Open-access O lugar da vigilância no SUS – entre os saberes e as práticas de mobilização social

Resumo

A Vigilância em Saúde pressupõe olhar atento sobre a situação de saúde de populações, de modo que se compreenda a saúde, a doença e o cuidado como manifestações indissociáveis da existência humana. Considerando esta perspectiva, o artigo se propõe a examinar as práticas de saúde a partir de alguns de seus processos comunicacionais, estes marcados por uma lógica profissional-centrada, que privilegia o discurso cientificista, vertical e autoritário, predominante nos espaços do Sistema Único de Saúde. No território, o processo de comunicação é determinante. Por seu intermédio se dá a interação social e o fazer cotidiano que reterritorializam os elementos da totalidade social: homens, empresas, instituições são redimensionadas na lógica: a do localmente vivido, abrindo espaço para uma comunicação mais horizontalizada e democrática.

Práticas de saúde; Mobilização social; Vigilância em Saúde; Comunicação; Territorialização

Abstract

Supervision of a health system presupposes keeping an attentive eye on the health situation of populations, so as to understand health, illness and healthcare as indissociable manifestations of human existence. Taking this point of view, this article examines health practices from the basis of some of their processes of communication. These are markedly professional-centered in their logic, with their emphasis on scientific, vertical and authoritarian discourse, predominantly in the spaces of the Unified Health System (SUS). In the territory, the process of communication is determinant. As a result of social interaction in daily life, the communication process reterritorializes the elements of the social totality: people, companies, institutions are re-dimensioned in the logic. It is a characteristic space for activities that aim for a more horizontal and democratic flow of communication.

Health practices; Social mobilization; Health Surveillance; Communication; Territorialization

Introdução

Vivemos um período histórico de profundas alterações no modo de vida das pessoas e sociedades, resultado da acelerada globalização da economia, com a expansão e a incorporação massiva de novas tecnologias e novos processos técnicos, pelas redes produtivas em todos os lugares do planeta. Simultaneamente – e como decorrência desse processo – observa-se a apropriação de recursos locais e a intensificação dos fluxos de informação, materialidades e pessoas1, demandando um reordenamento social. Nesse contexto, resgatamos e sublinhamos as propostas que emergem da Vigilância em Saúde.

O campo emerge nos anos 1980, como uma crítica aos modelos de atenção – até hoje vigentes – de base médico-assistencial e ou sanitarista-campanhista. A proposta visava à mudança das práticas gerenciais e técnicas da atenção à saúde, buscando a redefinição do sujeito, do objeto, da base tecnológica, dos espaços de atuação e do processo de trabalho desse setor. Ancorada nos conceitos de democracia e participação social, a Vigilância em Saúde propõe horizontalidade de saberes e práticas, e imprime novas formas de relação no âmbito do trabalho em saúde. O diálogo entre os profissionais, bem como entre estes e a população, é entendido como essencial para a identificação das necessidades de saúde e o planejamento das ações.

Ainda que o lugar da Vigilância em Saúde no SUS pressuponha o diálogo com a população, bem como contemple ações que incidem sobre diversos planos (político, regulatório, social, ambiental, etc.), no presente artigo questionamos como a Vigilância em Saúde tem interagido com a sociedade, sobretudo no plano territorial. Que estratégias de comunicação são utilizadas e até que ponto elas observam os princípios de democracia e participação que pautam o campo?

Vale ressaltar que o locus da vigilância é bastante complexo, sendo necessário, para compreendê-lo, examiná-lo a partir de seu papel no Estado e no âmbito dos governos. Os diferentes processos e tecnologias vinculados à Vigilância em Saúde situam-se entre os saberes e as práticas2.

Em agosto de 2016, em sua 284a reunião ordinária, o Conselho Nacional de Saúde (CNS), por meio da Resolução nº 5353, convocou a 1a Conferência Nacional de Vigilância em Saúde, prevendo etapas municipais ou macrorregionais, estaduais e nacionais. O objetivo da conferência é propor diretrizes para a formulação de uma Política Nacional de Vigilância em Saúde e para o fortalecimento dos programas e ações de Vigilância em Saúde no âmbito do SUS.

