Open-access Violência obstétrica e LGBTQIA+fobia: o entrelaçamento de opressões e violações

Resumo

O sistema capitalista e cisheteropatriarcal se desenvolveu através da opressão e exploração de classe, raça e sexo no estabelecimento de relações desiguais e hierarquizadas de poder, e uma dessas opressões é o uso da violência contra os corpos considerados errantes e transgressores dentro dessa estrutura. Dentre os diversos tipos de violência, o foco deste estudo está na violência obstétrica, compreendida como uma violência patriarcal de gênero que visa a retirada de direitos, autonomia e protagonismo de mulheres e homens trans durante o período gestacional, do parto e puerpério ou em processos de abortamento. Esse artigo tem como objetivo refletir sobre a violência obstétrica e seu impacto nas homoparentalidades de mulheres lésbicas e de homens trans, pois compreende-se que a população LGBTQIA+ é uma das mais vulnerabilizadas e que está mais distante dos serviços de saúde, justamente pela violência institucional que acomete esses corpos. Dessa forma, pretende-se compreender, através de uma análise social e histórica, como os atravessamentos dessas violações sexistas e heteropatriarcais se entrelaçam e refletem na assistência à saúde dessas pessoas, gerando ainda mais formas de opressão contra essa população.

Palavras-chave: Violência obstétrica; Patriarcado; Homoparentalidade; Lesbofobia; Transfobia

Abstract

The cisheteropatriarchal capitalist system has developed by class, racial and sexual oppression and exploitation in establishing unequal, hierarchical power relations. One of these kinds of oppression involves the use of violence against bodies considered wayward and transgressive within this structure. Of the different types of violence, this study focused on obstetric violence, understood as patriarchal gender violence designed to remove the rights, autonomy and agency of trans women and men during the processes of pregnancy, childbirth, postpartum and abortion. This article reflects on obstetric violence and its impacts on homo-parenthood for lesbian women and trans men, on the understanding that the LGBTQIA+ population is one of the most vulnerable and removed from health services, mainly because of the institutional violence suffered by these bodies. Accordingly, the intention is to understand, through social and historical analysis, how these sexist, heteropatriarchal violations, interlacing and reflecting in health care for these people, generate even more forms of oppression against this population.

Key words: Obstetric violence; Patriarchy; Homo-parenthood; Lesbophobia; Transphobia

Introdução

Tirem seus rosários dos nossos ovários Nosso corpo é território livre Nossa mente descolonizou Mirei no seu peito e cê nem viu Mais ligeira que a bala de fuzil, é a semente que brota do amor (NegrAção - Funmilayo Afrobeat Orquestra)

Este artigo busca responder algumas inquietações que acometeram as autoras no processo de pesquisa sobre a violência obstétrica numa perspectiva interseccional. Compõe parte de pesquisa mais ampla sobre o tema coordenada por uma das pesquisadoras há cinco anos, envolvendo orientações no mestrado e graduação nas áreas de Serviço Social e Psicologia. Durante esses cinco anos surge uma certeza: é impossível falar de violência obstétrica de maneira universalizada. São muitas e diversas as formas que ela ocorre e, em especial, com as/os sujeitas/os que ocorrem.

Numa perspectiva materialista-histórico-dialética, feminista e antirracista, desde o princípio se fez necessário compreender a violência obstétrica como resultado de uma sociabilidade capitalista, racista e patriarcal, ao mesmo tempo em que se torna instrumento de manutenção da hierarquização das relações de poder nesta sociabilidade.

Ao discutir tal sociabilidade, deparamo-nos com uma construção que se dá em especial a partir da consolidação do capitalismo que teve como condições de sua preexistência os processos de colonização e de caça às bruxas, estruturando assim um sistema social, político e econômico existente a partir das relações de opressão e exploração de classe, raça e sexo/gênero na instituição de relações desiguais e hierarquizadas de poder.

Nesta perspectiva, compreendemos a violência obstétrica como violência sexista contra a mulher e homens trans que gestam, caracterizada por um tratamento desumanizado vindo dos serviços de saúde, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais através da apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres e homens trans, podendo ser de caráter físico, psicológico, sexual, institucional, material e até midiático. A consequência da violência obstétrica é a perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, mantendo-se o controle e a dominação dos corpos.

