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A saúde pelo avesso

RESENHAS REVIEWS

Waldir da Silva Souza

Universidade Estácio de Sá

A saúde pelo avesso. Roberto Passos Nogueira. Seminare Editora, Natal 2003, 260pp

A autonomia e a responsabilidade revisitada: Ivan Illich e a higiomania contemporânea

A instauração do chamado mundo moderno – capitaneado pela constituição da sociedade capitalista, com seus intensos processos de industrialização e urbanização das cidades e pelos problemas daí advindos – inaugura mudanças radicais na sociedade. E assim vão se construindo formas explicativas de tais transformações que apontam para as mudanças fundamentais no sistema social. Dentre essas mudanças podemos situar a medicalização da saúde e seus efeitos sobre os sujeitos e instituições sociais. É neste cenário que se desenvolve um conjunto de trabalhos investigativos que produzirão uma interlocução entre as perspectivas de análise sobre o mundo moderno, suas transformações e as condições sociais da população, tendo como exemplo as condições de saúde.

A obra de Ivan Illich, e as bases de seu pensamento são dissecadas de forma admirável, e com extrema erudição filosófica, no trabalho de Roberto Passos Nogueira, em A saúde pelo avesso. A presente obra realiza uma digressão importante acerca de alguns conceitos operacionais tanto para as políticas de saúde em seu sentido ampliado, quanto para as práticas que fundam o cotidiano. A título de exemplo, podemos citar os conceitos de autonomia, heteronomia, responsabilidade, e iatrogênese.

O argumento de Roberto Passos Nogueira está fundado na interpretação sobre as bases filosóficas que caracterizam o esforço analítico e político de Ivan Illich. Essas bases, segundo Nogueira, têm no aristotelismo/tomismo, no estoicismo e no Iluminismo três grandes campos nos quais são encontrados, respectivamente, a idéia de saúde como dom e bem, o espírito de exaltação das virtudes e o projeto de um sujeito autônomo. Essa digressão filosófica funciona como um terreno importante para o encontro com a hipótese central de A saúde pelo avesso, qual seja, de que no par conceitual autonomia/heteronomia reside a filosofia kantiana, mas em uma versão pré-moderna.

Nesse percurso ganha destaque a correspondência da autonomia com uma vontade de cuidar de si, sendo que essa vontade tem fundamento na liberdade do sujeito. Entretanto, é importante registrar uma tensão entre a construção da autonomia em Kant e em Aristóteles: a autonomia em Aristóteles está assentada em uma tradição cultural herdada; e em Kant o fato de a razão ser destacada faz com que a autonomia, associada à moralidade, esteja centrada na subjetividade. Tal tensão é explicitada por Nogueira quando explora os pressupostos da conformação da vontade em Kant e em Illich na busca de uma similaridade. Para Kant a vontade está relacionada com uma razão prática, com um dever; já em Illich a vontade é uma tarefa, um compromisso com a idéia do "faça você mesmo". De qualquer maneira impera a liberdade da vontade sobre o imperativo do dever ou da tarefa.

Os temas da vontade, da verdade e da interioridade como uma tríade básica, já foram explorados, com objetivos diversos, por Luiz Fernando Dias Duarte (1983) no contexto dos estudos sobre o processo de construção de si na modernidade e apresentação pública da pessoa moderna. Nesse contexto, ganha destaque a razão como um foco clareador que estrutura o pacto social, no intercâmbio e na dimensão relacional.