O tema central da 1ª Conferência é “Vigilância em Saúde: Direito, Conquistas e Defesa de um SUS Público de Qualidade”3 a ser discutida a partir de oito subeixos temáticos, que incluem o debate sobre o papel da Vigilância em Saúde no cuidado individual e coletivo, a integração das ações e processos das vigilâncias ambiental; epidemiológica; sanitária; entre outras, as responsabilidades de estados e governos, e a participação social na Vigilância em Saúde, além de outras questões3. Considerando este temário, podemos inferir e explorar impasses e obstáculos comunicacionais, que se interpõem à realização plena do direito à promoção da saúde.

De acordo com o Plano Fiocruz para o Enfrentamento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional4:

[...] o complexo quadro demográfico, epidemiológico e de determinação da saúde, na atualidade, e suas tendências para as próximas décadas são desafios a serem considerados no planejamento de ações de saúde, incluindo as dimensões da promoção, atenção, vigilância, sempre contando com as contribuições da geração de conhecimento científico de forma articulada ao processo de tomada de decisão [...] voltadas à indução de um processo planejado e integrado [...] envolvendo conjunto de atores sociais seja no âmbito da academia, sociedade civil, instituições públicas e privadas, direcionando esforços para o enfrentamento desta situação sanitária [...].

Tendo o posicionamento da Fiocruz como ponto de partida, entendemos que a Vigilância em Saúde pressupõe olhar atento sobre a situação de saúde de populações, compreendendo a saúde, a doença e o cuidado como manifestações indissociáveis da existência humana. A “saúde” de determinado grupo social será sempre o resultado de processos histórico-culturais, e indicará acúmulos positivos e/ou negativos de recursos produtores de qualidade de vida. Ao contextualizar a dinâmica das interações sociais que ocorrem em uma população e em um território, tornam-se mais claras as condições essenciais que definem e delimitam os problemas e as necessidades de atenção e cuidados5,6.

Sob esta perspectiva, nos propomos a examinar as práticas de saúde a partir de processos comunicacionais. Segundo Teixeira7, estas são essencialmente marcadas por uma lógica profissional-centrada, que privilegia o discurso cientificista, vertical e autoritário, predominante nos espaços do Sistema Único de Saúde. Sem abordar criticamente este processo comunicacional seguiremos indefinidamente perguntando: como a Vigilância em Saúde tem interagido com a sociedade?

A Vigilância em Saúde no contexto do território

Emerge como contraponto à globalização a questão do local e do território vivido. A ordem global imposta aos territórios busca racionalizar o seu uso através de normas e leis únicas que se apropriam dos recursos nos mais diversos lugares no mundo. Já a ordem local está associada a uma coleção de coisas, objetos e ações que são contíguos, reunidos pelo território e, como tal, regidos pela interação social8. A organização é fruto da solidariedade produzida pela interação social em contextos face a face.

Apesar destas ordens regidas por leis e racionalidades opostas, em cada uma delas se verificam aspectos da outra. A ordem global é regida por racionalidades técnicas e operacionais; externas ao cotidiano e efetivadas à distância. Ela se baseia na informação, organizando os territórios para a apropriação dos seus mais variados tipos de recursos pelo capital internacional. É uma ordem que desterritorializa, e que separa o centro, que é externo, e a sede da ação local, desestruturando e excluindo populações através de normas externas, que geram consequências em relação ao poder destas sobre seus territórios de vida8.

A ordem local é fruto da interação social no cotidiano, da “copresença, da vizinhança, da intimidade, emoção, cooperação e da socialização e da interdependência e da contiguidade”8. Ela reterritorializa porque reune todos os elementos da totalidade social, os homens, as empresas, as instituições, as formas sociais e jurídicas numa mesma lógica interna do localmente vivido8.