Ao pensar as/os sujeitas/os desta violência é fundamental nos voltarmos a compreensão de que o patriarcado, determina a dominação do homem e a subjugação e dominação da mulher. Ao fazê-lo, a partir da divisão sexual do trabalho, implica necessariamente, em impactos para as relações sociais de sexo e sexualidade, invisibilizando a diversidade sexual e todas as suas formas de expressão. Estabelece-se o modelo social de “macho/fêmea”, de masculino/feminino e do ser homem/ser mulher nesta sociabilidade, numa perspectiva binária e que demarca a heterossexualidade. Assim,

Podemos, portanto, considerar que o patriarcado exerce controle sobre a subjetividade, o corpo e a sexualidade da mulher atingindo também, a população LGBT, mediante a imposição rígida e binária de um modo de ser feminino e masculino, com ênfase na desvalorização e dominação da mulher e do que é identificado como feminino1(p.44).

Destarte, se faz mais do que necessário que nos perguntemos: embora entendamos a violência obstétrica como uma violência sexista contra a mulher, que outros elementos atravessam essa questão numa sociedade cisheteropatriarcal?

Propomos, neste artigo, a partir da compreensão do processo de objetificação e desumanização de mulheres e homens trans, iniciar a reflexão sobre violência obstétrica e seus atravessamentos pela lesbofobia e transfobia, pautando o debate sobre como a violência obstétrica ocorre nos diferentes sexos/gêneros, raças e classes, muitas vezes se relacionando e ocasionando mais violência, o que cria maiores benefícios e oportunidades para aqueles que desfrutam das posições de privilégio e prestígio nesta sociabilidade (homens brancos, heterossexuais e burgueses)2.

Para tanto, realizamos pesquisa bibliográfica e documental procurando estudos sobre a temática e dados acerca da vivência da LGTBfobia, bem como, realizando revisão bibliográfica envolvendo patriarcado, racismo, colonização, violência obstétrica, lesbofobia e transfobia.

Realizamos pesquisa nas principais plataformas de periódicos, quais sejam, SciELO, PubMed, PePSIC e Periódicos Capes, utilizando os descritores “violência obstétrica e lésbicas”; “violência obstétrica e lesbofobia”; “violência obstétrica e pessoas trans”; “violência obstétrica e transfobia” e “violência obstétrica e LGBT”, não sendo encontrado nenhum resultado na combinação desses descritores até o momento. Buscamos, então, pelos descritores “maternidade e lésbicas”; “maternidade e lesbofobia”; “maternidade e pessoas trans” e “maternidade e transfobia”, encontrando alguns artigos que versam sobre a maternidade ou homoparentalidade sem nenhuma relação com a violência obstétrica, tendo sido o tema mais próximo as diferentes formas de reprodução assistida e a gestação.

Parece-nos que, num país que tem 2,9 milhões de pessoas com 18 anos ou mais que se declara lésbica, gay ou bissexual; 3,6 milhões que diz não saber a resposta para sua orientação sexual3 e apresenta 2.536 denúncias à violação de direitos de LGBTQIA+ nos primeiros cinco meses de 2023 ao Disque 1004, é mais do que necessário discutirmos também a violência à qual mulheres lésbicas e homens trans são submetidas/os desde a concepção até o nascimento, buscando tematizar o direito ao exercício da parentalidade por pessoas LGBTQIA+, bem como o direito da criança a uma criação amorosa.

Esperamos que este artigo possa contribuir para o debate destas questões, ampliando o olhar acerca da violência obstétrica, bem como, trazendo à população LGBTQIA+ a necessidade de pensar e se posicionar sobre este tipo de violência patriarcal, pois trazer visibilidade para essa temática também é uma forma de combater tais violações.

O entrelaçar de violações no enovelamento entre classe, raça, gênero/sexo e sexualidade

O importante é analisar estas contradições na condição de fundidas e enoveladas ou enlaçadas em um nó. [...] No nó, elas passam a apresentar uma dinâmica especial, própria do nó. Ou seja, a dinâmica de cada uma condiciona-se à nova realidade. De acordo com as circunstâncias históricas, cada uma das contradições integrantes do nó adquire relevos distintos.

