Resumos
A participação da sociedade na definição das políticas de saúde constitui um princípio orientador do sistema público de saúde no Brasil. Analisaram-se os discursos dos participantes sobre o papel e a representatividade de conferências municipais de saúde. O estudo foi realizado em cinco municípios de Mato Grosso, Brasil, no período 2009-2010. Foram entrevistados 30 atores sociais, entre conselheiros e gestores de saúde, planejadores, vereadores e representantes do Ministério Público. Os dados foram analisados com o auxílio do software Qualiquantisoft para elaboração do discurso do sujeito coletivo. Os discursos encontrados refletem um consenso sobre a importância da conferência municipal de saúde, mesmo no caso daqueles que questionam a efetividade de suas decisões no planejamento e na gestão. Observaram-se discursos resultantes de interpretações de tradições teóricas distintas. Conclui-se que os discursos do sujeito coletivo apresentam argumentos complementares, mas também conflitantes, que buscam maior ressonância e influência na esfera pública sanitária e sobre o sistema político e o poder administrativo.
Democracia; Planejamento em Saúde; Participação Social; Conferências de Saúde; Política
Society’s participation in health policymaking is an underlying principle of the Brazilian public health system. The study analyzed participants’ discourses on the role and representativeness of municipal health conferences. The study was conducted in five municipalities (counties) in Mato Grosso State, Brazil, in 2009-2010. Thirty social actors were interviewed, including municipal health council members and health system administrators, planners, city council members, and members of the office of the public prosecutor. Data were analyzed using the Qualiquantisoft software for the elaboration of the collective subject’s discourse. The discourses identified by the study showed a consensus on the importance of the municipal health council, even among those who questioned the effectiveness of its planning and administrative decisions. The studied revealed discourses resulting from interpretations based on different theoretical traditions. The collective discourses presented both complementary and conflicting arguments, seeking greater resonance and influence in the public health sphere and political system and greater administrative power.
Democracy; Health Planning; Social Participation; Health Conferences; Politics
La participación de la sociedad en la definición de las políticas de salud se constituye en un principio orientador del sistema público de salud en Brasil. Se analizaron los discursos de los participantes sobre el papel y la representatividad de las conferencias municipales de salud. El estudio se realizó en cinco municipios de Mato Grosso durante el período 2009-2010. Fueron entrevistados 30 actores sociales, entre consejeros y gestores de la salud, planificadores, regidores y representantes del ministerio publico. Los datos fueron analizados con el apoyo del software Qualiquantisoft para la elaboración del discurso del sujeto colectivo. Los discursos encontrados reflejan un consenso sobre la importancia de la conferencia municipal de salud, inclusive en el caso de aquellos que cuestionan la efectividad de sus decisiones sobre la planificación y gestión. Se observaron discursos resultantes de interpretaciones de tradiciones teóricas distintas. Se concluye que los discursos del sujeto colectivo presentan argumentos complementarios, pero también conflictivos, que buscan mayor resonancia e influencia en la salud pública y en el poder político y administrativo.
Democracia; Planificación em Salud; Participación em Salud; Conferencias de Salud; Política
Introdução
A participação da sociedade na definição das políticas de saúde constitui um princípio orientador da organização do sistema público no Brasil desde 1986, quando da realização da VIII Conferência Nacional de Saúde. Esse princípio é incorporado como norma constitucional e legal na configuração do Sistema Único de Saúde (SUS) no país, na forma de conselhos e conferências de saúde em todas as esferas de governo. Apesar do ineditismo e da relevância da iniciativa, o tema ainda é relativamente pouco estudado e sua expressão no dia a dia do planejamento e gestão do sistema de saúde ainda é pouco conhecida.
As questões referentes à representação política têm sido tratadas na literatura, porém no âmbito dos conselhos de saúde. Há diferentes explicações para os problemas encontrados: a heterogeneidade constitutiva dos campos societal e estatal 11 Tatagiba L. Os Conselhos gestores e a democratização das políticas públicas no Brasil. In: Dagnino E, organizador. Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002. p. 47-103.; a falta de conhecimento sobre o tema 22 Gerschman S. Conselhos Municipais de Saúde: atuação e representação das comunidades populares. Cad Saúde Pública 2004; 20:1670-81.; baixo grau de participação na vida associativa 33 Labra ME. Conselhos de Saúde: dilemas, avanços e desafios. In: Lima NT, Gerschman S, Edler FC, Suárez JM, organizadores. Saúde e democracia: histórias e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 353-83. , 44 Santos Júnior OA, Azevedo S, Ribeiro LCQ, organizadores. Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan/Fase; 2004.; inexistência de controle sobre os representantes por parte dos representados 22 Gerschman S. Conselhos Municipais de Saúde: atuação e representação das comunidades populares. Cad Saúde Pública 2004; 20:1670-81. , 33 Labra ME. Conselhos de Saúde: dilemas, avanços e desafios. In: Lima NT, Gerschman S, Edler FC, Suárez JM, organizadores. Saúde e democracia: histórias e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 353-83..