Nesse cenário, os processos de mobilização social baseados na ordem local devem incorporar elementos teóricos e práticos da política e da cultura do território, reconhecendo-os como dispositivos para sua efetivação. O conhecimento das regras, normas e leis, que estruturam a ordem e os poderes locais, muitas vezes se materializam também na cultura, permitindo compreender os problemas e as necessidades em saúde, individuais e coletivas. Além disso, a partir da compreensão da ordem local é possível imprimir significados à vida social, que favorecem a mobilização, a emancipação e o empoderamento comunitário. O conjunto de dispositivos comunicativos identificados no território abre possibilidades de encontros cooperativos entre as pessoas para construir formas diversas de mobilização e para potencializar a capacidade local de promover coletivamente melhorias na sua condição de vida e situação de saúde9.

Nos Anais do III Encontro de Geografia e a VI Semana de Ciências Humanas, Matheus Crespo10 faz referência a Santos para ressaltar que:

o território usado constitui-se como um todo complexo onde se tece uma trama de relações complementares e conflitantes. Daí o vigor do conceito, convidando a pensar processualmente as relações estabelecidas entre o lugar, a formação socioespacial e o mundo. O território usado, visto como uma totalidade, é um campo privilegiado para análise na medida em que, de um lado, nos revela a estrutura global da sociedade e, de outro lado, a própria complexidade do seu uso10.

Em “O Retorno do Território”, Santos11 enfatiza que:

o território, hoje, pode ser formado de lugares contíguos e de lugares em rede. São, todavia, os mesmos lugares que formam redes e que formam o espaço banal [...] é indispensável insistir na necessidade de conhecimento sistemático da realidade, mediante o tratamento analítico desse seu aspecto fundamental que é o território (o território usado, o uso do território). Antes, é essencial rever a realidade de dentro, isto é, interrogar a sua própria constituição neste momento histórico.

Desta forma, torna-se fundamental, que a Vigilância em Saúde “caminhe em direção” aos territórios vulneráveis, conhecendo a sua realidade, no processo de mobilização social aqui postulado. Partindo da categoria “território”, a saúde ambiental deve ser alcançada como parte de um processo sustentável, que garanta a inclusão de diferentes cidadãos no processo de desenvolvimento. Assim, não se propõe o imobilismo diante das dimensões de indeterminação ou incertezas. O fundamental, ao invés de expurgar este “incômodo”, como na perspectiva determinista, é encará-lo como dimensão a ser considerada no planejamento e no desenho das estratégias de comunicação. Pitta e Oliveira12, ao problematizarem o processo de comunicação, ressaltam a reflexão, que ajuda a compreender que tipo de mobilização postulamos, bem como as soluções construídas a partir dela:

[...] em se tratando de problemas de saúde, para os quais a dimensão cultural assume cada vez mais relevância, as dimensões não estruturadas destes problemas ou suas “imprecisões” guardam sempre surpresas: nem sempre aí as práticas sociais – ou os comportamentos como querem alguns – se organizam nos moldes pretendidos por estrategistas “de gabinete”. Isto se deve à natureza mesma de não previsibilidade, de incerteza, ou de um estado de permanente tensão entre sentidos, discursos e práticas sociais. Uma dimensão comunicacional não instrumental e constitutiva dos processos saúde-doença e das práticas sociais, e assim inerente a uma heterogênea e multifacetada gama de microdecisões cotidianas, que dão concretude às ações sociais e microssoluções – com vistas, por exemplo, à eliminação de potenciais criadouros ou focos de mosquitos [...]12.

Nesta matriz (Figura 1), a noção e as práticas territoriais são consideradas centrais para o processo de Vigilância em Saúde. Julgamos imprescindível trabalhar a partir de premissas em que o empoderamento, a equidade e a sustentabilidade retroalimentam as intervenções de base local, tomando como ponto de partida categorias como gênero, etnia, geração e cultura. Em síntese, o saber tradicional emerge de cada grupo social em processo de mobilização social, no interior dos saberes e práticas de Vigilância em Saúde.

Figura 1
Determinação socioambiental da situação de saúde.