(Heleieth Saffioti, 20045)

Segundo Federici6, ao mesmo tempo em que o Estado e os homens se apropriaram do corpo das mulheres, este também foi usado como principal terreno de sua exploração e resistência, adquirindo uma merecida importância em todos os seus aspectos, como por exemplo a maternidade, parto e a sexualidade.

A resistência ao patriarcado confronta o poder de grandes instituições tendo como resposta a desumanização das/os sujeitas/os que transgridem esse modelo, sendo combatida por ideologias religiosas e médico-biologizantes, baseadas na crença de que o corpo da mulher é imprevisível e potencialmente perigoso, portanto, é preciso corrigi-lo através de intervenções2.

O heteropatriarcado (ou cisheteropatriarcado) pode ser considerado um sistema político e social, no qual a heterossexualidade cisgênero masculina tem supremacia sobre as demais formas de identidade de gênero e sobre as outras orientações sexuais, reduzindo a diversidade humana a um padrão cis, heterossexual, masculino e burguês.

Dentre essas relações que dão base à estruturação do patriarcado, destacamos: 1) as relações sociais de sexo/sexualidade; 2) a constituição da família heteropatriarcal-monogâmica associada ao controle sobre a subjetividade do corpo (e seus produtos - como o controle da procriação e a criminalização do aborto) da mulher e do que é associado ao feminino em toda a sua heterogeneidade de expressão; 3) a divisão sexual e racial do trabalho; 4) a violência contra a mulher e a população LGBT1 (p.45).

Compreendido como parte estruturante do desenvolvimento capitalista, o patriarcado serve aos interesses sociais e econômicos da propriedade privada e da divisão social e sexual do trabalho, no qual as mulheres passam a ser responsáveis pela reprodução não entendida como parte da produção social. Nas palavras de Saffioti, as mulheres passam a ser “objetos da satisfação sexual dos homens, reprodutoras de herdeiros, de força de trabalho e de novas reprodutoras”5 (p.105).

Para compreender melhor as relações de sexo, classe, raça e sexualidade com a violência obstétrica, é importante fazer uma contextualização histórica sobre quais as raízes dessa forma de violação de direitos.

Federici6 nos apresenta a discussão sobre como o cercamento das terras inglesas, que um dia foram de uso comum, influenciou nas acusações de prática de bruxaria no final do século XV. Tal privatização ocorreu elevando as tributações das terras, colocando fim aos direitos consuetudinários e desalojando a população de agricultores/as, o que polarizou relações de vínculos recíprocos, trouxe a perda da vida comunal e intensificou a hostilidade, já que as propriedades se tornaram privadas. A figura da “bruxa” era usada para punir outros tipos de comportamentos considerados “problemáticos”, como por exemplo: a investida contra a propriedade privada, a insubordinação social, a propagação de crenças mágicas e o que consideravam desvio da norma sexual, já que naquele momento, o comportamento sexual e a procriação eram de domínio do Estado7.

Spink8 acrescenta que essas mulheres, consideradas bruxas, curandeiras e parteiras desafiavam as principais hierarquias medievais, pois iam contra o poder soberano da igreja, do homem sobre a mulher e do senhor feudal sobre o camponês.

Percebe-se que, atrelada a ideia de queimar essas mulheres, também se eliminavam crenças e práticas sociais que eram vistas como perigosas para a igreja e necessárias ao nascimento do capitalismo, já que representavam uma fonte de poder independente dessas outras duas, o que culminou em um “cercamento de conhecimento, de nosso corpo, de nossa relação com as outras pessoas e com a natureza”6 (p.55).

Neste mesmo período histórico, vivemos o processo de colonização com o domínio dos corpos africanos e dos povos originários da América Latina. É possível estabelecermos um paralelo entre as opressões e violações vivenciadas pelas mulheres durante a caça às bruxas, a escravização de africanas/os e o extermínio de povos indígenas no “Novo Mundo”.

Góes9, afirma que o capitalismo só se efetivou mundialmente porque se utilizou da exploração do trabalho escravizado e tráfico de africanas/os, que além de trazer inúmeras consequências de desigualdade racial, ajudou a concentrar ainda mais o poder e capital nas mãos de poucas pessoas.

