Resumo
Resolver problemas na atenção básica do sistema de saúde e tomar decisões na gestão diária de centros de saúde devem ultrapassar o conhecimento do senso comum e se reforçar por evidências buscadas no conhecimento científico com novo olhar para fatos e fenômenos do dia-a-dia. O artigo examina uma experiência de cooperação triangular em saúde entre Angola, Brasil e Japão, em Luanda, Angola, 2011-2014, o Projeto para o Fortalecimento do Sistema de Saúde por Meio do Desenvolvimento de Recursos Humanos no Hospital Josina Machel e em outros Serviços de Saúde e Revitalização da Atenção Primária de Saúde em Angola (ProForsa), com a participação da Fiocruz na execução da componente de atenção primária. Trata do papel inovador da cooperação técnica como instrumento de ação política. A adoção de um programa de formação com múltiplas possibilidades permitiu uma articulação técnico-política na abordagem da “cooperação estruturante em saúde”. O artigo analisa como intervenções da cooperação internacional no campo da gestão em saúde podem gerar evidências científicas que, relacionadas ao contexto político local, podem transformar locus organizacionais como centros de saúde, seus aspectos gerenciais clínicos e sua estrutura física.
Cooperação estruturante; Cooperação triangular; Gestão da atenção primaria
Abstract
The need to resolve immediate problems in basic healthcare systems and the decisions that must be made in the daily management of healthcare centers must reach beyond awareness of common sense, and be reinforced by the evidence sought in scientific knowledge that will provide a new look at the facts and phenomena that happen on a daily basis. This article examines an experience of triangular cooperation in health between Angola, Brazil and Japan, which took place in Luanda, Angola between 2011 and 2014. The “Project to Strengthen the Healthcare Through the Development of Human Resources at the Josina Hospital and in other Healthcare Services, and to Revitalize Primary Healthcare in Angola (ProForsa)”, with the involvement of Fiocruz as the party executing the primary healthcare component. This is an innovative role in technical cooperation as a tool of political action. A training program with multiple possibilities enabled technical-political partnerships in an approach for “structuring cooperation in health”. The article analyzes how interventions in international cooperation in health management may create scientific evidence that, together with the local political context, can transform organizational elements such as healthcare centers, their clinical management and physical infrastructure.
Structuring cooperation; Triangular cooperation; Primary Healthcare Management
Resumen
La cooperación internacional en gestión de salud entre los países en desarrollo se encuadra en el ámbito de la cooperación Sur-Sur. Resolver problemas en la atención primaria y tomar decisiones en la gestión diaria de los centros de salud deben ultrapasar el conocimiento del sentido común y reforzarse mediante evidencias encontradas en el conocimiento científico con una nueva mirada hacia hechos y fenómenos del día a día. El artículo examina una experiencia de cooperación triangular en salud entre Angola, Brasil y Japón, en Luanda, Angola, 2011-2014: el “Proyecto de Fortalecimiento del Sistema de Salud por medio del Desarrollo de Recursos Humanos del Hospital Josina Machel y en otros Servicios de Salud y la Revitalización de la Atención Primaria de Salud en Angola (ProForsa)”,con la participación de la Fiocruz en la ejecución del componente de atención primaria. La adopción de un programa de formación con múltiples posibilidades permitió una articulación técnica y política para hacer frente a la “cooperación estructurante en salud”. El artículo examina cómo las intervenciones de la cooperación internacional en gestión en salud pueden generar evidencia científica y transformar organizaciones como centros de salud, en sus aspectos clínicos, de gestión y de estructura física.
