Acessibilidade / Reportar erro

Por uma agenda global para movimentos sociais

Toward a global agenda for social movements

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Por uma agenda global para movimentos sociais

Toward a global agenda for social movements

Paulo Gilvane Lopes Pena

Departamento de Medicina Preventiva, UFBA. plpena@uol.com.br e pena@ufba.br

O artigo "A globalização dos movimentos sociais: resposta social à Globalização Corporativa Neoliberal" proporciona uma leitura rica e necessária para atualização de pesquisadores, dirigentes e militantes sobre as questões relativas ao processo de globalização e a emergência de lutas sociais de âmbito planetário. Há um esforço dos autores, alcançado com sucesso, em definir conceitos chaves como o de globalização e neoliberalismo, no contexto dos seus impactos econômicos, sociais e ecológicos. Introduzem um debate novo sobre "guerras de redes", bases estas para a construção de ações sociais virtuais "reais" e planetárias, pois se constituem em expressões virtuais de um mundo real de lutas sociais. Discutem estratégias inovadoras para as organizações sociais sobre o uso de técnicas informático-comunicacionais e suas diversas modalidades de redes numéricas (digitais), adequando-as em estruturas que expressam ordens políticas diversas e que seguramente avançam em relação ao que se conhecia no âmbito de outros movimentos sociais estruturados, a exemplo do que chamaríamos de "cibersindicalismo", com suas lutas locais e internacionais e suas estruturas numéricas/ comunicacionais/virtuais. Esta reflexão teórica do termo globalização é importante para a definição do objeto de compreensão e das suas relações complexas com a conjuntura e as mudanças estruturais nas sociedades, que marcaram o final do século 20.

Para Pierre Bourdieu (1998), o "neoliberalismo" se constitui em um programa prescrito para o planeta pela potência americana. Algumas condições favoreceram a prescrição deste programa sem contestação, a ponto de se estabelecer uma hegemonia do Consenso de Washington, que se impôs como o "pensamento único". Uma das condições foi a crise do Estado de Bem-Estar Social na Europa; outro foi o afundamento da ex-União Soviética, simbolicamente marcado pela queda do muro de Berlim. Neste contexto emergiu a denominada unipolaridade comandada pelos EUA, tornando possível as condições históricas para a prescrição deste programa planetário, sem grandes alternativas em evidência e lutas sociais de resistência na sua fase inicial. O programa adota um modelo pautado na tríade: liberação das fronteiras nacionais para impor a livre circulação do mercado; reforma do estado, na perspectiva da implementação do estado mínimo; flexibilização do trabalho, eliminando as barreiras de proteção do trabalhador e impondo também a liberdade para a exploração do trabalho pelo capital. Essa nova reordenação econômica, colocada sob o signo da liberdade para o capital, é, com efeito, uma "violência estrutural", que subordina os estados nacionais às exigências das liberdades econômicas, suprime todas as leis de proteção do trabalho (Freitas, 2001) e de mercado nacionais, interdita déficits e inflações, privatiza serviços públicos e, sobretudo, reduz vertiginosamente as despesas públicas e sociais. O Brasil aplicou de forma rigorosa este programa no "ciclo neoliberal", que iniciou com o governo Collor e finalizou, no segundo governo Cardoso. As conseqüências econômicas e sociais são conhecidas, mas ainda exigem estudos para uma avaliação em profundidade desse processo. O programa neoliberal tem gerado conseqüências planetárias que resultam também de transformações estruturais do desenvolvimento do capitalismo. Nesse sentido, caso os movimentos sociais se limitem a uma ação apenas contrária à globalização corporativa neoliberal, outros programas planetários, que atendam apenas aos interesses de desenvolvimento capitalista, poderão ser prescritos, como alude Pierre Bourdieu.