Considerando as questões até então suscitadas, trazemos à discussão reflexões sobre o que é a mobilização social discutida onde as pessoas, por exemplo, atingidas pela crise sanitária, sejam protagonistas de inflexões necessárias às políticas, eliminando os condicionantes da emergência, ainda não evidenciados por estudos e pesquisas, que, inferimos, são fortemente influenciados pelos determinantes sociais da saúde. Há, portanto, a necessidade de provocar novos modos de mobilizar que superem os mutirões de combate ao mosquito, ainda que sem deixar de fazê-los. É preciso assegurar a participação popular nas decisões no âmbito do desenvolvimento das políticas públicas; a inclusão de ações de Vigilância em Saúde; assistência; ensino, e a manutenção das pesquisas, hoje consideradas o grande motor na busca de respostas e soluções. É fundamental que os produtos desta crise sanitária incorporem maior empoderamento das populações nas decisões tomadas em todos estes campos, potencializando respostas que não tratem as pessoas como espectadores de uma narrativa construída pela ciência, pelos governos e pela mídia. Uma narrativa que, na grande maioria das vezes, exclui a voz das mulheres/mães (no caso particular da Zika), das famílias e das populações atingidas, que vivem e trabalham em territórios vulneráveis.

Tomamos como referência o documento “mobilização social: um modo de construir a democracia e participação”, de Jose Bernardo Toro e Nísia Maria Duarte Werneck13, para afirmar que a mobilização social ocorre quando um grupo de pessoas, uma comunidade ou uma sociedade, decide e age com um objetivo comum, buscando, cotidianamente, resultados decididos e desejados por todos. Nesta lógica, as pessoas podem ser convidadas à mobilização mas, em última análise, participar ou não é uma decisão de cada um. Ainda de acordo com o mesmo documento, a decisão pressupõe uma convicção coletiva da relevância, um sentido de público, daquilo que convém a todos. Logo, mobilização não pode ser confundida com propaganda ou divulgação, mas exige ações de comunicação em sentido amplo, enquanto processo de compartilhamento de discurso, visões e informações.

Partimos da ideia de mobilização como um fluxo de diálogos, onde as vozes de todos os lados são igualmente valorizadas e têm valor para o bem comum a ser atingido. Em um só momento, rompem-se a ideia de comunicação unidirecional e a de verticalidade e o monopólio do saber, que distanciam sujeitos com interesses comuns e métodos distintos de trabalhar. Como ressalta Paulo Freire14, estamos em busca de diálogos e não da “extensão cultural”.

O porquê da expressão “entre os saberes e as práticas” de comunicação

Em nossa sociedade, em muitos casos, as palavras saber e prática denotam quase um patrimônio de um grupo específico, em vez de configurar um “espaço de trocas”, em que seja exercitada a comunicação, em seu sentido original, do latim communicare: “o fazer saber, tornar comum, participar, pôr em contato ou relação, estabelecer comunicação entre, ligar, unir, transmitir, difundir, dar, conceder, conversação, convívio, travar ou manter entendimento, entender-se, dialogar”15.

Transposto para o ambiente da atenção à saúde, esse tensionamento encontra múltiplos reflexos: a relação do profissional de saúde com o paciente, a relação entre profissionais de diferentes níveis, a relação institucional da unidade de saúde com a população por ela atendida. Em todas essas dimensões parte-se do pressuposto de que há os “que sabem” e os que “não sabem”, cabendo aos primeiros “transmitir” a informação. Essa postura – que ignora os saberes do “outro” – resulta em práticas comunicacionais incapazes de alcançar, ou sensibilizar o interlocutor. De acordo com Teixeira7:

“não se pode dizer que a forma geral da relação assistentes-assistidos imperante no quadro das ‘práticas de saúde’ seja substantivamente distinta da relação emissor-receptor estabelecida nas ‘práticas de comunicação em saúde’ que se dão sob o patrocínio do modelo unilinear”. (...) não há nada que efetivamente garanta, como nas velhas experiências de educação higienista, que a simples tradução das informações em saúde, mesmo quando traduzidas para a “retórica popular”, seja capaz, por si só, de produzir as atitudes e comportamentos esperados pelas instituições”.