Cooperación estructurante; Cooperación triangular; Gestión en atención primaria
Introdução
A cooperação técnica internacional tem sido considerada um contributo importante para o desenvolvimento social de países de renda média e baixa e um componente importante da política externa brasileira, particularmente na relação com países da América Latina, Caribe e África, priorizando naquele continente os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Desde a Reunião de Buenos Aires, em 1978, patrocinada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), para revisar a cooperação técnica entre países em desenvolvimento, o Brasil tem ampliado sua atuação na cooperação sul-sul. A cooperação sul-sul, na visão da diplomacia brasileira, não se propõe reproduzir os mecanismos da tradicional assistência técnica norte-sul, [mas reside em buscar] esforços conjuntos para a resolução de problemas comuns por parte dos países envolvidos na cooperação e nas questões em que o Brasil já tenha demonstrado resultados positivos na sua condução1.
A cooperação sul-sul tem o potencial de promover o encontro de diferentes instituições que, por sua vez, tenham de operar processos concretos de mudança em seus territórios. Neste campo, os enfoques da cooperação internacional na área da saúde têm variado, acompanhando diversos conceitos e metodologias para alcançar o desenvolvimento2. Os principais projetos de cooperação brasileira, seja na África ou na América do Sul, são voltados para treinamento de recursos humanos e construção de capacidades para o fortalecimento ou criação das instituições adequadas à revisão e reconstrução dos sistemas de saúde (“instituições estruturantes”). Para o conceito de instituição estruturante ver Almeida et al.2e Buss et al.3. O campo que permeia os projetos de cooperação internacional, principalmente quando se trata de serviços básicos de saúde, deve refletir sobre critérios que caracterizam a vulnerabilidade nesse contexto: fragilidade na capacidade nacional de realizar pesquisas; nível de pobreza das pessoas ou populações; acesso aos serviços de saúde; grau de instrução da população; condições associadas a gênero, etnia e local de domicílio4. A necessidade de resolver problemas imediatos no que concerne à atenção básica do sistema de saúde e, consequentemente, à tomada de decisões na gestão diária de centros de saúde devem ultrapassar o conhecimento do senso comum e se reforçar por evidências buscadas no conhecimento científico que permitam um novo olhar para fatos e fenômenos que acontecem no dia-a-dia.
Neste marco, o Brasil participou, de 2011 a 2014, de um processo de cooperação triangular com Angola e Japão (ProForsa), no qual a Fiocruz executa a componente de atenção primária do projeto, com base na experiência desenvolvida no Centro de Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP) e na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), ambos Institutos integrantes da Fundação. Projeto para Fortalecimento do Sistema de Saúde por Meio do Desenvolvimento de Recursos Humanos no Hospital Josina Machel e em outros Serviços de Saúde e Revitalização da Atenção Primária de Saúde em Angola (ProForsa).
Decidiu-se por um Programa de Formação com múltiplas dimensões: 1) que atuasse como promotor e instrumento catalisador de competências e capacidades; 2) que integrasse e coordenasse a participação de instituições e aproximasse gestores, profissionais e população (ação intersetorial), a partir, 3) do reconhecimento de que saúde e doença são, simultaneamente, fenômenos biológicos e sociais, neste caso porque decorrentes de determinantes sociais, políticos e ambientais, que coexistem no mesmo território (conceito ampliado de saúde); e 4) que ações de proteção e promoção à saúde deveriam associar-se àquelas de assistência aos doentes (abordagem integral da saúde). O programa deveria ser aplicável em Angola, passível de replicação e contribuir para a reorganização da atenção primaria na capital (Luanda), instituindo mudanças no modelo assistencial. O ProForsa conjugou, portanto, políticas, planos e programas do âmbito nacional de governança com propostas e orientações técnicas já experimentadas no plano internacional, ou seja, no Brasil.
Este artigo trata do papel inovador da cooperação técnica como instrumento de ação política, a partir de uma articulação técnico-política baseado na cooperação estruturante em saúde e analisa como intervenções da cooperação internacional no campo da gestão em saúde podem gerar evidências científicas que, ao se relacionar com o contexto político institucional local, podem transformar um determinado locus organizacional, ou seja, a organização dos centros de saúde não só no aspecto gerencial clínico, como também da própria estrutura física.
