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A ciência entre o real épico e o ideal ético

Science: from the epic real to the ethical ideal

DEBATEDORES DISCUSSANTS

A ciência entre o real épico e o ideal ético

Science: from the epic real to the ethical ideal

Alberto Oliva

Universidade Federal do Rio de Janeiro. aloliva@uol.com.br

A bomba

não destruirá a vida

O homem

(tenho esperança) liquidará a bomba.

(Carlos Drummond de Andrade)

Tendo F. Bacon como pregoeiro, a Era Moderna passa a privilegiar a busca de um tipo de saber que gera uma forma de poder capaz de proporcionar ao homem crescente controle sobre a natureza. O poder intelectual deixa de se exercer apenas sobre as consciências, pela formação de mundividências, para se estender ao domínio dos fenômenos naturais. Desaparece a necessidade de invocar forças ocultas e propósitos divinos para tentar entender o que ocorre na realidade circundante. O mundo se torna, como sublinha Weber, desmagicizado – um quebra-cabeça a ser decifrado apenas com os recursos da razão e da observação. Consolidado o poder explicativo e instrumental da ciência, assiste-se no século 20 ao seu crescente questionamento literário-filosófico. Os "humanistas" esposam a opinião de que a aplicação do conhecimento científico representa uma ameaça à integridade e à liberdade do homem. Literatos como Tolstoi sustentam que a ciência é desimportante porque não tem resposta para os problemas da vida: nada tem a dizer a respeito de como deve o homem (con)viver, que escolhas lhe cabe fazer, que sentido pode dar ao que existe e ao que ocorre.

Invocando a titânica luta pela sobrevivência num palco natural, muitas vezes inóspito, a modernidade não dispensou maior atenção aos perigos ínsitos ao poder que o homem passou a ter sobre a circunstância física. Só quando a eficácia do saber instrumental se torna incontrastável, exibindo alguns efeitos colaterais indesejados, surge a preocupação com seu uso adequado. Enquanto contava apenas com a filosofia, o homem nada mais pretendia que compreender o mundo, que contemplá-lo sub species aeternitatis, apreendendo-lhe a arché ou desvendando as determinações ocultas sob o fluxo cinematográfico das aparências. Tudo muda radicalmente quando passa a dispor de teorias que lhe permitem explicar para prever e prever para controlar. A bios theoretikos e a vita contemplativa pré-modernas não propiciavam poder sobre a natureza. Isto não quer dizer que o saber especulativo não enfeixasse poder. Por meio da pura retórica, de extração religiosa ou filosófica, alguns homens sempre acabaram detendo poder sobre todos os outros. A política no mundo atual continua mostrando como o discurso se mantém como a principal fonte de poder. A filosofia e a religião prosseguem, com suas visões de mundo, exercendo mais influência sobre o mundo da vida que qualquer teoria científica. As atitudes que levam a determinados tipos de comportamento não são, em sua grande maioria, desencadeadas por teorias científicas. São produtos de visões religiosas e filosóficas cujo impacto nos modos de pensar e agir nem sempre é devidamente percebido pelo homem comum. Mais pela palavra que pelo saber formal os homens continuam conquistando e exercendo o poder político. Mas só as ciências naturais e seus derivados tecnológicos proporcionam efetivo controle sobre o não-humano.

Depois que a ciência consolidou sua força explicativa e sua capacidade preditiva passou a ser criticada em virtude de alguns de seus rebentos tecnológicos poderem se mostrar tão ameaçadores quanto os fenômenos naturais adversos, cresce o número dos que a reduzem à construção social, à força produtiva ou até dos que a encaram como mera peça da superestrutura. Como, ao menos em termos comparativos, não se pode ter dúvida a respeito da superioridade da ciência, dos resultados obtidos com base no método científico, passou a ser corrente a depreciação da ciência como um saber instrumental que passa ao largo das questões cruciais da existência humana. Fingindo desconhecer o rotundo fracasso do especulativismo, alguns filósofos acusam os saberes submetidos ao critério pragmático do sucesso preditivo de serem, desprovidos que são de senso crítico, meros serviçais do modo de produção capitalista.

Ora, não faz sentido colocar-se contra a ciência, em termos políticos e epistemológicos, recorrendo e dando destaque a formas de saber portadoras de cognitividade controversa. O potencial de controle que as ciências naturais têm sobre o que investigam não as torna inexoravelmente ameaças à natureza e ao homem. Afinal, de que natureza falam os humanistas? Da que torna possível a vida, da mãe de todas as coisas, ou da que se manifesta como doenças e pestes, como maremotos que ceifam vidas com suas tsunamis impiedosas? E a que homem se referem? Do que se dedica a inventar meios e modos de subjugar e dominar seus semelhantes ou do que sublima os instintos selvagens abraçando princípios éticos de convivência?

