Resumos
Os movimentos sociais globais da saúde marcaram a década de 90. O debate sobre a Saúde Global é parte constitutiva deste artigo visando compreender as novas lutas sociais no campo da saúde coletiva. A formação de movimentos sociais que atuam de forma global propiciam uma revisão crítica sobre a saúde pública, através da articulação e organização de causas globais trazidas por ativistas do campo da saúde. No Brasil, o foco de análise centra-se no Fórum Social Mundial da Saúde - um movimento que se organizou a partir do somatório de outras lutas sociais globais e que ganhou destaque na América do Sul. Tais movimentos demarcaram um perfil da política de saúde pública para o Estado na última década e trouxeram questionamentos sobre a organização dos novos movimentos sociais.
Saúde Global; Estado e movimentos sociais
The social global movements of health marked the decade of 90. The debate on Global Health is a constituent part of this article aiming at understand the new social struggles in the field of public health. The training of social movements that act as a whole provide a critical review on public health through the articulation and organisation of global causes brought by activists of the field of health. In Brazil, the focus of analysis is the World Social Forum of Health - a movement that was organized from the sum of other global and social struggles that won prominence in South America such moves the profile of public health policy for the State in the last decade and brought questions about the organisation of the new social movements.
Global Health; Government and social movements
ARTIGO ARTICLE
Francis Sodré
Departamento de Serviço Social, Universidade Federal do Espírito Santo. Av. Fernando Ferrari 514, Goiabeiras. 29075-910 Vitória ES. francisodre@uol.com.br
RESUMO
Os movimentos sociais globais da saúde marcaram a década de 90. O debate sobre a Saúde Global é parte constitutiva deste artigo visando compreender as novas lutas sociais no campo da saúde coletiva. A formação de movimentos sociais que atuam de forma global propiciam uma revisão crítica sobre a saúde pública, através da articulação e organização de causas globais trazidas por ativistas do campo da saúde. No Brasil, o foco de análise centra-se no Fórum Social Mundial da Saúde - um movimento que se organizou a partir do somatório de outras lutas sociais globais e que ganhou destaque na América do Sul. Tais movimentos demarcaram um perfil da política de saúde pública para o Estado na última década e trouxeram questionamentos sobre a organização dos novos movimentos sociais.
Palavras-chave: Saúde Global, Estado e movimentos sociais
ABSTRACT
The social global movements of health marked the decade of 90. The debate on Global Health is a constituent part of this article aiming at understand the new social struggles in the field of public health. The training of social movements that act as a whole provide a critical review on public health through the articulation and organisation of global causes brought by activists of the field of health. In Brazil, the focus of analysis is the World Social Forum of Health - a movement that was organized from the sum of other global and social struggles that won prominence in South America such moves the profile of public health policy for the State in the last decade and brought questions about the organisation of the new social movements.
Key words: Global Health, Government and social movements
Introdução
Um novo ciclo de lutas sociais caracterizado pela atuação global de movimentos se abriu na década de 90. Este novo ciclo, após a queda do muro de Berlim, representava a construção de novos pactos voltados à redução da pobreza, à remodelação do direito à propriedade intelectual e às patentes, à livre circulação de trabalhadores, à conformação de políticas públicas que articulassem os interesses globais e locais de universalização dos direitos. Estas, entre muitas outras agendas, se articulavam em torno dos efeitos locais de um processo global de privatização da vida instituído por um modelo neoliberal levado a cabo por corporações globais, Estados e instituições supranacionais (Grupos dos Oito, Organização Mundial do Comércio, Fundo Monetário Internacional ou ainda pelo Banco Mundial).
Em 1999, Seattle demarcou um período histórico caracterizado pelas lutas globais contra o neoliberalismo, após a luta zapatista, quando milhares de militantes bloquearam o acesso dos delegados ao encontro da Organização Mundial do Comércio na cidade, fazendo com que a chamada Rodada do Milênio fosse cancelada. Cerca de 50 mil pessoas, de 144 países, ocuparam a cidade americana, dando origem àquilo que os militantes denominaram de "o movimento dos movimentos" ou "Batalha de Seattle". Eram sujeitos advindos dos mais distintos movimentos: ambientalistas, sindicalistas, feministas, pacifistas, representantes do campesinato e dos índios, religiosos ou ainda militantes pelos direitos humanos. A ocupação da cidade provocou uma onda de conflitos entre militantes e polícia, fazendo com que o governo local decretasse estado de emergência e toque de recolher na cidade. A Batalha de Seattle inova na forma de organização dos protestos por utilizar o conceito de afluência e a lógica de rede como estrutura de ataque. A afluência (swarming) é um modo estratégico - de aparência amorfa, mas deliberadamente estruturado e coordenado - de golpear, vindo de todas as direções, um ponto particular ou vários pontos por meio de uma pulsação sustentável de força ou de fogo mantida a partir de uma posição de resistência próxima1. Uma sofisticada doutrina de guerra em rede (netwar).
Em Seattle, os participantes se organizavam a partir de sua própria escolha, em pequenos grupos de afinidades - equipes autossuficientes, pequenas e autônomas, de pessoas que partilham princípios, objetivos, interesses, planos ou outras similaridades que os tornassem capazes de trabalhar juntos. Cada grupo decidia por si por quais ações seus membros iriam responsabilizar-se ao risco de serem presos. Diferentes pessoas em cada grupo assumiam diferentes funções, mas todo o esforço era feito para acentuar o fato de que nenhum grupo tinha um líder único. Tudo isto era coordenado em um "conselho de porta-vozes" para onde cada grupo enviava um representante, e as decisões eram alcançadas através da consulta democrática e do consenso. A Batalha de Seattle usava aquilo que os teóricos da comunicação chamam de redes de todos os canais (allchannels), uma organização que permite a comunicação e a interação de cada nó da rede diretamente com qualquer outro nó. É a doutrina da resistência sem líder.
