Open-access Notas sobre o texto Dinâmica do Capitalismo Financeirizado e o Sistema de Saúde no Brasil: Reflexões sob as Sombras da Pandemia de COVID-19

Notes on the text The Dynamic of Financialized Capitalism and the Brazilian Health System: Reflections in the Shadows of the COVID-19 Pandemic

Notas sobre el texto Dinámica del Capitalismo Financiarizado y el Sistema de Salud en Brasil: Reflexiones Bajo las sombras de la Pandemia de COVID-19

O argumento central do texto de Braga & Oliveira 1 é que a financeirização, ao constituir o principal elemento gerador da riqueza no capitalismo contemporâneo tensiona para o aumento da desigualdade, na medida em que exacerba a concorrência entre corporações como capitais centralizados nas diferentes esferas de valorização da riqueza, potencializando o processo “coisificação”, inerente a este sistema. Nesta perspectiva, a saúde e o ser humano são vistos e tratados como mercadorias 2.

Torna-se, pois, fundamental a análise da relação público-privada na oferta de bens e serviços, permeada pela dominância financeira, pois nos ajuda a compreender as forças que mediam a alocação de recursos entre os setores públicos e privados, bem como o imbricamento entre estas duas esferas, seja no financiamento, produção de bens e insumos, como na prestação de serviços.

Este fenômeno não é peculiar ao Brasil, mas nele é exacerbado considerando os princípios fundamentais da Saúde constantes na Constituição Federal de 1988: a universalidade, a igualdade, bem como a integralidade. Ou seja, num país com mais de 200 milhões de habitantes, no qual a saúde é considerada um direito e dever do Estado, o gasto privado é maior do que o gasto público. Ao mesmo tempo em que apresentamos alta dependência tecnológica, o que se reflete numa balança comercial que é deficitária em saúde, o que torna a incorporação tecnológica ainda mais aprofundadora das iniquidades.

Isto é, há uma contradição entre o modelo redistributivo na Constituição de 1988 e os níveis baixíssimos de gasto público em saúde praticados desde a criação do SUS. Se comparados a outros sistemas de saúde públicos universais, o Brasil tem um gasto público de apenas 3,9% do Produto Interno Bruto (PIB), considerado gasto global de 9% com gastos totais em saúde como proporção do PIB. Nesta perspectiva, está mais próximo da relação gasto público-privado dos Estados Unidos, que tem um sistema majoritariamente privatista. E quando observamos os gastos públicos totais com saúde como proporção dos gastos do governo, a relação do Brasil é ainda menor comparativamente a outros países com sistemas de saúde universais (Brasil: 7,7%; Alemanha: 21,4%; Canadá: 19,1%; Reino Unido: 18,5%) 3.

Isso implica um gasto per capita muito abaixo da média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em 2017, o gasto per capita do Brasil com a saúde foi de USD 1.280. Deste montante, apenas um pouco mais de USD 500 foram gastos públicos, para uma população de mais de 75% do país SUS dependente e que se ampliou com o aumento do desemprego e da informalidade. O que escancara a grande iniquidade do sistema. Nosso gasto em saúde per capita é menos de um terço dos gastos da média dos países da OCDE e 27% dos gastos da população brasileira são pagos do próprio bolso, contra 21% da OCDE 4.

Essa incapacidade dos países periféricos como o Brasil, “submetidos à supremacia dos mercados e, portanto, à instabilidade estrutural dos fluxos internacionais de capital” apontada no texto, é fundamental na compreensão do porquê o Brasil apresenta historicamente baixo grau de autonomia na gestão de suas políticas econômicas. E mais recentemente, uma amplificação do movimento de políticas de austeridade fiscal, mesmo diante da crise histórica provocada pela pandemia da COVID-19. Descolando-se inclusive do exemplo dos países centrais para o enfrentamento desta crise, que não abrem mão dos ganhos financeiros, mas utilizam a capacidade de endividamento público aliada a uma política de juros baixos, para promover uma política de aumento de gastos públicos 5,6.