A ciência é humana, demasiado humano. Isto significa que cabe ao homem definir como será praticada e aplicada. O fato de ser um produto humano não a impede de tentar ser o mais objetiva e racional possível. As criações humanas, o man-made, são frutos de convenções, de longos e complexos processos culturais. No entanto, tal constatação não autoriza a inferência de que as explicações científicas não merecem estatuto epistêmico especial, de que não há, por exemplo, entre a visão científica e a religiosa profundas diferenças em termos de embasamento racional das crenças abraçadas.

Pouca atenção se dispensa ao fato de que a retórica, os jogos persuasivos de linguagem, é pródiga em proporcionar poder aos que sabem contrabandear emoções sob a casca dura das palavras. Por isso carece de base apresentar o saber instrumental, com vistas a demonizar a ciência e a tecnologia, como o mais perigoso meio de conferir poder ao homem. Mesmo porque o poder, na sua expressão política mais forte, é função da capacidade de se levar as pessoas e os grupos a abraçarem certas idéias, a adotarem padrões de pensamento que os impelem a assumir determinados tipos de atitude e a executar determinados tipos de ação (coletiva).

A matança ideológica do século 20 mostra à sociedade que idéias têm conseqüências. Uma filosofia colocada na ponta de fuzis de grupos ideológicos fanatizados pode se revelar mais destrutiva que a bomba atômica. O século passado produziu uma montanha de mais de 100 milhões de cadáveres ideológicos e não houve um inequívoco e enfático repúdio às filosofias que inspiraram a barbárie. Em nome de ideais de justiça, da Palavra de Deus, da redenção da humanidade se cometeram ao longo da História inomináveis atrocidades. E o que havia de razão instrumental nessas idéias em nome das quais tanto se matou? A velha "demiurgia" platônica foi transformada no século 20 na engenharia social total e radical que suprimiu a liberdade e ceifou milhões de vidas. Há filosofias – que de modo especioso invocam nobres ideais –, cuja implantação em nada é menos nefasta que a aplicação de tecnologias destrutivas.

As ciências empíricas e formais não foram criadas para nos ensinar a viver. Seus métodos foram concebidos para lidar com certos tipos de problema. Nec plus ultra. Como bem observa Wittgenstein no Tractatus, ainda que todas as questões da ciência fossem resolvidas, os problemas da vida permaneceriam intocados. As ciências não têm resposta para as aflitivas questões que um dia começaram a ser formuladas pelas religiões e que foram retomadas, sob novas bases, pelas metafísicas tradicionais. Podem quando muito reformulá-las ou dissolvê-las. E, para piorar, as filosofias fracassaram em seus projetos de encontrar a explicação última ou dar um sentido à vida. Não cabe às ciências sequer definir o tipo de uso que delas será apropriado fazer. A questão de se vale a pena fazer ciência não é uma questão científica, é axiológica. O desafio do que fazer com a ciência que mais diretamente afeta o existir humano não pode ser enfrentado cientificamente. O uso que será dado a conhecimentos que podem, por exemplo, ensejar a manipulação dos organismos e das consciências é definido por visões de mundo e de homem permeadas de valores.

A pergunta de Atlan, em seu ensaio de 2002, La science est-elle inhumaine? merece a resposta de que depende do que nos propomos a fazer com ela. Se ela mostra que somos escravos de determinismos cegos não é ela que nos desumaniza – apenas conta uma verdade sobre nós mesmos que talvez não nos agrade, que talvez preferíssemos que fosse diferente: nós pilotos de nós mesmos, a máquina do corpo dirigida pelo espírito autônomo. Teorias que redefinem o lugar do homem no espetáculo da vida não podem, se verdadeiras, ser rechaçadas sob a alegação de que podem provocar a coisificação da existência humana. Não é por deixar de ser o protagonista no grande filme da vida que o homem sofre rebaixamento cósmico. Não é por ser refém da natureza que o homem fica impossibilitado de se construir historicamente. Até porque os seres humanos têm o condão de criar seus caminhos ao construírem culturalmente identidades para si.

