Open-access Por que os cigarros eletrônicos são uma ameaça à saúde pública?

¿Por qué los cigarrillos electrónicos son una amenaza para la salud pública?

Em outubro de 2018, o U.S. Food and Drug Administration (FDA) realizou uma ação na sede da empresa fabricante dos cigarros eletrônicos da marca Juul, onde milhares de documentos foram apreendidos por suspeita de que a empresa estivesse realizando práticas direcionadas a induzir jovens a consumirem estes produtos de tabaco 1.

Essa ação foi parte da resposta da agência reguladora americana ao que pode ser considerada uma epidemia do uso de dispositivos eletrônicos para fumar entre estudantes dos níveis Médio e Fundamental nos Estados Unidos. Dentre os estudantes do nível Médio o uso de cigarros eletrônicos aumentou de 1,5% em 2011 para 20,8 % em 2018, sendo 2017 o ano do aumento mais significativo 2. Entre os estudantes do Ensino Fundamental o uso desses produtos saltou de 0,6% em 2011 para 4,9% em 2018 2. Em resumo, praticamente 1 em cada 5 estudantes americanos do Ensino Médio usa cigarros eletrônicos, em sua maioria produtos com diversos sabores e majoritariamente da marca Juul 2. Esse significativo aumento observado em 2017 estaria associado à popularização dessa marca no mercado americano 2.

Os motivos da grande popularidade desses produtos entre os estudantes é seu formato, a possibilidade de serem usados discretamente, terem altas concentrações de nicotina e sabores atrativos 3.

O formato pequeno e retangular do produto, apresentando diversas cores, lembrando um pen drive, com carregamento via porta USB, além de atraente, também é discreto. A carga do produto é feita por meio de “pods”, que contêm a quantidade de nicotina equivalente a 20 cigarros (um maço) 4,5.

Em comparação com os demais cigarros eletrônicos, os “pods” utilizados pelo Juul têm um potencial aditivo muito superior, causando uma sensação fisiológica semelhante àquela experimentada por fumantes de cigarros convencionais. Esse produto utiliza nicotina tratada com ácido benzóico (resultando nos sais de nicotina, sua forma natural na folha de tabaco) e para entregar ao usuário concentrações até 10 vezes maiores de nicotina do que os outros cigarros eletrônicos, que usam a nicotina de base livre (freebase) em suas formulações 5. Outros fabricantes, possivelmente inspirados pelo sucesso comercial do Juul, também começaram a adotar os sais de nicotina em seus produtos 4.

É interessante lembrar que a indústria do tabaco tem um histórico de manipulação dos níveis de nicotina nos cigarros, com técnicas que iam desde a adição de amônia nos cigarros para aumentar a nicotina de base livre, até a utilização de variedades de plantas modificadas que produziam altas concentrações de nicotina (tabaco Y-1) 6,7, entretanto, a utilização destes sais em dispositivos eletrônicos para fumar não têm precedentes. Um estudo inclusive sugere que o Juul teria um potencial aditivo para jovens maior que outros cigarros eletrônicos e até mesmo os cigarros comuns 8.

Assim como outros dispositivos eletrônicos para fumar, o Juul apresenta diversos sabores, como por exemplo, creme brûlée, manga e mentol, o que torna este produto ainda mais atrativo para os jovens, da mesma forma que os sabores são utilizados nos cigarros convencionais para facilitar a iniciação e consequentemente a dependência à nicotina 9. Em cigarros eletrônicos foram descritos cerca de 8 mil sabores 10.

Essa combinação de fatores levou um número considerável de jovens escolares norte-americanos à dependência da nicotina. Considerando ainda que cigarros eletrônicos podem ser a porta de entrada para o uso de cigarros, pois os jovens que utilizam estes produtos correm um risco, após 1 ano de uso, pelo menos 4 vezes maior de começar a fumar cigarros comuns e também apresentar risco aumentado de consumo futuro da maconha 11,12,13,14,15.

Outra controvérsia que cerca estes produtos e em relação ao seu uso como auxiliar ao tratamento da cessação, pois apesar de alguns dados sugerirem um possível aumento nas taxas de cessão, os dados publicados ainda não são suficientes para afirmar que os cigarros eletrônicos seriam um método efetivo para parar de fumar 16. Contudo a Inglaterra, entende que estes produtos poderiam ser usados para a cessação, que estariam contribuindo para a redução da prevalência do tabagismo e que teriam menor risco que os cigarros convencionais 17.