Se compararmos com os movimentos de décadas não muito distantes, consegue-se perceber a novidade que esses movimentos trazem em sua organização. Antes, os protestos e as revoltas seguiam dois modelos primordiais: o primeiro e mais tradicional formado pela luta a partir de uma identidade, uma unidade organizada sob uma liderança central - como a de um partido. A história política das lutas operárias está repleta de modelos que aconteceram desta forma. O segundo modelo, de forma oposta ao primeiro, baseia-se no direito de cada grupo expressar sua diferença e conduzir de maneira autônoma sua própria luta - esse modelo da diferença baseou-se nas lutas de raça, gênero e sexualidade. Ambos representavam duas alternativas: a luta unida, debaixo de uma identidade central, ou lutas separadas, que afirmam diferenças2.
O modelo em rede atual não nega nem suprime o antigo, mas lhe confere uma forma diferente. A Batalha de Seattle foi o berço de uma contestação antes nunca vista pelos mais radicais ativistas. Em torno da reunião contra a Organização Mundial do Comércio (OMC), formou-se ainda uma espécie de assembleia virtual permanente na Internet para discutir e se informar em tempo real sobre os acontecimentos através de atos contestatórios à cúpula da OMC2. Essa estrutura difusa de mobilização constitui um modelo de organização absolutamente democrático e também uma arma poderosa contra a estrutura vigente de poder. Provoca no plano simbólico um efeito de crise da ideologia global-capitalista. Milhões de pessoas recebem mensagens, informam-se, visitam sites desses movimentos globais e participam de listas de discussão em frente ao seu computador numa permanente assembleia auto-organizada em rede. O fato de mostrarem seu descontentamento contra os efeitos nocivos da globalização com protestos sem nenhuma violência fez com que ganhassem o rótulo de serem movimentos contra a globalização. Ao contrário, representam hoje os primeiros movimentos globais auto-organizados2. Neste caso, a rede que os conecta é parte das ferramentas criadas por uma sociedade do conhecimento, cientificizada e tecnologizada - de tal forma que a rede não é meramente uma peça tecnológica, a rede é o movimento.
A Batalha de Seattle foi então a constituição de uma luta contra a privatização do espaço público, contra a comercialização simbólica operada pelas multinacionais produtoras de bens de consumo - uma luta contra as corporações, opondo-se à lógica segundo a qual o que é bom para os negócios é bom para todo o mundo. Um de seus elementos mais surpreendentes em cada manifestação ocorrida em Seattle é o fato de que grupos que até então tinham atuações tão diferenciadas, e às vezes até contraditórias, agiam com interesses comuns: ambientalistas, sindicalistas, anarquistas, grupos religiosos, gays e lésbicas protestavam através de uma estrutura em rede sem qualquer estrutura central e unificadora. Os fóruns sociais e grupos de afinidade constituíam a base desses movimentos, que conseguiam agir conjuntamente de acordo com o que têm em comum. A plena expressão de autonomia e da diferença de cada um coincide aqui com a poderosa articulação de todos. A democracia define tanto a meta dos movimentos quanto sua atividade3.
O fato é que Nesse novo ciclo, que funciona no formato de uma rede aberta, todos expressam-se livremente sem a existência de um centro. Essas lutas a partir da globalização desafiam o corpo político global para criar um mundo global ainda mais livre e democrático3.
Depois da Batalha de Seattle, ocorrem novas mobilizações de boicote às cúpulas das organizações supranacionais, então acusadas de instrumento administrativo e legislativo do domínio das multinacionais sobre a economia do planeta. Essas organizações têm um estatuto sem legitimidade democrática: foram criadas pelas potências ocidentais para administrar as relações financeiras entre os Estados e entre os grandes grupos, planejar intervenções econômicas em diversas áreas do planeta2. Um dos momentos de maior mobilização do Povo de Seattle aconteceu no ano de 2001, em Gênova, quando mais de um milhão de militantes uniram-se para bloquear o encontro do Grupo dos Oito países mais ricos do mundo, o G8.
As manifestações que vão de Seattle a Gênova, passando pelas grandes mobilizações contra a ocupação do Iraque até a reunião dos militantes nos fóruns sociais mundiais, foram marcadas por conseguir arregimentar uma quantidade significativa de pessoas na América do Norte e na Europa apenas. Negri e Hardt3 afirmam que esses movimentos tiveram sua curva ascendente em Seattle e sua curva descendente com as mobilizações contra a política dos EUA de ocupação do Iraque. Isto fez nascer um processo de crise nos movimentos no-global. Mas uma crise que fez nascer um novo ciclo de lutas, protagonizadas por lutas sociais de novo tipo, que se dão ao redor fundamentalmente do trabalho precário e da imigração3.
Todo o debate construído a partir do "movimento dos movimentos" diz respeito ao fato de que as mobilizações globais não são propriedade de uma classe social ou de um território apenas, mas de uma resistência coletiva ao poder - "uma coletividade que luta em comum". A comunicação com outras lutas apenas reforça e aumenta o poder, o antagonismo e a riqueza de cada uma delas3. O que temos de mais concreto nessa sequência de lutas globais é que de Seattle a Porto Alegre (RS) esses movimentos agiram diretamente na transformação do imaginário planetário, da consequência ética e do campo político. Essa missão foi cumprida. Os poderosos da Terra estão em fuga, refugiam-se nas montanhas do Canadá ou nos desertos do Qatar. Agora o movimento deve tornar-se força política que possibilite a autonomia da inteligência coletiva (Berardi apud Cocco e Hopstein4).