Supondo que a ciência seja um conhecimento objetivo, voltado para a explicação de como "as coisas são", então não tem, em termos explicativos, como se colocar contra o homem. Se praticada com base em adequados imperativos metodológicos não há por que contestá-la. O debate gravitaria em torno do emprego a ser dado a seus resultados. E isto estaria afinado com determinada visão de homem e humanidade. Propor a humanização é fazer uma pregação vaga. A humanidade não é algo dado, não é uma essência sem história, é uma construção na qual interagem o biológico, o cultural e o idiossincrásico – é um tortuoso processo de elaboração de uma identidade com algumas partes estáveis e outras evanescentes. Se a proposta é considerar o homem um fim em si mesmo, jamais usá-lo como meio, tudo deve ser feito para respeitar suas decisões e escolhas. Tudo baseado no pressuposto de que cada um sabe o que é melhor para si e pode usufruir plenamente de sua liberdade sem injustificadas coerções.

O conhecimento pode levar o homem a fazer escolhas criteriosas em termos técnicos, mas não tem como determinar o que é melhor em termos valorativos. Como bem observa Russell, o conhecimento (knowledge) ensina o homem a fazer a bomba atômica e a sabedoria (wisdom), a especificar-lhe o (des)uso. O delicado é que a sabedoria não se adquire formalmente. Não se baseia em demonstrações lógicas e comprovações empíricas – é fruto do bom senso e do endosso a determinados princípios éticos. Como o conhecimento não traz uma ética embutida, cabe à sabedoria colocar sob controle a arrogância do saber que, com base em seu poder instrumental, se considera senhor do mundo.

À ciência não se pode confiar a missão de humanizar o que quer que seja. O uso que se pode fazer dela é que pode ser favorável ou contrário ao homem – ao homem idealmente concebido. Mesmo porque também faz parte do ser do homem – ainda que histórico – a ambição – ainda que velada – de controlar e dominar seus semelhantes. Quando se apregoa kantianamente que o homem deve ser sempre tratado como um fim em si mesmo se está enunciando um princípio ético que não deriva do conhecimento conquistado sobre o homem. Isto porque, de um ponto de vista histórico, o homem tem sido tratado mais como objeto que como sujeito pelos seus semelhantes e pelos poderes. Como o dever-ser não promana do ser, nem o imperativo do indicativo, o desafio é fazer com que o ideal ético prevaleça sobre o real épico no campo das relações humanas. Nesse sentido, pode-se dizer que a cultura tem conseguido, por meio da introdução de regras de convivência cada vez mais respeitadoras das individualidades, atenuar "a lei do mais forte". O saber em si mesmo não é contra ou a favor do homem. E só se torna poder quando 1) persuade pessoas e grupos a respeito de coisas sobre elas mesmas ou sobre o mundo; e 2) consegue transformar o que é estudado prevendo como se comportará.

Algumas das reflexões do médico e biofísico argelino Henri Atlan suscitam questões instigantes. As propostas de humanizar relações normalmente se associam ao desejo de fazer com que os homens interajam segundo algum ideal ou modelo. O dificultoso é que o homem enfrenta intrincados problemas para entender como se dá a formação de sua identidade. Precisa ser ativo para se construir e ao mesmo tempo é passivo por ser construído por forças sobre os quais tem diminuto controle. Muito do que é não depende dele. Há forças que o atingem de fora, outras se movimentam em seu interior sem que conheça sua etiologia, sua progressão e o desfecho de sua atuação. Como ninguém escolhe seu cabedal genético, pode, quando muito, fazer determinado uso de seu potencial benéfico ou maléfico. A vida individual, o encontro do espermatozóide com o óvulo, começa de modo lotérico. E o influxo social e cultural, decisivo na formação de uma história de vida, se infiltra na mente como se a constituísse, de dentro, desde sua origem.

Ninguém escolhe seus genes; ninguém tem efetivo controle sobre os processos simbólicos que vão cerzindo sua identidade. Isto, no entanto, não significa que seja residual o percentual de liberdade que cada homem pode usufruir. Não há destino inelutável se tem o homem o poder de dar sentido ao que é e ao que acontece com ele. Os fatos da vida social ostentam significatividade intrínseca, são pré-interpretados. O que é pessoal e socialmente vivenciado não é só uma ocorrência física – é também uma compreensão de si mesmo. E há várias formas de conferir significado ao que se experiencia. O que está em questão é saber como a autocompreensão que as pessoas produzem de si mesmas é forjada pelo encontro do "interior" com o "exterior". Mesmo que a autotranscendência, o ir além do que se é, não passe de uma possibilidade sistêmica, não perde a importância. Como as visões que as pessoas têm dos fatos e de si mesmas variam historicamente, o fisicalismo se revela uma explicação reducionista.

