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Compromisso com a mudança

A preocupação com a forma de nascer no Brasil não é recente. Desde a década de 90, o Ministério da Saúde vem buscando garantir boas práticas obstétricas e neonatais e a ambiência adequada para um momento que deve ser de celebração e prazer. A Rede Cegonha (lançada em 2011 como uma das cinco redes prioritárias nas políticas de saúde para o país) reafirmou esse compromisso e enfatizou a urgência na revisão dos processos de cuidado em maternidades brasileiras.

Entretanto, numa perspectiva nacional, a análise de indicadores perinatais e das experiências vividas por mulheres brasileiras identifica a manutenção de um cenário desafiador. Foi sobre esse cenário que o grupo de pesquisadores liderados pela Prof a Maria do Carmo Leal se debruçou com a pesquisa Nascer no Brasil . Gestores, pesquisadores, profissionais de saúde e movimentos sociais passam a ter em mãos um estudo inédito, de enorme vulto e que documenta uma prática assistencial inexplicável na perspectiva clínica e fisiológica dos processos de parturição.

Em minha contribuição para esse debate, compartilho da mesma inquietação demonstrada pelos autores que destacam a dificuldade na interpretação dos dados brasileiros e os movimentos contraditórios nos processos de cuidado em suas diferentes variáveis (região do país, acesso à rede privada, idade, anos de educação, raça/cor e parição). E é nessa perspectiva contraditória que apresento meu posicionamento: apesar do cenário encontrado, estamos vivendo um período absolutamente fértil e promissor no que se refere à possibilidade de revisão de conceitos, valores e, consequentemente, de práticas assistenciais.

Identifico esse momento mediante um conjunto de situações e fatores com potencial de agir sinergicamente para uma efetiva mudança na atenção ao parto e nascimento no Brasil. Destaco nesse processo: (1) acúmulo considerável de estudos sobre a inadequação do cuidado atualmente prestado e sobre a violência institucional; (2) experiências sustentadas em cidades como Belo Horizonte (Minas Gerais) e Rio de Janeiro que assumiram, há mais de uma década, a implementação de boas práticas perinatais como política pública, incluindo revisão de rotinas e monitoramento de indicadores de processo e resultado, intervenções na ambiência e inserção da enfermagem obstétrica na atenção ao parto de risco habitual; (3) ênfase das ações do governo federal em maternidades definidas como prioritárias no Norte e Nordeste, por intermédio do Plano de Qualificação de Maternidades; (4) consolidação da Política Nacional de Humanização como eixo condutor nas redes de atenção que garante apoio institucional para a implementação das boas práticas; (5) expansão da formação da enfermagem obstétrica, disponibilizando cada vez mais profissionais habilitadas para atenção ao parto de risco habitual; (6) valorização, por parte de atores estratégicos na obstetrícia brasileira, da prática clínica baseada em evidências em substituição à repetição de práticas assistenciais desnecessárias e prejudiciais à fisiologia do parto e nascimento de risco habitual; (7) crescente e potente manifestação de desagrado de mulheres com suas experiências em maternidades públicas e privadas.

São movimentos que vêm ocorrendo em diferentes matizes e com diferenças sociais e regionais, mas, não por isso, menos significativos. Os estudos sobre a inadequação do cuidado e violência institucional em maternidades vêm fortalecendo os movimentos sociais e suscitando discussões e ações em espaços como o Ministério Público e o Legislativo.

As experiências citadas em duas capitais do Sudeste reforçam a análise dos autores sobre a maior adesão às boas práticas nessa região, reconhecida pelo seu importante papel na disseminação nacional de conhecimentos e práticas. Da mesma forma, as características da implantação da Rede Cegonha (cuidado com “o modo de fazer” e oferta de apoio institucional nos territórios) demonstram que seu objetivo não se limita à expansão da capacidade instalada, o que, inevitavelmente, contribuiria para “mais do mesmo”.