Neste estudo, para avaliar a influência e a representação política nas conferências municipais de saúde, utiliza-se uma abordagem original e que vem crescentemente sendo incorporada ao campo da saúde coletiva em relação ao tema 55 Müller Neto JS, Artmann E. Política, gestão e participação em Saúde: reflexão ancorada na teoria da ação comunicativa de Habermas. Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17:3407-16., a referência conceitual da teoria discursiva da democracia e da teoria do agir comunicativo, proposta por Habermas 66 Habermas J. Teoria do agir comunicativo. Tomo 1. Racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes; 2012. , 77 Habermas J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. 2 a Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2003. , 88 Artmann E. Interdisciplinaridade no enfoque intersubjetivo habermasiano: reflexões sobre o planejamento e AIDS. Ciênc Saúde Coletiva 2001; 6:183-95..
O estudo também se apoia em referencial metodológico qualitativo que revela as percepções e representações expressas pelos discursos dos atores sociais envolvidos no processo. Fundamenta-se na premissa de que a democracia e as organizações democráticas têm como apoio o poder comunicativo, ou seja, a possibilidade das pessoas agirem comunicativamente para mudar as normas legais da formação da vontade política e pressionar as instituições a incorporar determinadas demandas em sua agenda de prioridades. A influência dos inúmeros sujeitos que compõem a sociedade civil é manifestada por meio do poder comunicativo.
As conferências municipais de saúde são espaços públicos, parte da esfera pública, em que representantes da sociedade civil e do governo municipal encontram-se em situação de deliberação e, portanto, de estabelecer ações comunicativas e resgatar as pretensões de validade de seus discursos. Uma ação comunicativa é uma forma de ação social em que os participantes se envolvem em igualdade de condições para expressar ou para produzir opiniões pessoais, sem qualquer coerção, e decidir, pelo princípio do melhor argumento, ações que visam a determinar a sua vida social 88 Artmann E. Interdisciplinaridade no enfoque intersubjetivo habermasiano: reflexões sobre o planejamento e AIDS. Ciênc Saúde Coletiva 2001; 6:183-95..
A deliberação é o diálogo entre diferentes sujeitos em busca de consenso ou do acordo possível, tendo como condição de legitimidade o direito de todos os interessados poderem participar. O princípio da deliberação democrática, ou do discurso, afirma que apenas são válidas aquelas normas-ações que contam com o assentimento de todos os indivíduos participantes de um discurso racional 66 Habermas J. Teoria do agir comunicativo. Tomo 1. Racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes; 2012.. A deliberação democrática ocorre na esfera pública, aqui entendida como rede adequada para a comunicação de conteúdos, opiniões e tomadas de posição, e constitui uma estrutura comunicativa referente ao espaço social gerado na ação comunicativa. Por essa razão, as metáforas mais usadas para caracterizá-la são arquitetônicas: fóruns, palcos, espaços, redes, arenas. A esfera pública é o meio que permite a própria existência da sociedade civil e não se constitui apenas de ações comunicativas, voltadas ao entendimento. Também é espaço de conflito, pois nela há comunicações estratégicas, geradas pelo sistema político e pelo mercado, veiculadas sobretudo pelos meios de comunicação, em busca da lealdade política ou da preferência de consumo. Quem alimenta a esfera pública com ações comunicativas é a sociedade civil, e sua capacidade de influenciar e estabelecer a agenda política precisa ser avaliada caso a caso 55 Müller Neto JS, Artmann E. Política, gestão e participação em Saúde: reflexão ancorada na teoria da ação comunicativa de Habermas. Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17:3407-16. , 77 Habermas J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. 2 a Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2003.. Neste trabalho adotamos o conceito de esfera pública sanitário para nomear os atores governamentais e não governamentais mais diretamente envolvidos nos debates sobre as políticas públicas de saúde.
A tese adotada no estudo é que as conferências são espaços deliberativos representativos nos quais os discursos dos participantes podem influenciar a definição de prioridades das políticas de saúde, e o objetivo deste artigo foi analisar os discursos dos participantes sobre o papel e a representatividade de conferências municipais de saúde.
