DEBATE DEBATE
Rita Barradas Barata
Santa Casa de Misericórida, São Paulo, Brasil. ch.medsoc@santacasasp. org.br
Debate sobre o artigo de Mary Jane P. Spink
Debate on the paper by Mary Jane P. Spink
O artigo em questão apresenta uma diversidade muito grande de planos de análise tornando relativamente temerária a tarefa de debatê-lo. Para não incorrer então nas inúmeras "armadilhas" apresentadas pela autora, optei por colocar-me estritamente da perspectiva de um praticante da Epidemiologia, campo no qual o conceito de risco desempenha papel nuclear.
O conceito de risco, estrito senso, em qualquer campo de saber científico ou tecnológico em que venha a ser utilizado, tem um único e preciso significado: probabilidade de ocorrência de um evento de interesse. Entretanto, quando se trata de olhar, como faz a autora, para a linguagem em uso ou para os usos da linguagem em diferentes domínios do saber, aí incluído o plano do cotidiano, ocorre uma verdadeira "explosão polissêmica" que esvazia o conteúdo estritamente conceitual da palavra risco, dando lugar a uma noção multifacetada, carregada de valor.
Mantendo-se fiel ao conceito de risco, não haveria como atribuir-lhe conotações negativas ou positivas, visto que o cálculo da probabilidade de ocorrência de um evento é em si mesmo, um procedimento neutro. Todavia, as atribuições de sentido operadas no interior das práxis discursivas conferem à noção de risco ora sentidos positivos, como alguns daqueles pontuados pela autora ao apresentar a idéia de risco-aventura, ora sentidos negativos, como ocorre mais freqüentemente no interior do discurso epidemiológico e na prática em Saúde Pública.
Os variados usos que a palavra risco tem, principalmente no cotidiano, correspondem freqüentemente a um processo de reificação do conceito levando à confusão entre a possibilidade de ocorrência de um evento e as circunstâncias ou elementos "responsáveis" por essa ocorrência. Este efeito pode ser verificado no próprio texto aqui analisado quando a autora se refere ao fato de que na etapa pré-capitalistas "esses eventos (terremotos, furacões e outras desgraças) não eram denominados riscos. Eram referidos como perigos, fatalidades, hazards...". Aqui, a primeira armadilha nesse terreno pantanoso da discussão do risco. A confusão muito comum entre o processo - possibilidade de ocorrência - e suas possíveis "causas".
Ao se passar do campo conceitual para os usos de linguagem, ocorrem inúmeros deslizamentos e, talvez, a mudança mais expressiva se faça justamente na incorporação de um valor negativo à idéia de risco. Na Saúde Pública e na Epidemiologia, as medidas de risco remetem a probabilidades absolutas ou relativas de ocorrência de doença, morte ou outras situações deletérias para a saúde, sendo portanto, quase que automática a vinculação entre a noção de risco e a idéia de agravos negativos. Esta, uma segunda armadilha armada entre a formulação e a utilização do conceito, cujas implicações e efeitos nem sempre estão claramente evidenciados.
As três áreas identificadas pela autora no campo da análise de riscos têm seus equivalentes na Epidemiologia e na Saúde Coletiva. O cálculo dos riscos, a percepção do risco pelo público e a gestão deles podem ser vistos como etapas da produção, divulgação e aplicação de conhecimentos epidemiológicos no que tange ao processo saúde-doença em coletividades. Assim, é parte das tarefas da epidemiologia enquanto disciplina científica, efetuar o cálculo de risco para a ocorrência de doenças e agravos à saúde de populações ou de suas frações em determinadas situações ou contextos. Uma vez produzidos, esses conhecimentos destinam-se, em parte, a provocar mudanças de comportamento entre as pessoas e para isso devem ser divulgados ao público em geral e incorporados a suas práticas cotidianas, do mesmo modo que, destinam-se a informar a prática dos profissionais de saúde. Finalmente, as propostas de políticas e programas voltados para a proteção e recuperação da saúde podem ser vistas como ações no âmbito da gestão de riscos.
Assim sendo, a análise de riscos deveria ser avaliada, mais propriamente, como um instrumento ou uma tecnologia (no sentido amplo do termo tecnologia) potencialmente aplicável a distintos âmbitos da vida, não se constituindo em um campo interdisciplinar mas podendo ser aplicada a diferentes ordens de problemas.