A Saúde como agenda global
Na década de 90, as discussões no interior desses movimentos deram o tom de vários debates sobre a pobreza e a exclusão social. Os fatores negativos que a globalização trazia à saúde de todas as populações findaram por formar uma discussão denominada "Saúde Global" em várias partes do mundo. A globalização tornara-se assim o centro da discussão da saúde, principalmente a globalização econômica, pois influenciava diretamente os modos de articulação das políticas de acesso à saúde em todos os países.
Poderíamos, grosso modo, descrever que a Saúde Global é um campo que se detém a estudar a influência da pobreza, miséria, exclusão social, macrodeterminação econômica, guerras, fluxos migratórios, desregulamentação do trabalho, morte por ausência de medicamentos essenciais, falta de segurança alimentar, luta por patentes de pesquisas em saúde, políticas supranacionais e políticas de pactos aduaneiros em prol da harmonização da Saúde. Ou seja, questões que permeiam não somente os países emergentes, mas todos os países e também todos os movimentos de luta pelo direito à saúde. Os Estados Unidos foram o primeiro país a criar um órgão de governo específico para a Saúde Global, seguindo-se o Canadá. O discurso era o mesmo dos movimentos sociais: a atenção às populações pobres e o acesso aos serviços básicos para esta mesma população, porém o Departamento de Saúde Global e Serviços Humanos do governo americano tratava a Saúde Global como ajuda humanitária aos países emergentes associada a parceiros como a Organização Mundial da Saúde/Organização das Nações Unidas (OMS/ONU).
O termo Saúde Global chegou por um tempo a ser denominado por Saúde Internacional em determinados países, referindo-se a acordos de proteção social à saúde realizados entre dois ou mais países. Ou mesmo para designar parcerias entre departamentos governamentais, organizações não governamentais (ONGs) internacionais ou fundações de amparo à saúde e vigilância. O termo Saúde Internacional foi utilizado pelos Estados como medida de controle para as populações fronteiriças e a capacidade em se manter uma política de vigilância e controle da saúde de imigrantes em transição pelas fronteiras nacionais. Alguns países nessa mesma época tornaram obrigatório o exame de HIV e outras doenças infectocontagiosas como requisito para a livre circulação de pessoas entre os Estados5.
A partir dessa captura do termo pelos Estados nacionais, medidas que demonstrassem a capacidade desses Estados em controlar as causas globais de adoecimento foram se tornando parte das "políticas de saúde globais". Por exemplo, a capacidade de dar respostas imediatas a grandes contaminações por poluentes ao ambiente; a capacidade de "zelar" pela não degradação da saúde mesmo em casos extremos de guerra (surgindo o termo "guerra limpa"); a capacidade de controlar endemias em zonas de fronteira ou medicalizar suas populações em acordos aduaneiros com o uso de vacinações conjuntas. Contudo, essa política de Saúde Global não coincidia com aquela que o Povo de Seattle desejava, pois que as causas do adoecimento e morte de várias populações provinham de um mesmo motivo: uma concertação global que tornava mundial a pobreza, a miséria e a exclusão social de várias populações, independentemente de suas nacionalidades. Internacionalmente, o termo Global Health, que hoje refere-se a um campo de estudos, dá ênfase às pesquisas sobre a relação entre o desenvolvimento econômico e a capacidade da Saúde em acompanhar este desenvolvimento qualitativamente entre as populações.
Saúde Global então tornou-se um campo primeiramente de luta pelos direitos sociais à saúde protestados pelos movimentos globais de acumulação de um saber global (know-global). Em um segundo momento tornou-se algo relativo às relações internacionais, denominando-se temporariamente, por algumas instituições governamentais e ONGs, de Saúde Internacional. Por isso, é compreensível que a literatura produzida até então valorize o campo da Saúde Global como um fruto das ações de ONU, OMS, Banco Mundial e FMI ou de países ricos que ainda são superpotências em seu próprio território, pois a dificuldade está em desprender o global de algo único - desassociar a produção dos movimentos sociais em rede de algo regido pela vontade de uma única liderança; um contramovimento ao poder soberano de um único país, submetido a uma única organização padronizada de trabalho. É da multiplicidade na diferença que foi pensada a Saúde Global pelos movimentos políticos globais: contra uma ordem única de comando.
O movimento global pela Saúde
O People's Health Movement (PHM) é um dos primeiros movimentos que produziram o discurso que expressa a questão social global da saúde. Diz-se desacreditado ao que foi prometido entre as nações que compuseram Alma-Ata em 1978. Seu slogan, "Saúde para todos agora", traduz o descrédito à reunião que se autodefiniu como "Saúde para todos no ano 2000", prevendo o acesso à saúde para todos os cidadãos. O Movimento da Saúde dos Povos, se assim podemos traduzir, é um movimento que se apoia em várias organizações comunitárias, instituições humanitárias, organizações não governamentais e militantes que sustentam a causa da saúde como direito universal em escala global. Possui sua agenda esboçada em uma carta-princípio que endossa a saúde como direito fundamental; identifica a desigualdade, a pobreza e a exploração como raízes do adoecimento humano. Traz a perspectiva de ouvir as populações pobres para incentivar a produção de suas próprias soluções para a prevenção de doenças e estimula ações para que as populações pobres negociem com suas autoridades locais diretamente. A carta com os princípios criados por esse movimento traz a visão de distanciamento completo que se quer produzir com relação ao modelo biomédico de saúde e também ao modelo político de decisão global baseado na supranacionalidade da OMS.