Desenho do estudo
A pesquisa foi realizada nos municípios de Cuiabá, Várzea Grande, Sinop, Diamantino e Cáceres, em Mato Grosso, Brasil, cujo principal critério de inclusão foi serem referências regionais em saúde. Um estudo anterior sobre conferências e conselhos de saúde, que incluiu esses mesmos municípios, também forneceu elementos que facilitaram o planejamento deste trabalho 99 Müller Neto JS, Schrader FAT, Pereira MJVS, Nascimento IF, Tavares LB, Motta AP. Conferências de saúde e formulação de políticas em 16 municípios de Mato Grosso, 2003-2005. Saúde Debate 2006; 30:248-74.. A escolha dos participantes deu-se em função da posição, da representatividade e importância para a experiência analisada 1010 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Editora Hucitec/Rio de Janeiro: ABRASCO; 1992., aliadas ao fato de terem participado no processo municipal de realização da conferência de saúde ou terem exercido função diretamente relacionada com o objeto da pesquisa, no período em estudo, de 2007-2008. O promotor entrevistado foi o que ocupava o cargo no município no momento da realização da pesquisa. A intenção era entrevistar 35 atores, sete em cada município, entre eles: o secretário municipal de saúde e o coordenador ou responsável pela área de planejamento da gestão municipal da saúde; dois conselheiros de saúde, sendo um usuário e um trabalhador de saúde; dois representantes do legislativo municipal, o presidente da Câmara e um membro da comissão de saúde; e o promotor responsável pela promotoria de justiça em defesa da cidadania. Foram entrevistadas 30 pessoas, pois 5 deixaram de aderir: um secretário municipal de saúde, um promotor e três vereadores, sendo dois presidentes da Câmara.
Os depoimentos foram coletados por meio de entrevistas orientadas por roteiro semiestruturado. Evitou-se perguntas que pudessem gerar respostas dicotômicas ou que exigissem conhecimento especializado dos respondentes 1111 Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadores. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005.. As questões respondidas faziam referência à opinião sobre a conferência, a representatividade dos participantes e do próprio evento, as normas e procedimentos que orientaram o processo e a influência dos resultados na gestão. As entrevistas foram agendadas previamente, realizadas em salas reservadas a este fim e gravadas com a autorização dos entrevistados. Antes da entrevista foram dadas explicações sobre o objetivo do estudo, foi feita a leitura e assinado o termo de consentimento por todos os participantes, garantindo-se a preservação de suas identidades. Todas as entrevistas foram transcritas na íntegra e revisadas, e realizadas no período de outubro de 2009 a fevereiro de 2010.
As informações obtidas permitiram a construção de um banco de dados inseridos no programa Qualiquantisoft (http://www.spi-net.com.br/html/software.html; SPi-Sales & Paschoal Informática/Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil) e foram analisadas pelo método do Discurso do Sujeito Coletivo 1212 Lefèvre F, Lefèvre, AM. Depoimentos e discursos: uma proposta de análise em pesquisa social. Brasília: Líber Livro; 2005. (Série Pesquisa, 12).. O programa foi utilizado para a consolidação dos dados. Com base nas “expressões-chave” (EC) e “ideias centrais” (IC) obtidas foram construídos os discursos do sujeito coletivo que representam, portanto, os discursos do conjunto dos entrevistados, sem distinção de sua práxis social. Os depoimentos individuais, que têm ideias centrais semelhantes, são também compostos de conteúdos discursivos e ideativos semelhantes que, por isto, podem ser abstraídos e na escala coletiva configuram um sujeito coletivo de discurso. O Discurso do Sujeito Coletivo pode ter mais de uma ideia central ou vários indivíduos podem apresentar a mesma ideia central. O método baseia-se no pressuposto de que o pensamento de uma coletividade é o conjunto de representações presentes em um determinado contexto histórico-social, ao qual as pessoas recorrem para expressar seus pensamentos sobre os temas em debate na sociedade. A ancoragem 1212 Lefèvre F, Lefèvre, AM. Depoimentos e discursos: uma proposta de análise em pesquisa social. Brasília: Líber Livro; 2005. (Série Pesquisa, 12). é figura metodológica fundamental na análise baseada nesse método por estabelecer a relação com os conceitos, valores e ideologia subjacentes nos discursos do sujeito coletivo. Ressalta-se que essa análise foi complementada com o referencial habermasiano como pano de fundo e a ancoragem dos discursos se fez também com base na literatura, o que contribui, inclusive para diminuir a subjetividade nas interpretações dos discursos encontrados, sem desconsiderar que o mundo subjetivo dos atores está presente 66 Habermas J. Teoria do agir comunicativo. Tomo 1. Racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes; 2012.. Outrossim, o próprio método Discurso do Sujeito Coletivo por ter os discursos construídos com base nas ideias centrais e palavras-chave permite reproduzir com boa fidelidade os discursos originais.