Talvez as perguntas centrais sejam porque e como a noção de risco chegou a ser dominante na modernidade tardia? Que necessidades concretas estão sendo atendidas através da análise de riscos? Que características tem essa episteme na qual a noção de risco adquire tamanha importância?
Não seria preferível adotar a designação de Foucault, diferenciando um período "clássico" antecedendo a modernidade propriamente dita, para demarcar as diferenças entre os séculos XVIII e XIX, entendendo a contemporaneidade como um aprofundamento das características da modernidade?
Ao determinismo mecânico do século XVII, o período das Luzes veio acrescentar a fé cega na razão. A incerteza é vista aí apenas como um sinal da precariedade dos conhecimentos já alcançados pelas ciências naturais. A crença na Razão pressupõem que, mais dia menos dia, as leis de funcionamento da natureza e da sociedade serão conhecidas e portanto, poderão ser aplicadas para "domesticar" o futuro. O modernismo no entanto porá por terra essa crença. A velocidade e a instabilidade serão suas marcas. "Tudo o que é sólido desmancha no ar" como muito bem enfatizou Marx, no Manifesto Comunista.
O conceito de risco, assim como o grande desenvolvimento da estatística, principalmente da teoria das probabilidades, provavelmente aparecem como formas de lidar com a indefinição nas quais a imprevisibilidade é substituída pelo cálculo de graus de incerteza.
A equação em jogo não parece ser fundamentalmente a de oposição entre solidariedade e eqüidade versus iniqüidade e egoísmo, mas antes, a oposição entre previsível e imprevisível.
Outra aspecto que poderia ser considerado na análise da posição proeminente da noção de risco na modernidade, diz respeito à operação de redução de todas as qualidades dos objetos a apenas uma: a quantidade. O fetiche do número, que em parte, decorre de seu caráter objetivo, neutro, não controverso, marca de maneira importante a modernidade e, sem dúvida, contribui para a relevância conferida à noção de risco.
A passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de riscos merece um olhar mais detido. Os dois pólos podem estar nitidamente delineados, entretanto, a transformação ou ruptura de um momento a outro não está suficientemente elucidada. Como, quando e porque a disciplina deixa de ser a forma efetiva de administração do futuro, cedendo espaço à gestão de riscos?
Embora o projeto da autora fosse analisar o emprego da noção de risco no contexto da teoria dos jogos, da economia, da saúde e da biotecnologia o que se viu no presente texto foi a análise do uso cotidiano da noção de risco tal qual ela aparece na mídia impressa aplicando-se ora a um, ora a outro desses conteúdos.
A rigor a autora não faz a análise do uso da noção de risco em diferentes domínios do saber. A análise volta-se exclusivamente para o uso cotidiano, ou seja, tenta flagrar a prática discursiva em ação para fora do universo de elaboração e validação interna dos distintos campos de saber onde a noção pudesse vir a ter utilidade. Este é um ângulo de análise profundamente interessante na medida em que todos os saberes humanos almejam, imediata ou mediatamente, pelo retorno à imediatez, ou seja, pela incorporação no fazer e pensar da cotidianeidade, critério último de validação externa de sua pertinência.
Outro mérito da análise é chamar a atenção para as possíveis conotações positivas da noção de risco, pelo menos em uma das suas inúmeras formas, aqui denominada de risco-aventura. Sem pretender azedar ou entornar o caldo, poderíamos lembrar que mesmo algumas dessas conotações poderiam ser contaminadas, irremediavelmente, pelos valores negativos que a noção carrega habitualmente. Um dos exemplos utilizados pela autora, as formas de edificação, uma das formas culturais do risco-aventura, admitem quase que imediatamente, para os olhos viciados de um sanitarista, enxergar os inúmeros riscos ou probabilidades de ocorrência, de efeitos danosos à saúde tais como acidentes mais ou menos graves e exposição a inúmeros agentes de doenças. Apenas para ficar em um exemplo atual, a epidemia de febre amarela, vivenciada recentemente, esteve bastante relacionada com a expansão do chamado turismo ecológico.
A complexidade e os aspectos contraditórios inerentes à delimitação e cálculo dos riscos, repercutem fortemente nas formas de percepção deles pela população e também nas possíveis propostas de gestão dos riscos, seja pela comunidade de especialistas ou pelos próprios indivíduos. Talvez esse seja um dos principais motivos do mal estar de nossa civilização.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
02 Mar 2018 -
Data do Fascículo
Dez 2001