Projeto solidário
O ProForsa foi proposto após experiências de cooperação desenvolvidas pelo governo de Angola com pouco impacto na resposta dos serviços de saúde junto à população. O ProForsa foi coordenado pelo Ministério da Saúde de Angola (MINSA), Agência Brasileira de Cooperação, do Ministério de Relações Exteriores do Brasil (ABC/MRE) e a Japan International Cooperation Agency (Agência de Cooperação do Japão – JICA), com execução da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), responsável pelo componente da Atenção Primária e da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), responsável pelo componente da Atenção Terciária.
Inicialmente, Angola solicitou ao governo japonês uma Cooperação Financeira Não Reembolsável para restauração física das instalações do Hospital Josina Machel, hospital de referência nacional, e da Maternidade Lucrecia Paim. Ao final desta etapa de reabilitação foi detectada a necessidade de capacitar profissionais para melhorar a qualidade dos serviços prestados naquelas instituições. Em 2007, uma primeira iniciativa de cooperação triangular entre Angola, Brasil e Japão, desenvolve-se com a execução pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), que treinou, durante três anos, mais de 750 profissionais de saúde nas áreas de administração hospitalar, diagnóstico por imagem, enfermagem e laboratório clínico. Ao final desse período, em 2010, com a reabilitação física das unidades e um número razoável de pessoal treinado, foram identificadas novas necessidades, pois houve um aumento da demanda de pacientes, tanto para o hospital central, quanto para a maternidade, sobrecarregando seus serviços.
Nasce, então, a proposta do ProForsa com objetivo de ampliar a qualificação de profissionais da atenção terciária, assim como estender a qualificação aos profissionais de unidades de atenção primária de saúde de Luanda, tendo como foco os componentes organizacional e gerencial. No que tange à atenção primária, a Fiocruz propôs desde o início a conjugação de políticas, planos e programas do âmbito nacional de governança com propostas e orientações oriundas da cooperação técnica para a consolidação de um projeto de revitalização do Sistema de Saúde de Angola, com forte componente integrador ao fortalecer a Atenção Primária em Saúde (APS). O objetivo era promover a correspondência entre propostas de um novo modelo de Atenção à Saúde com programas de formação, procurando reorganizar, a partir de uma dinâmica crítica, os processos de trabalho dos centros de saúde e a relação entre essas unidades, a população e o setor terciário (hospitalar).
Formulação/negociação participativa
A atuação da Fiocruz na cooperação internacional em saúde desenvolve-se em consonância com a agenda de cooperação internacional horizontal da Agência Brasileira de Cooperação do Ministério das Relações Exteriores (ABC/MRE), a partir do conceito da cooperação estruturante em saúde2, que advoga o fortalecimento institucional dos sistemas de saúde dos países parceiros. Desde o início das negociações do ProForsa, este conceito e propósito modelaram a responsabilidade compartilhada entre todos os atores, apoiados no enquadramento do projeto ao Plano Nacional de Saúde de Angola (PNS)5 e às Linhas de Orientação para os Municípios, elaborado pela Direção Provincial de Saúde de Luanda (DPSL)6.