A crise estrutural do capitalismo acentuada nos anos 90 tem como referência a crise do trabalho. A história do capitalismo industrial contém fases contraditórias de automação de processos produtivos, desemprego, conquistas sociais, assim como, contrariamente, construção de novas dimensões técnico-sociais de criação de emprego. Com a invenção do "chip" nos anos 50, uma nova revolução técnica foi iniciada, desencadeando um insidioso e gigantesco fenômeno de "numerização" dos processos produtivos, serviços, lazer, tornando-se hoje um paradigma planetário que se impõe até mesmo como um instrumento nas lutas populares. Nesse contexto de revoluções técnicas, a reestruturação produtiva se utilizou dessa nova qualidade – a autonomia e flexibilidade operacional das técnicas – determinando uma conseqüente flexibilização do trabalho concomitante a um incremento espetacular da redução de postos de trabalho. Nos países desenvolvidos, o processo de automação, associado à reestruturação produtiva, resultou no desemprego estrutural em massa, fundado essencialmente no desenvolvimento técnico e na ausência de políticas protetoras do trabalho. Chegou-se mesmo a falar no fim do trabalho (Rifkin, 1996), ou na sua metamorfose profunda, gerando a perda da sua centralidade (Gorz, 1988). A profundidade dessa crise trouxe para o centro da questão social o conceito de exclusão.

A análise dessas populações socialmente marginalizadas remete aos conceitos clássicos de "vagabundo" – como na era feudal (Castel, 1995), lumpemproletário em Marx, anomia (Durkheim, 1930). Na Europa a "exclusão" tornou-se um fenômeno social maior, associado ao desemprego de longa duração. Para Robert Castel (1995) o conceito de exclusão social é insuficiente para expressar a gravidade e a profundidade do fenômeno em questão. Este autor propõe a noção de desfiliação social em substituição ao termo "exclusão", pois, para ele, os "excluídos" se tornam inválidos para a reinclusão social, na medida em que a sociedade impõe uma dinâmica de movimento e transformação rápida, que faz romper as ligações sociais incidentes no desencadeamento da exclusão. Desse modo "os excluídos" se tornam rejeitados pela exigência do trabalho com novas técnicas, eliminação de postos de trabalho, redução do suporte social pela crise do Estado de Bem-Estar Social, enfraquecimento dos mecanismos de solidariedade, lutas sindicais e conquistas corporativas, levando-os a riscos de doenças e dependências químicas associadas a precárias condições de vida. Neste sentido, o "excluído" não pode ser re-inserido em uma relação mecânica e estática com a sociedade que o rejeitou, pois não há mais aquela condição social originária da sua exclusão. São os "novos pobres" dos países desenvolvidos, resultantes da crise estrutural do capitalismo em associação com o programa neoliberal de perda de direitos sociais de proteção. Para a América Latina, as populações "excluídas" estão sob condições sociais de miséria extrema, cuja adição de fenômenos estruturais como o desemprego tecnológico, ainda inicial, e o desemprego prescrito pelo programa neoliberal, agrava uma realidade cruel, jamais vista na nossa história. Jean Ramonet (2001) propõe um conceito que lhe parece mais próximo dessa realidade: "guerra social". Muitos "excluídos" estão, na verdade, inseridos em uma modalidade de guerra diferente da convencional entre países, ou de uma guerra civil tradicional. Ramonet comparou os dados de mortes por violência do Rio de Janeiro com todas as outras guerras convencionais da época, incluindo a guerra dos Bálcãs, os conflitos do Oriente Médio, as guerras africanas, e concluiu que os índices do Rio eram mais expressivos que todas as citadas guerras juntas. A análise demográfica do Brasil também expressa uma sobremortalidade de jovens, em faixa etária típica de condições demográficas de países em guerra.