Vale destacar, que falamos de uma construção totalmente apoiada pelo ideário da igreja católica, num processo contraditório de revolução política e econômica burguesa com a afirmação de costumes e valores conservadores que defendiam a tradição, a família e a igreja, tal qual as elaborações de Burke10 - grande expoente do pensamento conservador -, como elementos fundamentais para a modernidade. “Burke quer a continuidade do desenvolvimento econômico capitalista sem a ruptura com as instituições sociais pré-capitalistas [...] Burke deseja o capitalismo sem a Modernidade”11.

A cultura machista, expressão do sexismo, encontra-se naturalizada e cristalizada no imaginário social brasileiro, abrigada na e sob a ordem do Pai e entranhada em nossas práticas sociais cotidianas desde quando os portugueses aqui aportaram. A posse, exploração e colonização das terras americanas ao sul do Atlântico foi um longo e violento processo operado sob a lógica mercantil capitalista e também cristã, patriarcal e misógina dos colonizadores. As mulheres indígenas foram as primeiras vítimas dessa cultura lusa que sequer nelas reconhecia sua condição humana. [...] Desde então, as brasileiras vivem e sobrevivem, defrontam-se e confrontam-se com os princípios, regras e valores remanescentes do ordenamento binário, cristão e patriarcal dos colonizadores12 (p.39).

A violência, é portanto, parte da estrutura de manutenção de poder das relações nesta sociabilidade, sendo utilizada como instrumento de controle até os dias atuais, tendo ainda como sujeitas/os principais, aquelas/es que não seguem os modelos moralmente construídos.

Defendemos, portanto, que é impossível falar de uma opressão sem falar das demais, bem como, que, enfrentar violências e conquistar direitos, pressupõe compreender que não é possível hierarquizarmos opressões, como nos mostra Lorde13:

Não existe hierarquia de opressão. Eu não posso me dar ao luxo de lutar por uma forma de opressão apenas. Não posso me permitir acreditar que ser livre de intolerância é um direito de um grupo particular. E eu não posso tomar a liberdade de escolher entre as frontes nas quais devo batalhar contra essas forças de discriminação, onde quer que elas apareçam para me destruir.

Ao tratarmos de violência cisheteropatriarcal, podemos entender que esta se expressa de diversas formas, tais como definem Cisne e Santos: “a física, a sexual, a psicológica, a patrimonial, a moral, a obstétrica e a social”1 (p.70). Nestes termos, retomamos nosso pressuposto de que a violência obstétrica deve ser compreendida como uma das violências patriarcais de gênero.

A Defensoria Pública apresenta a violência obstétrica como

Apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, causando a perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres14 (p.1).

As atitudes discriminatórias e desumanas na assistência ao parto, tanto no âmbito público quanto no privado, são marcadas por um “trabalho de parto dominado pelo medo, solidão e dor, em instituições que deslegitimam a sexualidade e a reprodução de mulheres consideradas subalternas, principalmente negras, solteiras e de baixa renda, e estigmatizam a maternidade na adolescência”2 (p.320).

Importante lembrar que a violência obstétrica diz respeito aos processos ocorridos desde a concepção, passando pela gestação até o pós-parto, envolvendo abortamentos, puerpério, amamentação e podendo ser cometida por quaisquer profissionais da saúde e/ou familiares ou acompanhantes.

A Rede Parto do Princípio15 sintetizou como ocorrem essas violências e diversos exemplos:

Caráter físico: ações que incidam sobre o corpo da mulher, que interfiram, causem dor ou dano físico (de grau leve a intenso), sem recomendação baseada em evidências científicas [...].

Caráter psicológico: toda ação verbal ou comportamental que cause na mulher sentimentos de inferioridade, vulnerabilidade, abandono, instabilidade emocional, medo, acuação, insegurança, dissuasão, ludibriamento, alienação, perda de integridade, dignidade e prestígio [...].

Caráter sexual: toda ação imposta à mulher que viole sua intimidade ou pudor, incidindo sobre seu senso de integridade sexual e reprodutiva, podendo ter acesso ou não aos órgãos sexuais e partes íntimas do seu corpo [...].

Caráter institucional: ações ou formas de organização que dificultem, retardem ou impeçam o acesso da mulher aos seus direitos constituídos, sejam estes ações ou serviços, de natureza pública ou privada [...].