A obra de Illich A expropriação da saúde: nêmesis da medicina, de 1975, é uma das análises teóricas acessadas por Nogueira e que representa uma importante referência para a crítica sociológica acerca das instituições sociais de uma forma geral, sendo a medicina seu principal foco. A relação autonomia e heteronomia é explorada na obra através do recurso à desnaturalização de uma perspectiva que reiteradamente prevalece em nossos discursos quando perdemos o recurso à história e à construção social da realidade. Como exemplo, Illich recorre às sociedades pós-neolíticas para as quais não havia um conflito entre as formas de produção autônoma e heteronômica. Ambas concorriam para a realização de objetivos sociais maiores. Relacionando a desintegração entre o par autonomia/heteronomia nas sociedades modernas Illich aponta o lugar ocupado pela instituição médica na redução da autonomia dos sujeitos em direção a uma heteronomia assumida pelas competências técnicas e expertises. Dessa maneira, se nas culturas tradicionais o homem é mais facilmente identificado como responsável por seu comportamento, o homem industrializado entrega às instituições sociais a sua responsabilidade de cuidar da sua dor. Assim, o significado íntimo e pessoal da experiência da dor se transforma em um problema técnico. Com relação à iatrogênese esta é definida como uma epidemia de doenças provocadas pela medicina. Uma doença iatrogênica é causada pela não administração do tratamento de acordo com as regras recomendadas pela profissão médica. Para Illich a iatrogênese clínica está referida ao ato médico e a sua técnica; a iatrogênese social é o efeito social não desejado e prejudicial do impacto social da medicina (medicalização do orçamento, invasão farmacêutica, controle social pelo diagnóstico que etiqueta as diferentes idades humanas, dentre outros); e a iatrogênese estrutural, que se refere ao processo de delegação de elementos característicos da vida humana (como o significado da dor física, da morte e da doença), ao uso ilimitado da medicina. Esses três níveis da iatrogênese, em seu conjunto, contribuem para o comprometimento da capacidade autônoma dos homens.

Nogueira retoma o conceito de risco como um instrumento tanto de previsão quanto de responsabilização social. Essa retomada representa uma "sociogênese dos riscos" na sociedade pós-industrial. Recuperar esse conceito de risco significa valorizar a crítica de Illich ao controle totalitário exercido pela medicina via seus serviços clínicos, seu corpo científico e gerência técnica da saúde pública sobre a sociedade. Para Nogueira a noção de risco em saúde se articula a uma função moral de instrumento de responsabilização. Essa responsabilização acaba por se qualificar como uma consciência do pecado pela presença e ameaça do mal. Dessa maneira, a responsabilização se transveste em culpabilização, já que impede o desenvolvimento da espontaneidade material e espiritual na conjunção de esforços para o alcance de objetivos outros na vida. Desta forma, o autor critica o cuidado compulsivo do próprio corpo como um limite ao entendimento de que a vida é muito maior que o controle e a prevenção dos riscos em saúde. Os chamados estilos de vida saudáveis são dignos de crítica por sua pretensão totalitária de que ser saudável significa somente ser capaz de criar e dominar os riscos. Mas como nos lembra Illich a saúde engloba a angústia e os recursos internos para conviver com ela. Segundo Nogueira essa compulsão por ser saudável, controlar os riscos, pode ser identificada como uma "higiomania contemporânea".

Um mérito a ser apontado na obra de Nogueira reside na possibilidade de retomar os temas da integralidade e da humanização das práticas em saúde. Se considerarmos que a humanidade é a única espécie viva cujos membros têm consciência de serem frágeis, parcialmente enfermos, sujeitos a dor e votados à cessação radical, isto é, a morte. Somente o homem pode sofrer e ser doente (Illich, 1975) precisamos pensar, refletir sobre a dimensão humana nos cuidados de saúde e seus dilemas éticos. Ou seja, a finitude, a doença e a administração subjetiva desses temas compõem o universo humano e não só a "higiomania", que talvez seja a expressão da busca da perfeição, da longevidade e de uma vida não sujeita a impasses e acidentes.

Outro mérito do trabalho de Roberto Passos Nogueira está na recuperação da obra de Ivan Illich como possibilidade de repensar as relações entre Estado e sociedade via a micropolítica do cotidiano. Nesse espaço, situam-se atores políticos que, por exemplo, ocupam e constroem o cenário das práticas sanitárias. Profissionais de saúde (e aí não só os médicos), e usuários dos serviços precisam recuperar seus lugares como sujeitos de fato e de direito. Uma dimensão que apela para uma retomada do humano naquilo que lhe é mais próprio: suas possibilidades de exercer autonomia e responsabilizar-se por suas práticas ultrapassando um lugar de objetualização, como simples lócus operativo da terapêutica e alcançando sua dimensão de sujeito da história. Ou seja, não só os usuários são objetos de uma prática ou de um sistema de saúde, mas os próprios profissionais quando perdem a capacidade de refletir sobre sua prática e sua história.

Referências bibliográficas

Duarte LFD 1983. O culto do eu no templo da razão. Boletim do Museu Nacional (Nova Série Antropologia) 41:1-69.

Illich I 1975. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. Ed. Nova Fronteira, São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jan 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2004
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