Entretanto, o relatório que subsidiou o posicionamento do governo Inglês foi duramente criticado em um editorial da revista The Lancet18 por usarem referências não científicas 19, usarem poucas referências 18, por problemas na formação dos grupo de especialistas consultados 18, ignorarem ressalvas colocadas em uma referência 20 e a principal referência utilizada possuir conflito de interesses 18. O que indica o tamanho da controvérsia que ainda cerca estes produtos.

No Brasil, a prevalência de uso desses produtos é muito baixa 21 em decorrência da proibição desde 2009. Contudo, a comercialização on-line desses produtos tem sido comum, e apesar da proibição, até mesmo grandes lojas de departamento vendem o Juul, e outros dispositivos eletrônicos para fumar, livremente para crianças e adolescentes, e mesmo as ações e multas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) parecem não inibir estas lojas.

Dados apontam que a redução dos números de fumantes ficou estagnada, e o mais grave é que a prevalência de fumantes entre jovens de 18 a 24 anos residentes nas capitais brasileiras aumentou de 7,4% para 8,5% 22 entre 2016 e 2017.

Um dos fatores que possivelmente pode ter contribuído para o aumento do número de fumantes jovens seja a comercialização disseminada desses produtos pela Internet.

Dessa forma, esses produtos podem reverter em pouco tempo as políticas de controle do tabaco, caso medidas regulatórias mais restritivas não sejam tomadas.

Mesmo considerando que a proibição dos dispositivos eletrônicos para fumar efetivamente protegeu o Brasil da epidemia de Juul entre os jovens, deve ser considerada a tomada de ações mais restritivas contra a venda desses produtos, assim como se buscar meios de impedir que os grandes conglomerados de comércio varejista continuem a desafiar as autoridades de saúde para que esses produtos não revertam a bem-sucedida política de controle do tabaco no Brasil.

Agradecimentos

Os autores gostariam de agradecer à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Este artigo representa única e exclusivamente as opiniões e os pensamentos dos autores, baseados nas evidências científicas disponíveis no momento, eles não representam qualquer diretriz e/ou opinião institucional da Anvisa, da Fiocruz, do Ministério da Saúde ou do Governo Brasileiro.

