Resumo
Realizar ações de extensão universitária em praias representa uma oportunidade inovadora para promover a saúde de pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. O objetivo deste artigo é analisar a compreensão dos usuários do Projeto Praia sem Barreiras (PSB) sobre as práticas de promoção da saúde desenvolvidas por estudantes de graduação em saúde. Trata-se de estudo qualitativo, descritivo e exploratório, baseado nas entrevistas de dez usuários do PSB em Recife, Pernambuco, Brasil. Realizou-se a análise temática de conteúdo ancorada no Developing Competencies and Profissional Standards for Health Promotion Capacity Building in Europe. Como resultado, emergiram seis categorias empíricas: dedicação dos estudantes atuantes no PSB; qualificação técnica dos estudantes no PSB; emoção durante o contato com o mar; melhorias na saúde mental; orientações dos usuários aos estudantes como futuros profissionais; e opiniões acerca do PSB. Evidenciou-se a qualificação dos estudantes como agentes de mudança na realidade local, na comunicação efetiva e nas parcerias estratégicas. Ações que transcendem as limitações corporais e levantam as necessidades de saúde dos participantes devem ser valorizadas durante a graduação.
Palavras-chave: Promoção da saúde; Pessoas com deficiência; Educação baseada em competências; Estudantes de ciências da saúde; Relações comunidade-instituição
Abstract
Carrying out university extension actions on beaches represents an innovative opportunity to promote the health of people with disabilities or reduced mobility. This article aims to analyze the understanding of users of the Beach Without Barriers (PSB, Praia sem Barreiras) Project about the Health Promotion practices developed by undergraduate students in the health area. Qualitative, descriptive and exploratory study, based on interviews with ten PSB users in Recife, Pernambuco, Brazil. A thematic analysis of content was carried out anchored on Developing Competencies and Professional Standards for Health Promotion Capacity Building in Europe. Six empirical categories emerged: Dedication of students working in the PSB, Technical qualification of students in the PSB, Emotion during contact with the sea, Mental health improvement, User guidance to students as future professionals and Opinions about the PSB. The qualification of students as agents of change in the local reality, effective communication and strategic partnerships were demonstrated. Actions that transcend bodily limitations and assess the participants’ health needs should be valued in undergraduate school.
Key words: Health promotion; Disabled people; Competency-based education; Health science students; Community-institution relationships
Introdução
A Política Nacional de Promoção da Saúde apresenta a inclusão social como um de seus valores e princípios fundantes e estimula a atuação dos diferentes profissionais de saúde e outros setores na implementação de ações estratégicas e diversificadas em prol da produção de redes de cuidado em saúde e proteção social para pessoas com deficiência (PCD) ou mobilidade reduzida1-3.
Os avanços no campo dos direitos humanos, e em particular das PCD, contribuíram para uma série de conquistas relativas ao enfrentamento de barreiras arquitetônicas, mobilidade urbana, relações interpessoais e acesso aos recursos naturais disponíveis aos cidadãos de um determinado território4-7.
No último Censo, realizado em 2010, estima-se que 23,9% da população brasileira apresentam pelo menos um tipo de deficiência, seja do tipo visual, auditiva, motora ou mental/intelectual. A região Nordeste do Brasil concentrava 26,3% desta população, sendo que os estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte apresentavam a maior prevalência de PCD. O estado de Pernambuco ocupava o terceiro lugar, com 27,5% de PCD em sua população à época8.
Iniciativas para as PCD despontam em diferentes cenários e contextos, com o intuito de concretizar mais ações e programas que possibilitem atividades de qualidade de vida e bem-estar em contextos que envolvem atividades na natureza, cidadania, lazer e turismo4,9,10. Há praias brasileiras com estrutura para um banho de mar para pessoas com deficiência física ou com mobilidade reduzida7.
Desde 2013, o projeto Praia sem Barreiras (PSB) foi desenvolvido pela Empresa de Turismo de Pernambuco (EMPETUR) e apoiado pelo Centro Universitário Maurício de Nassau (UNINASSAU), a fim de promover uma parceria estratégica para realizar extensão universitária com estudantes dos cursos de Turismo, Enfermagem, Fisioterapia e Educação Física denominados monitores, além de professores que coordenam essa ação extensionista11.
O PSB tem como objetivo central permitir o banho de mar assistido, fortalecer o turismo local e criar uma área de lazer para inclusão e bem-estar por meio de atividades recreativas e esportivas adaptadas nas praias recifenses para as PCD física e/ou com mobilidade reduzida, sendo conduzidas por estudantes (monitores) e professores (supervisores) da UNINASSAU11,12.
