Resumo
O racismo antinegro atravessa a vida das mulheres pretas e pardas comprometendo a saúde sexual e reprodutiva. O racismo obstétrico que ocorre durante a gravidez, pré-natal, parto, aborto e puerpério atinge estas mulheres expondo-as à desfechos maternos negativos e muitas vezes letais. Este estudo objetiva apresentar o racismo e suas manifestações na morte materna por COVID-19. Estudo transversal, com dados das notificações de COVID-19 entre gestantes e puérperas registradas na base de dados da Síndrome Respiratória Aguda Grave (2021 e 2022). Foram coletadas informações sobre raça/cor, idade, região, sinais e sintomas clínicos, UTI e óbitos. Os resultados apontam como o racismo afeta as gestantes e puérperas pretas e pardas, que apresentam maior letalidade por COVID-19 comparada às brancas (diferença que alcança os 14,02%), em particular no puerpério. Gestantes pretas e pardas são as que menos acessaram UTI. Após ajustes, a chance de óbito materno no puerpério para as mulheres pretas foi 62% maior em comparação as brancas (RC=1,62; 95%IC: 1,01-2,63). O racismo e suas manifestações (des)organizam as trajetórias reprodutivas das mulheres pretas e pardas que na sua interação com o sexismo contribuem para desfechos maternos negativos e letais por COVID-19.
Palavras-chave: Racismo; Racismo Obstétrico; Saúde Sexual e Reprodutiva; Morte Materna; COVID-19
Abstract
Anti-Black Racism traverses the lives of Black and Brown women, compromising sexual and reproductive health. Obstetric racism during pregnancy, prenatal care, childbirth, abortion, and puerperium affects these women, exposing them to harmful and often lethal maternal outcomes. This study aims to present racism and its manifestations in maternal death by COVID-19. It included data from COVID-19 notifications among pregnant women and puerperae recorded in the severe acute respiratory syndrome database (2021 and 2022). Information on race/skin color, age, region, clinical signs and symptoms, ICU, and deaths were collected. The results indicate how racism affects Black and Brown pregnant women and puerperae, who have higher lethality due to COVID-19 compared to White women (a difference of 14.02%), particularly in the puerperium. Black and Brown pregnant women least accessed the ICU. After adjustments, maternal death in the puerperium for Black women was 62% more likely than for White women (OR=1.62; 95%CI: 1.01-2.63). Racism and its manifestations (dis)organize the reproductive trajectories of Black and Brown women, whose interaction with sexism contributes to harmful and lethal maternal outcomes by COVID-19.
Key words: Racism; Obstetric Racism; Sexual and Reproductive Health; Maternal Mortality; COVID-19
Introdução
O racismo é um determinante estrutural das condições de vida e do acesso aos serviços de saúde. Na atenção obstétrica, a manifestação do racismo carrega um legado histórico de violências, torturas e experimentos nos corpos das mulheres negras, por isso denominado de racismo obstétrico1,2. A realização de procedimentos sem anestesias, sem atenção e cuidado, porque eram e são as mulheres negras consideradas mais resistentes são exemplos de práticas obstétricas racistas na leitura colonizada de humanidade2,3. O mundo tem uma estrutura que hierarquiza a humanidade, definindo humanos (brancas/os) e subumanos (negras/os e indígenas)4. A antinegritude é o fundamento da humanidade, pois na sua definição tem exclusão daquelas consideradas não pessoas, resultando na negação da pessoa negra5, em um pacto histórico-político-ideológico de genocídio antinegro.
Deixar viver, deixar morrer6, estão carregados de viés racial implícito, que corresponde a um conjunto de estereótipos históricos e sociais, que incidem sobre a população negra e grupos racialmente oprimidos, podendo ser sutis e acidentais. A tomada de decisão na atenção obstétrica, muitas vezes, tem como base o viés racial implícito, que repercute na condução do cuidado às mulheres negras nos serviços de saúde.
O racismo é um sistema institucionalizado de opressão que atribui valor e hierarquiza as pessoas com base na raça/etnia7,8. Por esta razão, as mulheres negras retardam a busca por serviços de saúde, considerando as experiências individuais e coletivas de discriminações, preconceitos e violências institucionais. O racismo institucional se manifesta mesmo antes da entrada no serviço, interferindo na decisão de procurar atendimento, o que muitas vezes, as colocam numa situação limite em relação as condições de saúde9. Ao mesmo tempo que são também as mulheres negras que moram nas periferias, nas margens, nos bairros segregados, vivendo em piores condições de vida, onde a oferta de serviços de saúde é precária.