Caráter material: ações e condutas ativas e passivas com o fim de obter recursos financeiros de mulheres em processos reprodutivos, violando seus direitos já garantidos por lei, em benefício de pessoa física ou jurídica [...].

Caráter midiático: são as ações praticadas por profissionais através de meios de comunicação, dirigidas a violar psicologicamente mulheres em processos reprodutivos, bem como denegrir* seus direitos mediante mensagens, imagens ou outros signos difundidos publicamente; apologia às práticas cientificamente contra-indicadas, com fins sociais, econômicos ou de dominação [...]13(p.60-61; *O termo “denegrir” foi mantido na citação direta, porém é importante ressaltar que a utilização do termo é pejorativa, já que se reforça ser negro como algo ofensivo. Pode-se substituir esse termo por difamar ou caluniar).

A última pesquisa sobre violência obstétrica no Brasil foi realizada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo16 e apresentou que 25% das mulheres brasileiras declararam ter sofrido tal violação dos direitos humanos (conforme definido pela ONU). É importante ressaltar que muitas vezes os dados sobre a violência obstétrica são subnotificados, tanto por desconhecimento sobre a existência dessa categoria de violência e como ela ocorre, quanto por falta de estudos e pesquisas mais recentes.

Se esses questionamentos sobre a liberdade e conhecimentos já acontece de forma recorrente com mulheres heterossexuais e cis, quando se fala da população LGBTQIA+ esses dados são ainda mais escassos e essa atenção da equipe se mostra ainda mais fragilizada, além de um desconhecimento maior em relação a como a violência obstétrica pode se entrelaçar a outras violências do patriarcado, como por exemplo a lesbofobia e a transfobia.

Violência obstétrica, LGBTQIA+fobia e as múltiplas violações

Por abranger questões tão importantes e heterogêneas, essa discussão se torna muito complexa, já que ela é vivida de formas diferentes entre os diferentes corpos. Quando se trata de pessoas LGBTQIA+, ocorre a potencialização de experiências de violações, pois, em geral, já há uma discriminação vinda das relações sociais e afetivas devido à não aceitação, visto que a pessoa está fora do modelo heterocisnormativo, o que favorece contextos de solidão, trabalho sexual, violência física, verbal, psicológica, sexual e até mesmo a morte ocasionada por LGBTfobia17. São corpos que vivenciaram de formas singulares, violências que podem ir se entrelaçando e gerando múltiplas outras violações.

Mesmo com a existência de uma Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) e que o processo transexualizador seja garantido pelo SUS, a população LGBTQIA+ continua sendo a mais marginalizada em relação ao acesso aos serviços de saúde e a universalização do SUS, bem como a que mais sofre com condutas profissionais inadequadas.

Como violência sexista contra mulheres e pessoas trans, a violência obstétrica afeta diretamente os corpos das mulheres, mas, como já referido, de maneiras distintas a partir da classe, raça e orientação sexual. Assim, a violência obstétrica sofrida por mulheres bi ou homossexuais e homens trans, poderá apresentar outras violações e dar características distintas à violência obstétrica sofrida na relação com a lesbo e transfobia.

Em relação às mulheres lésbicas, pode haver, nos serviços, uma postura discriminatória dos/as profissionais pela deslegitimação de casais homoafetivos, bem como pela negação de cuidados específicos desde antes mesmo da gestação, por exemplo com o não acesso a exames ou tratamentos necessários, principalmente sob a justificativa injustificada, e sem nenhuma evidência científica, de não haver penetração peniana nas práticas sexuais, como se as complicações surgissem apenas nesse tipo de relação e que exames preventivos não fossem necessários em casais homoafetivos de mulheres17.

Especificamente no atendimento obstétrico à casais homoafetivos, mais uma vez se percebe um despreparo imenso dos/as profissionais e discriminação, negando desde o princípio a vivência da homoparentalidade a partir de uma concepção distinta da de casais heteronormativos, não sabendo lidar com essa configuração familiar, o que envolve, inclusive, a negação e invisibilidade da mulher-mãe que não está grávida.

