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Desafios à intersetorialidade no cuidado das crianças com deficiência na perspectiva de profissionais da educação

Challenges to intersectorality in the care of children with disabilities from the perspective of education professionals

Desafíos a la intersectorialidad en el cuidado de niños con discapacidad en la perspectiva de los profesionales de la educación

Resumos

Este artigo identifica e discute fatores que dificultam a articulação interprofissional e intersetorial, por meio de pesquisa realizada em ambiente virtual, com a aplicação de um questionário. É um estudo qualitativo, de natureza aplicada, fruto da interlocução com profissionais de educação que atendem crianças com deficiência, no Município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, Brasil. Avaliamos também as principais normativas sobre direitos da criança e da pessoa com deficiência, além de artigos científicos sobre intersetorialidade. A análise das respostas abertas do questionário é de perspectiva construcionista, feita a partir da produção de sentidos polifônicos. As normativas produzem um contrassenso da indução da intersetorialidade, com reforço da setorialidade, e suas diretrizes não apresentam a dimensão material dos processos políticos, constituindo um campo de implicações para as práticas de inclusão. Identificamos três pilares que limitam a intersetorialidade: sobrecarga de trabalho individual e coletivo; dificuldade de engajamento de outros atores da rede; limitações de conhecimento para lidar com as demandas recebidas. O modo como esses aspectos foram suscitados expressa barreiras de acesso e operacionalização da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPD) e reitera contradições produzidas pelas diretrizes normativas que regularizam os exercícios laborais.

Palavras-chave:
Crianças com Deficiência; Educação Especial; Colaboração Intersetorial; Política Pública


This paper identifies and discusses factors that hinder interprofessional and intersectoral articulation, as well as evaluates the main regulations on the rights of children and persons with disabilities and scientific literature on intersectoriality A qualitative and applied research was conducted by means of a questionnaire applied online to education professionals who care for children with disabilities, in the municipality of Duque de Caxias, Rio de Janeiro State, Brazil. The open answers of the questionnaire were analyzed from a constructionist perspective, based on the production of polyphonic meanings. The norms contradict intersectoriality by reinforcing sectoriality, and their guidelines do not present the material dimension of the political processes, constituting a field of implications for inclusion practices. It identified three pillars that limit intersectoriality: individual and collective work overload; difficulty in engaging other actors in the network; limited knowledge to meet the demands received. The way these aspects were raised expresses barriers to access and operationalization of the Network of Care for Persons with Disabilities (RCPD) and reiterates contradictions produced by the normative guidelines that regulate work. e reduction of hospital stay, which is so impactful on the functional condition of the elderly.

Keywords:
Disabled Children; Special Education; Intersectorial Collaboration; Public Policy


Este artículo identifica y discute factores que dificultan la articulación interprofesional e intersectorial, por medio de una investigación realizada en un entorno virtual, mediante la aplicación de un cuestionario. Se trata de un estudio cualitativo, de naturaleza aplicada, resultado de la interlocución con profesionales de la educación que atienden a niños con discapacidad, en el Municipio de Duque de Caxias, Río de Janeiro, Brasil. También evaluamos las principales normativas sobre los derechos del niño y de las personas con discapacidad, así como artículos científicos sobre intersectorialidad. El análisis de las respuestas abiertas del cuestionario se realizó desde una perspectiva construccionista, basada en la producción de significados polifónicos. Las normativas producen un contrasentido de la inducción de la intersectorialidad, con refuerzo de la sectorialidad, y sus directrices no presentan la dimensión material de los procesos políticos, lo que constituye un campo de implicaciones para las prácticas de inclusión. Identificamos tres pilares que limitan la intersectorialidad: sobrecarga de trabajo individual y colectiva; dificultad para involucrar a otros actores de la red; limitaciones de conocimiento para hacer frente a las demandas recibidas. La forma en que estos aspectos fueron planteados expresa barreras para el acceso y operatividad de la Red de Cuidados a la Persona con Discapacidad (RCPD) y reitera las contradicciones producidas por las directrices normativas que regulan los ejercicios laborales.

Palabras-clave:
Niños con Discapacidad; Educación Especial; Colaboración Intersectorial; Política Pública


Introdução

A emergência do vírus Zika em 2015 teve consequências para milhares de pessoas no Brasil, com destaque para as crianças que nasceram com síndrome congênita do vírus Zika (SCVZ) e vivem com graves questões de saúde. A ressonância de suas existências recolocou em cena o problema da invisibilidade das pessoas com deficiência e de suas necessidades singulares de cuidado, considerando a heterogeneidade do grupo e as fragilidades que limitam os processos de trabalho nas diferentes políticas públicas. Por esse motivo, nos referimos principalmente às crianças com deficiência, entendendo que assim também contemplamos aquelas com SCVZ.

De acordo com a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) 11. Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 2015; 7 jul., a pessoa com deficiência “tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. Essa conceituação implica o agenciamento da sociedade, sobretudo do Estado, na produção de meios para que todas as pessoas, com suas diferentes características e especificidades, desfrutem de uma vida em comum.

O acesso à saúde foi uma das primeiras dificuldades experienciadas pelas famílias afetadas pela epidemia de Zika no Brasil. Porém, a complexidade dos desafios que envolvem a vida com SCVZ resulta em demandas que extrapolam as ações setoriais. Além das desigualdades de acesso ao sistema de saúde, o vírus Zika evidenciou a incapacidade de alguns países de garantir os direitos das crianças à educação e à proteção social, entre outros 22. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Relatório anual: Brasil 2017. https://www.br.undp.org/content/dam/brazil/docs/publicacoes/relatorio-pnud-brasil-2017.pdf (acessado em 03/Jun/2021).
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No que tange à garantia dos direitos da criança com deficiência, ao cumprimento da sua proteção integral e ao planejamento e desenvolvimento de ações, a intersetorialidade é uma diretriz que deve orientar os serviços de “educação, saúde, qualificação e inclusão profissional, cultura, esporte, lazer33. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Resolução Conjunta nº 01, de 24 de outubro de 2018. Dispõe sobre as diretrizes para o atendimento de crianças e de adolescentes com deficiência no Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União 2018; 9 nov.. Ademais, a LBI 11. Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 2015; 7 jul. também enfatiza a “oferta de rede de serviços articulados, com atuação intersetorial, nos diferentes níveis de complexidade, para atender às necessidades específicas da pessoa com deficiência”.