Do roteiro da entrevista foram selecionadas duas questões discursivas diretamente vinculadas à hipótese do estudo: Qual a sua opinião sobre a conferência municipal de saúde? Do seu ponto de vista, os delegados à conferência municipal de saúde de 2007 eram representativos?
O projeto foi apresentado ao Comitê de Ética da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), obtendo parecer favorável (protocolo n o 119/09).
Características da amostra
O perfil dos entrevistados evidencia alto grau de escolaridade e um número significativo de pessoas provenientes de outros estados da federação, característica do processo de ocupação do território em Mato Grosso nas últimas duas décadas. Também deve ser destacado que 25 dos 30 entrevistados participam ou participaram de algum movimento social e 13 eram filiados a partidos políticos ( Tabela 1 ).
Resultados
Apresentamos a seguir as ideias centrais extraídas das respostas dos participantes, com base nas duas questões selecionadas, e os respectivos discursos que as representam, construídos diretamente baseando-se nos depoimentos. Não foram feitas análises por escolaridade ou atividade exercida pelos participantes. Em algumas ocasiões diferentes questões foram abordadas de modo imbricado, característica natural do tema abordado. Os discursos foram elaborados tendo como base as ideias chave e expressões-chave, as quais foram analisadas priorizando-se o sentido comum e as relações de ancoragem manifestadas pelos depoimentos.
As ideias centrais identificadas junto com os respectivos discursos do sujeito coletivo relacionadas à questão 1: “ Qual é a sua opinião sobre a conferência municipal de saúde? ”, encontram-se na Tabela 2 e as referentes à questão 2: “ Do seu ponto de vista, os delegados à conferência municipal de saúde de 2007 eram representativos? ” estão explicitadas na Tabela 3.
Discursos do Sujeito Coletivo relacionados à pergunta 1: “Qual é a sua opinião sobre a conferência municipal de saúde?”.
Discursos do Sujeito Coletivo relacionados à pergunta 2: “Do seu ponto de vista, os delegados à conferência municipal de saúde de 2007 eram representativos?”.
Discussão
Nos resultados encontrados, os discursos do sujeito coletivo, são o conjunto, ou parte dele, dos discursos existentes na coletividade de atores governamentais e não governamentais relacionados à realização das conferências municipais de saúde.
Os discursos sobre as conferências municipais de saúde assinalam um consenso e diferentes papéis
Os discursos encontrados refletem um consenso sobre a importância dos espaços institucionalizados de participação social no setor saúde. Mesmo os discursos que questionam a influência direta das resoluções das conferências na gestão municipal de saúde, consideram-nas um espaço público relevante para as políticas de saúde.
• Definição das políticas e elaboração do plano de saúde
Os discursos 1.A e 1.B ( Tabela 2 ) têm características complementares e são apresentadas separadamente para realçar os diferentes matizes de posicionamento, pois enquanto a primeira é menos estruturada e enfatiza a participação para o levantamento de anseios e demandas, a segunda é mais instrumental, utiliza a racionalidade e linguagem técnico-científica da gestão e do planejamento em saúde. O papel da conferência na definição das diretrizes da política de saúde é valorizado principalmente por estar nas normas legais 1313 Brasil. Lei no 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 31 dez., situação expressa como importante por vários autores 33 Labra ME. Conselhos de Saúde: dilemas, avanços e desafios. In: Lima NT, Gerschman S, Edler FC, Suárez JM, organizadores. Saúde e democracia: histórias e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 353-83. , 44 Santos Júnior OA, Azevedo S, Ribeiro LCQ, organizadores. Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan/Fase; 2004. , 55 Müller Neto JS, Artmann E. Política, gestão e participação em Saúde: reflexão ancorada na teoria da ação comunicativa de Habermas. Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17:3407-16. , 99 Müller Neto JS, Schrader FAT, Pereira MJVS, Nascimento IF, Tavares LB, Motta AP. Conferências de saúde e formulação de políticas em 16 municípios de Mato Grosso, 2003-2005. Saúde Debate 2006; 30:248-74..
