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DEBATEDORES

Escolhas e políticas

Jeni Vaitsman

Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. vaitsman@ensp.fiocruz.br

Como co-editora deste suplemento, junto com Nilson do Rosário Costa, eu não poderia deixar de fazer alguns comentários sobre sua análise densa e provocante sobre as relações entre regras institucionais, constrangimentos macroeconômicos e inovações no sistema de proteção social brasileiro após a Constituição de 1988. São várias e de diferentes ordens, as questões suscitadas.

O texto critica com propriedade a associação linear entre ajuste econômico e política social, destacando o papel dos processos internos em relação aos constrangimentos externos. Ressalta as condições institucionais favoráveis à construção de um sistema de proteção social, a despeito da agenda de ajuste macroeconômico, ainda que essa mesma agenda tenha determinado a ênfase dada à focalização da proteção aos pobres, sobretudo pelo Programa Bolsa Família. O desenvolvimento da política social teria ganho autonomia relativa em relação à política econômica, sendo assumidas como prioridades as questões de combate à pobreza, à miséria e a desigualdade social.

Enquanto o governo FHC, embora aderindo à agenda da focalização, teria ampliado a descentralização federativa na saúde e educação, em um processo "apresentando estreita relação com a democratização e a crítica à centralização autoritária do regime militar e não com a agenda da reforma do Estado dos anos 1990", o governo Lula teria feito outras escolhas. A criação do Programa Bolsa Família teria afetado diretamente as disponibilidades de recursos do governo central para as áreas sociais básicas - saúde, educação e saneamento.

O autor ressalta os conflitos e escolhas - trágicas, na situação de desigualdade brasileira - entre políticas. No entanto, o que é considerado como avanço na área da educação e saúde nos anos noventa, "a ampliação da descentralização federativa na saúde e educação", a meu ver, é similar ao processo que se deu no âmbito da assistência social nos anos 2000, sobretudo após 2004. A expansão nacional do Programa Bolsa Família e sua convergência com o Sistema Único de Assistência Social ampliou a descentralização federativa para o âmbito da assistência social, o componente até então relegado da seguridade social. Na esfera dos direitos assistenciais, o principal direito assistencial em transferência de renda, não contributivo e garantido constitucionalmente, o Benefício de Prestação Continuada, para idosos e pessoas com deficiência, que iniciara sua implementação em 1996 com cerca de 346.000 beneficiários, alcançou uma cobertura de 2,68 milhões de beneficiários em 20071.

Por outro lado, a agenda de desenvolvimento social a partir de 2004 não implicou a ruptura com a tradição do movimento de combate à fome e segurança alimentar orientando a agenda social no primeiro ano de governo, mas antes em seu redirecionamento. O combate à fome e à insegurança alimentar passam a ser tratados como parte de uma visão integrada de desenvolvimento social. Não por acaso, o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA), o Ministério da Assistência Social e a Secretaria Executiva do Programa Bolsa Família se fundem no novo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, adquirindo status de secretarias nacionais (Secretaria Nacional de Segurança Alimentar, Secretaria Nacional de Assistência Social e Secretaria Nacional de Renda da Cidadania) com níveis hierárquicos equivalentes. Não houve ruptura, mas institucionalização, transformação de agenda política em política pública. O Consea, que havia sido dissolvido no governo FHC e reestabelecido no governo Lula, teve papel central na promulgação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional em 2006 e na instituição do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN)2.

A unificação dos programas de transferência de renda e das áreas de segurança alimentar, transferência de renda e assistência social sob a gestão federal do MDS significou, com a convergência de políticas e ações, uma nova orientação para enfrentar o problema, também assinalado pelo autor, do "conjunto expressivo e difuso de benefícios assistenciais" e da redundância de programas e superposição de beneficiários.

Em relação aos números referentes ao ano de 2003 apresentados na Tabela 3, discordo que a unificação dos programas de transferência de renda no Programa Bolsa Família teria produzido uma redução de 4.722.031 beneficiários de programas de transferência de renda entre 2003 e 2006. O número do total de famílias beneficiárias no ano de 2003 (16.335.596 famílias) está distorcido, pois expressa duplicidade de famílias. Quando o Programa Bolsa Família foi criado, em outubro de 2003, vários cadastros coexistiam e se superpunham e uma mesma família podia constar de diferentes cadastros. A unificação dos programas significou também a unificação cadastral, no Cadastro Único dos Programas Sociais, que foi aos poucos - e com inúmeras dificuldades operacionais - filtrando as inconsistências e repetições e incorporando em uma mesma base de dados os beneficiários dos programas anteriores ao Programa Bolsa Família.

Entre outubro e dezembro de 2003, o número de beneficiários do Programa Bolsa Família representava basicamente os beneficiários migrados dos programas anteriores. A partir de 2004, paralelamente ao processo de migração continuar, aumentou a inclusão de famílias que não eram até então beneficiárias de nenhum programa federal de transferência de renda. A partir de 2003, enquanto o número de beneficiários e de valores repassados pelo Programa Bolsa Família crescia, decresciam os repasses e o número de beneficiários dos programas remanescentes. No que se refere à expansão nacional do programa, entre outubro de 2003 a outubro de 2004, os municípios cobertos passaram de 4.396 para 5.521, chegando à totalidade dos municípios em 2006 3.

Além da questão da quantidade, há um problema de qualidade, ou de significado. O Auxílio-Gás inchava o alcance dos programas sociais, pois embora a cobertura fosse de 8 milhões de famílias, os benefícios limitavam-se a 15,00 a cada dois meses. A unificação dos programas elevou o valor médio dos benefícios de transferência de renda, de 23,24 para 68, 13 em valores de outubro de 20043.

A comparação do orçamento e do gasto em diferentes setores é crucial para se entender as prioridades políticas em relação às políticas públicas. Mas como o próprio texto sinaliza, outras variáveis devem ser levadas em conta para explicar porque determinadas escolhas são feitas ou porque certas políticas setoriais são mais bem-sucedidas em sua institucionalização e seus resultados do que outras. Esse não foi o propósito do artigo debatido, mas é uma das questões que suscita. Os processos setoriais de institucionalização das políticas não são simétricos nem regulares. Em duas décadas de democratização, reformas e inovação, a descentralização das políticas sociais vem se dando em distintos ritmos e produzindo diferentes configurações setoriais.

Esse debate coloca o problema da explicação, de se encontrar um vocabulário, criar teorias para o que é novo e que surge na confluência de diferentes processos, internos e externos, mas adquire seu próprio significado em contextos específicos. Para uma agenda de pesquisa de políticas em perspectiva comparada, duas questões se colocam: por um lado, a necessidade de se entender a natureza, os processos e as lógicas setoriais envolvendo a mobilização dos diferentes atores e interesses que incidem sobre a formulação e implementação das políticas de proteção social em contextos específicos. E por outro, entender que tipo de sistema de proteção social vem sendo construído, visto no contexto de desigualdade e exclusão que ele procura superar por seu conjunto de políticas, sejam elas universais ou focalizadas.

Referências bibliográficas

  • 1 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. [acessado 2009 jan 30]. Disponível em: http://aplicações.mds.gov.br/sagi/miv/miv.php
  • 2. Burlandy L. A construção da política de Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil: estratégias e desafios para a promoção da intersetorialidade no âmbito federal de governo. Cien Saude Colet 2009; 14(3):851-860.
  • 3 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Dados dos Programas do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2004. [acessado 2009 jan 30]. Disponível em: http://www.mds.gov.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009
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