As políticas públicas de saúde, de educação e de assistência social possuem diretrizes específicas para o cuidado desse público. Entre outras interseções, demandam articulação intersetorial e trabalho interdisciplinar nos processos de planejamento e operacionalização 11. Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 2015; 7 jul.,44. Ministério da Educação. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria nº 555/2007, prorrogada pela Portaria nº 948/2007, entregue ao Ministro da Educação em 07 de janeiro de 2008. http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf (acessado em 10/Abr/2021).
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,55. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2017; 22 set.. Para Inojosa 66. Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-10., a intersetorialidade e a transdisciplinaridade são expressões equivalentes de discussões nos campos das políticas públicas e do conhecimento científico, respectivamente. Ambas precisam ser informadas pelo paradigma da complexidade, que por sua vez, trabalha com a compreensão da diversidade 66. Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-10..

No campo das políticas públicas, a intersetorialidade e a interdisciplinaridade são consideradas dispositivos de melhoria do cuidado e da qualidade de vida das pessoas com deficiência 77. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2010. (Série B. Textos Básicos de Saúde).. São vistas, ainda, como estratégia para atuar contra desigualdades e processos de exclusão. Porém, entre as dificuldades de suas concretizações está justamente a efetivação das relações de colaboração entre distintos profissionais, instituições e setores 88. Almeida Filho N. Transdisciplinaridade e saúde coletiva. Ciênc Saúde Colet 1997; II:5-20..

Diante do exposto, pressupomos que seja necessário nos aproximar da perspectiva de atores chaves sobre as determinações e práticas direcionadas às crianças com deficiência. Assim, acreditamos dar o primeiro passo na direção de refletir sobre outras formas de conceber e implementar políticas sociais que articulem saberes e experiências, com vistas a obter sinergia de resultados na complexidade das situações 66. Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-10..

A ação colaborativa que resultou neste artigo adveio da Rede Zika Ciências Sociais (Fundação Oswaldo Cruz) em convênio com a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), por meio do Observatório de Educação Especial e Inclusão Educacional (ObEE). O vínculo oportunizou a participação das autoras no Programa Piloto de Formação Continuada para Profissionais da Educação do Município de Duque de Caxias. O programa foi constituído pelo ObEE a partir das lacunas verificadas por seus estudos, em relação ao cuidado das crianças com deficiência. Resultados preliminares desse grupo 99. Pletsch MD, Araujo PCMA, Souza MG. A importância de ações intersetoriais como estratégia para a promoção da escolarização de crianças com a síndrome congênita do Zika vírus (SCZV). Educação em Foco 2020; 25:193-210. sublinham a relevância de trabalho multiprofissional e propostas intersetoriais para o desenvolvimento integral de crianças vivendo com a SCVZ. Acessamos as participantes dessa pesquisa por meio das redes sociais que se formaram no programa.

Este estudo tem a finalidade de identificar fatores que dificultam a articulação interprofissional e intersetorial, sob o prisma de profissionais da educação que atendem crianças com deficiência, inclusive com SCVZ, no Município de Duque de Caxias, Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Dialogamos principalmente com trabalhadoras da educação especial na perspectiva da inclusão, modalidade que viabiliza o compartilhamento da sala de aula entre crianças com e sem deficiência, respeitando as características individuais de cada sujeito e ofertando os recursos necessários ao seu aprendizado e participação 44. Ministério da Educação. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria nº 555/2007, prorrogada pela Portaria nº 948/2007, entregue ao Ministro da Educação em 07 de janeiro de 2008. http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf (acessado em 10/Abr/2021).
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Materiais e método

Trata-se de um estudo qualitativo, de natureza aplicada. Os resultados apresentados são produto da aproximação e interlocução com o grupo de profissionais que atuam na educação especial na perspectiva da inclusão.

A área da Educação foi selecionada em virtude do Programa Piloto de Formação Continuada para Profissionais da Educação do Município de Duque de Caxias, que reuniu cerca de 50 pessoas. O programa foi desenvolvido entre fevereiro e outubro de 2020, iniciado em formato presencial e passando à modalidade remota, devido à pandemia da COVID-19 99. Pletsch MD, Araujo PCMA, Souza MG. A importância de ações intersetoriais como estratégia para a promoção da escolarização de crianças com a síndrome congênita do Zika vírus (SCZV). Educação em Foco 2020; 25:193-210.. Durante o mês de agosto desse ano foi aplicado um questionário virtual semiestruturado, sem espaço para identificação nominal, cabendo livre resposta a algumas questões.

A etapa de validação do questionário envolveu discussões no ObEE, com outros pesquisadores e profissionais, principalmente da educação. A partir daí, foi elaborado o teste piloto, cujas respostas subsidiaram os ajustes para a finalização do instrumento definitivo. O convite para participação na pesquisa e o link de acesso foram enviados por e-mail. As 50 profissionais matriculadas no programa foram convidadas e 66% delas responderam à pesquisa.

O questionário foi dividido em três planos: perfil sociodemográfico; intersetorialidade e inclusão escolar. Na primeira parte havia perguntas fechadas sobre como as candidatas se identificavam (gênero e cor); faixa etária; nacionalidade; local de moradia; formação; profissão; município do trabalho; e tempo de experiência na educação. Os planos da inclusão e da intersetorialidade continham perguntas fechadas e abertas. As questões abertas possibilitavam o desenvolvimento das objetivas que as precediam. Embora o espaço para as respostas abertas comportasse desenvolvimentos mais extensos, e muitas entrevistadas tenham feito alguma consideração, quase todas foram concisas.

Em relação à inclusão, o questionário tinha perguntas sobre os seguintes temas: trabalho direto com criança com deficiência e com SCVZ; formação para trabalhar na perspectiva da inclusão; disponibilidade de materiais adaptados para estimulação das crianças; recursos institucionais de acessibilidade; processos inclusivos institucionais; barreiras físicas ou estruturais dificultando o cuidado e o acesso das crianças; barreiras no processo de trabalho inclusivo; e participação familiar.

Quanto à intersetorialidade, todas as perguntas desse plano constituíram as dimensões analíticas da pesquisa: interação da profissional de educação com equipe ou profissional da saúde e/ou da assistência social; interação da instituição de educação com esses setores; trabalho articulado entre educação, saúde e assistência social; comunicação entre setores de educação e saúde; comunicação entre setores de educação e assistência social.

A análise das perguntas abertas, de perspectiva construcionista 1010. Spink MJ. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2010., foi feita a partir da produção de sentidos polifônicos, dado que as significações são continuamente engendradas nas diversas interrelações. Consideramos que os sentidos são fluidos, contextualizados e estabelecidos, desde a enunciação da pergunta até a finalização da narrativa de quem responde. Assim, a análise abrangeu inclusive as intervenções das pesquisadoras. O resultado dessa interação construiu os sentidos, forjando nossas categorias analíticas.

Para subsidiar a discussão dos resultados, fizemos uma busca por artigos que abordassem o tema da intersetorialidade e do trabalho interdisciplinar nos últimos cinco anos, em duas bases bibliográficas: Biblioteca Virtual em Saúde Ministério da Saúde (BVS Brasil) e Scientific Electronic Library Online (SciELO). Utilizamos as seguintes palavras-chave: “práticas interdisciplinares”; “intersetorialidade”; “crianças com deficiência”; “pessoas com deficiência”; “colaboração intersetorial”. Para otimizar a leitura, selecionamos artigos que as apresentassem no título ou no resumo 1010. Spink MJ. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2010.. Somente analisamos documentos que fossem relevantes para nossa discussão, descartando os repetidos ou fora do escopo de nossas intenções. Dialogamos igualmente com as principais normativas nacionais e internacionais sobre direitos da criança e da pessoa com deficiência que regulam, de forma direta e indireta, as práticas educacionais.

A pesquisa seguiu as Resoluções CNS/MS nº 510, de 7 de abril de 2016, e CNS/MS nº 466, de 12 de dezembro de 2012, sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (CAAE 30035320.8.0000.5240).

Construindo referenciais

Grande parte das narrativas dos autores com quem dialogamos contextualiza intersetorialidade conforme a análise de Inojosa 66. Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-10. (p. 105), construída com base na concepção de transdisciplinaridade de Morin e transposta para o campo das instituições: “o que se quer, muito mais do que juntar setores, é criar uma nova dinâmica para o aparato governamental, com base territorial e populacional”. Outros artigos fazem uma leitura de intersetorialidade de acordo com Akerman 1111. Akerman M, Sá RF, Moyses S, Rezende R, Rocha D. Intersetorialidade? IntersetorialidadeS! Ciênc Saúde Colet 2014; 19:4291-300. (p. 4293), como um dispositivo que tem a finalidade de promover “encontros, escuta e alteridade, além de ajudar a explicitar interesses divergentes, tensões e buscar (ou reafirmar a impossibilidade) de convergências possíveis”. Ademais, tenha condições de “evitar duplicidade de ações e buscar integrações orçamentárias para projetos prioritários, articular recursos, ideias e talentos1111. Akerman M, Sá RF, Moyses S, Rezende R, Rocha D. Intersetorialidade? IntersetorialidadeS! Ciênc Saúde Colet 2014; 19:4291-300. (p. 4293).

Porém a leitura analítica dos textos normativos e autorais revelou que a intersetorialidade é um norteador impreciso 11. Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 2015; 7 jul.,33. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Resolução Conjunta nº 01, de 24 de outubro de 2018. Dispõe sobre as diretrizes para o atendimento de crianças e de adolescentes com deficiência no Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União 2018; 9 nov.,66. Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-10.,1111. Akerman M, Sá RF, Moyses S, Rezende R, Rocha D. Intersetorialidade? IntersetorialidadeS! Ciênc Saúde Colet 2014; 19:4291-300.,1212. Organização das Nações Unidas. Convenção sobre os direitos da criança. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/convdir_crianca.pdf (acessado em 10/Abr/2021).
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,1313. Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Presidência da República. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Protocolo facultativo à convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Brasília: Sistema Nacional de Informações sobre Deficiência; 2007.,1414. Organização dos Estados Americanos. Convenção interamericana para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência. https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/discapacidad.pdf (acessado em 20/Abr/2021).
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,1515. Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul.,1616. Sá MRC, Vieira ACD, Castro BSM, Agostini O, Smythe T, Kuper H, et al. De toda maneira tem que andar junto: ações intersetoriais entre saúde e educação para crianças vivendo com a síndrome congênita do vírus Zika. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00233718.,1717. Romagnoli RC, Silva BC. O cotidiano da intersetorialidade e as relações entre as equipes. Estud Pesqui Psicol 2019; 19:107-26.,1818. Silva CS, Bodstein RCA. Referencial teórico sobre práticas intersetoriais em Promoção da Saúde na Escola. Ciênc Saúde Colet 2016; 21:1777-88.,1919. Rezende M, Baptista TWF, Amâncio Filho A. O legado da construção do Sistema de Proteção Social Brasileiro para a intersetorialidade. Trab Educ Saúde 2015; 13:301-22.,2020. Silveira CC, Meyer DEE, Félix J. A generificação da intersetorialidade no Programa Saúde na Escola. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos 2019; 100:423-42., não constituindo um conceito, nem um princípio, e muito menos um paradigma. Nos sentidos aqui produzidos, princípio significa um conjunto de proposições fundamentais e diretivas que serve de base para sistemas políticos, de conhecimento e de ação, ao mesmo tempo em que representa os valores que sustentam esses sistemas, e aos quais todo desenvolvimento posterior deve ser subordinado 2121. Matta GC. Princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde. In: Matta GC, Pontes ALM, organizadores. Políticas de saúde: organização e operacionalização do sistema único de saúde. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz; 2007. p. 61-80.,2222. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Princípio. https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=Princ%C3%ADpio (acessado em 20/Abr/2021).
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,2323. Online Etymology Dictionary. Principle. https://www.etymonline.com/search?q=Principle (acessado em 23/Abr/2021).
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. Conceito é uma definição, noção, compreensão de uma palavra 2222. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Princípio. https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=Princ%C3%ADpio (acessado em 20/Abr/2021).
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,2323. Online Etymology Dictionary. Principle. https://www.etymonline.com/search?q=Principle (acessado em 23/Abr/2021).
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; e paradigmas, teorias universalmente reconhecidas que, “durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência2424. Kuhn TS. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva; 1998. (p. 13).