Aproximando-se mais desse fenômeno, estudos antropológicos qualitativos têm expressado a gravidade da situação de violência e fome nas periferias das grandes cidades, como mostra Freitas (2003). Um número expressivo da população favelada do Brasil e da América Latina encontra-se sob o controle para-estatal do narcotráfico. Podemos qualificar a situação, resumidamente, como a ausência de Estado ou quando este presta serviços o faz de maneira extremamente precária. Bandos de narcotraficantes subjugam populações de regiões inteiras de favelas, redefinindo suas fronteiras. Mais ainda, controla a circulação de cidadãos, muitas vezes estabelecendo formas de "passaportes" para liberar acesso a pessoas estranhas às regiões governadas; organizam milícias e verdadeiros exércitos de controle territorial sob a égide do terror e da punição mortal a qualquer tipo de resistência ao narcodomínio. Trata-se, pois, de uma organização urbana de economia interna baseada na distribuição de drogas como modalidades de "trabalho" e, absolutamente, fora do controle do Estado; uma organização em que a circulação da população é regulada com toques de recolhimento e restrições de espaços públicos; manutenção de normas e condutas criminosas de atividades diversas, lazer, produção e comércio, porém com regras que se assemelham a um sistema jurídico paralelo com julgamentos sumários com requintes de crueldades. É esta a construção de uma narcocultura, com seus heróis, festejos e ritos que impedem a ação do Estado com a vigilância sanitária, pesquisadores do IBGE e das universidades, inspeções de toda ordem – fazendária, do trabalho, e outras; criam processos de formação de narcoagentes, controlam as religiões e sobretudo eliminam ou submetem ao seu controle absoluto as diversas organizações e movimentos sociais de luta de defesa do interesse dessas populações narcossubjugadas. Ainda considerando que estas populações são também vítimas da "exclusão" tecnológica, do analfabetismo informacional, dificilmente terão conhecimento e acesso às redes numéricas de lutas dos movimentos sociais altermundialistas. Finalmente, a dimensão dessa questão deixou de ser localizada e se generalizou a ponto de o narcotráfico governar milhões de favelados, além de estar infiltrado nos três poderes formais, tratando-se de um fenômeno dos grandes centros urbanos da América Latina (exceção de Cuba), muitas vezes dominando países que se tornaram verdadeiros narcopaíses.

Dessa forma, conceitos como lumpemproletário, anomia social ou mesmo desfiliação são insuficientes para compreender esta realidade. Não há anomia na desordem social das favelas. Ocorre uma emergência de nova ordem social, de natureza hedionda, advinda do narcotráfico, delimitando narcorregiões, em perspectivas de constituição de narconações e narcopovos. Essa nova ordem se expressa em guerras sociais e representa um fenômeno continental, que resulta dos mesmos processos de crise do capitalismo e da aplicação do programa neoliberal.

A globalização neoliberal expressa uma realidade multifacetária da "exclusão" social que resulta em modalidades de guerras: as imperialistas e unipolares, a exemplo da guerra dos EUA contra o Iraque; as guerras entre os povos africanos, excluídos que são das políticas sociais; e a guerra social, típica no Brasil e em países semelhantes que aderiram radicalmente ao programa neoliberal. Nesse sentido, a discussão do conceito de globalização e a agenda de lutas dos movimentos altermundialistas podem contemplar esta e outras dimensões do seu espectro da atuação. Quem fala pelos narco-oprimidos? Pelos exércitos de crianças obrigadas a guerrear na África? Os movimentos antiglobalização ou altermundialistas e seus instrumentos técnicos em redes planetárias podem considerar a ampliação do espectro de ação, incluir tais "hiperexcluídos" de todo o planeta, globalizando sua agenda de lutas. Trata-se da construção de caminhos que superem a generalização das guerras sociais, civis e imperialistas, a emergência de narcorregiões e narconações e a consolidação de um futuro simultâneo da humanidade em condições que assegurem o próprio futuro do planeta.

De fato, este texto proporciona ótimas reflexões ao processo de globalização e a emergência de lutas sociais de âmbito planetário. As descrições que faço objetivam apenas reunir material para contribuir com este debate.

Referências bibliográficas

Bourdieu P 1998. L'essence du néolibéralisme. In Le Monde Diplomatique mars :3.

Castel R 1995. Les méthamorphoses de la question sociale: une chronique du salariat.Edit.Fayard, Paris.

Durkheim E (1930) 1994. De la division du travail social. (3a ed.). Presse Universitaire de France/Quadrige, Paris.

Freitas CE 2001. Alterações na regulamentação das relações de trabalho no governo Fernando Henrique. Revista Precarização e Leis do Trabalho nos anos FHC. Secretaria Política Sindical, CUT.

Freitas M 2003. Agonia da fome. Fiocruz-EDUFBA, Rio de Janeiro-Salvador.

Gorz A 1988. Métamorphose du travail. Quête du sens: critique de la raison économique. Editions Galilée, Paris.

Ramonet I 2001. Guerre sociale. In Le Monde Diplomatique novembre :1.

Rifkin J. (1995) 1996. La fin du travail. Ed. La Découverte, Paris.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2004
  • Data do Fascículo
    2003
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br