A identificação no território de grupos e ações de comunicação é fundamental para incorporar ao processo de mobilização social os saberes legitimados localmente. Tais grupos são atores do território que, contando, ou não, com o apoio de entidades civis locais, cada vez mais, produzem audiovisuais, rádios e jornais comunitários, blogs e sites, muitas vezes disputando espaço – sobretudo no âmbito do território – com a mídia hegemônica. Serão parceiros chave para a produção e veiculação local de conteúdos, e para a organização de ações participativas de Vigilância em Saúde16.

Dependendo da capacidade de articulação dos grupos no território, e do seu acesso aos recursos de comunicação, maior ou menor será sua possibilidade de mobilização e de participação democrática. Diferentes formas de acesso aos recursos comunicativos terão efeitos distintos quanto à capacidade de mobilização. Isto vai depender do contexto e dos atores envolvidos. Por exemplo, uma forte capacidade comunicativa de uma rádio comunitária em um determinado território, pode ter efeito menor com essa mesma mídia em outro contexto, devido; de um lado; às características culturais da população em questão, de outro; aos diferentes níveis de força comunitária de cada um dos atores envolvidos em contextos distintos.

Há que se considerar também os grupos que protagonizam os modos mais tradicionais e diretos de comunicação, baseados nos contatos face a face e na palavra falada16, como as igrejas, os clubes, os grafiteiros, os grupos artísticos, as associações de todos os tipos e as redes comunitárias de apoio que atuam em diversos setores produzindo artefatos, literatura, música e até economia alternativa. A ação e os discursos desses grupos – muitas vezes pouco visíveis – se articulam em rede produzindo os lugares de vida, ouvindo a “voz dos territórios”. Seus saberes transformam relações, produzem ideias de cultura não hegemônica que reafirmam os territórios no enfrentamento e reprodução cotidiana da vida social16.

As estratégias de mobilização social nos territórios devem identificar e incluir esses atores, cujo poder de fazer e de agir socialmente através de suas tecnologias produzem práticas que se apropriam do território. Os diversos modos de fazer cultura e do agir comunicativo envolvido no cotidiano se constituem em um repertório a ser considerado na produção de conteúdos para o território16,17. São dispositivos poderosos capazes embasar processos de mobilização social nos diversos contextos de vida social. São estes contextos que vão fornecer a base para a elaboração de um discurso de mobilização social que não é só ação, mas sobretudo interação comunicativa.

Ricardo Teixeira7 denuncia que o tipo de prática comunicacional da saúde, de caráter unidirecional e autoritária, está comprometido, entre outras questões, com a crença “do uso dos meios como possibilidade de extensão de saberes e mobilização das pessoas, buscando a adesão da população a políticas, programas e conhecimentos previamente definidos”, aproximando-se do que Paulo Freire14 refere como extensão e invasão culturais. Assim, uma possível explicação para o baixo engajamento da população às tradicionais “campanhas” de saúde pública seja a verticalidade do modelo, que coloca a população como mera espectadora de ações previamente definidas18.

Em revisão integrativa de doze artigos, Gonçalves et al.19 observaram que persiste lacuna a ser preenchida no que diz respeito ao empoderamento da população como partícipe ativo do processo, em oposição ao papel de espectador da política oficial, no tocante a conhecimentos, atitudes e práticas da população brasileira acerca da dengue. Ressaltaram que a atuação na comunidade deve levar em consideração as particularidades de cada contexto; a necessidade de horizontalizar o processo, e imprimir práticas de educação continuada; a importância de se desenvolver o senso de responsabilidade e não de culpabilização, e o de promover o diálogo entre a ciência e o senso comum. Destacam ainda que os diversos conhecimentos sociais devem servir de suporte para a implementação de estratégias adequadas, que levem em conta os interesses, as necessidades, os desejos e as visões de mundo de cada comunidade.