Em um capítulo intitulado “o desejo de ser mãe ao lado de outra mãe”, Marcela Tiboni18, comenta os prazeres de ser mãe ao lado de outra mulher, sem a necessidade de engravidar, posto que nunca havia sido seu desejo, e toda a jornada que envolve decisões e caminhos que não são vividos por casais heteronormativos, bem como dores e preconceitos vivenciados.

Nunca havia pensado na possibilidade de me tornar mãe sem precisar engravidar, mas agora, numa relação lésbica, essa era mesmo uma possibilidade. Além de me descobrir e de descobrir um novo jeito de me relacionar, descobria uma nova forma de pensar composições familiares, de pensar a maternidade e de entender as diversas formas de maternar18 (p.15).

Em quase todos os lugares em que estávamos juntas, as pessoas se dirigiam a Mel para falar sobre os assuntos que envolvem a maternidade. [...] Muitos não sabiam nominar minha presença nessa Parentalidade. Obviamente, eu não seria o pai, já que era do gênero feminino, tampouco parecia ser mãe, já que havia no casal uma mulher grávida. Então, quem seria eu?18(p.48).

Para além dos aspectos emocionais e afetivos, há ainda a discriminação que tem impactos no corpo e na saúde das mulheres, que acaba interferindo no seu cuidado integral traduzindo-se em violação de seus direitos sexuais e reprodutivos em situações tais quais a falta de informações específicas, a não orientação das técnicas de reprodução, da possibilidade de participação biológica de uma ou das duas mulheres, da dupla amamentação, e ainda, situações de privação de direitos, como não ser permitida a presença da mãe que não é a gestante na hora do parto19.

Segundo a Defensoria Pública do Estado do Paraná:

A pessoa acompanhante pode ou não possuir vínculos familiares com a mulher, nos termos da Lei Federal 11.108/2005 e artigo 3º, § 1º, II, da Lei Estadual 19.701/2018. Neste sentido, negar à mulher lésbica, bissexual ou pansexual o acompanhamento de sua namorada, companheira ou esposa no pré-parto, parto e pós-parto configura violência obstétrica e discriminação por questões de gênero20 (p.14).

Além disso, Soares19 traz que há também uma barreira de classe para muitas dessas mulheres poderem engravidar e gestar, pois ainda não é nacionalmente previsto por lei que casais homoafetivos realizem o processo de reprodução assistida pelo SUS, fazendo com que muitas mulheres precisem recorrer a métodos caseiros, que nem sempre garantem as testagens necessárias para uma inseminação segura e sem riscos de infecções, ou ao sistema particular de saúde, que além de cobrar preços extremamente altos, também realiza discriminação.

Existe uma questão de decisões biológicas, emocionais e culturais nos casos de reprodução assistida, pois há a escolha de qual mulher irá gestar o bebê, o que não hierarquiza as mães, já que as relações construídas se sobrepõem à conexão genética. Mesmo assim, o que vemos é um lugar de apagamento da mãe que não irá gestar e de sua maternidade, desde a gestação e principalmente após o nascimento, pois o cotidiano e nossa própria sociedade - construída nos moldes da heteronormatividade - acabam marginalizando essa mulher, inclusive de decisões legais em relação às/aos filhas/os21.

Nesses casos, percebe-se mais uma vez a presença de uma violência sexista patriarcal, fortemente relacionada à violência institucional e simbólica sofrida por essas mães, já que o atravessamento do gênero e orientação sexual, somada a uma construção social cisheteropatriarcal, faz com que mais uma vez essas mulheres tenham seus direitos e maternidade negados.

Como podemos perceber, há um entrelaçar da vivência da violência obstétrica e da lesbofobia, sendo que muitas vezes há a negação ou ocultamento de uma em detrimento da outra violação.

No âmbito da população LGBTQIA+, temos também a condição de homens trans que gestam e parem, o que implica outras camadas de reflexões para a compreensão da violência obstétrica e seu entrelaçamento com a transfobia. A parentalidade trans é ainda mais estigmatizada e menos reconhecida, com implicações e condições distintas das comentadas acima em relação à homoparentalidade por casais de mulheres cis.

Para além da relação de embate com a heteronormatividade, as pessoas trans esbarram em trâmites legais e na ambivalência entre invisibilidade social x constante ameaça que o status de parentalidade trans, que é visto socialmente como algo “estranho”, pode trazer.