Para isso dispõe de uma série de argumentos que legitimam o distanciamento das instituições supranacionais alegando que os fatores sociais, econômicos e políticos influenciam diretamente nas agendas dessas instituições. A guerra, a violência e a degradação do ambiente compõem um elenco de fatores determinantes para as desigualdades em saúde entre as populações. Para este movimento, as ações deveriam centrar-se na promoção de um mundo mais saudável através do atendimento prioritário às populações pobres. Sem dúvida, as desigualdades sociais e as condições de miséria entre as populações são fatores que agregam a agenda deste fórum.
O movimento também se autodenomina contra o neoliberalismo expresso nas ações de privatização da saúde em todo o mundo. Para isso, conclama a uma reforma das instituições financeiras internacionais, entendendo que somente desta forma poderia fazê-las mais responsáveis na diminuição da pobreza e no fortalecimento das ações em saúde. Um dos principais argumentos para a defesa dessa "democratização" das instituições supranacionais está no abusivo custo de medicamentos para as populações pobres, como em todo o continente da população africana. Ou mesmo o discurso da fome e da morte por desnutrição em vários países do sul do planeta. A defesa da produção de medicamentos genéricos para todos os países emergentes e, também, uma política local para a dependência química, tratando o tráfico de drogas como algo determinante para a saúde das populações, compõem suas causas.
O acesso aos serviços de saúde de forma desigual em todo o mundo aparece ainda como agenda que desenha o perfil do trabalhador imigrante sem acesso à saúde e também na diferença do tratamento da saúde de mulheres pobres. As discussões sobre gênero e mobilidade da força de trabalho certamente delineiam uma representação do imigrante que se desloca de forma universal entre os territórios patriarcais: mulheres pobres. A defesa da saúde dos trabalhadores da saúde aparece implícita nesta causa, considerando suas condições inseguras de trabalho e os riscos aos quais encontram-se expostos em todo o mundo igualmente.
Esse movimento possui em sua centralidade uma discussão baseada no radicalismo dos ativistas em prol de lutas contra a poluição de águas, ar e solo, geralmente disseminada pelas corporações e indústrias mundiais. A proteção da biodiversidade e a oposição ao uso de sementes geneticamente modificadas compõem um cenário de lutas contra os crimes ambientais. Nele é comum enxergar cartazes contra a Monsanto, mas também pequenos agricultores que defendem privilégios locais.
O People's Health Movement tem seus critérios e sua agenda expostos em um site criado pelo próprio movimento em consonância com instituições, ONGs e outros movimentos pela saúde que se interligam diretamente pela causa da Saúde Global. A saúde, defendida em seu sentido mais amplo, mostra-se representada na união de movimentos em prol de causas de luta pela vida, ou talvez pela qualidade de vida. Dentre as ferramentas criadas pelo próprio movimento, duas estão atualmente expostas em seu site (http://www.ghwatch.org/):
(1) Global Health Watch: o Observatório da Saúde Global constitui-se como uma chamada a todos os trabalhadores da saúde para formular novos indicadores, dados, relatórios ou pesquisas sobre a saúde mundial que muitos governos elegem como agenda de seus países. Por princípio existe uma inadequação sobre os dados produzidos, por isso a necessidade de um relatório alternativo sobre a saúde e suas instituições no mundo. A intenção em criar um Observatório da Saúde Global é fomentar o deslocamento da agenda econômica para o reconhecimento das barreiras políticas e sociais que determinam diretamente a Saúde das populações. Esse instrumento serviria para abrir um fórum global de discussão para a ampliação de políticas às populações vulneráveis. Os estudos publicados sugerem soluções e monitoram as ações das instituições de governo.
(2) International People's Health University (IPHU): caracteriza-se como uma espécie de universidade aberta para militantes. Através de parcerias com departamentos universitários, promovem cursos de pequena duração baseados na discussão dos dados obtidos através das pesquisas sobre populações vulneráveis; também servem como fonte de discussão os documentos e relatórios produzidos pelo Observatório, além de narrativas orais realizadas por seus protagonistas. A "Universidade" prevê a criação de um conhecimento baseado na experiência e no uso de diferentes fontes alternativas para gerar um saber comum sobre a saúde mundial. Hoje a IPHU localiza-se em Cuenca, no Equador.
Essas universidades tornaram-se uma ferramenta disseminada entre os movimentos; dizem-se com a função de proporcionar a auto-ducação dos militantes e dirigentes dos movimentos sociais. Segundo Santos6, a designação do termo "universidade popular" foi usada não tanto para evocar as universidades operárias que proliferaram na Europa e na América Latina no início do século XX, mas para transmitir a ideia de que após um século de educação superior elitista uma universidade popular é necessariamente uma "contrauniversidade". Por certo, a universidade internacional da saúde terá de ser mais internacional e mais intercultural do que as iniciativas semelhantes que já existiram anteriormente a ela.
O primeiro encontro do People's Health Movement (PHM) aconteceu no ano 2000 em Bangladesh. A carta de encerramento do encontro, denominada de "Declaração de Bangladesh", foi publicada em 33 línguas. Ao mesmo tempo que a Declaração conclama o controle da saúde por suas próprias populações, pede a democratização da OMS através do fim de medidas verticais e da abertura para as organizações populares na Assembleia Mundial de Saúde da OMS. A atenção primária à saúde aparece como direito prioritário a ser garantido, juntamente com a defesa ao meio ambiente; a proteção às populações em guerra; a defesa às populações miseráveis; assim como o pedido por igualdade tecnológica e também de fomentos para a produção de conhecimento em saúde (incluindo as pesquisas no campo da genética, transgenia, medicamentos e também monitoramento da biodiversidade mundial).