Diversos autores têm tratado de discutir a cooperação triangular com a participação brasileira. Para Pino7, países emergentes como o Brasil têm na cooperação triangular (CTR) um instrumento de apoio à cooperação sul-sul (CSS), aumentando sua escala de projetos e explorando complementaridades com outros países e organizações internacionais. Já Abdenur8 ressalta que a cooperação triangular emerge como uma forma intermediária entre a cooperação bilateral e a multilateral, tendo muitas vezes assumido uma forma de rede de cooperação entre diferentes parceiros. Pessoa et al.9 relatam a experiência da Fiocruz num projeto de cooperação triangular no Haiti, cujo propósito foi aumentar a eficiência na utilização dos recursos disponíveis, incrementando a eficácia na consecução dos objetivos do projeto. Todos esses elementos podem ser também encontrados em se tratando do ProForsa; entretanto, é importante destacar alguns outros aspectos relacionados aos contextos político e institucional local e que, uma vez assumidos pelas partes, atuaram favoravelmente na proposta de formação desenvolvida pela equipe da Fiocruz:
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A solidariedade, reconhecendo o grande esforço de reestruturação nacional empreendido em Angola após os efeitos produzidos por duas guerras (de independência e guerra civil);
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A cooperação internacional estruturante, enquanto prática de atuação, desenvolvida pela Fiocruz, que reforça os sistemas nacionais de saúde e valoriza as capacidades locais dos parceiros;
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A necessidade de capacitação da força de trabalho do setor saúde, pois em Angola muitos profissionais de saúde ainda não tiveram oportunidade de se aperfeiçoar;
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A necessidade explícita de reestruturação da Atenção Primária, porta de entrada do sistema de saúde;
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A possibilidade de desenvolver uma proposta metodológica que utilize o diálogo e a valorização do conhecimento acumulado pelos atores da prática para a construção de um novo conhecimento;
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A possibilidade de agregar diferentes conhecimentos na organização da atenção à saúde frente às novas necessidades, dando sustentação à formulação de políticas e apoio às decisões sobre quais mudanças devem ser promovidas.
Ao se inserir no modelo da cooperação internacional horizontal, fundamentado no fortalecimento da capacidade endógena dos parceiros, o ProForsa procura ser coerente com os ditames da noção de solidariedade permeado pela discussão de alteridade em suas possibilidades de ação: conflito, assimilação, tolerância e compreensão10. Ressalta, portanto, a opção pela última componente da alteridade, ou seja, a solidariedade que procura reconhecer e compreender o outro em suas diferentes dimensões e necessidades.
A cooperação estruturante em saúde procura combinar intervenções concretas (para) a construção de capacidades locais e a geração de conhecimento, promovendo o diálogo entre atores, de forma a possibilitar que eles assumam o protagonismo na liderança dos processos no setor saúde e promovam a formulação autônoma de uma agenda para o desenvolvimento do setor2. Para respaldar possibilidades de reestruturação do sistema de saúde de Angola o ProForsa desenvolveu um aspecto inovador, defendido pela equipe Fiocruz: a criação de dois comitês, compostos por representações dos três países parceiros, para garantir a sustentabilidade política do projeto e sua condução organizada e compartilhada:
- Comitê de Coordenação Conjunta, designado para: aprovar o plano de trabalho anual do Projeto; acompanhar o progresso anual do plano de trabalho; acompanhar e trocar opiniões para resolver problemas que pudessem surgir durante a implantação do Projeto e discutir qualquer assunto pertinente para a eficiente implantação do mesmo;
- Comitê de Implementação, composto por atores institucionais executores do Projeto, acrescido de atores locais estratégicos e com capacidade gerencial para assegurar a incorporação das propostas, designado para: elaborar o plano de trabalho anual do Projeto; submeter o mesmo ao Comitê de Coordenação Conjunto; coordenar a implementação do plano de trabalho; monitorar e avaliar as atividades realizadas pelos trabalhadores qualificados; identificar e propor soluções aos problemas que pudessem surgir durante a implementação do Projeto e discutir qualquer assunto pertinente para a sua eficiente implementação.
Os dois Comitês foram definidos a partir de consenso entre os países envolvidos e atuaram durante toda a implementação do Projeto, colaborando para o alinhamento do mesmo com aspectos singulares da política local, assim como os anseios e as expectativas dos parceiros, ajustados aos propósitos do projeto. Nesse interim, os Comitês aprovaram e acompanharam a execução orçamentária e o desenvolvimento de todas as etapas subsequentes do projeto.