__________

  • 1 Christensen J. FDA seizes documents from e-cigarette maker Juul. CNN 2018. https://www.cnn.com/2018/10/02/health/fda-juul-e-cigarette-surprise-inspection-bn/index.html (acessado em 19/Dez/2018).
    » https://www.cnn.com/2018/10/02/health/fda-juul-e-cigarette-surprise-inspection-bn/index.html
  • 2 Cullen KA, Ambrose BK, Gentzke AS, Apelberg BJ, Jamal A, King BA. Notes from the field: use of electronic cigarettes and any tobacco product among Middle and High School students - United States, 2011-2018. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 2018; 67:1276-7.
  • 3 King BA, Gammon DG, Marynak KL, Rogers T. Electronic cigarette sales in the United States, 2013-2017. JAMA 2018; 320:1379-80.
  • 4 Hammond D, Wackowski OA, Reid JL, O'Connor RJ; International Tobacco Control Policy Evaluation Project (ITC) team. Use of Juul e-cigarettes among youth in the United States. Nicotine Tob Res 2018. [Epub ahead of print].
  • 5 Barrington-Trimis JL, Leventhal AM. Adolescents' use of "pod mod" e-cigarettes - urgent concerns. N Engl J Med 2018; 379:1099-102
  • 6 Stevenson T, Proctor RN. The secret and soul of Marlboro. Am J Public Health 2008; 98:1184-94.
  • 7 Hanford D; Dow Jones News Service. Brown & Williamson used Y-1 tobacco, executive testifies. Truth Tobacco Industry Documents; 1998. https://www.industrydocumentslibrary.ucsf.edu/tobacco/docs/pyvd0172 (acessado em 19/Dez/2018).
    » https://www.industrydocumentslibrary.ucsf.edu/tobacco/docs/pyvd0172
  • 8 McKelvey K, Baiocchi M, Halpern-Felsher B. Adolescents' and young adults' use and perceptions of pod-based electronic cigarettes. JAMA Netw Open 2018; 1:e183535.
  • 9 Scientific Committee on Emerging and Newly Identified Health Risks. Final opinion on additives used in tobacco products (Opinion 1): tobacco additives I. https://ec.europa.eu/health/sites/health/files/scientific_committees/emerging/docs/scenihr_o_051.pdf (acessado em 22/Dez/2017).
    » https://ec.europa.eu/health/sites/health/files/scientific_committees/emerging/docs/scenihr_o_051.pdf
  • 10 Zhu S-H, Sun JY, Bonnevie E, Cummins SE, Gamst A, Yin L, et al. Four hundred and sixty brands of e-cigarettes and counting: implications for product regulation. Tob Control 2014; 23 Suppl 3:iii3-9.
  • 11 Soneji S, Barrington-Trimis JL, Wills TA, Leventhal AM, Unger JB, Gibson LA, et al. Association between initial use of e-cigarettes and subsequent cigarette smoking among adolescents and young adults: a systematic review and meta-analysis. JAMA Pediatr 2017; 171:788-97.
  • 12 Primack BA, Shensa A, Sidani JE, Hoffman BL, Soneji S, Sargent JD, et al. Initiation of traditional cigarette smoking after electronic cigarette use among tobacco-naïve U.S. young adults. Am J Med 2018; 131:443.e1-443.e9
  • 13 Leventhal AM, Strong DR, Kirkpatrick MG, Unger JB, Sussman S, Riggs NR, et al. Association of electronic cigarette use with initiation of combustible tobacco product smoking in early adolescence. JAMA 2015; 314:700-7.
  • 14 Watkins SL, Glantz SA, Chaffee BW. Association of noncigarette tobacco product use with future cigarette smoking among youth in the Population Assessment of Tobacco and Health (PATH) Study, 2013-2015. JAMA Pediatr 2018; 172:181-7.
  • 15 Dai H, Catley D, Richter KP, Goggin K, Ellerbeck EF. Electronic cigarettes and future marijuana use: a longitudinal study. Pediatrics 2018; 141:pii:e20173787.
  • 16 Martins SR. Cigarros eletrônicos: o que sabemos? Estudo sobre a composição do vapor e danos à saúde, o papel na redução de danos e no tratamento da dependência de nicotina. http://www.inca.gov.br/bvscontrolecancer/publicacoes/cigarros_eletronicos.pdf (acessado em 19/Mai/2017).
    » http://www.inca.gov.br/bvscontrolecancer/publicacoes/cigarros_eletronicos.pdf
  • 17 McNeill A, Brose LS, Calder R, Hitchman SC. E-cigarettes: an evidence update. A report commissioned by Public Health England. https://www.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/457102/Ecigarettes_an_evidence_update_A_report_commissioned_by_Public_Health_England_FINAL.pdf (acessado em 23/Sep/2017).
    » https://www.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/457102/Ecigarettes_an_evidence_update_A_report_commissioned_by_Public_Health_England_FINAL.pdf
  • 18 E-cigarettes: Public Health England's evidence-based confusion. Lancet 2015; 386:829.
  • 19 West R, Hajek P, Mcneill A, Brown J, Arnott D. Electronic cigarettes: what we know so far. A report to UK All Party Parliamentary Groups. http://www.smokinginengland.info/reports/ (acessado em 10/Out/2017).
    » http://www.smokinginengland.info/reports/
  • 20 Nutt DJ, Phillips LD, Balfour D, Curran HV, Dockrell M, Foulds J, et al. Estimating the harms of nicotine-containing products using the MCDA Approach. Eur Addict Res 2014; 20:218-25.
  • 21 Cavalcante TM, Szklo AS, Perez CA, Thrasher JF, Szklo M, Ouimet J, et al. Conhecimento e uso de cigarros eletrônicos e percepção de risco no Brasil: resultados de um país com requisitos regulatórios rígidos. Cad Saúde Pública 2017; 33 Suppl 3:e00074416.
  • 22 Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Vigitel Brasil 2017: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2017. Brasília: Ministério da Saúde; 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2018
  • Aceito
    18 Mar 2019
location_on
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rua Leopoldo Bulhões, 1480 , 21041-210 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.:+55 21 2598-2511, Fax: +55 21 2598-2737 / +55 21 2598-2514 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro