição e interpretação dos resultados, o estabelecimento de relações e desenvolvimento de explicações e/ou hipóteses constituintes do marco teórico gadameriano que permitiram a atribuição de sentido aos achados possibilitando assim com que o jogo da compreensão/interpretação ocorresse.
A definição do tamanho da amostra foi feita por saturação, que se relaciona aos critérios de conveniência-pertinência, e versam sobre a qualidade e suficiência da informação, quando seu conjunto apresenta completude para alcançar os objetivos da pesquisa e expressa saturação, caracterizada por redundância e ausência de aspectos novos nos discursos, evidenciando seu esgotamento20. Os informantes foram apresentados por códigos que garantiram a confidencialidade e a procedência da informação.
O estudo seguiu os princípios éticos, segundo a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira.
Resultados
A amostra foi composta por 11 informantes, dez mulheres e um homem, sendo da APS duas enfermeiras, duas médicas e um médico e da AE, uma enfermeira e cinco médicas; idades entre 45 e 68 anos; experiência no serviço entre um e 19 anos; dez desses profissionais com residência ou especialização. A exposição seguiu a ordem de emersão das categorias/subcategorias comparativamente entre os níveis assistenciais onde os atores trabalhavam.
Quase todos os participantes conheciam as atribuições da coordenação, sem identificar sua execução na rede. Os discursos nos dois níveis assistenciais revelaram o não reconhecimento do médico da APS como responsável clínico. Destacaram-se falhas no uso e preenchimento dos mecanismos de referência/contrarreferência e inexistência de outros, como reuniões clínicas e entraves organizacionais.
Aspectos relacionados à organização entre níveis assistenciais de saúde
Pouco mais da metade dos profissionais desconhecia os termos responsável clínico, gestão clínica e administrativa e coordenação da informação; alguns os confundiam com atribuições da gestão ou não referiam adequadamente as ações desempenhadas (Quadro 2).
Responsável clínico
Mesmo com o reconhecimento do médico da APS como responsável clínico por dois médicos deste nível e três da AE, só um de cada nível assistencial conhecia o conceito e sua importância para o desenvolvimento adequado da atenção, apesar de mencionarem que essa função não era desenvolvida na rede de saúde.
Uma enfermeira da APS atribuiu à equipe da ESF o papel de responsável clínico e dois médicos da AE conheciam o termo, mas não o identificaram como sendo o médico da APS.
Problemas na Gestão clínica
Quatro médicos da AE relataram problemas na gestão clínica pelos encaminhamentos inadequados da APS, implicando em deslocamentos inúteis dos usuários e ocupação desnecessária de vagas.
Problemas na Gestão administrativa
Todos os profissionais entrevistados apontaram aspectos organizacionais que dificultavam a coordenação entre níveis, emergindo frequentemente falhas na marcação de consultas, insuficiência de vagas, de equipamentos e de profissionais nos dois níveis assistenciais, ocasionando sobrecarga dos profissionais e longa espera por assistência, especialmente a especializada.
O Sistema Nacional de Regulação (Sisreg) foi apontado recorrentemente entre todos os atores como instrumento organizativo que dificultava a coordenação entre níveis por inadequada operacionalização, ainda que uma enfermeira da APS o percebesse promissor.
A desproporcionalidade entre demanda da população e oferta de consultas e exames também emergiu uniformemente entre entrevistados dos dois níveis. Na visão dos profissionais da AE isso contribui para diminuir o tempo das consultas, comprometendo a qualidade, o registro adequado e a contrarreferência.
Problemas na Coordenação da informação
Emergiram na fala de quatro médicos da AE problemas de não informação correta do perfil da unidade referenciada, resultando em encaminhamentos equivocados para centros especializados. Para um médico da APS os problemas devem-se à falta de comunicação entre os níveis assistenciais.
Aspectos relacionados aos profissionais: práxis na atenção primária à saúde na atenção especializada
Atribuições teóricas e práticas da APS e AE
A maioria dos profissionais demonstrou conhecer o papel da APS como ordenadora do cuidado, abordando a responsabilidade sanitária compartilhada no território (família, aspectos sociais e culturais). Nem sempre as falas foram claras ou seguras, existindo pausas para sua expressão, apontando restrições ao desempenho desse papel, com queixas nas relações interpessoais, administrativas e organizacionais (Quadro 3).
Dentre os que desconheciam o papel da APS, as falas restringiram sua função ao controle da doença, enfatizando a intervenção médica para evitar a piora. Houve consenso entre os informantes sobre a atuação de o especialista ser de suporte e continuidade do cuidado para os casos de maior complexidade.