O racismo obstétrico situa-se na intersecção entre violência obstétrica e do racismo institucional. É caracterizado pelo agravamento da violência sofrida por causa do pertencimento racial das usuárias do serviço de saúde e pela ideologia das hierarquias raciais, que influenciam o tratamento ou as decisões diagnósticas10. O racismo antinegro acompanha as mulheres negras durante a gravidez, pré-natal, parto, aborto e puerpério.
As diversas manifestações do racismo prejudicam as mulheres, com desfechos maternos negativos e muitas vezes letais11-13. Países empobrecidos e com profundas desigualdades apresentam altas taxas de mortalidade materna, distante das metas estabelecidas pela Organização Mundial de Saúde14. A morte materna é um evento letal evitável na maioria dos casos, chegando a 90%, mas na medida em que temos uma sociedade que define critérios de humanidade, quase sempre será um agravo letal e não evitável para mulheres negras e indígenas.
Com a pandemia da COVID-19 o quadro de morte materna se agravou no Brasil e em diversos países, sendo as mulheres negras e pessoas de grupos racialmente oprimidos as principais vítimas. Quando a pandemia do novo coronavírus se instalou no país, encontrou previamente um processo de estagnação, seguido de retrocessos no que se refere à agenda dos direitos sexuais e reprodutivos, em particular as mortes maternas, que não houve redução significativa nos últimos anos. Em 2020, em decorrência da pandemia de COVID-19 houve um crescimento de 20% dessas mortes, seguido do incremento do dobro desta taxa no ano subsequente (15,6% em 2021 e 7,4% em 2020)15.
A pandemia, de forma direta e indireta, se tornou uma ameaça aos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas e ao acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva (planejamento reprodutivo, pré-natal, parto, aborto e puerpério), ampliando as barreiras pré-existentes no acesso a esses serviços16. São mulheres negras, indígenas, das regiões periféricas e mais jovens, as previamente expostas e que vivenciam essas barreiras no contexto anterior e atual. A Figura 1 representa o modelo teórico para a compreensão das inter-relações entre o racismo antinegro e as demais dimensões do racismo, assim como seu efeito sobre a morte materna por COVID-19.
Com isso o objetivo do presente artigo é analisar as desigualdades raciais na letalidade e na chance de óbito por Síndrome Respiratória Aguda Grave entre os casos diagnosticados para COVID-19 em mulheres gestantes e puérperas, nos anos de 2021 e 2022, considerando a variável raça uma categoria analítica e histórica que representa uma proxy para o estudo do racismo.
Métodos
Trata-se de um estudo exploratório, de delineamento transversal, desenvolvido a partir dos Bancos de Dados de Síndrome Respiratória Aguda Grave, incluindo dados da COVID-19 referentes a Vigilância de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) do Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) e vigilância da Síndrome Respiratória Aguda para os anos 2021 e 2022 (https://opendatasus.saude.gov.br/dataset/srag-2021-e-2022). Não foram utilizados os dados referentes a 2020 devido à qualidade do preenchimento do quesito raça/cor no referido período17,18.
Os dados extraídos se referem às notificações de Síndrome Respiratória Aguda Grave - incluindo dados da COVID-19 datados de 1 de janeiro de 2021 a 21 de fevereiro de 2022 -, totalizando 1.715.835 casos notificados. Por tratar-se de uma base de dados desidentificados e de acesso aberto, o presente estudo não requeriu aprovação em comitê de ética.
Amostra
Foram incluídas neste estudo as notificações de casos de COVID-19 (opção “SRAG por COVID-19” no campo “classi_fin”) que apresentaram um desfecho clínico registrado (cura ou óbito), de raça/cor pretas, pardas ou brancas, de mulheres gestantes (resposta positiva ao campo “cs_gestant” - opções 1º, 2º, 3º trimestre ou idade gestacional ignorada; N=8.244) e puérperas (resposta positiva ao campo “puérpera”; N=2.501), totalizando 10.745 casos. Considerando o pequeno tamanho amostral de indígenas e descendência asiática entre as gestantes (39 indígenas e 61 de descendência asiática) e puérperas (15 indígenas e 13 de descendência asiática), estes grupos não foram incluídos nas análises de dados. Estas análises consideraram apenas os grupos de mulheres pretas, pardas e brancas correspondendo a 82,8% da amostra inicial de casos positivos de COVID-19 em mulheres com desfecho registrado.