Em contrapartida, a mesma análise nos levou a dimensionar a intersetorialidade no âmbito da política 11. Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 2015; 7 jul.,33. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Resolução Conjunta nº 01, de 24 de outubro de 2018. Dispõe sobre as diretrizes para o atendimento de crianças e de adolescentes com deficiência no Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União 2018; 9 nov.,66. Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-10.,1111. Akerman M, Sá RF, Moyses S, Rezende R, Rocha D. Intersetorialidade? IntersetorialidadeS! Ciênc Saúde Colet 2014; 19:4291-300.,1212. Organização das Nações Unidas. Convenção sobre os direitos da criança. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/convdir_crianca.pdf (acessado em 10/Abr/2021).
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,1313. Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Presidência da República. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Protocolo facultativo à convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Brasília: Sistema Nacional de Informações sobre Deficiência; 2007.,1414. Organização dos Estados Americanos. Convenção interamericana para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência. https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/discapacidad.pdf (acessado em 20/Abr/2021).
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,1515. Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul.,1616. Sá MRC, Vieira ACD, Castro BSM, Agostini O, Smythe T, Kuper H, et al. De toda maneira tem que andar junto: ações intersetoriais entre saúde e educação para crianças vivendo com a síndrome congênita do vírus Zika. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00233718.,1717. Romagnoli RC, Silva BC. O cotidiano da intersetorialidade e as relações entre as equipes. Estud Pesqui Psicol 2019; 19:107-26.,1818. Silva CS, Bodstein RCA. Referencial teórico sobre práticas intersetoriais em Promoção da Saúde na Escola. Ciênc Saúde Colet 2016; 21:1777-88.,1919. Rezende M, Baptista TWF, Amâncio Filho A. O legado da construção do Sistema de Proteção Social Brasileiro para a intersetorialidade. Trab Educ Saúde 2015; 13:301-22.,2020. Silveira CC, Meyer DEE, Félix J. A generificação da intersetorialidade no Programa Saúde na Escola. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos 2019; 100:423-42.. O movimento de investigação deu sentido ao termo política como uma prática social, assim como um conjunto de saberes que embasa as atividades para a resolução de questões sociais com demandas de respostas coletivas, incluindo princípios e valores. Nessa perspectiva, a política tem suas finalidades conformadas de acordo com grupos organizados, com a época histórica e com as circunstâncias. Assim, o conceito está profundamente ligado ao poder e se organiza de forma processual 2323. Online Etymology Dictionary. Principle. https://www.etymonline.com/search?q=Principle (acessado em 23/Abr/2021).
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,2525. Bobbio N, Matteucci N, Pasquino G. Dicionário de política. Brasília: Editora da UNB; 1998.,2626. Teixeira C, Silveira P, organizadores. Glossário de análise política em Saúde. Salvador: EDUFBA; 2017.. De acordo com Frey 2727. Frey K. Políticas públicas: um debate conceitual e reflexões referentes à prática de análise de políticas públicas no Brasil. Planej Polít Públicas 2000; 21:211-60., o processo político inclui as seguintes dimensões:

(1) Institucional (polity), ou aquilo que alude à organização sistêmica política e é balizado nos espaços de ocorrência e apresentação de diversos interesses: os sistemas legal, jurídico e político-administrativo;

(2) Processual (politics), que diz respeito às negociações, conflitos e acordos entre representantes de grupos e instituições comprometidos com os objetivos e decisões de uma política pública;

(3) Material (policy), ou o produto do processo político que compreende as atividades e recursos empregados nas decisões políticas, sejam planos, programas, projetos ou outros.

A discussão acerca dos resultados dessa pesquisa se localiza principalmente na última dimensão, em que princípios, diretrizes e estratégias dos produtos do processo político são corporificados na experiência profissional. Partimos da compreensão de que diretrizes são linhas gerais que orientam, definem meios e dinâmicas, e organizam estratégias de um sistema para atingir objetivos 2121. Matta GC. Princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde. In: Matta GC, Pontes ALM, organizadores. Políticas de saúde: organização e operacionalização do sistema único de saúde. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz; 2007. p. 61-80.,2222. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Princípio. https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=Princ%C3%ADpio (acessado em 20/Abr/2021).
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. Além disso, estratégia é um conjunto de ações que utiliza, planejadamente, os recursos disponíveis com o intuito de alcançar o objetivo proposto e produzir o efeito desejado sobre dada situação, considerando as eventuais informações e acasos que ocorram e modifiquem o cenário 2222. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Princípio. https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=Princ%C3%ADpio (acessado em 20/Abr/2021).
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,2323. Online Etymology Dictionary. Principle. https://www.etymonline.com/search?q=Principle (acessado em 23/Abr/2021).
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,2828. Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Editora Meridional; 2005.,2929. Testa M. Pensamento estratégico e lógica da programação. São Paulo: Hucitec; 1995..

Normativas que regularizam os exercícios profissionais

O estudo foi realizado com um grupo de professoras que trabalha em escolas públicas, com experiência de atuação no setor que varia entre menos de 10 anos até 40 anos. A maioria trabalha diretamente com crianças com deficiência e enfrenta em seu cotidiano a complexidade dessa relação para garantir o processo de inclusão.