Nenhuma das falas expressou a ação compartilhada entre os níveis, a maioria mostrou compreensão restrita quanto ao papel da AE, reduzindo-o ao diagnóstico, solicitação de exames e tratamento medicamentoso, não abordando sua responsabilidade com a orientação aos usuários e informações à APS, constituindo-se na visão de todos os profissionais da APS um obstáculo para a atenção.
Todos os atores dos dois níveis informaram o não cumprimento das suas funções adequadamente, concordando quanto ao excesso de usuários atendidos ser superior ao preconizado, acarretando sobrecarga e superlotação.
Todos os informantes revelaram insatisfação com o desempenho das redes, com acusações e críticas entre os níveis. As recriminações mútuas referiram-se à falta de compromisso dos profissionais e interferência negativa pelo não cumprimento adequado dos papéis correspondentes, não reconhecimento de competência técnica da APS pela AE, barreiras no acesso aos especialistas devidas às falhas do Sisreg, levando a busca informal de acesso à AE.
Atitudes que influem na coordenação da atenção entre níveis
Emergiram contrariedades nas falas de três médicos da APS pelo desrespeito dos colegas da AE por não considerarem ou lerem seus encaminhamentos, enquanto todos os especialistas se queixaram de equívocos dos colegas da APS tanto nas referências quanto nos procedimentos.
Outra dificuldade à coordenação entre níveis apontada por três médicos e uma enfermeira da APS foi a indisponibilidade dos profissionais da AE para a orientação dos casos que necessitam de cuidado conjunto, enquanto para todos os especialistas este problema é devido ao não cumprimento adequado da função do médico da APS, repassando casos não complexos para o nível secundário. Para os especialistas isso seria uma alternativa para os médicos da APS lidarem com a elevada demanda no serviço ou por insuficiente conhecimento técnico para a realização das suas tarefas.
Um médico da APS apontou falta de preocupação dos colegas do mesmo nível de atenção quanto ao compromisso e responsabilidade clínica na investigação e resolutividade das demandas dos usuários, acarretando seu desconforto, irritação e descontentamento.
Foram relatadas por todos os profissionais da AE falhas da APS nas ações de promoção e prevenção, em contraposição, três médicos e uma enfermeira da APS identificaram resistência dos pacientes para mudar o estilo de vida e falta de identificação com o profissional deste nível. Para uma médica da APS existe inabilidade do profissional deste nível no vínculo adequado com o usuário ao não considerar aspectos biopsicossociais na prestação do cuidado, ocasionando sua busca pela AE.
A crítica a pouca competência técnica do médico da APS na utilização do formulário da referência surgiu na fala de cinco especialistas e um médico do mesmo nível, que destacou a importância de encaminhamentos “bem-feitos e com letra legível”.
As condições de trabalho, entendidas como “estrutura” por um médico da AE, foram apontadas como entrave pelas equipes da APS, impelindo-as a encaminhamentos equivocados para a rede especializada.
Aspectos relacionados aos profissionais: mecanismos de coordenação
Conhecimento
Todos os entrevistados conheciam os formulários de referência e contrarreferência como instrumento preconizado para a comunicação entre níveis, outros mecanismos foram citados apenas por dois médicos da APS, a reunião clínica, a equipe matricial (Nasf), o resumo de alta hospitalar, o telefone institucional e o Sisreg (Quadro 4).
Utilidade
A utilidade dos mecanismos de coordenação para uma enfermeira e dois médicos da APS é promover maior fidedignidade às informações sobre as condições de saúde do paciente e possibilidade de construção de conhecimento, enquanto para quatro médicos da AE facilitavam a comunicação entre os níveis.
Utilização
Algumas narrativas apresentadas foram ratificadas pela maioria dos atores como obstáculos a utilização dos mecanismos: mau funcionamento do Sisreg, retardando a marcação de consultas na AE e a transcrição da receita do paciente seguidas vezes; encaminhamentos da APS sem informações clínicas e exames; ausência de reuniões clínicas entre níveis e indisponibilidade para a contrarreferência.
Todos os profissionais de ambos os níveis afirmaram que os mecanismos de referência/contrarreferência são relevantes, apesar de não utilizados e de preenchimento é incompleto e inadequado.
Todos os médicos da APS narraram que não recebiam contrarreferência e embora realizassem a referência, acreditavam que estas não eram lidas, enquanto cinco médicos da AE não contra-referiam e não utilizavam os demais mecanismos, apenas um afirmando que orienta o paciente a mostrar a receita ao médico da APS quando há modificação terapêutica.
Mecanismos informais
Foi mencionada a utilização do telefone pessoal e da rede social de relacionamento WhatsApp por um médico e uma enfermeira da APS e dois médicos da AE, por vínculos de amizade, para dar seguimento à assistência ao paciente, esclarecer dúvidas, discutir casos e prestar orientações aos profissionais de outros níveis.