• Controle da sociedade
O discurso D.1 que enfatiza o papel da conferência como instrumento para o controle social é ressaltado na literatura por Labra 33 Labra ME. Conselhos de Saúde: dilemas, avanços e desafios. In: Lima NT, Gerschman S, Edler FC, Suárez JM, organizadores. Saúde e democracia: histórias e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 353-83., que considera o fortalecimento da sociedade civil e seu crescente papel no controle das organizações públicas, e na interpretação de Callahan 1414 Callahan K. Elements of effective governance: measurement, accountability and participation. Newark: Auerbach Publications; 2006. para quem a accountability é um conceito mais amplo: responsividade e capacidade de responder às demandas de outrem - superiores e população; comportamento ético e aderência a padrões morais, quando da execução da função pública – dever do funcionário público de prestar contas de suas atitudes à sociedade, o que substituiu a restrita responsabilização do funcionário público com seu superior. Ressalte-se a importância atribuída por essa ideia central à norma legal como fundamento do controle da sociedade sobre o Estado.
• Promoção da democracia e cidadania
Os discursos C.1, F.1 e G.1 que valorizam a conferência como espaço democrático e político são mais articulados, enfatizam a importância do debate, da deliberação, da representatividade, não se prendem aos aspectos formais, aproximam-se do enfoque da política deliberativa 55 Müller Neto JS, Artmann E. Política, gestão e participação em Saúde: reflexão ancorada na teoria da ação comunicativa de Habermas. Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17:3407-16. , 1515 Manim B. Legitimidade e deliberação política. In: Werle DL, Melo RS, organizadores. Democracia deliberativa. São Paulo: Editora Singular/Esfera Pública; 2007. p. 15-45. e sinalizam a necessidade da deliberação como o pacto possível a ser alcançado. Optamos por enfatizar esses 3 discursos do sujeito coletivo para evidenciar as diferenças, as nuanças existentes sobre a noção de democracia e os distintos pesos atribuídos às noções de representação, educação, participação e suas combinações na configuração democrática.
Para os defensores da política deliberativa, nesses fóruns as pessoas adquirem as habilidades da cidadania e passam a considerar os interesses públicos com mais intensidade em suas proposições. Durante a deliberação coletiva, a informação, que no começo estava incompleta, torna-se mais consistente, mesmo que incompleta, pois a complexidade da vida social impossibilita aos indivíduos dispor de toda informação necessária. A decisão política é por natureza uma escolha sob a incerteza 1515 Manim B. Legitimidade e deliberação política. In: Werle DL, Melo RS, organizadores. Democracia deliberativa. São Paulo: Editora Singular/Esfera Pública; 2007. p. 15-45..
A ação comunicativa é realizada justamente na dialética entre ação comunicativa pura versus discurso. No primeiro caso as premissas são aceitas a priori e compartilhadas sem crítica entre participantes que partilham interpretações do mesmo mundo da vida, e no segundo caso há questionamentos sobre os conteúdos e o consenso fica suspenso até que novos acordos se processem 66 Habermas J. Teoria do agir comunicativo. Tomo 1. Racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes; 2012. , 77 Habermas J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. 2 a Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2003. , 88 Artmann E. Interdisciplinaridade no enfoque intersubjetivo habermasiano: reflexões sobre o planejamento e AIDS. Ciênc Saúde Coletiva 2001; 6:183-95..
• Participação pouco efetiva na gestão
Os discursos que contestam a efetividade da conferência, como E1.a e E1.b, construídos com base na mesma ideia central (E – conferência como fórum deliberativo pouco prático e efetivo; Tabela 2 ), defendem sua importância, centrando suas críticas na qualidade da deliberação, formato, procedimentos e condução do processo conferencista (E1.a), ou no pouco compromisso do gestor e da gestão municipal com as resoluções aprovadas (E1.b). O argumento que relaciona o valor atribuído pelo gestor às decisões da conferência a sua maior ou menor efetividade é recorrente na literatura 1616 Côrtes SMV. Conselhos e conferências de saúde: papel institucional e mudança nas relações entre Estado e sociedade. In: Fleury S, Lobato L, organizadores. Participação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde; 2009. p. 102-27. , 1717 Guizard FL, Pinheiro R, Machado FRS. Vozes da participação: espaços, resistências e o poder da informação. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva, Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ABRASCO; 2005. p. 225-38.. A qualidade da deliberação também é assinalada como questão que determina a maior ou menor influência da conferência 1818 Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. A 13a Conferencia Nacional de Saúde: ampliação da participação, congestionamento de propostas e fragmentação das demandas. Informativo da ABRASCO 2007; XXIV(99):4-5. , 1919 Conselho Nacional de Secretários de Saúde. As Conferências Nacionais de Saúde: evolução e perspectivas. Brasília: Conselho Nacional de Secretários de Saúde; 2009. (CONASS Documenta, 18). , 2020 Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde. Participação social no SUS: o olhar da gestão municipal. Brasília: Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde; 2009. , 2121 Moreira MR, Escorel S. Dilemas da participação social em saúde: reflexões sobre o caráter deliberativo dos conselhos de saúde. Saúde Debate 2010; 34:47-55..