A perspectiva dos direitos humanos e a mobilização de democratização da educação trouxeram à cena nacional questões que historicamente delimitam a escolarização como um dispositivo de exclusão, além dos movimentos normativos de classificação de pessoas e grupos conforme características físicas, culturais, intelectuais, entre outras. Essas dimensões afetam a educação das pessoas com deficiência, que, historicamente, se organizou na perspectiva da Educação Especial.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) 3030. Brasil. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União 1996; 23 dez., de 1996, definiu Educação Especial como modalidade de educação dirigida para “educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino”. Em 2006, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) estabeleceu que um sistema de educação inclusiva deve ser garantido em todos os níveis de ensino, em condições que potencializem o desenvolvimento, de acordo com a diretiva da inclusão plena 44. Ministério da Educação. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria nº 555/2007, prorrogada pela Portaria nº 948/2007, entregue ao Ministro da Educação em 07 de janeiro de 2008. http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf (acessado em 10/Abr/2021).
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. A educação inclusiva garante o acesso à escola regular, transformando-a em um espaço de acolhimento de todos. Em 2008, a Educação Especial recebeu a inclusão como atributo e diretriz, por meio de política pública, sendo o Atendimento Educacional Especializado (AEE) 44. Ministério da Educação. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria nº 555/2007, prorrogada pela Portaria nº 948/2007, entregue ao Ministro da Educação em 07 de janeiro de 2008. http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf (acessado em 10/Abr/2021).
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seu principal dispositivo. O AEE, portanto, é o serviço de referência para professores e alunos do ensino regular, quanto à avaliação das necessidades educacionais e oferta de recursos de acessibilidade e inclusão, considerando demandas de apoio pedagógico e de cuidado. As vias de realização da sua garantia passam pela diretriz da intersetorialidade e dependem da realização dos direitos contidos em outros documentos.

Na análise das principais normativas sobre direitos da criança e da pessoa com deficiência, a intersetorialidade tem o sentido de diretriz, tanto na perspectiva institucional do processo político, quanto processual. A dimensão material não aparece nos documentos propostos 11. Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 2015; 7 jul.,33. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Resolução Conjunta nº 01, de 24 de outubro de 2018. Dispõe sobre as diretrizes para o atendimento de crianças e de adolescentes com deficiência no Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União 2018; 9 nov.,1212. Organização das Nações Unidas. Convenção sobre os direitos da criança. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/convdir_crianca.pdf (acessado em 10/Abr/2021).
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,1313. Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Presidência da República. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Protocolo facultativo à convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Brasília: Sistema Nacional de Informações sobre Deficiência; 2007.,1414. Organização dos Estados Americanos. Convenção interamericana para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência. https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/discapacidad.pdf (acessado em 20/Abr/2021).
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,1515. Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul..

O texto da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) se refere à intersetorialidade nos artigos sobre a vida e a saúde 1212. Organização das Nações Unidas. Convenção sobre os direitos da criança. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/convdir_crianca.pdf (acessado em 10/Abr/2021).
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. Observa-se sua indução, por exemplo, no Artigo 2312, que pretende assegurar à criança com deficiência o acesso aos serviços de educação, capacitação, saúde, reabilitação, preparação para emprego e lazer.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) 1515. Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul. faz uma ligação direta entre intersetorialidade e as linhas de cuidado, sem delimitar objetivamente as ações que demandariam das diretrizes: “O Sistema Único de Saúde promoverá a atenção à saúde bucal das crianças e das gestantes, de forma transversal, integral e intersetorial com as demais linhas de cuidado direcionadas à mulher e à criança”. O mesmo ocorre na LBI, no que se refere ao direito à educação, à habilitação e à reabilitação 11. Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 2015; 7 jul.. O ECA ainda determina que as políticas precisam ser efetivadas em espaços agenciadores da articulação intersetorial da formação e capacitação profissional, assim como da participação dos diversos atores implicados com a promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente 1515. Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul.. Preconiza, inclusive, que a formação profissional abranja os diversos direitos e a intersetorialidade, como prerrogativas do atendimento e desenvolvimento integral 1515. Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul..

Em paradoxo à diretriz intersetorial, a CDC faz um reforço diretivo à setorialidade. No Artigo 2712, por exemplo, é proposta a adoção de medidas para auxiliar pais e responsáveis a tornar os direitos da criança efetivos e, no caso de necessidade, o Estado proporcionaria suporte e programas específicos de nutrição, habitação e vestuário. Tal contradição também ocorre na LBI 11. Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 2015; 7 jul., na CDPD 1313. Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Presidência da República. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Protocolo facultativo à convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Brasília: Sistema Nacional de Informações sobre Deficiência; 2007., na Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência 1414. Organização dos Estados Americanos. Convenção interamericana para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência. https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/discapacidad.pdf (acessado em 20/Abr/2021).
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e na Resolução Conjunta nº 01/2018 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade) 33. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Resolução Conjunta nº 01, de 24 de outubro de 2018. Dispõe sobre as diretrizes para o atendimento de crianças e de adolescentes com deficiência no Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União 2018; 9 nov..

O contrassenso da indução da intersetorialidade, com reforço diretivo à setorialidade, aliado ao fato de as diretrizes propostas por essas normativas não apresentarem a dimensão do produto dos processos políticos, constitui um campo de implicações para as práticas de inclusão das crianças com deficiência.

Análise e discussão: sentidos sobre a interdisciplinaridade e intersetorialidade

A análise e a discussão dos resultados são feitas sob perspectiva foucaultiana da “governamentalidade biopolítica” 3131. Foucault M. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes; 2008.. Isso quer dizer que não se trata somente de entender como as categorias foram individual e coletivamente construídas, mas sobretudo, distinguir os efeitos de governo a elas vinculados 3131. Foucault M. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes; 2008.. Nossa leitura é igualmente interseccional, pois consideramos que marcadores de gênero, classe, raça e etnia atravessam o cotidiano das relações aqui discutidas, produzindo efeitos de poder 3232. Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro/Pólen; 2019..

Conforme apontado, as questões do instrumento de pesquisa compreenderam as dimensões da análise: (a) interação da profissional de educação com equipe ou profissional da saúde e/ou da assistência social; (b) interação da instituição de educação com esses setores; (c) trabalho articulado entre educação, saúde e assistência social; (d) comunicação entre setores de educação e saúde; e (e) comunicação entre setores de educação e assistência social.

