O estudo Nascer no Brasil representa um verdadeiro marco para o campo da pesquisa científica sobre o tema da saúde materna e perinatal. Ele surgiu a partir de uma chamada brasileira específica para Pesquisa (Edital 057/2009 do CNPq/Decit), que solicitava um inquérito nacional sobre as consequências do tipo de parto para a saúde de ambos, mãe e filho. Naquela época, eu liderei outra proposta também submetida a essa chamada. A proposta vencedora, à qual o artigo atualmente em debate refere-se, foi liderada por Leal et al. Quero felicitá-la, e a sua equipe, pelo excelente trabalho que realizaram. Isso indica que a decisão da comissão examinadora tomada naquele momento foi apropriada. Tanto quanto é do meu conhecimento, esta é a primeira avaliação abrangente das condições de parto para uma amostra representativa da população brasileira a que temos acesso.
Entre as inúmeras possibilidades de se abordar analiticamente a enorme quantidade de dados que eles certamente têm, estamos agora focando nas “intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de baixo risco” devidamente destacadas nesta edição da revista. Este artigo usou a amostra total do estudo original com informações sobre 23.894 mulheres, e depois selecionou aquelas que poderiam ser classificadas como de baixo risco, excluindo o diagnóstico de hipertensão arterial, diabetes, obesidade, HIV-positivo, idade gestacional fora do intervalo de 37-41 semanas, gravidez múltipla, apresentação não cefálica, peso ao nascer abaixo de 2.500g ou acima de 4.500g, e peso ao nascer não adequado para a idade gestacional, permanecendo com cerca de 57% da amostra com mulheres de baixo risco. Além disso, dependendo do tema focado na análise sobre trabalho de parto e parto vaginal, as mulheres que não entraram em trabalho de parto e aquelas que tiveram cesariana também foram excluídas. Embora seguindo uma estrutura de desenho típica de um estudo transversal, algumas informações sobre essas mulheres foram coletadas 45 dias e seis meses após o parto por meio de entrevistas telefônicas. Esse poderia ser um ponto fraco do estudo, considerando que não temos informação sobre as taxas de abandono para esses dois períodos de coleta de dados adicionais e isto pode ter introduzido um viés de seleção, tendo em conta as dificuldades práticas e as habituais taxas relativamente altas de contatos sem sucesso, pelo menos no Brasil 1.
O artigo trata das boas práticas durante o parto, nem todas elas com fortes evidências que apoiem a sua utilização ou recomendem o não uso, bem como o uso desnecessário de tecnologias e intervenções que poderiam até mesmo prejudicar a mãe e o feto, as taxas excessivamente altas de cesariana entre as mulheres de baixo risco, e levanta a hipótese de que, embora haja uma elevada cobertura hospitalar dos partos no país, a qualidade da assistência obstétrica prestada é geralmente baixa. Foi mostrado que, entre as práticas reconhecidas como boas durante o trabalho de parto em mulheres de baixo risco, incluindo alimentação e mobilidade durante a primeira fase do trabalho de parto (período de dilatação), o uso de métodos não farmacológicos para alívio da dor e o uso adequado do partograma para o acompanhamento da evolução do trabalho de parto em todo o país foram pouco implementadas, para menos da metade das mulheres que poderiam tê-las recebido. Isso é de fato importante e de valor e eu concordo plenamente com essa abordagem. Mesmo que essas práticas ou intervenções não fossem reconhecidas como efetivas na redução dos riscos de eventos adversos para as mães e seus filhos, elas poderiam ser de qualquer maneira recomendadas, pois absolutamente não são prejudiciais e referem-se ao bem-estar das mulheres, têm boa aceitação e podem ser entendidas como um pacote completo de práticas e atitudes humanizadas no cuidado à mulher em trabalho de parto. Na mesma categoria a presença de um acompanhante de sua própria escolha poderia e deveria ser também incluída, mas para o presente estudo este assunto provavelmente será focado em outro lugar.
Por outro lado, o artigo também trata das alegadas altas taxas de intervenções obstétricas utilizadas nessas mulheres de baixo risco e as consideraram desnecessárias. Essas incluem o uso de cateter intravenoso, a ocitocina, a amniotomia, a analgesia peridural, a pressão no fundo uterino, a episiotomia, o parto cesáreo e a posição em litotomia para o parto vaginal. Todas elas foram muito frequentemente utilizadas nessa população, e apenas 5% dos partos vaginais ocorreram sem nenhuma das intervenções consideradas. Surpreendentemente para mim o uso de instrumentos no parto vaginal, especialmente o fórceps, não foi abordado neste tópico. Existem algumas evidências de que a prevalência de fórceps como forma de interrupção da gestação no país está continuamente diminuindo, pelo menos durante a última década, o que mostra que provavelmente este tipo de parto não era realmente necessário nesses casos, com alguns potenciais efeitos prejudiciais. Eu entendo isso como um fato positivo que não foi sequer mencionado. Apesar de entender que a população feminina da qual estamos falando se refere a um grupo de gestantes de baixo risco, algumas outras condições adicionais que podem aumentar os riscos associados ao parto não foram consideradas, por exemplo, a presença de uma cicatriz uterina de cesárea anterior, que é altamente prevalente entre as mulheres brasileiras, a alta paridade que ainda é encontrada no norte e no nordeste do país, e o uso de drogas que está se tornando cada vez mais frequente entre as mulheres da periferia das grandes cidades no Brasil. Valeria a pena levar esses pontos em consideração numa próxima análise dessa maravilhosa e poderosa base de dados.