Na construção permanente da reforma sanitária brasileira, a participação social é definida como um dos pilares centrais, entendendo que sem participação não há transformação das condições de saúde. A emergência sanitária, enfrentada no período 2015/2016 possui forte componente de gênero, pois as mulheres – especialmente as gestantes –, são as principais mobilizadas pelos alarmes informacionais disparados. Pelo que evidenciam os dados divulgados, estas mulheres são originariamente de famílias pobres, mais fortemente atingidas pela doença e pelo desfecho da zika congênita nesta crise sanitária.

Neste sentido, do ponto de vista da Vigilância em Saúde, muitas são as possibilidades de abordagem para as situações vivenciadas por estes grupos mais vulneráveis. Ao propor aproximação a um novo paradigma para a epidemiologia que possa lidar com objetos ‘insubordinados’. Fernandes20 sustenta a tese de Almeida Filho21 sobre a necessidade de construção da “etnoepidemiologia”, como prática de natureza interdisciplinar e seus pressupostos de que os fenômenos saúde-doença devem ser concebidos como processos sociais, históricos, complexos, fragmentados, conflitivos, dependentes, ambíguos, incertos. Partindo de Santos22, ressaltamos a noção de espaço como um verdadeiro campo de forças cuja formação é desigual. razão pela qual a evolução espacial não se apresenta de igual forma em todos os lugares. Para o autor:

o espaço, por suas características e por seu funcionamento, pelo que ele oferece a alguns e recusa a outros [...] é o resultado de uma práxis coletiva que reproduz as relações sociais, [...] o espaço evolui pelo movimento da sociedade total22.

Cartografando vozes: ação e reflexão de base territorial

Diferentes autores se dedicam à cartografia social como forma de abordagem dos sujeitos em seus territórios. Examinando principalmente os artigos de Ferigato e Carvalho23 e Paulon e Romagnoli24, surgem elementos metodológicos essenciais aos postulados no presente artigo. Paulon e Romagnoli24, partindo do materialismo dialético, defendem o conhecimento como “fruto das multideterminações sociais [...] associando cientificidade à práxis político-social”, conferindo perspectivas revigorantes aos processos de ação e reflexão de base territorial. Fortalecidos por Santos25, os autores acima reforçam a ideia “da contribuição efetiva da produção científica para a construção de uma sociedade melhor”, reafirmando “um compromisso ético-estético com a vida.”

Assim, demarcamos aqui a possibilidade de optar por uma cartografia das vozes territoriais, o mapa falante das pessoas que vivem e trabalham em territórios vulneráveis, os mesmos em que a crise sanitária se expande. A perspectiva, expressa neste artigo, é sintônica com a compreensão de Paulon e Romagnoli24 de que “o conhecimento técnico só tem lugar quando, desconfigurado de qualquer especialismo, transmuta-se em alavanca para a autogestão”. Usamos tal premissa como referência para o trabalho de mobilização social ora proposto. Ao complementar a conceituação proposta, referimos Ferigato e Carvalho23, partindo das contribuições de Gilles Deleuze:

“o traçado de um território existencial [...] coletivo, porque é relacional; é político, porque envolve interações entre forças [...]”. Conclui-se, pois, que cartografia pode ser definida como a compreensão do estudo das relações de forças que compõem um território de experiências26.

Portanto, direcionamos a premissa da cartografia social como um mapa explicativo, por exemplo, da “geografia das arboviroses no Brasil”, aquele que ganha contornos mais nítidos a partir da vocalização de múltiplos atores em diferentes territórios de vulnerabilidade econômico-político e social. A mobilização social em discussão resulta, pois, de um processo permanente de ação e reflexão, em que tomam parte as ideias-força da democratização dos meios de comunicação de massa; o acesso às políticas integrais e distributivas e ao saneamento universal, fruto de um indispensável planejamento urbano. Em nossa proposta, entre os saberes e as práticas cartografados, é constituído um processo permanente de mobilização social, desenhado como a ideia central da Vigilância em Saúde, com ampla participação da sociedade.