Quanto à primeira dimensão, uma pequena parte das participantes declarou existir alguma articulação com profissionais de saúde e/ou assistência social, suas unidades de referência ou órgãos gestores das respectivas políticas. Os sentidos dessas articulações foram: acompanhamento; encaminhamento; troca de informações; atendimento especializado; suporte ao cuidado. Na segunda dimensão, pouco mais da metade afirmou existir interação institucional, identificando relações por meio das unidades de atendimento e diretamente com órgãos gestores da saúde ou da assistência social. Os sentidos de interação foram: acompanhamento; encaminhamento; vacinação; atendimento especializado; socorro em urgências; prevenção.

As duas dimensões da análise traduzem as demandas de cuidado das crianças identificadas pelas profissionais e instituições de educação. As categorias elencadas nos níveis profissional e institucional, embora envolvam ideias e conceitos distintos, endossam o sentido e a concretude do encaminhamento em todos os casos. Ou seja, elas se configuram em solicitações de ações a serem realizadas pelo outro e não com o outro. As respostas mais frequentes podem ser exemplificadas com: “Encaminhamento para o setor que atenderá a demanda do aluno” (mulher negra, acima de 45 anos, especialista, gestora na educação há mais de 30 anos).

O exame dos textos (normativos e autorais) constituiu a intersetorialidade como um norteador que necessita ser especificado não somente quanto aos seus objetivos, mas também segundo recursos, contextos e informações 11. Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 2015; 7 jul.,33. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Resolução Conjunta nº 01, de 24 de outubro de 2018. Dispõe sobre as diretrizes para o atendimento de crianças e de adolescentes com deficiência no Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União 2018; 9 nov.,66. Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-10.,1111. Akerman M, Sá RF, Moyses S, Rezende R, Rocha D. Intersetorialidade? IntersetorialidadeS! Ciênc Saúde Colet 2014; 19:4291-300.,1212. Organização das Nações Unidas. Convenção sobre os direitos da criança. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/convdir_crianca.pdf (acessado em 10/Abr/2021).
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,1313. Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Presidência da República. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Protocolo facultativo à convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Brasília: Sistema Nacional de Informações sobre Deficiência; 2007.,1414. Organização dos Estados Americanos. Convenção interamericana para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência. https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/discapacidad.pdf (acessado em 20/Abr/2021).
https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basi...
,1515. Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul.,1616. Sá MRC, Vieira ACD, Castro BSM, Agostini O, Smythe T, Kuper H, et al. De toda maneira tem que andar junto: ações intersetoriais entre saúde e educação para crianças vivendo com a síndrome congênita do vírus Zika. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00233718.,1717. Romagnoli RC, Silva BC. O cotidiano da intersetorialidade e as relações entre as equipes. Estud Pesqui Psicol 2019; 19:107-26.,1818. Silva CS, Bodstein RCA. Referencial teórico sobre práticas intersetoriais em Promoção da Saúde na Escola. Ciênc Saúde Colet 2016; 21:1777-88.,1919. Rezende M, Baptista TWF, Amâncio Filho A. O legado da construção do Sistema de Proteção Social Brasileiro para a intersetorialidade. Trab Educ Saúde 2015; 13:301-22.,2020. Silveira CC, Meyer DEE, Félix J. A generificação da intersetorialidade no Programa Saúde na Escola. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos 2019; 100:423-42.. Isso porque ela fica restrita à organização sistêmica política e às negociações, conflitos e acordos entre representantes de grupos e instituições 66. Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-10.,1111. Akerman M, Sá RF, Moyses S, Rezende R, Rocha D. Intersetorialidade? IntersetorialidadeS! Ciênc Saúde Colet 2014; 19:4291-300.,1818. Silva CS, Bodstein RCA. Referencial teórico sobre práticas intersetoriais em Promoção da Saúde na Escola. Ciênc Saúde Colet 2016; 21:1777-88. - âmbitos que pouco envolvem as ações da ponta.

Consequentemente, essas profissionais são orientadas por normativas que excluem a dimensão tangível dos processos políticos, construindo diretrizes muitas vezes incompatíveis com as dinâmicas dos exercícios profissionais, que reforçam a compartimentalização setorial e as afastam dos processos participativos de construção da intersetorialidade. Para que se construam novos modos de fazer, o planejamento da perspectiva intersetorial precisa incluir escolhas estratégicas, a regionalização e os acordos entre os diversos atores envolvidos 66. Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-10.,1717. Romagnoli RC, Silva BC. O cotidiano da intersetorialidade e as relações entre as equipes. Estud Pesqui Psicol 2019; 19:107-26..

O direcionamento para unidades assistenciais e de garantia de direitos, por exemplo, se concretiza em falas com a expectativa de atenção a certas demandas, como: “Posto de Saúde: encaminhamentos atendimento psicológico/fonoaudiológico; CRAS: acompanhamento das famílias em estado de vulnerabilidade/ risco social” (mulher parda acima de 35 anos, mestre, orientadora pedagógica na educação há mais de 20 anos); “Conselho Tutelar: acompanhamento de casos de alunos faltosos, alunos que sofreram algum tipo de violência e/ou estão em perigo” (mulher branca, acima de 45 anos, especialista, diretora escolar, atuante há mais de 20 anos). Esses são modos de operar direcionados à produção de encaminhamentos conforme a interpretação setorial. São efeitos normativos no campo das práticas, que implicam trabalho limitado pelas disciplinas 88. Almeida Filho N. Transdisciplinaridade e saúde coletiva. Ciênc Saúde Colet 1997; II:5-20., com orientação segmentada, ou seja, as profissionais partem do princípio do que acreditam ser atribuição de cada setor.

Nas falas, percebe-se que as crianças que encarnam a deficiência são encaminhadas para a saúde e as que corporificam os sentidos da vulnerabilidade e do risco devem ser levadas à assistência social. Isso ocorre sem que haja reflexão sobre a complexidade de suas vidas e sobre questões que elas produzem 66. Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-10.,1919. Rezende M, Baptista TWF, Amâncio Filho A. O legado da construção do Sistema de Proteção Social Brasileiro para a intersetorialidade. Trab Educ Saúde 2015; 13:301-22.. Assim, os problemas são vistos de forma isolada, o que redunda na efetivação do encaminhamento setorial, mesmo que suas práticas sejam norteadas pelas diretrizes da intersetorialidade. A impossibilidade de lidar com a multifatorialidade das necessidades individuais e coletivas expressa a contradição contida nos documentos de direito.