Variáveis do estudo
Variáveis sociodemográficas: idade (em anos), raça/cor e região (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste).
Sinais e sintomas: foram considerados os sinais e sintomas listados na ficha de notificação, são eles febre, tosse, dor de garganta, dispneia, desconforto respiratório, saturação O₂<95%, diarreia, vômito, dor abdominal, fadiga, perda do olfato, perda do paladar e outro sintoma.
Fatores de risco: foram considerados os fatores de risco listados na ficha de notificação. São eles: doença cardiovascular crônica, doença hematológica crônica, síndrome de Down, doença hepática crônica, asma, diabetes mellitus, doença neurológica crônica, pneumopatia crônica, imunodeficiência ou imunodepressão, doença renal crônica, obesidade e outros fatores de risco. A partir deste conjunto de variáveis foi calculado o total de fatores de risco (soma de respostas positivas aos doze fatores de risco, variável inteira de zero a 12).
UTI: indicativo de que a paciente foi internada em unidade de terapia intensiva.
Óbito por SRAG: foram codificados os óbitos registrados pelo campo “evolução”, atribuindo-se o valor um para óbitos (opção 2 “Óbito” na ficha de notificação) e zero para os demais desfechos (“Cura” ou “Óbito por outras causas”).
Análises de dados
Os dados foram processados com auxílio do software STATA versão 13.0. Foram calculadas estatísticas descritivas para toda a amostra, e específicas aos grupos de gestantes, puérperas e demais mulheres, categorizadas por raça/cor.
O cálculo da letalidade foi realizado por meio divisão do total de óbitos por SRAG pelo total de casos confirmados para COVID-19. Para as comparações da letalidade entre os grupos raciais, utilizou-se o teste do qui-quadrado.
Para a análise das desigualdades raciais no risco de óbito por SRAG, considerando a variável independente raça/cor como exposição de interesse, foram estimados modelos de regressão logística simples e regressão logística múltipla (ajustada por faixa etária, internação em UTI e soma de fatores de risco).
Resultados
Caracterização das mulheres hospitalizadas por COVID-19
A Tabela 1 descreve as características sociodemográficas, de sinais e sintomas, fatores de risco e internação em UTI entre as gestantes e puérperas incluídas no estudo, por raça/cor da pele. A distribuição etária entre os grupos raciais difere significativamente entre as gestantes (x²8=43,81; p<0,05), com um percentual mais elevado de grávidas adolescentes entre mulheres pretas e pardas em comparação com as brancas. Diferenças significativas também foram encontradas entre as puérperas, com um percentual mais elevado de puérperas adolescentes entre as mulheres pardas (x²8=38,63; p<0,05).
Ao avaliar os fatores de risco apresentados pelas mulheres, notam-se diferenças entre os grupos raciais para as mulheres gestantes, com 50,44% das pretas declarando ao menos um fator de risco, em comparação com 48,72% das brancas e 46,27% das pardas (x²2=6,24; p<0,05), e também entre as puérperas, com 48,97% das mulheres pretas declarando fatores de risco versus 41,01% das brancas e 34,64% das pardas (x²2=17,66; p<0,05) (Figura 2). Entre os fatores de risco especificados (não listados na categoria “Outros”), os de maior prevalência foram diabetes, obesidade, doença cardiovascular crônica e asma, tanto para gestantes como para puérperas. Diferenças significativas entre os grupos raciais foram identificadas na prevalência de obesidade entre as gestantes (x²2=11,97; p<0,05). O percentual entre mulheres pretas foi o mais elevado (31,34%), seguido das brancas (25,11%) e pardas (21,94%).
Fatores de risco* dos casos de COVID-19 entre mulheres gestantes e puérperas hospitalizadas por Síndrome Respiratória Aguda Grave, por raça/cor da pele, janeiro de 2021 a fevereiro de 2022, Brasil.
O percentual de gestantes encaminhadas para UTI diferiu significativamente entre os grupos raciais (x²2=10,80; p<0,05), com maior proporção entre gestantes de raça/cor branca (35,50%), seguidas de pretas (32,19%) e pardas (31,94%). Diferenças também foram identificadas entre as puérperas, com maior percentual de internações em UTI para as mulheres de raça/cor preta (55,15%), seguidas de pardas (46,27%) e brancas (42,45%) (x²2=8,98; p<0,05).