Frente a esse cenário, delimitou-se como objeto de estudo as perspectivas dos participantes de uma ação extensionista interdisciplinar e intersetorial com ênfase nas praias como ambientes inovadores para a formação de estudantes de graduação em saúde. Desse modo, a presente pesquisa teve como objetivo analisar a compreensão dos usuários do PSB sobre as práticas de promoção da saúde desenvolvidas pelos estudantes de graduação em saúde.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória, baseada no estudo de caso único13 relacionado às vivências dos usuários do Projeto Praia sem Barreiras (PSB)11 e modificada com base na versão do trabalho apresentado e publicado nos anais do 9º Congresso Ibero-Americano em Investigação Qualitativa (CIAIQ)14. Empregou-se o guia Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ) para refinar a estrutura e a credibilidade na versão final desta pesquisa qualitativa15.
O referencial das competências para a promoção da saúde recomendadas no Developing Competencies and Profissional Standards for Health Promotion Capacity Building in Europe (CompHP)16 subsidiou a análise comparativa dos domínios da promoção da saúde associados a práticas profissionais e processos educacionais17,18, sendo discutidos por especialistas para aproximá-lo das políticas públicas e serviços no contexto brasileiro19. A formulação da pesquisa apoiou-se no paradigma construtivista, a fim de acessar o universo de significados das pessoas envolvidas em diferentes contextos, com foco na construção de conhecimentos20.
O grupo de pesquisadores foi constituído por dois fisioterapeutas, estudantes de mestrado e docentes do Centro Universitário Maurício de Nassau, e um enfermeiro docente de pós-graduação stricto sensu, doutor em Ciências e mestre em Enfermagem, especialista em Práticas de Promoção da Saúde e Educação e Tecnologias vinculado ao Programa de Mestrado e Doutorado em Enfermagem da Universidade Guarulhos (UNG). Duas Professoras Doutoras foram incluídas na etapa de revisão crítica da pesquisa, a fim de adensar as discussões sobre princípios de promoção da saúde e saúde coletiva.
A presente pesquisa foi conduzida majoritariamente pela fisioterapeuta, cuja atuação no processo de formação inicial dos docentes envolvidos no PSB embasou os conhecimentos, os princípios éticos e as abordagens práticas para cuidar das PCD física e/ou com mobilidade reduzida, sendo que durante a coleta de dados não mantinha relacionamento prévio com os monitores, supervisores ou usuários do PSB14.
A pesquisa foi realizada no PSB, situado em uma área de 200 metros quadrados na orla da praia de Boa Viagem, em Recife, Pernambuco. Em dias alternados, a pesquisadora principal participou da montagem das estruturas necessárias para o funcionamento dessa ação extensionista entre as quintas-feiras e os domingos (horários de funcionamento das 8h às 12h) e do transporte realizado em rota acessível desde o bairro até a orla de Boa Viagem11.
O PSB representa um projeto de extensão universitária articulada com a rede municipal de Recife, o UNINASSAU e parcerias privadas. Em particular, a participação do UNINASSAU baseou-se no desenvolvimento de ações com ênfase na inclusão social coordenadas por docentes e realizadas por estudantes de graduação em turismo, fisioterapia, enfermagem e educação física11. De maneira complementar, o mapeamento das ações de promoção de saúde divulgadas na internet sobre o PSB contribuiu para compreender o alcance dessa parceria universitária interdisciplinar e intersetorial em diversas mídias sociais12.
Realizou-se a coleta do material empírico no período de dezembro de 2018 a abril de 2019, mediante questionário sociodemográfico de caracterização e entrevista semiestruturada elaborada com perguntas referentes ao tema de estudo e a questão norteadora central: Como os usuários do projeto Praia sem Barreiras compreendem as ações de promoção da saúde desenvolvidas pelos estudantes de graduação em saúde que integram o PSB?14
Adotou-se amostra por conveniência, uma vez que todos os usuários interessados puderam participar das entrevistas, até se atingir a homogeneidade do grupo baseado no critério de inclusão progressiva21. Foram incluídos no estudo os usuários do PSB da praia de Boa Viagem, de ambos os sexos, maiores de 18 anos, com mobilidade reduzida ou algum tipo de deficiência física, usuários de cadeira de rodas ou não e que frequentavam o projeto há pelo menos três meses14. Não houve um projeto piloto.