Após a criação e a implantação de seus instrumentos, o movimento começou a obter resultados. Em 2002, a OMS convidou o People's Health Movement (PHM) para apresentar a Declaração de Bangladesh em sua assembleia mundial no Fórum Global para a Pesquisa na Saúde (GFHR 5 e 6). E em 2003, oitenta delegados do PHM de trinta países compuseram a reunião de Genebra para as comemorações do 25º aniversário de Alma-Ata. Com agenda definida a partir de então, o PHM teve seu segundo encontro agendado para a América do Sul, no Equador.
Com o nome de II Assembleia Mundial de Saúde dos Povos, para expressar que era uma assembleia alternativa à que acontece coordenada pela OMS, o evento passou a ser adaptado à realidade latina dos povos do Sul com a participação de representantes das mais diversas atuações da área da saúde de todo o mundo. O Equador recebeu na cidade de Cuenca, em julho de 2005, representantes de vários países, além de membros de ONGs, movimentos de base, religiosos e ativistas. A pauta era a discussão dos problemas globais de saúde e o desenvolvimento de estratégias para a promoção da saúde. A Declaração de Bangladesh foi lida e aprovada para a abertura e continuidade da II Assembleia.
Ao chegar ao Equador, o PHM afirmou em plenária sua solidariedade às causas daquele país; de forma imediata foi incorporado ao documento de relatoria da assembleia a necessidade de afirmar a causa indígena e campesina como questões que também deveriam constar na luta pela saúde. A saúde do indígena e a da população que vive da terra nos Andes foram pontos de discussão na cidade de Cuenca. Parte desta pauta de discussão englobava a "guerra biológica" - algo que se manifesta através da poluição do solo e da água por meio do uso exacerbado de agrotóxico e do desmatamento incomensurável - e também a militarização das fronteiras equatorianas. Na expressão das comunidades campesinas equatorianas, lançou-se uma carta cujo lema assim se descrevia: "Todos sabemos, no dependemos", caracterizando uma crítica à produção de saber das universidades que não é socializada entre as comunidades mais carentes. O argumento central da crítica era de que a universidade produzia saberes voltados somente a ela mesma. Assim, chamava-se a população campesina, representada no encontro, ao resgate de saberes baseados na experiência e na observação produzida pelas próprias populações andinas, como forma de recuperar uma "liberdade" ao saber científico produzido pela "universidade ocidental".
O entendimento de que informação tornara-se um importante capital era o senso comum em todos os pontos de discussão dos movimentos que compunham o encontro do Equador. Os debates que transitavam do resgate à saúde comunitária à Saúde Global colocavam em jogo um argumento único pela igualdade de informações e de acesso ao saber como forma de tornar também equânime a saúde.
Nesta Assembleia, pactuou-se a necessidade de se iniciar uma campanha global pelo direito aos cuidados em saúde em nível global, algo que estaria diretamente relacionado à luta por equidade aos serviços de saúde e à não privatização da saúde pública. Após sua "entrada" para a OMS, o Movimento pela Saúde dos Povos declarou em sua segunda assembleia a colaboração, a participação e o monitoramento da Comissão sobre os Determinantes Sociais da Saúde da OMS. Alegou-se que somente desta forma se conseguiria assegurar o ataque direto às condições de pobreza e exclusão social como determinante das condições encontradas nos serviços públicos de saúde. Para isso, todos se comprometeram a coordenar ações comuns em âmbito internacional para afirmar a colaboração de atores estratégicos contra a privatização dos serviços.
O movimento do Equador trouxe uma pauta arrojada do ponto de vista da Saúde Coletiva. A questão tecnológica apontada por numerosos movimentos que apoiam a causa da saúde tem sido uma constante. A segunda Assembleia Mundial de Saúde dos Povos não conseguia pensar a saúde atual sem a igualdade sobre os meios de produção tecnológicos na produção da saúde. Questões como o investimento em pesquisa microbiológica e nanotecnologia foram apontados como necessárias para que as populações se afastassem das corporações transnacionais e vivenciassem políticas de saúde livres de medidas imperialistas.
Ações afirmativas em prol do reconhecimento de que a ciência deve se tornar um bem público foram planejadas neste encontro, tanto que sua manifestação final se deu dentro da Universidade de Cuenca, como forma de demonstrar que sua busca era pela democratização do conhecimento produzido. O movimento apontava ainda para a necessidade em se pensar estratégias de enfrentamento a laboratórios internacionais e corporações transnacionais que financiam pesquisas e impedem a circulação gratuita de medicamentos e vacinas - algo que só se tornaria possível com o maior número de associações a outros movimentos.
De acordo com as regras da Organização Mundial do Comércio, os países são livres para quebrar patentes de medicamentos essenciais quando há uma emergência nacional. Todavia, quando a África do Sul tentou fazer isso com medicamentos contra a Aids, enfrentou um processo judiciário dos grandes laboratórios farmacêuticos. Quando o Brasil tentou fazer o mesmo, foi arrastado para os tribunais da OMC. Milhões que vivem com Aids ouviram que suas vidas importavam menos que as patentes de drogas, menos que o repagamento da dívida; ouviam que simplesmente não havia dinheiro para salvá-los. O Banco Mundial disse que era hora de focalizar na prevenção, e não na cura, o que foi o equivalente a uma sentença de morte para milhões7.