Implementação: inovação metodológica na cooperação
Nem todos os centros de saúde em Luanda têm a mesma missão, embora desenvolvam os mesmos programas orientados na mesma política nacional e, portanto, apresentam singularidades que dependem de diferentes variáveis. A partir dessa realidade, deparou-se com a preocupação de não se apresentar um modelo único de capacitação, e sim compartilhar idas e vindas de um processo balizado por dois princípios: a de que a participação coletiva é necessária para a transformação e de que o modelo de assistência à saúde deve ser o que atenda as reais necessidades da comunidade11. Desde o início, a equipe da Fiocruz, a partir de uma experiência de capacitação/aprendizado organizacional em unidades de saúde no Brasil, optou por contribuir para o desenvolvimento de processos de capacitação no trabalho que buscasse a efetividade das respostas dos centros de saúde, em Luanda, junto à comunidade.
A partir das demandas angolanas, a equipe Fiocruz decidiu por um Programa de Formação em Gestão da Atenção Primária em Saúde, que contemplasse o desenvolvimento de diferentes temas como parte de um eixo central de formação, e não apenas um Curso. Essa decisão foi tomada em função das múltiplas possibilidades que essa forma de organizar processos formativos permite, sendo mais eficiente em seus objetivos e com resultados mais efetivos. Os resultados esperados em uma formação com essas características não só possibilitam a qualificação profissional, mas buscam integrar e fazer interagir os diferentes atores envolvidos, responsáveis por articular formação e revitalização dos serviços, visando o desenvolvimento institucional.
Esta abordagem metodológica insere-se no campo do conhecimento da Saúde Coletiva, que de acordo com Paim12, envolve um conjunto de práticas técnicas, ideológicas, políticas e econômicas desenvolvidas no âmbito acadêmico, nas organizações de saúde e em instituições de pesquisa vinculadas a diferentes correntes de pensamento e resultantes de projetos de reforma em saúde. Segundo o autor, implica no aprofundamento das seguintes dimensões: o estado de saúde da população e tendências gerais do ponto de vista epidemiológico, demográfico, socioeconômico e cultural; os serviços de saúde, enquanto instituições de diferentes níveis de complexidade e com distintos processo de trabalho, a formulação e implementação de políticas de saúde e a avaliação de planos, programas e tecnologias; e o saber sobre a saúde, incluindo investigações históricas, sociológicas e antropológicas sobre a produção de conhecimentos e sobre as relações entre o saber “científico” e as concepções e práticas populares de saúde.
Com esse referencial, nada mais coerente que, no plano da formulação e execução deste programa, a escolha da equipe executora recaísse sobre a construção de um modelo formativo e pedagógico específico, pautado na avaliação prévia das necessidades locais, na análise documental baseada nos documentos fornecidos oficialmente, o qual possibilitou conhecer as políticas e as diretrizes do sistema de saúde de Angola, o desenvolvimento do plano governamental angolano para a saúde, os indicadores mais críticos e proceder a um diagnóstico preliminar das necessidades, como primeira etapa do projeto.
Para dar início à execução do programa foi necessário estabelecer critérios para a seleção das quatro unidades pilotos – Centro de Saúde Referência (CS-R) de Samba, Cassequel, Terra Nova e Ilha – integrantes do projeto. Esta etapa foi cumprida com a participação de representante da equipe Fiocruz junto com as autoridades angolanas. Para a identificação dos alunos foram elaborados critérios de seleção fundamentados na ideia de fortalecer a capacidade de aprendizagem organizacional, constituindo um grupo de profissionais sensibilizados, com conhecimento técnico e com governabilidade para a implantação de mudanças no processo de trabalho.