Letalidade
Foram identificados 1.308 óbitos na amostra final do estudo. A maior letalidade foi identificada entre mulheres de raça/cor preta, contabilizando 99 óbitos (17,9%), seguidas pelas pardas (736 óbitos; letalidade 15,1%) e brancas (593 óbitos; letalidade 13,3%). O resultado do teste do qui-quadrado confirmou a existência de diferenças estatisticamente significativas da letalidade entre os grupos raciais (x²2=12,04; p<0,05) (Dados não apresentados nas tabelas).
A letalidade específica entre gestantes e entre puérperas está apresentada na Figura 3. O teste qui-quadrado não indicou diferenças significativas entre os grupos raciais para as gestantes (x²2=3,10; p>0,05). No entanto, os resultados foram significativos na comparação entre os grupos raciais para as puérperas (x²2=12,13; p<0,05), indicando letalidade mais elevada entre as mulheres pretas (36,28%) em comparação com as brancas (22,26%).
Comparações da letalidade (%) por SRAG conforme categorias de raça/cor de pele dos casos de COVID-19 entre mulheres gestantes e puérperas hospitalizadas por Síndrome Respiratória Aguda Grave, 1º de janeiro de 2021 a 21 de fevereiro de 2022, Brasil.
Desigualdades raciais no óbito
Entre as gestantes, não foi encontrada diferença significativa na chance de óbito entre mulheres brancas e pretas, tanto no modelo bruto (RC=1,22; 95%IC: 0,91-1,64), como após ajuste por faixa etária, internação em UTI e soma de fatores de riscos (RC=1,38; 95%IC: 0,97-1,98). Na comparação entre brancas e pardas, a chance de óbito para gestantes pardas foi 38% maior que para brancas, após controle pelas covariáveis do estudo (RC=1,38; 95%IC: 1,16-1,63).
Na análise das puérperas, diferenças entre mulheres brancas e pretas foram significativas no modelo bruto (RC=1,86; 95%IC: 1,28-2,71) e após ajuste pelas covariáveis, indicando um aumento de 62% da chance de óbito para as pretas em comparação com as brancas (RC=1,62; 95%IC: 1,01-2,63) (Tabela 2).
Discussão
Os resultados deste estudo apontam como o racismo e as desigualdades raciais afetam as gestantes e puérperas pretas e pardas, expondo-as a maior risco de desfecho letal associado à COVID-19, com destaque para o período puerperal, em que mulheres pretas apresentam maiores percentuais. São as mulheres pretas e pardas também às que acumulam mais fatores de risco para desfechos negativos maternos tanto na gestação como no puerpério, bem como são às gestantes pretas e pardas as que menos foram internadas na UTI.
Como fenômeno recente, ainda são escassos os estudos nacionais que analisam as desigualdades raciais na mortalidade materna por COVID-1919,20. Em nível internacional, um estudo realizado nos Estados Unidos aponta resultados semelhantes aos nossos, em que mulheres afro-estadunidenses apresentam maior concentração de fatores de risco e de chance de óbito materno por COVID-19 quando comparadas com as mulheres brancas21. O racismo e suas manifestações têm sido evidenciados nos estudos sobre saúde sexual e reprodutiva e atenção obstétrica, nos quais, mulheres pretas e pardas tem menos consultas de pré-natal, peregrinam mais na hora do parto, realizam abortos inseguros e são submetidas a procedimentos sem anestesia2,3,9. São elas que estão expostas à atenção desumanizada, na qual o racismo institucional, por meio do viés racial implícito ou da discriminação explicita e percebida se fazem presente nas práticas do cuidado.
São as gestantes e puérperas pretas deste estudo que apresentaram a maior prevalência de fatores de risco como doenças cardiovasculares, diabetes e obesidade, conhecidos pelo seu papel na piora do quadro clínico de pacientes diagnosticados com a COVID-19. Sabe-se também que a população negra acumula mais doenças crônicas, em decorrência da precarização das suas condições de vida, moradias adensadas, ausência de saneamento, bairros com equipamentos públicos sociais insuficientes e inadequados, um espelho das regiões segregadas22. As franjas das cidades são segregadas, as pessoas vivem em vazios assistenciais. Mulheres pretas e pardas precisam se deslocar para os grandes centros para ter acesso aos serviços de saúde de média e alta densidade tecnológica, principalmente. A pandemia também evidenciou a ausência de leitos de UTI em regiões que agregam ao longo tempo desigualdades territoriais, e nestes locais estão concentradas a população negra e indígena23.