Um dos maiores avanços deste movimento a partir de então foi a comunicação através da produção de conteúdo para suas páginas na internet, além da criação de fóruns para debates. O movimento se organiza e se articula em rede, abrindo-se para diferentes apreciações e opiniões; aparece, portanto, como uma das faces da formação de redes multitudinárias. Através de um site próprio e lista de discussão, o Observatório da Saúde armazena todas as produções do seu relatório alternativo. As publicações contam com o auxílio de um grupo sul-africano financiado pela Fundação Rockefeller, denominado Global Equity Gauge Alliance, além de uma ONG religiosa de Londres denominada Medact. A Declaração de Cuenca conclamou todos os povos para que essa produção de conteúdo se descentralizasse cada vez mais entre trabalhadores da saúde de todas as partes do mundo. A partir de Cuenca, este movimento teve contato com militantes da causa da terra, defesa dos povos andinos, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, sindicatos e ativistas de movimentos antiglobalização, entre outros. Então a Assembleia se abriu à América do Sul e aqui se encontrou com o Fórum Social Mundial.
Rumo a Porto Alegre
"Estamos aqui para mostrar ao mundo que um outro mundo é possível!" Assim foi aberto em Porto Alegre o Fórum Social Mundial, pela primeira vez no Rio Grande do Sul - certamente um fenômeno social e político novo. Esse "outro mundo possível" manifesta uma nova existência e também novas formas de expressão. As estratégias de organização política precisam ser revistas, bem como os sujeitos revolucionários e as formas de exploração. "Não podemos perder o acontecimento por ter respostas prontas para novos problemas", diz Lazzarato8.
Nos últimos anos, um pequeno grupo de executivos e líderes mundiais passou a se reunir em Davos, uma cidade congelada por seu clima de pico de montanha suíço, para discutir como a economia global deve ser governada. Davos tornou-se a simbologia máxima do maior encontro de capitais no mundo. Sua potência expressa-se no poder que possui para falar em nome da economia mundial. A resposta a Davos surgiu em um formato avesso: um movimento sem representação, sobre o qual ninguém está autorizado a falar em nome dele, temático e constituído por partes que não têm tanta importância como o todo que o compõe.
O Rio Grande do Sul, estado que abrigou o Partido dos Trabalhadores durante muitas gestões administrativas, hospeda um movimento que não se ajusta a nenhuma das vias de transformação social sonhada pela modernidade. Nele não cabe a palavra reforma, nem revolução. Não se fala em centralismo democrático, democracia representativa, nem mesmo democracia participativa6. Fala-se de uma radicalização democrática global, algo que só é possível ao enxergarmos a lógica capitalista pelas lentes políticas do Império, como apontam Negri e Hardt9.
O que torna o Fórum Social Mundial novo é sua perspectiva sempre inclusiva; um movimento sério em busca de alternativas. Entretanto, essas alternativas, sabe-se bem, viriam dos países que experimentam de forma aguda os efeitos negativos da globalização: pobreza, exclusão social, disparidades na distribuição de renda, poder político enfraquecido, migração em massa, miséria7. O FSM congrega um conjunto de iniciativas de intercâmbio mundial, bem como seus conhecimentos sobre práticas e lutas sociais globais. Um somatório rizomático de capacidades e potências; algo que anuncia o que está por vir. Na frase de Negri10: "onde há resistência nasce uma nova cultura".
A sociologia contemporânea não consegue responder como os movimentos e as organizações conseguem dar mais evidência a um todo e não a elas próprias. A novidade organizacional do Fórum está exatamente neste movimento sem líderes, com rejeição a hierarquias e com sua enorme capacidade de se organizar através da Internet. A novidade consiste na celebração da diversidade e do pluralismo, na experimentação e também na democracia radical6.
Ou seja, falamos de um fenômeno social sem um ator social privilegiado; com uma congregação de instituições com interesses muito diversos; sem uma estratégia definida a partir de um centro; sem uma política originada na parte norte do planeta; sem homogeneidade social e política; sem a pretensão de tornar o movimento algo único nos seus direcionamentos e sem trajetórias de vidas comuns ou culturas semelhantes. Este movimento não subscreve nenhum fim estratégico, e sua luta se recusa a ser armada. As diferenças culturais são suas maiores potências. Nasce potente pela sua identidade latino-americana, valendo-se da cultura política híbrida e múltipla que emerge dos movimentos sociais de base, das experiências com a democracia participativa, do berço do orçamento participativo, das lutas contra a ditadura em um continente que se quer tornar interdependente6. Com ele o Sul torna-se global, não pelo simples fato de estar na parte mais extrema dos trópicos, mas porque através dele fornecemos evidências do "quanto de Sul" existe em todo o mundo.
De repente Porto Alegre tornou-se um pouco de Seatlle, Gênova; foi parar em Mumbai, na Índia e no pico das montanhas suíças de Davos. Sua legitimação social está exatamente no poder que tem em se fazer representar em qualquer parte do mundo, pois atualmente todo o mundo possui um pouco de Mumbai, da Índia, de Porto Alegre ou de Davos. Mas o que parecia surgir organicamente [...] não era um movimento por um governo global, mas a visão de uma rede internacional conectada de iniciativas locais, cada uma formada com base na democracia direta7.
O FSM tem parte de sua história vinculada a fatores intrigantes. Com o passar do tempo, muitos que se fizeram presentes em Davos passaram também por Porto Alegre; ou vice-versa, alguns saíram de Porto Alegre com viagem marcada para Davos na mesma época - algo que somente é possível nesses novos movimentos. Militantes, ONGs e intelectuais encontram-se para tratar dos atuais problemas da globalização e de formas alternativas de atuar dentro dela. O que Negri e Hardt3 enfatizam é que as forças mobilizadas nesse novo ciclo global têm em comum não apenas um inimigo comum - podendo ser o neoliberalismo, a hegemonia americana ou o Império global - mas também práticas, linguagens, condutas, hábitos, formas de vida e desejos comuns de um futuro melhor.