Em sequência ao diagnóstico inicial, ocorreu, em Luanda, o Seminário O contexto político institucional do ProForsa: reconhecendo atores, repactuando responsabilidades de ações, proposto e coordenado pela equipe Fiocruz, que, desde o início, acreditou que o programa a ser concebido deveria considerar os alunos como atores político-sociais e não só como técnicos em saúde. Para tanto, foi necessário que a equipe tivesse disposição para romper com a dinâmica tradicional da relação professor-aluno e ir além do respeito e da solidariedade para poder reconhecer e lidar com problemas concretos do cotidiano dos atores angolanos, muitas vezes fora do contexto de vida dos técnicos cooperantes.
Aprendendo junto na cooperação solidária
A estratégia pedagógica desenvolvida pelo projeto procurou, portanto, construir uma aproximação entre gestores, profissionais e população, de maneira a permitir o reconhecimento de que saúde e doença é um processo biológico e político-social que coexiste no território e que ações de proteção e promoção da saúde devem ser somadas àquelas que atualmente se concentram na assistência aos doentes. Esse primeiro passo do programa de formação foi um esforço para conjugar desenvolvimento de capacidade técnica em saúde com eficiência e eficácia dos serviços. Esse entendimento serviria como base para um passo futuro que abordasse a coerência e a otimização do orçamento destinado ao setor.
A opção pedagógica foi pelo método da problematização ou “pedagogia crítico-participativa”13. Este método trabalha a construção de conhecimentos a partir da vivência de experiências, apoiada nos processos de aprendizagem por descoberta, em oposição aos de recepção14. Trata-se de uma aprendizagem que ocorre por meio de ação determinada: o que é aprendido decorre do nível crítico de conhecimento alcançado pelo processo de compreensão, reflexão e crítica e não da “transferência” pura e simples de conceitos.
Para colocar em prática essas teorias foram utilizadas estratégias de ensino-aprendizagem capazes de despertar interesse, reflexão, dúvidas e, sobretudo, novos saberes, tais como textos técnicos escritos ou adaptados para este programa de capacitação, recursos audiovisuais, aulas dialogadas, visitas técnicas, estudos de casos, discussões em grupos, mapas falados, mapas conceituais, dramatizações, Internet, geoprocessamento de informações, incluindo nestes itens elencados a organização do espaço-território utilizado como “sala de aula”.
Em relação à estrutura do programa, optou-se pelo formato modular, que permitia desenvolver momentos presenciais com outros à distância, articulados por atividades programadas nos períodos de dispersão. Em sua arquitetura foi possível incorporar, em cada módulo, outros profissionais que exerciam atividades regulares afins com o conteúdo planejado. A organização, num total de 10 módulos, foi aplicada durante os três anos de desenvolvimento do projeto. Para cada módulo foram estabelecidas Unidades de Aprendizagem, de forma a garantir o encadeamento lógico, a sistematização das apresentações e as discussões do conteúdo programado.
Nesse sentido, a capacitação também teve que repensar seus resultados. Se no âmbito geral da avaliação de programas os produtos são definidos como efeitos/resultados diretos das atividades desenvolvidas relacionados a um determinado objetivo, para o ProForsa o que se denomina produtos está intrinsecamente relacionado ao processo de formação dos alunos e às oportunidades criadas – a partir da crítica, da discussão e do consenso – para intervir positivamente na realidade dos quatro CS-R que integraram essa cooperação triangular, no âmbito da Atenção Primária.
Os três primeiros módulos do Programa de Formação focaram na “aprendizagem–ação” de Metodologia de Análise de Contexto e Planejamento Estratégico Situacional, quando foram construídos os seguintes produtos: 1) diagnóstico preliminar do território dos centros de saúde; 2) diagnóstico preliminar da infraestrutura dos centros de saúde; 3) dois planos de ação, baseados em problemas críticos (os dois problemas críticos escolhidos foram: Deficiência e incapacidade do CS-R, gerando desorganização no atendimento à grande demanda de utentes e Baixa eficiência na coleta, arquivamento e análise dos dados), estruturantes e com grande governabilidade por parte dos atores vinculados à capacitação. Assim, a discussão em torno dos planos de ação acabou por definir os temas e conteúdos que foram contemplados nos demais módulos do Programa de Formação.