Adotando-se a definição de Fraser 2222 Fraser N. Rethinking the public sphere: a contribution to the critique of actually existing democracy. In: Calhoun C, organizador. Habermas and the public sphere. Cambridge: MIT Press; 1992., conferências de saúde seriam públicos políticos considerados fracos na medida em que suas decisões não são vinculativas, de cumprimento obrigatório, como são as leis aprovadas nos parlamentos, considerados públicos políticos fortes. Fung 2323 Fung A. Receitas para esferas públicas: oito desenhos institucionais e suas conseqüências. In: Schattan VP, Nobre M, organizadores. Participação e deliberação: teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora 34; 2004. p. 173-209. assinala que a boa deliberação deve ser racional no sentido instrumental, na qual os indivíduos promovam seus próprios interesses individuais e coletivos por meio da discussão, da livre associação, do levantamento de informação, do planejamento e resolução de problemas; deve ser razoável no sentido de que os participantes respeitem as reivindicações dos outros e limitem o autointeresse de acordo com as normas de justificação, o que pressupõe aceitar interesses comuns e normas habitualmente aceitas como respeito, reciprocidade e equidade e, finalmente, deve ser igual e inclusiva. Se o propósito da deliberação for a formação da vontade política, o formato do espaço público pode aprimorar o grau de racionalidade do processo 66 Habermas J. Teoria do agir comunicativo. Tomo 1. Racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes; 2012. , 77 Habermas J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. 2 a Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2003.. Considere que os cidadãos têm acesso privilegiado às suas próprias preferências e valores e conhecimento da realidade local.
Os discursos sobre a representação refletem a disputa sobre seu estatuto teórico e prático nos espaços públicos (R5)
O debate sobre a representação é objeto de diferentes interpretações e possibilita distintas teorias explicativas. Um primeiro critério de diferenciação recai sobre a importância e o papel que se confere à participação ativa da sociedade civil e o peso atribuído à escolha dos representantes por meio de eleições. A questão do processo, da forma e da finalidade da representação é outro critério que recebe respostas diferentes. Se há consenso sobre a importância do papel da conferência, em relação à sua representatividade se observam disputas e discursos conflitantes, como mostrado a seguir.
• Representação como espelho
Os discursos A2 e D2 comungam a noção de que os delegados representavam cada um dos
segmentos da sociedade e que o processo seguiu os requisitos exigidos para participação,
entre outros, a realização de um processo de autorização para a escolha, prévio à
conferência. O segundo refere-se à escolha dos delegados durante a conferência, mas seu
argumento é o mesmo. Esses discursos estão afinados com a visão de que a conferência
reflete o conjunto da sociedade, seria um microcosmos ou espelho da sociedade como um todo
2424 Miguel LF. Representação política em 3-D: elementos para uma teoria
ampliada da representação política. Rev Bras Ciênc Sociais 2003;
18:123-40., representada por seus segmentos 2525 Avritzer L. Sociedade civil, instituições participativas e representação:
da autorização à legitimação da ação. Dados Rev Ciênc Sociais 2007;
50:443-64.
,
2626 Almeida DCR, Cunha ESM. O potencial dos conselhos
de políticas na alteração da relação entre estado
e sociedade no Brasil. In: Anais XIV Congresso
Brasileiro de Sociologia; 2009. http://www.sbso
ciologia.com.br/portal/index.php?option=com_
docman&task=cat_view&gid=226&Itemid=171
(acessado em 28/Ago/2012).
http://www.sbso
ciologia.com...
.
• Representação formalística não basta
O argumento claramente identificado no discurso do sujeito coletivo B2 que o cumprimento das formalidades (“... no papel estava paritário ...”) por si só não implica a existência de representação efetiva, constitui uma crítica à visão formalista que enfatiza apenas a autorização formal dada pelos cidadãos para alguns agirem em seu lugar 2727 Urbinati N. O que torna a representação democrática. Lua Nova 2006; 67:191-228..