Embora ainda incipiente em termos nacionais, a atuação crescente da enfermagem obstétrica, reconhecida pelo seu impacto positivo na melhoria dos resultados 1Sandall J, Soltani H, Gates S, Shennan A, Devane D. Midwife-led continuity models versus other models of care for childbearing women. Cochrane Database Syst Rev 2013; 8: CD004667., é decisiva para a mudança na forma de nascer no Brasil. As experiências de mais de uma década em maternidades e casas de parto sob gestão municipal nas cidades do Rio de Janeiro e Belo Horizonte têm servido como importantes espaços de produção de conhecimento e sistematização de práticas. Desde 2012, várias iniciativas envolvendo o governo federal, universidades e instituições científicas da enfermagem estão em curso objetivando acelerar a formação profissional em diferentes modalidades (residência, especialização, atualização) para atuação em maternidades de todo o país

A valorização da “obstetrícia baseada em evidências”, mundialmente reconhecida e legitimada, assim como sua influência positiva na formação de novas gerações de obstetras vem sendo percebida em maternidades que têm se destacado por indicadores bem mais próximos aos de países com os melhores índices perinatais. Parte desses profissionais já vem experimentando, desde a sua formação, ambientes institucionais que, da estrutura física às rotinas (incluindo a atuação da enfermagem obstétrica 1Sandall J, Soltani H, Gates S, Shennan A, Devane D. Midwife-led continuity models versus other models of care for childbearing women. Cochrane Database Syst Rev 2013; 8: CD004667. ), buscam favorecer a fisiologia do parto de risco habitual.

O descontentamento com rotinas institucionais pouco centradas na mulher e sua família vem sendo fortalecido pela progressiva consciência de direitos que vêm permeando a sociedade brasileira. Nas unidades públicas, o direito ao acompanhante de escolha da mulher é um importante exemplo e vem sendo conquistado nacionalmente de forma irreversível. Por outro lado, dentre as mulheres usuárias do setor privado, observamos também movimentos que reivindicam de forma contundente o direito ao parto normal. Por mais estranheza que essa reivindicação possa causar em países como Inglaterra, França ou Canadá, no contexto brasileiro, com índices de cesárea no setor privado em torno de 90%, ela pode ser compreendida com razoável facilidade. Inúmeros depoimentos de usuárias e médicos do setor privado apontam elementos externos ao processo clínico como definidores da realização da cesárea. Esse movimento também me parece irreversível e a veiculação, em circuito comercial, do filme O Renascimento do Parto é um instigante sinalizador de tal processo.

Na perspectiva dessas reflexões e da minha confiança nas possibilidades de mudanças, partilho também com os autores e leitores minha clareza sobre o longo caminho a percorrer. Dentre as inúmeras e complexas questões que exigem muita dedicação apresento três que identifico como centrais: (1) rediscussão e readequação dos processos de cuidado perinatal em hospitais universitários. A participação limitada da enfermagem obstétrica na cena do parto nesses espaços, reconhecidos como formadores de opinião, prejudica e retarda, no âmbito acadêmico, a revisão de práticas e rotinas clínicas, a pesquisa, a produção de conhecimento, e a formação e educação permanente das diferentes categorias profissionais; (2) assim como os autores, destaco a atenção pré-natal na rede pública como agente fundamental para maior apropriação pelas mulheres da fisiologia e importância do parto normal, desconstruindo o senso comum das experiências negativas frequentemente veiculadas em nosso meio; (3) revisão dos processos de produção do cuidado no setor privado minimizando o impacto de fatores externos ao cuidado clínico na definição do tipo de parto.

Finalizo destacando e valorizando o papel de uma instituição absolutamente estratégica para as revisões necessárias e urgentes no cuidado obstétrico no Brasil. Em recente e histórico posicionamento sobre o parto e o nascimento de risco habitual, a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO. http://www.febrasgo.org.br/site/?p=7069, acessado em 20/Jan/2014) defende práticas reconhecidas por aumentar a satisfação da parturiente com parto vaginal (dieta, privacidade, conforto, deambulação, relaxamento, liberdade de escolha da posição no segundo período, uso restrito da episiotomia), apoia os centros de parto, sem distocia, intra-hospitalares, a inserção da enfermagem obstétrica em serviços públicos e privados e a criação de equipes de plantão para assistência ao parto normal na rede suplementar. É um posicionamento que reforça minha confiança em um novo tempo para quem nasce no Brasil.

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    Sandall J, Soltani H, Gates S, Shennan A, Devane D. Midwife-led continuity models versus other models of care for childbearing women. Cochrane Database Syst Rev 2013; 8: CD004667.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2014
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