Lições aprendidas
O mérito dos produtos construídos pelo ProForsa reside na possibilidade real de aplicação em todo o território angolano e na capacidade de contribuir não só para a reorganização do nível primário da atenção à saúde, como também de instituir mudanças no modelo assistencial, aproximando-o dos princípios e características preconizadas para a Atenção Primária em Saúde.
Cabe, ainda, sinalizar as inúmeras sugestões formuladas pelos próprios alunos para as reformas estruturais nos quatro centros de saúde, propostas pela administração municipal setorial durante a capacitação. Após os diagnósticos participativos desenvolvidos, os profissionais locais capacitados puderam intervir positivamente nas obras de infraestrutura que já vinham sendo iniciadas, adequando os novos espaços a fluxos de pacientes, setorização do atendimento, comunicação visual e mobiliário. As atividades de campo da capacitação possibilitaram realizar diagnósticos da situação de saúde e das condições de vida dos territórios vinculados aos centros de saúde, tendo o cuidado e a preocupação de adequar, tanto quanto possível, as instalações originais que estavam sucateadas e projetar mudanças favorecedoras dos processos de trabalho dos profissionais e do atendimento aos usuários.
O desenvolvimento de um processo educativo para a construção coletiva de uma proposta de intervenção nos serviços de saúde implica em várias etapas que, muitas vezes, não se distinguem umas das outras. Pelo contrário, combinam-se e reforçam-se, pois são, em certa medida, a expressão do esforço de conjugar a tarefa acadêmica de formação (identificação e diálogo com a teoria que já foi produzida) com a de antever a sua aplicabilidade no mundo real e, ainda, de compartilhar os achados e o modo de sua compreensão pelos outros atores, para estabelecer um movimento contínuo que consulta, envolve e compromete gestores, dos três níveis de poder (local, municipal e nacional) e instituições.
Essa articulação técnico-política desenvolvida no ProForsa comprova um ganho a ser capitalizado em outras futuras cooperações internacionais do Brasil no campo dos cuidados primários em saúde, visando diminuir a desigualdade na atenção em saúde para as populações mais pobres. Ao mesmo tempo, esta experiência ajudou a entender que a implantação de uma intervenção (revitalização da atenção primária) estará sempre relacionada ao contexto político institucional local e à sua integração neste contexto submetida a um determinado locus organizacional que, na maior parte das vezes, apresenta problemas e dificuldades inerentes à situação que se deseja superar. Logo, não seria sensato ignorá-los, no processo de formulação e implementação das mudanças sugeridas, mas sempre confrontá-los para compreendê-los em suas nuances e superá-los de forma coletiva e criativa.
Conclusões
As diversas instâncias do ProForsa (angolana, brasileira e japonesa) reforçaram a importância de valorizar, não só o desenvolvimento acadêmico, como também a viabilidade política deste processo. Arah et al.15 já apregoavam a importância de bons indicadores e de comissões técnicas de monitoramento para a melhoria da atenção em saúde; entretanto, a estratégia delineada no Proforsa – com a instalação dos Comitês de Coordenação Conjunta e de Implementação – foi uma inovação em projetos de cooperação internacional voltados para a atenção em saúde, pois permitiu efetivar o diálogo e a pactuação sistemática que asseguraram modificações necessárias ao projeto no decorrer de seu desenvolvimento e viabilizar o aprendizado institucional entre os países.