• Interesses gerais e particulares
Aqui (discurso do sujeito coletivo C2) assinala-se a inexistência de vínculos efetivos entre representantes e o conjunto dos representados, sobretudo os da “ponta”, substituídos pela defesa de interesses particularistas, de segmentos e grupos sociais. Essa questão está ancorada em tipos de representações acerca da participação social e reflete o debate existente na literatura sobre se os espaços de participação social institucionalizados atêm-se aos interesses particularistas, corporativos ou governamentais, ou se também incorporam os interesses coletivos, públicos 2525 Avritzer L. Sociedade civil, instituições participativas e representação: da autorização à legitimação da ação. Dados Rev Ciênc Sociais 2007; 50:443-64. , 2727 Urbinati N. O que torna a representação democrática. Lua Nova 2006; 67:191-228.. A perspectiva da política deliberativa contribui para o entendimento do problema, como afirma Manin 1515 Manim B. Legitimidade e deliberação política. In: Werle DL, Melo RS, organizadores. Democracia deliberativa. São Paulo: Editora Singular/Esfera Pública; 2007. p. 15-45., ao propor que necessariamente deve-se articular deliberação e representação para que os representantes defendam os interesses gerais e dos seus segmentos. Para esse autor a deliberação é um processo de discussão pública no qual os participantes oferecem propostas e justificações para sustentar decisões políticas, coletivas. A legitimidade das decisões estaria no processo de discussão que as fundamentam.
• Representação implica conhecimento e experiência
A quinta ideia central, expressa no discurso do sujeito coletivo E2, assinala a importância do conhecimento e da experiência sobre o tema para a existência de boas práticas representativas, aspecto ressaltado por Avritzer 2525 Avritzer L. Sociedade civil, instituições participativas e representação: da autorização à legitimação da ação. Dados Rev Ciênc Sociais 2007; 50:443-64. para os casos de representação da sociedade civil. Ressalve-se que o argumento tem sido utilizado algumas vezes para questionar a legitimidade da participação de representantes da sociedade civil nos fóruns deliberativos sobre políticas públicas, como apontam Guizard et al. 1717 Guizard FL, Pinheiro R, Machado FRS. Vozes da participação: espaços, resistências e o poder da informação. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva, Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ABRASCO; 2005. p. 225-38. ao assinalarem que o exercício do poder nestes fóruns dá-se pelo uso e controle da informação, legitimado pelo conhecimento técnico-científico e indagam: Como propor que usuários participem quando se coloca como condição o recurso a instrumentos conceituais que apenas alguns sujeitos dominam? As brechas de informações e conhecimentos no debate público sempre vão existir, e a diminuição da assimetria para garantir a qualidade da deliberação é responsabilidade de todos os participantes 2323 Fung A. Receitas para esferas públicas: oito desenhos institucionais e suas conseqüências. In: Schattan VP, Nobre M, organizadores. Participação e deliberação: teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora 34; 2004. p. 173-209.. A legitimidade democrática é dada pela liberdade de acesso e pelo direito igual de opinar sobre qualquer argumento, sem normas coercitivas de qualquer tipo 66 Habermas J. Teoria do agir comunicativo. Tomo 1. Racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes; 2012..
• Participação, representação e deliberação
O uso corrente do termo delegado nas instâncias de participação social das políticas de saúde implica uma concepção de representação, vinculada à tradição da democracia direta. A teoria política tradicional da representação aceita dois tipos de autorização: o delegado e o fiduciário. O primeiro é porta-voz dos representados, com mandato revogável e sem autonomia, enquanto o segundo tem maior grau de liberdade e uma vinculação menos intensa com sua base de representação 2828 Bobbio N. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra; 1986. , 2929 Cotta M. Representação política. In: Bobbio N, Matteucci N, Pasquino G, organizadores. Dicionário de política. Brasília: Editora UnB; 1992. p. 1101-7. , 3030 Lima Júnior OB. Instituições políticas democráticas: o segredo da legitimidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores; 1997. , 3131 Pitkin HF. Representação: palavras, instituições e ideias. Lua Nova 2006; 67:15-47.. Esse enfoque atribui ao primeiro a representação de interesses corporativos e aos segundos, dos interesses gerais. Entretanto, ao se adotar uma perspectiva ampliada do conceito, a representação implica além de autorização, accountability e a representação da diversidade, das diferentes identidades 3232 Santos BS, organizador. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 2002..
A noção de representação das diferentes identidades aparece com ênfase nos discursos dos sujeitos coletivos, o que demonstra a importância atribuída pelos sujeitos sociais à noção de pluralidade 77 Habermas J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. 2 a Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2003. , 3333 Cohen JL. Sociedade civil e globalização: repensando categorias. Dados Rev Ciênc Sociais 2003; 46:419-59.. Por outro lado, é importante assinalar que nenhum discurso questiona explicitamente a legitimidade do processo de escolha prévia dos participantes à conferência e nem questiona como e por quem foram elaborados os requisitos para autorizar a participação na conferência.