As mulheres pretas, particularmente no puerpério, apresentaram mais sintomas graves como desconforto respiratório e saturação O₂<95% e acumularam mais fatores de risco, sendo as que tiveram maior letalidade por COVID-19, com uma diferença de 14,02% quando comparada com as brancas. O racismo obstétrico, influencia a tomada de decisão dos profissionais de saúde com isso hierarquiza as pessoas e desumaniza as mulheres pretas e pardas no momento do pré-natal, parto, aborto e puerpério1,2,10. Em contextos extremos como a pandemia da COVID-19 essas situações são agravadas, e as decisões sobre quem deverá receber as melhores condutas no atendimento estão alicerçadas no racismo antinegro, na biopolítica do deixar viver, deixar morrer4-6.
As puérperas, com destaque para as pretas, são as que apresentam mais sintomas graves de COVID-19 no momento da internação. A demora em procurar o serviço de saúde pode estar relacionada com as experiências individuais e coletivas anteriores ao racismo obstétrico, que reservam às mulheres pretas e pardas esse lugar que desumaniza. Com isso, as mulheres pretas e pardas chegam ao serviço numa situação de maior agravamento do quadro clínico, com necessidade de internações em UTI, o que é chamado de situação limite9, como foi observado no nosso estudo. A diminuição da renda, em particular entre as mulheres inseridas no mercado informal, ocasionada pela recessão econômica e agravada pelas medidas de distanciamento social, e o receio de usuárias de buscarem os serviços por medo de contaminação em transportes públicos ou nas unidades de saúde, são outros fatores que contribuíram para a redução da procura pelos serviços e as colocaram em risco à saúde nesse período gravídico-puerperal.
Em que pese à atenção obstétrica tenha melhorado no Brasil, principalmente no acesso ao pré-natal, por meio da ampliação da cobertura da atenção básica, com programas estratégicos como Saúde da Família, as desigualdades raciais, regionais e socioeconômicas ainda persistem, é o que se observa com as taxas de mortalidade materna do país24. É nesta situação que a pandemia do novo coronavírus se insere, aprofundando o fosso desigual da atenção obstétrica, trazendo novos desafios à saúde materna no contexto nacional. O primeiro caso de morte materna por COVID-19 foi de uma jovem negra do interior da Bahia. Ela estava auxiliando seu companheiro no trabalho e se contaminou com o novo coronavírus, situação similar do primeiro caso de morte por COVID-19 no Brasil - uma trabalhadora doméstica25. Essa é a biopolítica do corpo que se contamina e transmite e do corpo que morre no “serviço essencial”, no trabalho mal pago, explorado e invisível.
As medidas sanitárias universais para a contenção da pandemia, como distanciamento social, lavagem adequada das mãos, uso de máscaras e possibilidade de trabalho remoto (home office) não reconhecem as desigualdades prévias e o racismo que estrutura a sociedade. São as mulheres pretas e pardas que estão inseridas mais informalmente no mercado de trabalho, com os menores rendimentos, sem a possibilidade de aderir ao trabalho remoto ou ficar em casa, e consequentemente mais expostas à possibilidade de infecção pelo vírus do SARS-CoV-2, aspetos que apontam para a não efetividade das medidas universais neste contexto.
Para as gestantes e puérperas no início da pandemia não foi elaborado nenhum protocolo de atenção como medida principal, pelo contrário, houve um retardo nas iniciativas de prevenção/mitigação, contribuindo para aumento do óbito materno, sendo o Brasil o principal país em morte materna por COVID-19 no mundo26. Especialistas no tema alertavam, no início da pandemia, considerando que esse grupo costuma estar particularmente vulnerabilizado dadas as ameaças de doenças infecciosas, que a saúde global tem históricos anteriores de como esses agravos atingem gestantes e puérperas, como aconteceu com o H1N1, em 2009, que ocasionou o aumento das mortes maternas, segundo a Organização Mundial de Saúde. Mas, é importante destacar que as doenças infecciosas quando encontram um terreno estruturado pelas desigualdades tornam mais grave o cenário de morbimortalidade materna, é o que tem sido visto com a pandemia do novo coronavírus. As medidas para gestantes deveriam ser para além da telemedicina, que ainda alcança poucas, por causa das barreiras tecnológicas. O fornecimento de ampla testagem diagnostica de forma periódica, distribuição de máscaras cirúrgicas/N95 e álcool gel nas unidades em que realizam pré-natal, além de busca ativa das gestantes e puérperas e ampla cobertura vacinal são exemplos de medidas preventivas que deveriam ser adotadas em larga escala neste contexto pandêmico.