A concretização de planos e projetos direcionados pela intersetorialidade carece de objetivos factíveis, de recursos disponíveis, além de adequação a contextos e informações singulares 66. Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-10.,1919. Rezende M, Baptista TWF, Amâncio Filho A. O legado da construção do Sistema de Proteção Social Brasileiro para a intersetorialidade. Trab Educ Saúde 2015; 13:301-22.. Ademais, a intersetorialidade precisa ser uma prática, assim como uma discussão, em todos os nichos de possibilidade, seja na organização sistêmica política, no nível das negociações, conflitos e acordos entre representantes de grupos e instituições 66. Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-10.,1616. Sá MRC, Vieira ACD, Castro BSM, Agostini O, Smythe T, Kuper H, et al. De toda maneira tem que andar junto: ações intersetoriais entre saúde e educação para crianças vivendo com a síndrome congênita do vírus Zika. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00233718., ou na assistência às pessoas.

A sua operacionalização normativa e política demonstra o modo como a construção desse balizador repercute em todos os níveis das práticas. Isso inclui a formação dos profissionais das diferentes políticas, a gestão dos serviços, do trabalho e do cuidado. Os percursos macro e micropolíticos impossibilitam a produção de respostas articuladas. O problema se agrava porque propostas intersetoriais em geral cursam sem o devido planejamento participativo 66. Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-10.. Na ausência de dispositivos coletivos de reflexão sobre os contextos e rotinas, a intersetorialidade acaba, equivocadamente, se tornando um problema individual de cada profissional 2020. Silveira CC, Meyer DEE, Félix J. A generificação da intersetorialidade no Programa Saúde na Escola. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos 2019; 100:423-42..

Assim, as propostas se tornam onerosas, pois são impostas às trabalhadoras novas responsabilidades dentro de uma mesma carga horária e remuneração - pessoas que muitas vezes se desdobram para cumprir seus papéis em situações precárias, em função do comprometimento com o grupo social com o qual já interagem. É fazer mais com menos 2020. Silveira CC, Meyer DEE, Félix J. A generificação da intersetorialidade no Programa Saúde na Escola. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos 2019; 100:423-42.. Na prática, significa aumento da carga, sem as vantagens do trabalho em comum.

Silveira et al. 2020. Silveira CC, Meyer DEE, Félix J. A generificação da intersetorialidade no Programa Saúde na Escola. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos 2019; 100:423-42. fazem uma interrelação entre a sobrecarga de trabalho e a corresponsabilização de trabalhadores por problemas que excedem suas possibilidades de ingerência. Na análise das autoras 2020. Silveira CC, Meyer DEE, Félix J. A generificação da intersetorialidade no Programa Saúde na Escola. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos 2019; 100:423-42., esse modo de operar esvazia e despotencializa os sentidos de trabalho intersetorial. Dessa forma, a prática de encaminhamento verificada sinaliza tanto o excesso de trabalho das profissionais da educação quanto o lugar de impotência diante das demandas que envolvem mais de um setor.

Importante ressaltar que a corporificação de princípios, diretrizes e estratégias dos produtos do processo político, nesta pesquisa, ocorre por meio da experiência profissional de mulheres negras, de meia idade, em sua maioria com formação de nível superior, com mais de 20 anos de exercício profissional e trabalhando diretamente na Educação Especial. Narrativas como “acompanhamos os tratamentos terapêuticos e de saúde dos alunos público-alvo da Educação Especial e em parceria, buscamos mitigar as barreiras para o processo de escolarização desses alunos” (mulher branca, acima de 35 anos, mestre, gestora, com mais de 10 anos de atuação) mostram que essas mulheres estão implicadas em problemas complexos do exercício de inclusão, como as questões de desenvolvimento das crianças, sua vulnerabilidade, e condições de vida precárias.

Na terceira dimensão da pesquisa, a maioria das entrevistadas declarou não haver articulação entre os setores. Os sentidos sobre a falta de articulação foram: ausência de articulação; interação desconhecida ou não experienciada; resposta institucional dependente de busca espontânea pelo outro; articulação esporádica e não normatizada; e barreiras de acesso às políticas com consequente desistência da demanda. Na quarta, pouco mais da metade afirmou não existir uma boa comunicação com a saúde. Os seguintes sentidos foram construídos: encaminhamento sem demanda atendida; ausência de contrarreferência; ausência de visitas técnica/institucional; insuficiência de interação. Na última dimensão, uma leve maioria respondeu que existe uma boa comunicação com o setor assistência social. Entre as profissionais em desacordo, os seguintes sentidos se destacaram: inexistência de dispositivo promotor de comunicação intersetorial; falta de recursos comunicacionais e articuladores; comunicação desconhecida ou inexistente; ausência de iniciativa setorial.

Todos esses sentidos expressam as barreiras de acesso e operacionalização da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPD), que são evidentes nas falas das profissionais. A maioria delas informa que os esforços empreendidos raramente são atendidos. A demora no acolhimento dos alunos e a ausência de retorno da unidade de referência após o encaminhamento estão entre as experiências mais compartilhadas pelas participantes: “embora façamos o encaminhamento, é necessário um esforço muito grande, ligando e insistindo com a instituição que receberá o aluno para que esse acolhimento ocorra” (mulher preta, acima de 45 anos, especialista, gestora há mais de 30 anos); “a morosidade nessa articulação compromete o sucesso e todo investimento profissional e da própria criança a ser atendida, além de ser um fator que corrobora para a desistência da busca da família e por fim no abandono escolar” (mulher preta, acima de 35 anos, graduada, trabalha no AEE há mais de 20 anos).