Contra a recessão registrada no país entre 2014 e 2016, além da reforma previdenciária e trabalhista, parte do desmonte das políticas sociais, a instituição da Emenda Constitucional (EC) nº 95/20167, que estabeleceu limites do teto dos gastos para gastos públicos, tem contribuído para o aprofundamento do subfinaciamento do SUS, cujo orçamento está cada dia mais próximo ao piso constitucional. Estimativa feita por Moretti et al. 3 mostra que, com a EC nº 95, somente entre os anos de 2018 e 2020 (sem considerar os recursos extraordinários para a pandemia da COVID-19), o SUS perdeu em torno de BRL 22,5 bilhões de recursos federais. Em seu conjunto, tende a reduzir os gastos públicos ainda mais como proporção do PIB.

O congelamento dos gastos públicos por 20 anos, sem possibilidade de revisão em caso de retomada de crescimento econômico é algo inédito e vários autores já apontavam seus efeitos perversos para o setor público 8,9. Com a crise gerada pela COVID-19, certamente maior do que o crash de 1929, torna mais evidente a necessidade de aumento dos gastos sociais. Com a pandemia da COVID-19, o SUS teve que recorrer aos recursos extraordinários. O que limitou o colapso sanitário em 2020.

Porém, a Proposta de Emenda Constitucional nº 186 (emergência fiscal) 10, que se transformou na EC nº 109/2021 11, busca viabilizar o auxílio emergencial mediante a introdução de uma série de gatilhos, para contenção dos gastos públicos. A adoção de novas medidas de austeridade fiscal estruturais tendem a aprofundar ainda mais as desigualdades sociais no Brasil. Para garantir o auxílio emergencial da ordem de BRL 250 pagos em quatro parcelas, limitados à casa de BRL 44 bilhões, o preço a pagar será alto 12, e se limitará a cerca de 40 milhões de pessoas, excluindo cerca de 30 milhões de pessoas do acesso ao auxílio. Isto num momento em que o número de novos casos e mortes por COVID-19 no país tem batido recordes desde fevereiro de 2021. Dentre outras medidas a EC nº 109 prevê a antecipação dos gatilhos do teto de gasto da União para a Lei Orçamentária Anual (LOA), quando 95% das despesas sujeitas ao teto forem obrigatórias; bem como a contenção dos gastos de entes subnacionais, quando despesas correntes atingirem 95% das receitas correntes. Tais gatilhos também poderão ser ativados caso a despesa corrente supere 85% da receita corrente, o que deverá abranger diversos estados. A lei também passaria a dispor sobre a sustentabilidade da dívida pública, determinando seus limites, bem como propondo a adoção de medidas para forçar a convergência para o patamar definido, incluindo, por exemplo, a privatização de empresas públicas.

Por fim, destaca-se que o orçamento previsto para o SUS em 2021 na LOA foi ligeiramente superior a BRL 123 bilhões, fora os recursos para vacinas, provisionadas como recursos extraordinários e fruto de recursos não utilizados para a pandemia em 2020. Os recursos para Ciência & Tecnologia, na faixa de BRL 15 milhões, apontam que nossa dependência tecnológica tende a se aprofundar. Sancionada a LOA 2021 do Governo Federal, no valor de BRL 4,2 trilhões, dos quais, após muitas negociações, apenas BRL 144,8 bilhões foram para a saúde (134 bilhões para ações e serviços públicos de saúde [ASPS] + 10 bilhões não ASPS). Orçamento este que não dará conta das demandas da pandemia, desde as usuais àquelas reprimidas por conta da mesma 13. Por sua vez, as empresas de planos de saúde apresentaram lucros recordes e as isenções fiscais mantiveram patamar elevado, reforçando as iniquidades do sistema de saúde brasileiro.