Mesmo para mulheres de baixo risco, há uma aceitação geral internacional de que essas intervenções são medicamente justificadas e, portanto, não poderiam ser classificadas como intervenções desnecessárias para uma proporção relativamente baixa de mulheres. Esse é o caso, por exemplo, do acesso venoso periférico e uso de ocitocina (em torno de 10-20% para os casos que necessitam de uma indução do parto ou de preparo cervical), da amniotomia (cerca de 20%, não para MATP – manejo ativo do trabalho de parto – mas para corrigir algumas distócias que aparecem espontaneamente durante o parto), da episiotomia (cerca de 25-30% quando o períneo é considerado insuficientemente elástico), ou até mesmo da cesariana (cerca de 15% numa perspectiva mais conservadora como a tradicionalmente recomendada pela OMS). Para obter uma visão mais realista da nossa situação nacional atual, acredito que todas essas condições e práticas devem ser consideradas. Mesmo com isso, tenho a certeza de que as taxas de utilização das boas práticas recomendadas seriam ainda baixas e as taxas do uso de intervenções não recomendadas seriam ainda elevadas. Mas isso é importante a fim de manter um equilíbrio entre as abordagens mais conservadoras e mais inovadoras do cuidado obstétrico.
No entanto, existem duas condições que ainda precisam de um esclarecimento, talvez envolvendo uma visão mais conceitual e filosófica do problema. A primeira refere-se ao uso de analgesia peridural durante o trabalho de parto. A menos que a grande maioria das mulheres que vivencia o trabalho de parto diga que, de fato, ele não é doloroso, e que é facilmente controlável apenas com métodos não farmacológicos de alívio da dor, o que não é o caso, é claro, eu nunca vou aceitar a analgesia peridural na lista de intervenções obstétricas desnecessárias e potencialmente prejudiciais. Ela representa, de fato, uma melhoria dramática na assistência obstétrica moderna que permitiu às mulheres vivenciarem o trabalho de parto e parto de uma forma muito mais humana, indolor e confortavelmente com um acompanhante de sua escolha. Quando adequadamente indicada e realizada, basicamente e praticamente só existem vantagens. Essa é a razão pela qual é uma prática de fato recomendada para as mulheres em trabalho de parto até mesmo pelo Ministério da Saúde 2. Sempre que a mulher desejar, é claro, deve ser ampla e livremente disponível, e então deve ser usada como um ponto positivo em qualquer avaliação da qualidade da atenção obstétrica.
O segundo e último ponto a ser destacado refere-se à utilização da pressão no fundo do útero. Hoje em dia, provavelmente, vai soar como uma heresia, no entanto alguém precisa começar essa discussão. Nós provavelmente estamos contaminados por aquilo que poderia ser chamado de relatos anedóticos (na mídia ou mesmo na literatura científica) de mulheres que sofrem violência obstétrica, com os profissionais realizando o que é comumente conhecido como manobra de Kristeller, usando ambos os braços, ou até os joelhos, para empurrar o fundo uterino para completar a segunda etapa do trabalho de parto, às vezes com eventos adversos graves, como ruptura hepática e hematoma da parede abdominal. Certamente eu não sou louco o suficiente para defender tal prática descrita. No entanto, devemos ser cautelosos ao usar o termo “pressão no fundo do útero” e seu real significado no contexto de uma boa prática obstétrica. Estou falando de uma pressão suave e controlada no fundo do útero com ambas as mãos (não os braços, nem pernas, nem joelhos), realizada por um profissional qualificado em casos selecionados, com a segunda fase de trabalho de parto prolongada e sem desproporção céfalo-pélvica, a ser aplicada com o consentimento das mulheres, a fim de evitar um parto instrumental desnecessário ou mesmo cesariana. Na verdade, a evidência existente sobre esse tema não apoia qualquer tipo de recomendação em favor ou contra o seu uso, até que ensaios realizados mais seriamente não estejam disponíveis para conclusões 3 .
Esses dois pontos são certamente crendices que merecem pelo menos discussões adicionais e estudos bem desenhados para apoiar o seu verdadeiro papel no arsenal de procedimentos obstétricos a serem usados para o bem-estar das mulheres e seus filhos.
Referências bibliográficas
- 1 Cecatti JG, Camargo RPS, Pacagnella RC, Giavarotti T, Souza JP, Parpinelli MA, et al. Computer-assisted telephone interviewing (CATI): using the telephone for obtaining information on reproductive health. Cad Saúde Pública 2011; 27:1801-8.
- 2 Ministry of Health. Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília: Ministério da Saúde; 2001.
- 3 Verheijen EC, Raven JH, Hofmeyr GJ. Fundal pressure during the second stage of labour. Cochrane Database Syst Rev 2009; (4):CD006067.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Ago 2014