Não há álibis sistêmicos que eximam o homem de fazer escolhas. O homem não apenas vive; faz sua vida, faz sua história, ainda que no interior de estruturas genéticas e molduras contextuais que não foram por ele criadas e sobre as quais tem escasso ou nenhum controle. Pode tentar compreender o que faz identificando as razões das ações. Pode não ter como escapar das determinações contextuais e das tramas da situação, mas pode a elas responder com criatividade. E é a inventividade que permite ao homem desvendar os quebra-cabeças pessoais e impessoais. Até para se saber determinado o homem precisa ser criativo, ir além daquilo que se oferece imediatamente ao seu olhar. Para a sobrevivência da espécie foi fundamental a crença de que as coisas não estavam condenadas a ser do jeito que vinham sendo. A idéia de superação é fundamental para vencer limitações que parecem condenações naturais.

Em entrevista ao Le Monde, Atlan observa que qualquer teoria científica pode alimentar qualquer ideologia; o erro consiste exatamente em querer buscar em teorias científicas uma justificação, um fundamento para uma ideologia, qualquer que seja. E isto está associado, como já enfatizamos, ao uso que se faz da ciência e não à sua natureza metodológica. O risco de o conhecimento se tornar desumanizador resulta mais da ingerência de fatores extracognitivos. O ataque ao conhecimento científico, como precioso artefato cultural de explicação da realidade e de autocompreensão do homem, pressupõe um conhecimento superior a ele. Para criticar a ciência é preciso contar com um saber mais poderoso e confiável, em termos cognitivos, que ela. A fantástica máquina de explicação da realidade forjada pela ciência não é inimiga do homem e nem a especulação é inofensiva. É só aparente o despojamento da filosofia em relação a projetos de poder. O que é incapaz de ter poder sobre os objetos pode muito bem ter sobre os sujeitos. A natureza não constitui um espaço de convivência harmoniosa entre os diferentes. No reino animal é implacável e selvagem a luta pela sobrevivência. Sem os mecanismos de abrandamento da natureza introduzidos pela cultura os instintos impõem sua "lei": o "outro" é o inimigo a vencer pela subjugação ou pela eliminação. A natureza é mais um palco de conflito aberto que o paraíso da idílica convivência entre os contrários. Da filosofia grega em diante, com avanços e retrocessos, o bom combate tem sido no sentido de superar o "estado de natureza". Não faz, portanto, sentido encarar qualquer projeto de humanização como equivalendo ao movimento de retomada de uma essência natural perdida, de um ideal de pureza original. A humanização é a construção gradual de um projeto de pessoa e de vida coletiva no âmbito de um processo histórico. Hoje, o ser humano tem o extraordinário poder de tentar definir o que quer ser; tem como manipular, mudar o curso, do que parecia necessidade inelutável. Pode por isso, dentro de certos limites, se re-identificar e redesenhar novas relações com seus semelhantes. Pode dar realidade a muitas potencialidades. Não tem como chegar à perfeição, mas pode perseguir a perfectibilidade.

Suponhamos que o indivíduo nada mais seja que uma marionete à mercê dos genes e dos símbolos. Se as diversas ciências levarem a este tipo de conclusão, ainda assim será válido pensar que o ser humano pode agir com algum grau de liberdade. E que pode aumentar o quantum de liberdade usufruído obtendo o conhecimento das causas que fazem do homem um fantoche do sistema social e da natureza impiedosa. E desde que lhe seja possível reverter, ainda que parcialmente, esse quadro. A liberdade seria o que é possível fazer por livre escolha descontadas as determinações superáveis. No plano da vida social, o que se constata é que nem todas as determinações são, em termos valorativos, iguais. Há muitas formas de reagir psicológica e socialmente ao que é, por exemplo, econômica ou geneticamente causado. Se a ciência leva à descoberta de que o homem vive sob o jugo de férreas necessidades, uma possibilidade é a ataraxia, outra é procurar, respeitando os determinantes, estabelecer os melhores modos possíveis de viver e conviver. Por mais que sua bagagem genética escape a seu controle, a existência social condena o homem a fazer escolhas mesmo quando adota, dissolvendo sua identidade na manada, formas de ser estereotipadas. Assumir a responsabilidade por seus atos, para além dos álibis da culpa sistêmica, é o que lhe resta fazer. Vale sempre a pena lembrar do Julius Caesar de Shakespeare: "The fault, dear Brutus, is not in our stars but in ourselves that are underlings".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Set 2005
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