É fundamental aprofundarmos as pesquisas e estudos sobre esta parentalidade, que pode ser hetero ou homoafetiva, e todas as especificidades e demandas que estas relações apresentam, garantindo justamente que não haja um apagamento ainda maior dessas parentalidades em todas as suas expressões22. Há, por exemplo, que se pensar: qual seria a nomenclatura adequada à parentalidade trans? Transparentalidade? E se for uma parentalidade trans vivenciada por um casal homoafetivo? Homotransparentalidade?

Homens trans, na grande maioria das situações (talvez em sua totalidade) foram socializados como mulheres, e, portanto, carregam ainda aspectos desta socialização, inclusive, muitas vezes, a ideia da gestação compulsória. De outra parte, são lidos e se posicionam socialmente como homens, carregando, muitas vezes, os privilégios masculinos, bem como a reprodução do machismo em suas relações. Vivem também todos os preconceitos ainda presentes numa sociedade cisheteropatriarcal e, durante a gestação, o parto e pós-parto são vistos biologicamente como mulheres, e precisam ser atendidos dentro das necessidades e demandas do corpo que carrega órgãos sexuais e reprodutivos femininos, mas, em geral são destratados por sua ousadia em transgredir o modelo patriarcal buscando sua condição de pertencimento ao seu gênero e sendo totalmente desrespeitados na sua condição de homens trans.

O corpo masculino trans, quando experiencia a gestação, confronta-se com o ápice do estereótipo feminino, escancarando a maneira como as sociedades têm dificuldade com a percepção dos corpos humanos e com as consequências disso e suas diferenças23 (p.147).

Em muitos casos, a relação com o corpo aparece fortemente em homens trans, pois para alguns deles, lidar com exames e a exposição dos órgãos sexuais pode ser uma experiência perturbadora, podendo “estar relacionado às violações vivenciadas por estes homens em um contexto de transfobia institucional, que não reconhecem este corpo “abjeto” como possível de “gestar” e por estarem inseridos em espaços de saúde, como as “maternidades”, pensadas para o atendimento de mulheres cisgêneras”24 (p.9), causando um sentimento de não pertencimento e acentuando as vulnerabilidades da saúde física e psicológica24.

Outra especificidade da população trans, e que também interfere fortemente nas relações de saúde reprodutiva, seria a da esterilidade, não apenas aquela ocasionada pelo processo transexualizador, que de fato pode levar a uma impossibilidade de reprodução biológica, mas também uma esterilidade simbólica, como se houvesse uma impossibilidade até da escolha pela reprodução e da vivência da parentalidade, independentemente de ser biológica ou não25.

A consequência dessas violações é um atendimento transfóbico, discriminatório e invasivo, sem abertura para o diálogo e compreensão da subjetividade e especificidades vividas, desde a não utilização dos pronomes corretos, até a não observância em relação a utilização de hormônios e a mamoplastia masculinizadora, por exemplo, violando assim, o direito ao cuidado integral e reafirmando estigmatizações.

[...] a gente sabe que homens trans que estão gestando não podem pensar em entrar numa maternidade parindo, né? Então, assim, a gente já teve relatos de homens trans que tiveram que buscar partos domiciliares porque não conseguem… não correm o risco de se expor ao nível de violência obstétrica que vão sofrer numa situação de parto, por despreparo das próprias equipes, né […] Então essas são assim, vamos dizer assim, os grupos de mais vulnerabilidade (Adelaide)26 (p.7).

Segundo Soares19, o atendimento nos serviços de saúde foi naturalizado para atender a sociedade dentro dos padrões heteronormativos, portanto, muitas vezes as pessoas LGBTQIA+ não se sentem representadas e acolhidas dentro desse sistema. Há a naturalização e reafirmação do modelo heteronormativo que acaba excluindo outras configurações familiares, sendo que toda a organização do serviço é calcada nesse formato, desde cartazes e fotos até formulários que têm como opções apenas o espaço de homem e mulher, o que mais uma vez demonstra uma discriminação sistêmica e estrutural.