Nesse contexto, o texto de Braga & Oliveira 1 tem um tom otimista ao apontar a visibilidade da importância do SUS para a sociedade brasileira, sem deixar de apontar os desafios de sua sustentabilidade no contexto marginal em que nossa economia se encontra em termos mundiais. A economia brasileira apresentou um decrescimento de quase 5%, tendo o Brasil caído para a 12ª economia mundial, quando já esteve na condição de sexta economia mundial, em 2011, com previsão de queda para a 13ª posição em 2022. Algumas indagações ficam aos autores: que medidas fiscais o Brasil poderia adotar para mitigar os efeitos da crise atual, e que reformas estruturais permitiriam ao país retomada de crescimento sem maior aprofundamento das desigualdades já tão ampliadas nos últimos anos?

Finalmente, agradecer pela contribuição dos autores em um tema tão complexo e de extrema relevância para a Saúde Pública.

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  • 1 Braga JCS, Oliveira GC. Dinâmica do capitalismo financeirizado e o sistema de saúde no Brasil: reflexões sob as sombras da pandemia de COVID-19. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00325020.
  • 2 Braga JCS. Financeirização global: o padrão sistêmico da riqueza do capitalismo. In: Fiori JL, Tavares MC, organizadores. Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. São Paulo: Vozes Editora; 1997. p. 195-242.
  • 3 Moretti B, Ocké C, Aragão E, Funcia F, Benevides R. Mudar a política econômica e fortalecer o SUS para evitar o caos. GGN O Jornal de Todos os Brasis 2020; 28 mar. https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/mudar-a-politica-economica-e-fortalecer-o-sus-para-evitar-o-caos/
    » https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/mudar-a-politica-economica-e-fortalecer-o-sus-para-evitar-o-caos/
  • 4 Organisation for Economic Co-operation and Development; The World Bank. Panorama de la salud: Latinoamérica y el Caribe 2020. Paris: Organisation for Economic Co-operation and Development; 2020.
  • 5 Mazzucato M. The value of everything: making and taking in the global economy. London: Allen Lane; 2018.
  • 6 Dweck E, Rossi P, Matos de Oliveira AL. Economia Pós-Pandemia: desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico. São Paulo: Autonomia Literária; 2020.
  • 7 Brasil. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2016; 15 dez.
  • 8 Santos IS, Vieira FS. Direito à saúde e austeridade fiscal: o caso brasileiro em perspectiva internacional. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:2303-14.
  • 9 Funcia FR. Subfinanciamento e orçamento federal do SUS: referências preliminares para a alocação adicional de recursos. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:4405-15.
  • 10 Senado Federal. Proposta de Emenda Constitucional nº 186, de 2019. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/139702 (acessado em Mar/2021).
    » https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/139702
  • 11 Brasil. Emenda Constitucional nº 109. De 15 de março de 2021. Altera os arts. 29-A, 37, 49, 84, 163, 165, 167, 168 e 169 da Constituição Federal e os arts. 101 e 109 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; acrescenta à Constituição Federal os arts. 164-A, 167- A, 167-B, 167-C, 167-D, 167-E, 167-F e 167-G; revoga dispositivos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e institui regras transitórias sobre redução de benefícios tributários; desvincula parcialmente o superávit financeiro de fundos públicos; e suspende condicionalidades para realização de despesas com concessão de auxílio emergencial residual para enfrentar as consequências sociais e econômicas da pandemia da Covid-19. Diário Oficial da União 2021; 16 mar.
  • 12 Moretti B, Ocké C, Aragão E, Funcia F, Benevides R. PEC de Bolsonaro cortará o SUS pela metade e vai afundar o Brasil ainda mais na crise econômica. Viomundo 2021; 24 fev. https://www.viomundo.com.br/blogdasaude/economistas-advertem-austeridade-fiscal-mata-tirem-as-maos-do-sus.html
    » https://www.viomundo.com.br/blogdasaude/economistas-advertem-austeridade-fiscal-mata-tirem-as-maos-do-sus.html
  • 13 Brasil. Lei nº 14.144, de 22 de abril de 2021. Estima a receita e fixa a despesa da União para o exercício financeiro de 2021. Diário Oficial da União 2021; 23 abr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2021
  • Aceito
    22 Mar 2021
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