O intercâmbio entre países no campo da saúde e a aplicabilidade de programas de cooperação internacionais a realidades nacionais específicas geram ações que incluem elementos considerados ‘diplomáticos’ em essência. No Brasil, essa parceria tem sido expressa pelo esforço da sua diplomacia política no apoio aos interesses do país no campo da saúde global e, mais uma vez, isso ficou evidente no apoio da ABC/MRE à Fiocruz, como executora, e ao governo de Angola, como beneficiário final. De outro lado, foi uma clara expressão da chamada “diplomacia da saúde e da ciência e tecnologia”, por meio da “cooperação estruturante em saúde”, base conceitual das ações de cooperação internacional em saúde da Fiocruz, desde 2009, com o surgimento do seu Centro de Relações Internacionais em saúde (CRIS/Fiocruz).
Outro ponto relevante no desenvolvimento de uma abordagem tal como a usada pela equipe da Fiocruz no ProForsa foi, por um lado, sua participação em todo o processo de desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, que permitiu ao país alcançar sucesso na busca por uma melhor atenção em saúde no país e, por outro, sua experiência no Projeto GERUS (Curso de Gerenciamento de Unidades Básicas de Saúde do Ministério da Saúde, com apoio da OPAS), aplicado de forma ampla em vários municípios do Brasil16. Os resultados positivos desse esforço nacional tiveram ampla visibilidade e a experiência de construção de parcerias para sua implantação foi muito importante para o entrosamento entre os membros da atividade triangular de cooperação.
A discussão do aprimoramento da gestão básica de saúde é tema relevante no campo da saúde pública e sua abordagem no contexto brasileiro tem levado em conta a determinação social da saúde ao tratar das relações entre saúde e sociedade17. Essa discussão constituiu, na década de 1970, num dos principais pilares teóricos do pensamento crítico que fundou o campo da Saúde Coletiva no Brasil, um dos fundamentos teóricos que ajudaram a construir o programa de formação utilizado pela equipe da Fiocruz no Proforsa.
Acreditamos que o sucesso do projeto Proforsa se deve à incorporação no seu escopo do que, segundo Paim e Nunes18, se compreende como a incorporação, tanto na formação quanto na cooperação internacional em saúde, da percepção de que há uma constante evolução e crescente complexidade das práticas que organizam o trabalho nessa área. Portanto, é necessário incorporar, o tempo todo, novas tecnologias e estabelecer padrões de trabalho nesse campo que possam ser mutáveis, mas que precisam ser incorporados aos sistemas de saúde, no sentido de qualificar seu quadro de recursos humanos para reforço do seu desenvolvimento gerencial.
O caso estudado permite também identificar o que Esteves et al.19 chamam de tentativa de extensão internacional de experiências próprias da saúde pública brasileira que carrega consigo escolhas conceituais (participação e acesso universal entre outros) e políticas, que vinculam saúde pública e desenvolvimento de forma abrangente. Deve-se, portanto, perceber as contribuições do projeto Proforsa em “mão dupla” entre Brasil e Angola, com a cooperação valiosa do Japão, pois trata-se de um aprendizado de extrema importância, para a melhoria da atenção primaria de países cujos sistemas de saúde precisam estar prontos para dar uma resposta ao adoecimento das pessoas, mas também para realizar ações de promoção da saúde e prevenção, como dimensões da saúde coletiva.
Foi possível nessa cooperação triangular experimentar o ‘espírito para aprender’ engendrado na adversidade que, por momentos, acontece numa relação que contempla hábitos e culturas distintas. Tal qual a existência humana, sempre a mudar e a se renovar, essa construção cognitiva, material e afetiva possibilitada pelo ProForsa, que utilizou uma metodologia transformadora, necessitará sempre realizar ajustes e adequações, de modo a atender as novas e sucessivas mudanças provocadas pelo movimento e pela dinâmica dos territórios. Esperamos que o conjunto dos profissionais que participaram do Projeto ProForsa esteja definitivamente atento, mobilizado e comprometido para acionar e fazer uso de novos saberes e modelos explicativos para exercitar melhores práticas em seus locais de trabalho.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jul 2017
Histórico
-
Recebido
10 Out 2016 -
Aceito
28 Nov 2016 -
Revisado
19 Mar 2017