A mobilização global nesse novo ciclo de lutas que se abre não pretende negar ou encobrir a natureza local e sua singularidade de luta. A comunicação entre elas, ao contrário, reforça a capacidade de cada uma delas. O FSM ainda é complementado por uma série de fóruns regionais ao longo do ano; na realidade, o Fórum não pretende ter poderes deliberativos ou governantes. A complexidade social está na demonstração de que um conjunto de atores sociais pode convergir para debates concretos e substanciosos, indicando algumas orientações pelas quais seria possível concretizar um organismo político global. A natureza biopolítica da produção social contemporânea torna impossível a velha forma de representação e também torna possível que várias outras novas surjam3.
Entretanto, a economia sempre tende à homogeneização, à centralização e à consolidação. A chave para este processo está no desenvolvimento de um discurso político que não teme a diversidade e não tende a formatar o movimento político em um único modelo. A economia travou uma guerra contra a diversidade7. Ou seja, existe algo que é caótico, confuso, ambíguo e suficientemente indefinido para merecer o benefício da dúvida. Poucos quererão perder este comboio, especialmente num tempo histórico em que os comboios deixaram de passar6.
O Fórum Social Mundial da Saúde
O encontro de vários movimentos importantes da América Latina acontece no Fórum Social Mundial. Paralelo a este grande fórum iniciou-se um encontro voltado para a saúde denominado Fórum Social Mundial da Saúde, que integrou, no ano de 2005, cerca de oitocentas pessoas com os mais diversos interesses. No site encontramos a definição: O FSMS é um espaço integrado ao FSM orientando-se pelos princípios da pluralidade, diversidade e singularidade, tendo caráter não confessional, não governamental e não partidário. Tem o propósito de dialogar com a sociedade civil mundial comprometida com a luta pelo direito humano à saúde, opondo-se ao discurso e prática neoliberal que a situam no campo dos serviços, transformando-a numa mercadoria geradora do lucro11.
Dentre esses movimentos estavam os de luta antimanicomial, sanitaristas, acadêmicos, membros da Associação Latino-Americana de Medicina Social, ativistas, ONGs de áreas da saúde, pessoas que representavam partidos políticos, órgãos do governo e participantes de 27 países. O fórum reafirmava-se como um processo aberto, capaz de dialogar com todos os movimentos e pessoas comprometidas com o direito universal, integral e equitativo à saúde. Cabe ressaltar que nos anos de 2002, 2003 e 2004, as reuniões do Fórum Social Mundial tiveram vários momentos em prol da defesa da saúde dos povos, algo que antecedeu a criação de um fórum específico voltado para a saúde.
Em 2003, o PHM organizou em Porto Alegre o primeiro encontro da saúde dentro do movimento, algo que somou cerca de quatrocentas pessoas interessadas nessa discussão. E no fórum de Mumbai, setecentas pessoas compuseram a mesma reunião. O movimento de Bangladesh (2000) foi determinante para a formação de um encontro exclusivo para a saúde. E a Assembleia Mundial de Saúde dos Povos foi planejada no âmbito do fórum, como estratégia alternativa às assembleias mundiais da OMS.
O I Fórum oficial da Saúde, em 2005, deixou evidente sua pauta voltada para a Saúde Global. A intenção inicial era formular uma agenda internacional com o objetivo principal de apoiar a formulação de políticas que garantam a proteção à saúde. Logo na carta-convocatória, visava-se construir uma agenda social dedicada à saúde no âmbito dos acordos regionais de integração econômica como na Comunidade Europeia, Nafta, Mercosul, Pacto Andino e outros, trabalhando pela constituição de sistemas únicos e universais de saúde para essas áreas de integração econômica.
A pauta contra o neoliberalismo chegava à dimensão sobre a seguridade social, apontando-a como decadente em razão de inúmeras populações sem empregos, com vínculos informais e dependentes de assistência social, saúde e previdência. A mercantilização desses serviços públicos era um determinante para o agravamento das questões de saúde. A discussão do fórum da saúde apontava para a precarização dos serviços de saúde em todo o mundo, principalmente os serviços existentes nos países mais pobres, ou mesmo os serviços voltados para as populações migrantes nos países ricos - algo que se mostrava como uma questão global, baseada na contribuição financeira de trabalhadores formais e informais em todo o mundo. A focalização dos serviços de saúde era a naturalização da exclusão social em nome de um pragmatismo no exercício dos direitos principalmente nos vários países emergentes.
Na carta-princípio do Fórum Social Mundial da Saúde, o slogan "Uma saúde para todos é possível e necessária" destacava a luta principal que era a não mercantilização de serviços de saúde em todo o mundo, visando à igualdade de acesso principalmente para as populações mais pobres. As guerras civis, as tragédias ambientais e as intervenções militares foram lembradas como direito à paz mundialmente. Quase todas as causas políticas da saúde foram contempladas: a questão indígena, a miséria na África, a segurança alimentar, a saúde mental e a necessidade de serviços substitutivos, a saúde no trabalho, o acesso a serviços voltados para a mulher, para a criança, além do direito aos medicamentos essenciais para o tratamento da Aids e de doenças epidêmicas como a malária. Todas essas questões eram debatidas com base em um único argumento: a necessidade de erradicação da pobreza e da exclusão social em todo o mundo. O Fórum reafirmou os princípios de Bangladesh, preparou-se para Cuenca, mas também para Nairobi. Após a descentralização do fórum social mundial para outras regiões do mundo, o debate sobre a saúde viajou junto com ele.