Essa estruturação é tão contundente que alguns homens trans têm medo de como esse status trans pode gerar estigma e vitimizar seus/suas filhos/as, visto que seu pai foge do padrão estabelecido, e essa internalização da transfobia é tão grande que eles têm medo de violar os direitos dessas crianças ao experimentar a parentalidade, como se fosse algo proibido para eles, mostrando mais uma vez como essas estruturas cisheteropatriarcais estão tão enraizadas que a negação de direitos se mostra inerente a vida dos indivíduos27.

Uma vez mais, percebemos o entrelaçar de opressões e hierarquizações de relações de poder e a violência obstétrica, o que demonstra que é fundamental pensarmos a parentalidade na vida da população LGBTQIA+ desde a concepção, passando pela gestação, o parto e o pós-parto de maneira a garantir direitos e vivências seguras.

Considerações finais

Diante destas reflexões podemos reafirmar que a violência obstétrica enquanto uma violência patriarcal sexista é enormemente marcada pelo entrelaçamento com várias outras formas de opressão. Focamo-nos neste estudo nos aspectos que envolvem casais homoafetivos de mulheres e casais que têm em sua composição um homem trans quer seja em relações heterossexuais ou homoafetivas. Sabemos, porém, que há ainda que se pensar sobre outros corpos, tais como pessoas não binárias, queers, o que infelizmente não foi possível neste estudo. Há também o enovelamento com outros marcadores sociais, tais como deficiência, obesidade, etarismo, adolescência e tantos outros que certamente merecem reflexões ao discutirmos a violência obstétrica.

E por que isso é importante? Não apenas pelo reconhecimento da diversidade humana e sexual, mas, e, fundamentalmente, para pensarmos políticas públicas de enfrentamento a violência obstétrica em todas as suas formas e com seus diferentes nós no enovelamento de opressões e violações de direitos. A forma como o nó será enovelado pode mudar seu formato, sua função e como ele será desfeito.

É preciso compreender que numa sociedade capitalista, patriarcal e racista, o cuidado certamente será impactado por questões que atravessam as hierarquizações de raça, classe e gênero/sexo, além de vários marcadores sociais, produzindo práticas institucionais violentas, que resultam em um não acolhimento e na falta de condutas adequadas, que ocorre em diversas situações em que o julgamento moral se sobrepõe às questões éticas profissionais21.

Nesse sentido, é importante ressaltar que a violência obstétrica também pode ocorrer em situações de abortamento, tanto provocados quanto espontâneos, que por ser criminalizado no Brasil, é visto como um grande tabu, e se com mulheres heterossexuais e cis já há uma falta de preparo dos profissionais para manejar esses acontecimentos, com a população LGBTQIA+ esse atendimento será ainda mais violento, o que os/as afastam ainda mais desses serviços.

É de suma importância conseguir trazer essa população aos serviços de saúde para que as/os sujeitas/os possam se sentir acolhidas/os nesses locais que já promoveram inúmeras violações aos seus direitos, oferecendo grupos de apoio e outras formas de poder debater esse assunto que ainda é muito invisibilizado nos serviços; ao mesmo tempo, é necessário cobrar a formação e capacitação contínuas dos profissionais da saúde, além da reorganização institucional de forma a produzir um cuidado integral e sem violações19, pois o combate a reprodução de violações devem ser responsabilidade do Estado.

A gestação, parto e puerpério podem ser momentos de grande felicidade, porém é um momento de mudanças físicas e emocionais muito significantes, o que pode acabar ocasionando insegurança, medo, desconhecimento e angústia. Tantas modificações em um período curto de tempo podem colocar a mulher ou homem trans em uma situação de vulnerabilidade psicossocial ainda maior, e associado a um despreparo das equipes e serviços para poder dar um atendimento de excelência durante o período perinatal, somado a outras formas de violência que já são recorrentes na nossa sociedade - como o machismo, a LGBTfobia, o racismo, dentre outras diversas violações de direitos - pode causar muito sofrimento, portanto, a atenção dos diversos campos da saúde à essa população é essencial para combater não só a violência obstétrica, mas também para a construção de uma sociedade mais respeitosa, pois como diz a clássica frase do médico Michel Odent, referência na humanização do parto, “para mudar o mundo, é preciso primeiro mudar a forma de nascer”.

Referências

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  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Abr 2024

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2023
  • Aceito
    27 Dez 2023
  • Publicado
    28 Dez 2023
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