As falas dão significado não somente à complexidade, mas também às atribuições adicionais que as profissionais acabam assumindo. Além do que é esperado no cotidiano da escola, elas precisam se desdobrar para tentar resolver problemas para os quais nem sempre têm formação, preparo ou atribuição. Consequentemente, elas acabam se responsabilizando pela continuidade do cuidado da criança para além da instituição em que trabalham, produzindo precariedade e sobrecarga individual e coletiva. A ausência da prática intersetorial cria demandas cada vez maiores de flexibilidade, adaptabilidade, acúmulo de funções - “competências tácitas” da natureza feminina consideradas capazes de modificar situações complexas do cotidiano 3333. Meyer DE, Klein C, Dal'Igna MC, Alvarenga LF. Vulnerabilidade, gênero e políticas sociais: a feminização da inclusão social. Estudos Feministas 2014; 22:885-904.. Tais situações são igualmente atravessadas, nos aspectos micro e macropolíticos, pelo racismo 3434. Passos RG. Mulheres negras, sofrimento e cuidado colonial. Revista Em Pauta 2020; 45:116-29., misoginia, capacitismo - preconceitos experienciados tanto pelas profissionais quanto pelas crianças por elas cuidadas (nos dois casos, falamos de maiorias negras, pobres e do sexo feminino 3535. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010: características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2012.).

As dificuldades de enfrentamento desses problemas são apontadas diversas vezes como barreiras constituídas no nível da gestão da intersetorialidade. As categorias estabelecidas sobre o trabalho articulado e a comunicação revelam o modo como esses entraves produzem efeitos sobre as práticas, algo que pode ser atribuído à ausência de dispositivos criados com essa finalidade, bem como de recursos necessários para sua materialização: “Por falta de comunicação entre os setores e de ter alguém que faça essa ponte!!!” (mulher branca, acima de 45 anos, graduada, trabalha no AEE há mais de 20 anos); “acho que poderia ser melhor se houvesse parceria” (mulher branca, acima de 45 anos, especialista, trabalha no AEE há mais de 10 anos).

Importante sublinhar que o sentido da falta atravessa os dois âmbitos (gestão da intersetorialidade e exercício profissional). Sob essa ótica, depoimentos como “falta de capacitação contínua, pois as deficiências são individuais, portanto, diferenciadas” (mulher branca, acima de 45 anos, mestre, professora, com mais de 30 anos de atuação) marcam os impedimentos e denotam o sentimento de insuficiência para gerenciar os desafios cotidianos da educação inclusiva 99. Pletsch MD, Araujo PCMA, Souza MG. A importância de ações intersetoriais como estratégia para a promoção da escolarização de crianças com a síndrome congênita do Zika vírus (SCZV). Educação em Foco 2020; 25:193-210..

Assim, na percepção sobre as barreiras físicas, estruturais ou de organização de trabalho que dificultam o cuidado inclusivo, as seguintes falas se sobressaem: “sobretudo, ausência de formação para professores e profissionais” (mulher negra, acima de 35 anos, doutora, trabalha no AEE há mais de 20 anos); “faltam rampas para os alunos que utilizam cadeira de rodas, o banheiro adaptado não está em funcionamento, faltam móveis adaptados” (mulher negra, acima de 45 anos, doutora, trabalha no AEE há mais de 20 anos). Declarações que evidenciam a perspectiva dos problemas estruturais institucionais e a carência de educação continuada encarnada pelas entrevistadas. Na análise dessas barreiras, os processos de gestão e seu exercício laboral não são enfatizados, levando a crer que apenas o aprimoramento da formação e a melhoria estrutural resolveriam os problemas com que se deparam cotidianamente na Educação Inclusiva. Questões que envolvem a intersetorialidade e abrem um próximo campo de discussão sobre a inclusão na pesquisa.

Considerações finais

Este trabalho foi desenvolvido durante a pandemia de COVID-19. Em virtude principalmente das medidas de afastamento social a que estávamos submetidas no momento de coleta de dados, modificamos o desenho metodológico inicial, que previa a efetivação de entrevistas presenciais e visitas institucionais. A utilização de questionário virtual possibilitou a realização da pesquisa, mas impôs limites ao estudo: o instrumento não permitiu aprofundamento das questões e nem todas as profissionais conseguiram acessá-lo, em virtude do excesso de trabalho e das dificuldades com a tecnologia.

O fato de estarmos inseridas em uma rede de pesquisas com uma grande diversidade de atividades nos permitiu constituir um grupo de estudos virtual, dispositivo fundamental para subsidiar as ações expostas neste texto. As discussões nesse grupo construíram significados sobre intersetorialidade e interdisciplinaridade contextualizados politicamente, ao mesmo tempo singulares e coletivos. Apesar de os resultados aqui obtidos não serem universalizáveis, acreditamos que promovem um maior espaço de reflexão sobre os fatores que dificultam o exercício intersetorial e interdisciplinar.

Além disso, tivemos a oportunidade de participar da construção do Programa Piloto de Formação Continuada para Profissionais da Educação do Município de Duque de Caxias. Isso possibilitou a realização da etapa da pesquisa quando as profissionais estavam pensando Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva.

Apesar de reconhecer a importância das diferentes políticas públicas, a pesquisa se referiu especificamente à articulação entre educação, saúde e assistência social. Essa ação pode ter direcionado a fala das profissionais sobre intersetorialidade a esse escopo particular, denotando uma limitação de produção de sentidos do estudo.

Foram identificados três pilares que sustentam os limites à intersetorialidade, a partir das narrativas das interlocutoras desta pesquisa: a sobrecarga de trabalho individual e coletiva; a dificuldade de engajamento de outros atores da rede; e a falta de conhecimento para lidar com as complexas demandas das crianças com deficiência. Esses aspectos representam barreiras de acesso e de operacionalização da RCPD. Ademais, embora tenham direta relação com as lacunas normativas e com os processos de gestão, são absorvidos de forma individualizada pelas profissionais. Fato verificado a partir da demanda por capacitação como caminho para resolução dos complexos desafios experienciados no cotidiano do trabalho - uma busca que reforça o apelo à setorialidade e reitera a contradição produzida pelas diretrizes normativas que regularizam seus exercícios laborais.

Agradecimentos

As autoras deste artigo agradecem à Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), ao Observatório de Educação Especial e Inclusão Educacional (ObEE) e à Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias. As autoras também agradecem aos pesquisadores e colaboradores da Rede Zika Ciências Sociais, à professora Márcia Pletz e a todas as profissionais que se dispuseram a participar da pesquisa.

Referências

  • 1
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2021
  • Revisado
    13 Jun 2022
  • Aceito
    16 Jun 2022
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