O II Fórum Social Mundial da Saúde aconteceu no Quênia, na África, em 2007. Na agenda política do II FSMS, denominada "A Saúde na África: o espelho do mundo", pautou-se um ponto fundamental: as assimetrias de poder no mundo. A descentralização do fórum representou uma alternativa ousada, mas ao mesmo tempo coerente com a proposta do movimento. Na África falou-se do direito à vida, em meio a uma população que vive a dramaticidade da miséria, debilitando as capacidades emancipatórias de sua população. Foi também em Nairobi/Quênia que se retomou o debate sobre a "drenagem de cérebros" na saúde - um fenômeno social recorrente na África, onde profissionais da saúde migram para outros países em busca de emprego e de sobrevivência, "importados" principalmente por países europeus.
Em Nairobi, cidade onde o único centro de convenções foi construído pela ONU, pode-se perceber o quanto de África tem-se em todos os continentes do mundo. Os conflitos civis foram lembrados, principalmente destacando as ajudas humanitárias dadas à África, que consigo trazem inúmeros interesses corporativos, bloqueando a criação de sistemas universais de saúde. Os conflitos militares foram mencionados como aqueles que destroem grande parte dos hospitais e cortam o fornecimento de água potável nas cidades como medida essencial de guerra que destrói a saúde.
As políticas econômicas foram apontadas como a "política do genocídio provocado"; aquelas que perpetuam a degradação das condições de saúde e a "desassistência programada" da pobreza e da enfermidade. Sem dúvida, a mortalidade dos mais pobres foi o principal dado estatístico utilizado para dar evidência ao movimento. Casos endêmicos de Aids, malária, tuberculose, verminoses e outras doenças são comuns ao perfil de morbimortalidade africano. Apontava-se para a necessidade de se romper com a simples doação de medicamentos e para a emergência do cuidado, da atenção básica aos doentes e estratégias integrais de combate ao adoecimento.
Na África, sentia-se a centralidade da discussão sobre a Saúde Global. A busca por medicamentos básicos, atenção à saúde e a percepção de contaminação do ambiente por corporações multinacionais desaguavam em um continente que simboliza mundialmente a pobreza e a exclusão social mundial. 15% da população africana é soropositiva. Entre os anos de 2001 e 2006, mais de oito milhões de pessoas morreram por doenças tratáveis como a tuberculose, malária ou desnutrição. E a maior parte dos governos africanos não gasta mais que 3% do orçamento geral com proteção social à saúde11.
Nairobi reforçou o papel dos pactos aduaneiros também na harmonização das políticas de saúde e demonstrou que vários problemas dos países do Sul são também agendas de discussão de vários países ricos: a migração de trabalhadores da saúde, a legislação que não contempla esses trabalhadores em território estrangeiro, a negação dos cuidados aos imigrantes e os dados invisíveis da estatística sobre os pobres e seu acesso aos serviços de saúde.
Considerações finais
Os movimentos globais pela saúde começam a ditar suas pautas nas agendas de governo em várias partes do mundo. Após conseguir assento na OMS e compor os grupos de trabalho na Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), um dos primeiros frutos desses movimentos saiu exatamente da América do Sul, através das políticas de quebra de patentes pelo Ministério da Saúde brasileiro com o intuito de tornar gratuita ou mais barata a comercialização de medicamentos entre os países pobres. É também resultado dos movimentos o fortalecimento de ações de interdependência na América do Sul com medidas cooperativas na produção de tecnologias para a saúde entre os países andinos e o Brasil, bem como a clara proposta do governo brasileiro de harmonização das políticas de saúde para todo o âmbito Mercosul.
O elemento novo deste ciclo dos movimentos se pode localizar em uma confluência ampla de sujeitos políticos com os objetivos mais heterogêneos. Desta forma, os movimentos globais da saúde vieram mostrar que as novas lutas sociais não são por mais poder do Estado sobre suas vidas; nem mesmo trata-se de uma nova reforma sanitária. Os movimentos sociais atuais são por mais democracia. Apenas mais democracia como ponto de pauta para uma agenda global.
Artigo apresentado em 04/02/2008
Aprovado em 03/12/2008
Versão final apresentada em 02/01/2009
Referências bibliográficas
- 1. Antoun H. Democracia, multidão e guerra no ciberespaço. In: Parente A, organizador. Tramas da rede. Porto Alegre: Sulina; 2004. p. 209-237.
- 2. Berardi F. A fábrica da infelicidade: trabalho cognitivo e a crise da new economy. Rio de Janeiro: DP&A; 2005.
- 3. Hardt M, Negri A. Multidão. Rio de Janeiro: Record; 2005.
- 4. Cocco G, Hopstein G. As multidões e o Império: entre globalização da guerra e universalização dos direitos. Rio de Janeiro: DP&A; 2002.
- 5. Lee K, Buse K, Fustukian S, editors. Health policy in a globalising world. Cambridge: Cambridge University Press; 2002.
- 6. Santos BS. O Fórum Social Mundial: manual de uso. São Paulo: Cortez; 2005.
- 7. Klein N. Cercas e janelas: na linha de frente do debate sobre globalização. Rio de Janeiro: Record; 2003.
- 8. Lazzarato M. As revoluções do capitalismo: a política no império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2006.
- 9. Negri A, Hardt M. Império. São Paulo: Record; 2001.
- 10. Negri A. Movimientos em el imperio. Buenos Aires: Paidós; 2006.
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11 Fórum Social Mundial da Saúde. [site da Internet]. [acessado 2007 mar 1º]. Disponível em: www.fsms.org.br
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Abr 2011 -
Data do Fascículo
Mar 2011
Histórico
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Revisado
03 Dez 2008 -
Recebido
04 Fev 2008 -
Aceito
02 Jan 2009