Reflexão para uma ação de base territorial

Os conceitos abordados anteriormente são centrais, mas deslocamos nosso foco para o seu processo de operação em contextos de profundas desigualdades e iniquidades sociais em saúde. Assim, o questionamento central na redação deste artigo volta-se para o “como atuar”, metodologicamente falando, em territórios diversos em meio à emergência sanitária, sem a pretensão de formular uma resposta definitiva.

A existência de categorias centrais podem nos ajudar a formular estratégias metodológicas no tocante à mobilização social, mais particularmente pela atuação nos territórios mais vulneráveis; em perspectivas diferenciadas de participação sociopolítica dos atores locais; a partir da elaboração de mapas de ação, plenárias regionais, em um processo de trabalho centrado na lógica dos direitos. Desta forma torna-se necessário eleger algo que interfaceie todas estas dimensões. A nosso ver, a comunicação, de base popular e democrática, deve ser a referência para que os vários processos de trabalho sejam compartilhados, retroalimentando as práticas locais e a sua consequente difusão.

Incorporar novas tecnologias de informação é um dos desafios que se interpõem no enfrentamento da emergência sanitária e da Vigilância em Saúde, tema do número especial da Ciência & Saúde Coletiva. Tecnologias relacionais (plenárias e comitês populares, rodas de conversas), e mesmo a utilização de dispositivos tecnológicos (aplicativos móveis, por exemplo), podem contribuir para o fortalecimento de redes de solidariedade de base territorial. Propomos a discussão em torno de elementos metodológicos aglutinadores, presenciais e à distância, para facilitar as trocas e intercambiar as respostas locais e regionais, revisitando saberes e práticas no âmbito do SUS, encontrando perspectivas e formas diferenciadas de práticas em Vigilância da Saúde com ampla participação da sociedade.

Considerações finais

O foco de nossa discussão não é novo. Keyla Marzochi, em Editorial do Caderno de Saúde Pública no ano de 198727, chamava a atenção de que a dengue, uma das arboviroses bastante comuns em nosso meio, caminhava para se transformar na “mais nova endemia de estimação dos brasileiros”. Três décadas depois, reexaminamos a temática da vigilância da saúde em que a tônica da pergunta acerca da interação com a sociedade, em certa medida, permanece sem resposta. Estaríamos acrescendo novas “endemias de estimação” à nossa lista?

Em paralelo, vale enfatizar também a oportunidade única que representa a realização da 1a. Conferência Nacional de Vigilância em Saúde (1a CNVS). O texto convocatório da Conferência destaca que:

para fazer face à complexidade de um país que se urbanizou de forma acelerada e intensa prescindindo de reformas estruturantes que equacionassem antigas e novas questões sociais geradoras de profundas desigualdades, identificou-se a necessidade de superar o modelo centrado em programas verticais de vigilância, prevenção e controle de doenças, coordenados e executados exclusivamente pelo Governo Federal até então28.

Vemos reforçadas as perspectivas enfatizadas ao longo deste artigo, de que os programas e as ações de Vigilância em Saúde se deixem permear e renovar pelos princípios da mobilização e participação social plena. No cenário atual, em que direitos básicos são derrubados, e uma agenda conservadora toma forma, retomar o fortalecimento do SUS é demarcar o compromisso com a promoção da saúde, singularmente com o “conjunto de intervenções individuais, coletivas e ambientais responsáveis pela atuação sobre os determinantes sociais da saúde”28, como expressa o documento síntese analisado.

Sem mobilização social e plena participação da sociedade na concepção, implementação, monitoramento e avaliação da Vigilância em Saúde, estaremos fadados a atuar de forma episódica em situações de crise sanitária, como evidenciado recentemente na Emergência Sanitária do período 2015/2016, difundindo na cultura e sociedade brasileiras “endemias de estimação”, que nos assombram há pelo menos três décadas.

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    » http://www.conselhodesaude.rj.gov.br/images/documentos/Documento_Orientador_DA_1ª_CNVS_Para_diagramação_1.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2017
  • Revisado
    26 Jun 2017
  • Aceito
    12 Jul 2017
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