Em emergências sanitária, política ou econômica, as mulheres e seus direitos ficam sob ameaça. Na Pandemia da COVID-19 a saúde sexual e reprodutiva das mulheres ficou secundarizada, sendo considerada serviço não essencial. Para a priorização no controle do novo coronavírus houve interrupções nas cadeias de suprimentos em geral e o redirecionamento da produção de insumos para COVID-19, além do deslocamento de profissionais de saúde para atenção e cuidado com as pessoas vítimas do vírus. Com isso, houve redução de ofertas de consultas de pré-natal e de atendimentos às puérperas, disponibilização de métodos contraceptivos e medicamentos de uso contínuo utilizados no tratamento do HIV e outras infecções transmissíveis, impactando diretamente as mulheres pretas e pardas, que compõe o grupo de pessoas que mais utilizam o sistema público de saúde16. Essas medidas podem ser denominadas de tirania do urgente, situação em que gênero, raça e outros marcadores sociais de opressão não são considerados prioridades para respostas a surtos de doenças, negligenciando as dinâmicas desiguais previamente estabelecidas27.
As desigualdades de gênero no cuidado sobrecarregam as mulheres, em particular as pretas, pardas, pobres e de periferia que, na sua maioria, são as principais responsáveis pelo cuidado na esfera profissional e doméstica. Com isso, a pandemia se apresentou de forma mais intensa para as mulheres com adoecimento físico e mental, repercutindo também na indisponibilidade de acessarem serviços de saúde sexual e reprodutiva, pela ausência de tempo, dada a dupla ou tripla jornada de trabalho (casa, trabalho e filhos)16.
Muitas gestantes e puérperas continuaram em seus trabalhos mesmo em situação de risco por falta de uma política de saúde e de transferência de renda efetiva. As que conseguiram licença por conta da gravidez, estão sob ameaça de retomar o trabalho de forma obrigatória mesmo sem completar o esquema vacinal28. As mulheres são vítimas de um estado racista patriarcal que coloca os direitos garantidos sempre em ameaça, o que tem, muitas vezes, ceifado vidas. O Brasil atualmente está sob uma gestão de retrocessos em direitos constitucionais e humanos adquiridos, um governo federal de extrema-direita que atua para adensar as desigualdades raciais, sociais e de gênero16.
Este estudo tem como objetivo preencher lacunas sobre o racismo e suas manifestações na morte materna por COVID-19, no sentido de contribuir para a superação das desigualdades raciais na saúde por meio de evidências cientificas. Porém, é importante referir algumas limitações, entre elas, a impossibilidade das análises pela escolaridade como proxy de posição socioeconômica, dada a sua incompletude (mais de 50% de valores faltantes). O número de casos notificados entre mulheres indígenas e de descendência asiáticas foi relativamente pequeno, e não foi possível incluí-las nos modelos de análise, apesar de reconhecermos a importância do estudo dos impactos da COVID-19 na mortalidade materna nestes segmentos populacionais. Nossos achados não consideram o cenário da pandemia no ano de 2020, devido a não coleta/disponibilização pública do quesito raça/cor neste período.
Em última análise, o racismo e suas manifestações (des)organizam as trajetórias reprodutivas das mulheres pretas e pardas que na sua interação com o sexismo afetam os comportamentos individuais, as relações interpessoais e as práticas de cuidado, contribuindo para desfechos negativos à saúde sexual e reprodutiva. As mulheres pretas e pardas não conseguem realizar a escolha plena de uma maternidade sem opressão, hierarquias e violências, ver filhas/os crescerem com saúde e bem viver. Assim como elas não conseguem interromper a gravidez com autonomia reprodutiva e segurança. Para isso, é preciso um Estado que enfrente o racismo e as desigualdades raciais, que as maternidades negras sejam vistas como maternidades legítimas em todos os seus processos, desde a decisão pela gestação até na procura pela atenção e cuidado. As/Os formuladoras/es de políticas públicas e defensoras/es dos direitos humanos precisam avançar na agenda da saúde sexual e reprodutiva numa perspectiva interseccional, pela justiça reprodutiva, para superar o racismo obstétrico e tudo que ele promove.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Set 2023 -
Data do Fascículo
Set 2023
Histórico
-
Recebido
30 Jun 2022 -
Aceito
20 Out 2022 -
Publicado
22 Out 2022