O bilhete (receituário médico) usado para o encaminhamento a outro nível foi referido por três médicos (dois da APS e um AE), que recomendavam aos pacientes que mostrassem aos colegas destinatários.
Discussão
A trajetória de desvelamento ocorreu pelo exercício de tentar ocupar o lugar de intérpretes hermenêuticos almejando a fusão dos horizontes com os dos entrevistados para apreender o significado sobre o pensar e o agir com relação à coordenação entre os níveis assistenciais. A maioria dos profissionais conhecia as atribuições da coordenação, sem identificar sua execução na rede. O médico da APS não foi reconhecido como responsável clínico pela maioria dos atores nos dois níveis, associado ao desconhecimento de seu papel na visão do especialista, enquanto o da atenção primária ressentia-se. Destacaram-se falhas no uso e preenchimento dos mecanismos de referência/contrarreferência e inexistência de reuniões clínicas, além de entraves organizacionais.
A ênfase à supremacia dos médicos especialistas em detrimento aos da atenção primária, reflete a tradição do ensino e atenção médica fortemente vinculada ao paradigma médico assistencial privatista, gerando a indefinição de papéis e a ampliação dos conflitos na rede de atenção21. Para o enfrentamento de problemas que requerem atenção e acompanhamento contínuos, o modelo de vigilância à saúde propõe redefinição de políticas e práticas sanitárias, que podem assumir configurações específicas de acordo com a necessidade em saúde organizando processos de trabalho em saúde22. O estudo evidenciou transferências recíprocas de responsabilidades entre os médicos da rede pela falha dos mecanismos de referência e contrarreferência, que refletiram graves problemas comunicacionais e de atuação profissional que perpassam juízos de valor, posturas e concepções historicamente determinados21.
Sobre o papel da atenção primária, surgiu no discurso da maioria dos participantes deste nível, o reconhecimento da sua autoridade na dimensão autoritativa, “o ser-capaz-de-saber-fazer”19,23 englobando o saber técnico e a práxis da prestação do cuidado em saúde.
Emergiu uma visão parcial dos profissionais da AE do papel do nível primário, restrito ao tratamento precoce ou ao trabalho médico e limitando a ação quanto à possibilidade de resolutividade na/da atuação em equipe. O sentido atribuído foi o de questionamento e de não reconhecimento da autoridade da APS, denotando uma visão de saúde e de cuidado tecnicista limitada à ação em sua dimensão de especialização, separando a doença do ser em sua totalidade, onde o cuidado se presta com a noção de “caso - a parte que lhe cabe”19. A relação não se mostrou dialógica, mas recoberta pela autoconvicção metódica e o autoconceito, visto que se pautou em um saber superior (AE) em detrimento ao reconhecimento do outro (APS) na condição de também autoridade, predominando a utilização pelos entrevistados da “arte de curar” na concepção da hermenêutica filosófica19.
A indisponibilidade dos profissionais da AE para o “jogo da conversação” com os colegas da APS revelou-se no seu discurso sobre seu papel enquanto autoridade em saúde, postura compreendida ao se lançar o olhar para os pressupostos gadamerianos de tradição, preconceitos, postura autoritária, não reflexiva e sem a autocrítica genuína ou liberdade crítica18,19,23. Evidenciaram-se recorrentemente, entraves para a fusionalidade que oportunizasse o diálogo dos atores em seu projeto contínuo de “vir-a-ser”, pela antecipação do horizonte de sentidos que promove a compreensão do “a-ser-compreendido”16,18, a coordenação entre níveis. A “verdade” emergiu pela tradição e saber técnico, em virtude do círculo hermenêutico próprio e inerente para a reabertura de novos significados ter permanecido arraigado à consciência que não se renova pela dialogicidade16,23,24.
No horizonte dos profissionais da APS descortinou-se um olhar para si e uma condição de “ser-aí-no-mundo” carregada de descontentamento ou de indignação pelo desrespeito à sua autoridade em saúde. A historicidade própria de sua condição de ser ontológico é violentada pela relação dinâmica com o mundo que se recobre do êxito técnico do médico da AE e interroga seu sucesso prático23,24.
Entrelaçada ao exposto, predominou entre todos os médicos da AE a postura de não contrarreferenciar, justificada por superlotação do serviço, instrumentos extensos, não objetivos, que apesar de importantes poderiam ser preenchidos pelas enfermeiras3,21,25. Igualmente, relatavam não utilizarem as referências do médico da APS por encaminhamentos equivocados. As narrativas dos especialistas manifestaram descrença e desânimo acerca da utilidade dos mecanismos e relacionados ao fluxo de comunicação estabelecido entre os níveis3,25.