O roteiro com blocos temáticos de questões abertas embasadas nos domínios do CompHP permitiu à pesquisadora principal empreender entrevistas semiestruturadas, com o intuito de captar conhecimentos, habilidades e valores éticos mínimos e necessários para a prática da promoção da saúde na atuação dos estudantes de educação física, enfermagem e fisioterapia do PSB. As entrevistas foram gravadas por smartphones e transcritas, com média de 15,8 minutos de duração.
O CompHP fornece um quadro teórico e prático para a atuação profissional em promoção da saúde em diferentes contextos e cenários, sendo fundamentado em 11 domínios das competências para o delineamento de objetivos de aprendizagem e diversos processos formativos16,17. Consideraram-se os conhecimentos com foco na promoção da saúde e em valores éticos como dois domínios fundantes para as 47 competências essenciais divididas em 9 domínios para as práticas no campo promocional: (1) possibilidade de mudanças, (2) advocacia em saúde, (3) parceria, (4) comunicação, (5) liderança, (6) diagnóstico, (7) planejamento, (8) implementação e (9) avaliação e pesquisa16.
Dois fisioterapeutas codificaram e analisaram os conteúdos transcritos ipsis litteris das entrevistas com suporte do enfermeiro especialista em práticas de promoção da saúde e com experiência em estudos qualitativos na área de educação e saúde. Após seis reuniões de supervisão, procedeu-se à análise temática do corpus composto pelas entrevistas e as notas de campo, que possibilitaram resgatar aspectos gerais das interações entre os dois fisioterapeutas com os usuários, monitores e supervisores do PSB14. Optou-se por não utilizar softwares de suporte para análise e gestão dos dados qualitativos.
Os dados das entrevistas foram organizados e aplicou-se a análise temática de conteúdo22 para a criação de categorias empíricas à luz do referencial teórico de modo indutivo e da aproximação sucessiva entre os relatos dos usuários do PSB e os possíveis domínios das competências de promoção da saúde praticadas pelos monitores dos cursos de graduação em educação física, enfermagem e fisioterapia sob orientação dos supervisores do UNINASSAU.
Após transcritas, as falas foram lidas por repetidas vezes, com a finalidade de compreender e apreender sentimentos, percepções e emoções dos entrevistados. As entrevistas foram classificadas com U, de usuário do PSB, seguido de um número de 1 a 10. Não houve a reapresentação do material transcrito aos participantes para eventuais correções ou contribuições adicionais.
Ressalta-se que o ato de entrevistar na praia exigiu cuidados especiais dos pesquisadores para proteger os participantes da exposição solar, organizar um local para abafar o ruído das ondas e do vento e evitar interferências decorrentes das pessoas envolvidas em atividades adaptadas, recreativas e mediadas por tecnologias assistivas no PSB14.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Maurício de Nassau, conforme parecer nº 2.966.774 e Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) nº 01265518.3.0000.5193. Os participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) antes das atividades no PSB, foram entrevistados em tenda reservada na praia e todo material transcrito foi anonimizado.
Resultados
Participaram seis usuárias e quatro usuários do PSB, sendo que oito referiram ter algum tipo de deficiência física e dois apresentavam mobilidade reduzida. No quesito cor da pele, sete se autodeclararam como pretos ou pardos. Sete trabalhavam e todos concluíram o ensino médio. Metade frequentava essa ação extensionista há mais de três anos.
Organizaram-se seis categorias empíricas decorrentes das vivências dos usuários do PSB acerca das práticas de promoção da saúde realizadas pelos estudantes de graduação em saúde partícipes, a saber: 1) dedicação dos estudantes atuantes no PSB; 2) qualificação técnica dos estudantes no PSB; 3) emoção durante o contato com o mar; 4) melhorias na saúde mental; 5) orientações dos usuários aos estudantes como futuros profissionais; e 6) opiniões acerca do PSB.
Dedicação dos estudantes atuantes no PSB
Essa categoria se relaciona à caracterização dos estudantes como atenciosos, educados e dedicados. Os usuários descrevem a maneira como os discentes do PSB recepcionam, interagem com carinho e cuidam de todos. Estou gostando, são muito comunicativos, atenciosos, nos tratam muito bem, com toda atenção e carinho (U8). O atendimento dado pelos alunos é de primeira linha, eles nos recebem muito bem, para mim é o maior prazer estar aqui no PSB (U9). Eu venho aos sábados. Mas percebo que os alunos são ótimos de tratamento. A dedicação deles eu acho que é o principal, eu só tenho a agradecer pelo projeto (U3).
Qualificação técnica dos estudantes no PSB
Ensinar e aprender sobre as particularidades dos diferentes tipos de deficiências, formas de superar certos limites e restrições dos usuários foram destacados em especial durante as transferências para as cadeiras anfíbias no banho de mar assistido.
Eu acho que tem que ter formação para os alunos conhecerem o tipo de deficiência de cada um de nós. Como devem agir para cada tipo, pois cada deficiente tem sua especificidade (U2).
Os alunos precisam estar mais atentos porque cada deficiência é diferente. Percebo que nem sempre eles sabem a diferença de um para outro. Tem gente que não tem equilíbrio de tronco como eu, porém tem pessoas aqui pior que eu. Aí eles botam na cadeira [anfíbia] como se a pessoa tivesse equilíbrio, e isso é desconfortável, devem prestar mais atenção nisso (U5).
Eu mesmo vou nadando até lá embaixo sozinho, sei nadar muito bem, mas eles não sabiam disso e me tratam como coitadinho. Deveriam perguntar o que a gente precisa, como pode ajudar (U7).
Emoção durante o contato com o mar
Indica emoções sentidas e expressas pelos usuários do PSB, uma vez que recordavam de cenas marcantes de suas vidas. A deficiência física e/ou mobilidade reduzida implicam isolamento social, perda de determinados prazeres e restrição ao acesso a espaços públicos diversos.
Agora a cena que me marcou foi a primeira vez que eu vim, aquela ali me marcou, o cuidado que eles tiveram foi imenso ao me pegar na avenida e me trazer para cá e me levar para a água. Estarem ali conversando comigo, para mim foi sensacional (U1).
Emocionante foi entrar no mar após anos sem conseguir! E através do PSB e da ajuda dos alunos eu ter essa chance de volta [...] é maravilhoso! Sentir a água salgada na boca foi uma sensação indescritível. Tanto emocionou a mim quanto aos estudantes e a todos ao redor, foi muito emocionante (U4).
Sentir novamente a água do mar molhando meu corpo, sentir o gosto salgado do mar, essa sensação de leveza e frescor que só o mar proporciona pra gente (U9).
Melhorias na saúde mental
A ênfase na sensação de poder (re)criar projetos de vida e formas de cuidar da saúde para ocupar a mente e proteger-se de sentimentos negativos, tais como tristeza maior, preocupações excessivas, ansiedade e sintomas de depressão.
Eu acho que a saúde começa na mente, quando a gente tem uma mente boa, uma mente que não está pensando besteira, que não vai cair em depressão, a saúde sempre melhora. [...] Eu não digo que aqui é nota dez, é mil porque promove muito a saúde, pois primeiro a saúde começa pela mente e não pelo corpo, a mente é tudo! (U1).
A convivência e as histórias que contamos e ouvimos aqui fazem com que a gente aprenda e compartilhe com outras pessoas. Isso é bom para nossa cabeça porque a gente se distrai também, faz a gente se sentir bem (U3).
Acho que promovem a minha saúde pelo simples fato de me trazer um motivo para me sentir vivo e feliz. Esse projeto fez eu me sentir uma pessoa novamente, me deu vigor, saúde mental. E isso por si só já é contribuir para saúde das pessoas que frequentam esse projeto (U10).
Orientações dos usuários aos estudantes como futuros profissionais
Os usuários do PSB aproveitaram a oportunidade para aconselhar os estudantes sobre cuidados necessários para cuidar das PCD ou com mobilidade reduzida em suas futuras atuações profissionais, assim como pontos de melhoria no funcionamento do projeto de extensão em novas versões junto à comunidade recifense:
Através do estudo [...] pesquisar mais e entender a questão da pessoa com deficiência ou com limitações e todos os seus aspectos (U2).
Se atualizando, melhorando mais o desempenho, procurar entender cada tipo de deficiência. Quando encontrar o deficiente, perguntar o problema dele, se tem alguma limitação. É isso que eu acho que falta neles, não tem esse interesse de perguntar o que aconteceu para eu ter ficado assim. Não vejo esse desempenho (U5).
Perguntar a nós, usuários, o que eles podem fazer para facilitar a nossa transferência até o mar, porque as pessoas olham para gente achando que somos coitadinhos, mas pergunte primeiro o que posso fazer? Qual melhor maneira para você? Posso fazer como? Como você prefere que eu faça? (U6).