As falas expressaram repetidamente comportamentos que fragmentam a rede, com consequências negativas para a integralidade da assistência, pois a utilização das informações contidas no formulário de referência contribuiria para diagnósticos mais seguros e coerência no manejo, além de refletirem postura de respeito ao saber do médico da APS, enquanto a contrarreferência o ratificaria15,26. Os discursos denunciaram prejuízos ao continuum do cuidado e, concomitantemente, evidenciaram rupturas da responsabilidade compartilhada entre os níveis que assumiam posturas horizontalizadas e fragmentadas em sua práxis assistencial26,27.
A valorização de práticas pautadas em tecnologias duras ou leve-duras em detrimento às leves28, reveladas pelos informantes especialmente da AE, apontam para o não desenvolvimento da “boa prática” em saúde19,23,24 e que a coordenação foi afetada pela “burocratização da vida” e práticas pouco reflexivas e criativas19,23. A sobrevalorização da especialização é arraigada à cultura formativa médica, que representa a tradição nacional, com repercussões no imaginário da sociedade, reafirmando preconceitos à APS.
Mesmo quando os profissionais foram convidados a realizar o exercício da liberdade crítico-reflexiva para questionarem o círculo hermenêutico, houve predomínio da tradição e dos preconceitos, ao atribuírem sentidos à coordenação em saúde e seus aspectos facilitadores ou impeditivos. As narrativas que emergiram não contemplaram uma autocrítica, enquanto partícipes dos serviços ou quanto ao seu lugar de “ser-aí-no-mundo” nos distintos níveis de atenção18,19,23, retratando estarem presos às suas pré-compreensões e não se revelarem abertos ao diálogo transformador15,16.
Os relatos em todas as entrevistas foram permeados de tensão elevada, desmotivação, irritação e desconforto interpessoal interferindo negativamente na relação intersubjetiva dos profissionais de níveis diferentes, mostrando o incipiente exercício da alteridade entre eles, evidenciando-se que não há nessa relação a negociação como postura para compreender a coordenação entre níveis15,29. Essa falha no exercício da alteridade foi evidenciada em relação ao paciente, emergindo falas que culpabilizavam os usuários pela piora de suas condições de saúde pela maioria dos profissionais29.
A hermenêutica filosófica propõe a abertura para o diálogo produzindo a experiência enquanto estrutura de inversão, vivência da negatividade do que se sabe ou se tem para buscar um ponto de encontro e se chegar a “mutualidade” da conversação genuína que promove transformação15,29. O encontro entre os profissionais promoveria maior agilidade, aprimoramento da transferência da informação entre os níveis assistenciais, fortalecimento da coerência da atenção e o seguimento adequado5,30-32.
É importante mencionar o desafio da reescuta de áudios provenientes de entrevistas cujo roteiro não foi idealizado a partir dos pressupostos da hermenêutica filosófica. Apesar disso, procedeu-se um diálogo interpretativo em que se buscou alcançar uma totalidade compreensiva sobre a coordenação entre níveis para se recuperar os elementos que garantissem o círculo hermenêutico, fugindo do relativismo rechaçado por Gadamer. Por outro lado, o limite imposto a este estudo foi minimizado ao se utilizar a mediação conceitual do referencial teórico da coordenação da atenção10-14. As limitações estimularam um olhar ainda mais atento para que as categorias da hermenêutica filosófica emergissem, além da triangulação dos pesquisadores para garantir a validade interna20.
A indisponibilidade para o “jogo da conversação” e a “fusionalidade” expressas por todos os profissionais mostrou o desconhecimento da autoridade, em seu caráter autoritativo, do médico da APS pelo da AE, sentimento de menos valia do primeiro e postura tecnicista e da “especialização” na práxis de todos, que mostraram seu desejo de domínio da doença pela “arte de curar”. A coordenação entre níveis sob o olhar desses atores se encontra na condição do “aí-a-ser-compreendido”, necessitando que eles se lancem no “jogo da compreensão”, para que pelo diálogo se construam práticas voltadas ao cuidado integral15,19.
A tarefa de se lançar na busca da compreensão sobre o agir e o pensar dos profissionais com respeito aos aspectos expostos não teve por pretensão desvelar os sentidos atribuídos de forma definitiva ou completa, visto que esta se apresentaria como contraditória à essência da hermenêutica filosófica. O horizonte que se utilizou para o círculo da compreensão é exatamente aberto a ressignificações possíveis por novas fusões de horizontes e novas aberturas de sentidos para verdade decorrente da práxis de demais leitores.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Ago 2021 -
Data do Fascículo
Ago 2021
Histórico
-
Recebido
17 Dez 2019 -
Aceito
23 Jun 2020 -
Publicado
25 Jun 2020