Eles podem ajudar nos dando orientações quando estão conosco no mar. Conversando sobre a nossa doença, nossa limitação e fornecendo dicas de como ajudar no tratamento e no dia a dia (U10).
Opiniões acerca do PSB
Os usuários do PSB reforçam as oportunidades positivas de trocas promovidas pelos monitores (estudantes de graduação em saúde envolvidos), sem desconsiderar a importância dos supervisores (docentes da UNINASSAU) e outros parceiros estratégicos. Enfatiza-se a gratidão, o exercício da cidadania e a alegria em voltar a frequentar um local público como as praias e orlas da própria cidade com segurança e sentido de pertencimento.
Não tenho palavras para descrever o que sinto quando estou aqui, porque eu estava numa cama achando que não podia fazer muita coisa além de sair do quarto pra sala, mas descobri que posso fazer muito mais, além de tomar um banho de praia tranquilamente (U1).
Esse projeto veio para que as PCD e pessoas com dificuldade de locomoção se sintam cidadãos abraçados e amados, como todo Pernambucano que mora no litoral (U2).
Só tenho a agradecer a esse projeto que me deu um novo estímulo para a vida e me fez acordar. Me fez ver que mesmo com a limitação, posso sim usufruir do lazer e ser frequentador de atividades que nos fazem sentir bem (U8).
Discussão
É importante indicar que o presente estudo apresenta aspectos inovadores sobre considerar a praia como um cenário potente de práticas para a formação de futuros profissionais de saúde, com vistas a proporcionar um cuidado integral, sem desconsiderar as necessidades de grupos sociais que apresentam algum tipo de deficiência física e/ou mobilidade reduzida.
É importante reconhecer que tal formação ilustra oportunidades de operacionalizar os valores e princípios contidos na atual Política Nacional de Promoção da Saúde2 e dialoga com a implementação nacional da Declaração de Xangai (2017), advinda da 9ª Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde com a intenção de cumprir a Agenda 2030 em seus aspectos de valorização da inclusão e do território como foco para a realização de ações estratégicas23.
Os entrevistados referiram potencialidades e limites nas práticas de promoção da saúde no PSB. As categorias relacionadas à formação dos estudantes, em especial, alertam para a uma compreensão ampliada da acessibilidade, como discutido em revisão sistemática sobre a promoção da saúde para pessoas com deficiência que analisou 14 estudos publicados entre 2000 e 201124.
O ensino em praias abarcam: disciplinas que buscam desenvolver maior autonomia e liderança na organização do turismo comunitário em Paraty (RJ) com base em uma educação diferenciada5; estudo do meio para construir uma trilha de aprendizagem com foco nos elementos litorâneos presentes no cotidiano de moradores de São José de Ribamar (MA) para o ensino de geografia25; a formação de professores de educação física em distrito da Indonésia que se apropriam dos recursos naturais disponíveis para (re)criar suas aulas em ambientes externos e fomentar inovações em jogos de bola coletivos ou adaptar atividades de atletismo26.
Apesar de não listar as praias entre diferentes cenários naturais, uma revisão de escopo do emprego de atividades com contato direto com a natureza para pessoas com alguma restrição de mobilidade indica evidências favoráveis para estimular diferentes canais sensoriais, integrar-se com elementos naturais e (re)conectar-se com seu lugar no mundo e com experiências anteriores a fim de alcançar benefícios mentais, físicos e sociais10. Nesse sentido, os docentes e discentes do PSB podem explorar mais os aspectos emocionais e de saúde mental, conforme relatado pelos usuários.
Especificamente sobre o projeto Praia sem Barreiras, dois estudos ancorados na atitude fenomenológica das experiências existenciais dos usuários27,28 revelaram a importância de compreender o universo de significados e ressignificações das pessoas com deficiências físicas em seus cotidianos e suas retomadas a espaços de direito como seres humanos e cidadãos. Trata-se de um aspecto relevante para incentivar a defesa ético-política do exercício da cidadania, a universalidade de acessos e a equidade no cuidar durante o desenvolvimento na graduação em saúde.
Formar os monitores do PSB exige um olhar atento para que se extrapole a técnica ou uso mecânico de uma tecnologia assistiva. Por exemplo, o banho de mar assistido por meio da cadeira anfíbia representa uma situação com potencial para superar a ausência da escuta dos estudantes para um diálogo que busca compreender a condição humana e existencial para além das restrições impostas pela deficiência física27, criar maneiras de ampliar a noção de corpo que possam romper com ideias limitantes e descobrir potencialidades nas diferenças entre as pessoas28.
A exiguidade de registros do PSB mobilizou a análise hemerográfica baseada na divulgação on-line das ações desse projeto de extensão, a fim de identificar sua imagem perante o público em geral e específico do UNINASSAU. Isso possibilitou o reconhecimento das práticas de promoção da saúde com foco em bem-estar, lazer, inclusão social, segurança e parcerias intersetoriais com a presença de monitores, supervisores e usuários do PSB12.
Com relação aos domínios do CompHP, os entrevistados reforçam competências atribuídas aos domínios “possibilidade de mudanças”, “comunicação” e “parcerias”. O domínio “possibilidade de mudanças” demonstrou o protagonismo e as práticas colaborativas entre os monitores e seus supervisores que visam promover transformações na relação direta com os usuários do PSB.
O domínio “comunicação” foi indicado quando os estudantes dos três cursos de graduação, enfermagem, fisioterapia e educação física, primavam pelo diálogo e incentivo à participação por meio de técnicas e meios de comunicação culturalmente adequadas aos usuários do PSB. Entretanto, aprender a escutar ativamente as necessidades específicas das PCD e/ou com mobilidade reduzida exige cuidados adicionais.
O referencial do CompHP permitiu estabelecer certas relações com as vivências dos usuários do PSB e pode contribuir para um delineamento de novas versões em um futuro após a pandemia de coronavirus disease 19 (COVID 19) que incluam a educação contínua dos docentes como em um estudo qualitativo com professores de enfermagem29 e a formação discente que objetiva a incorporação das competências necessárias e pertinentes para promover saúde em situações singulares presentes no Sistema Único de Saúde e demais políticas públicas no contexto brasileiro17,19,30.
Ainda na premissa emancipatória da promoção da saúde, entende-se que as falas dos usuários do PSB reforçam o valor do cuidado com as PCD e extrapolam o ponto de vista clínico, devendo ser considerados por especialistas na e para a formação de estudantes na área de saúde31.
O estudo apresentou como limitação a participação de uma única praia vinculada ao PSB no município. As entrevistas foram esclarecedoras, porém a ausência de triangulação dos dados com os depoimentos de estudantes de graduação (monitores), corpo docente (supervisores) e do currículo do UNINASSAU representa um ponto a ser mais trabalhado em outros estudos do grupo de pesquisa ou por pesquisadores envolvidos com a formação comprometida com a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão universitária em cenários diferenciados, como praias, orlas e arrecifes.
Considerações finais
O presente estudo teve como objetivo explorar a compreensão dos usuários do projeto Praia sem Barreiras sobre a atuação dos estudantes de graduação em saúde em praias, entendidas aqui como um espaço inovador e diferenciado para defender os direitos de pessoas com deficiências físicas ou mobilidade reduzida, para desenvolver ações colaborativas, para a comunicação efetiva de temas de saúde e para articular ações intersetoriais que podem contribuir para a formação interprofissional em saúde.
As experiências relatadas pelos usuários do PSB revelam limites nas ações individuais e coletivas para promover conhecimentos e valores éticos da promoção da saúde e dos nove domínios do CompHP. Houve ênfase nos domínios “possibilidade de mudanças”, “comunicação” e “parceria” e uso potencial da “defesa de direitos”, “liderança” e “implementação”.
Esses achados podem auxiliar educadores, estudantes de diferentes níveis educacionais e os próprios usuários de atividades extensionistas similares no fortalecimento de ações de “levantamento de necessidades”, “planejamento” e “avaliação e pesquisa”, sem desconsiderar a transversalidade dos valores éticos e dos conhecimentos sobre conceitos e princípios de promoção da saúde ao longo dos cursos de graduação, uma vez que os usuários do PSB enfatizam a positividade da atuação discente nessa ação de extensão universitária interdisciplinar e intersetorial. Todavia, os entrevistados indicam lacunas sobre uma escuta qualificada para as especificidades, as biografias e as necessidades em saúde próprias das pessoas com deficiências físicas ou mobilidade reduzida.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Maio 2022 -
Data do Fascículo
Maio 2022
Histórico
-
Recebido
15 Mar 2021 -
Aceito
27 Nov 2021 -
Publicado
29 Nov 2021