Também o conceito de accountability, controle dos representantes – o
vínculo, a prestação de contas dos representantes aos seus representados – não aparecem
nos discursos. Essa ausência sugere que o modelo de autorização permite ao representante
agir de acordo com suas próprias preferências e valores, o que está de acordo com os
achados de Almeida & Cunha 2626 Almeida DCR, Cunha ESM. O potencial dos conselhos
de políticas na alteração da relação entre estado
e sociedade no Brasil. In: Anais XIV Congresso
Brasileiro de Sociologia; 2009. http://www.sbso
ciologia.com.br/portal/index.php?option=com_
docman&task=cat_view&gid=226&Itemid=171
(acessado em 28/Ago/2012).
http://www.sbso
ciologia.com...
e Gershman 22 Gerschman S. Conselhos Municipais de Saúde: atuação e representação das
comunidades populares. Cad Saúde Pública 2004; 20:1670-81., em suas pesquisas sobre conselhos de saúde. A delegação tem instruções
vinculativas, o que não aparece nos discursos, pois não há referência a cobranças do
exercício da representação. A ausência de cobrança da ação do representante é atribuída
por autores como Labra 33 Labra ME. Conselhos de Saúde: dilemas, avanços e desafios. In: Lima NT,
Gerschman S, Edler FC, Suárez JM, organizadores. Saúde e democracia: histórias e
perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 353-83. à cultura política prevalente no país. A deliberação pública requer não apenas
pontos de vistas múltiplos, mas conflitantes, e seu papel na formação da opinião e da
vontade política é enfatizada na teoria discursiva da democracia 77 Habermas J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. 2
a Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2003..
Entretanto, surge outra questão: e os que não puderam, ou não quiseram, ou se omitiram de participar na deliberação? Uma das respostas a essa questão, dada por Manin 1515 Manim B. Legitimidade e deliberação política. In: Werle DL, Melo RS, organizadores. Democracia deliberativa. São Paulo: Editora Singular/Esfera Pública; 2007. p. 15-45., considera o resultado legítimo se a decisão é definida no encerramento do processo deliberativo. E, se no debate, cada um estava apto a tomar parte, escolher entre diversas soluções e permanecer livre para aprovar ou recusar as conclusões desenvolvidas a partir do argumento. A decisão resulta de um processo no qual o ponto de vista da minoria também foi considerado. Ela pode não contemplar todos os pontos de vista, mas é resultado de uma confrontação entre eles que considerou os argumentos de todos.
O estatuto da representação 2727 Urbinati N. O que torna a representação democrática. Lua Nova 2006; 67:191-228. envolve representação política, não apenas eleitoral – escolha por votação – implica continuidade, vínculo entre representante e representado, autorização formal e influência informal, manifestação do poder comunicativo na esfera pública, processo que conecta sociedade e instituições 77 Habermas J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. 2 a Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2003. , 2727 Urbinati N. O que torna a representação democrática. Lua Nova 2006; 67:191-228..
A visão maniqueísta, democracia representativa ou democracia direta, representação ou participação, cede espaço no debate teórico e na prática social à postura que busca democratizar a representação e estabelecer acordos ou consensos sobre os procedimentos para a participação e a deliberação 55 Müller Neto JS, Artmann E. Política, gestão e participação em Saúde: reflexão ancorada na teoria da ação comunicativa de Habermas. Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17:3407-16.. Segundo Avritzer 2525 Avritzer L. Sociedade civil, instituições participativas e representação: da autorização à legitimação da ação. Dados Rev Ciênc Sociais 2007; 50:443-64., todas as formas de participação, até as mais diretas possíveis, implicam delegação de soberania. A questão é pensar quais seriam as suas formas políticas que permitiriam a expressão da vontade da sociedade.
Considerações finais
As conferências municipais de saúde são percebidas por atores sociais da esfera pública sanitária como espaços públicos importantes e efetivos para a promoção da cidadania e da democracia, e como controle da sociedade sobre a gestão pública da saúde e a definição da agenda política no setor. Alguns discursos questionam sua efetividade na gestão, na determinação direta, sem mediação, das prioridades das políticas e planos municipais de saúde. Essa leitura encontra respaldo no fato de que as deliberações das conferências não têm caráter vinculativo, e seu estatuto de representação é objeto de disputa e diferentes interpretações por parte dos componentes da esfera pública sanitária. Daí a razão, entre outras, da dificuldade em tornar efetiva no âmbito da gestão do SUS a determinação legal que afirma ser atribuição das conferências de saúde definir as diretrizes para a formulação das políticas de saúde.
O painel dos discursos encontrados sobre o papel e a representatividade das conferências compõe um conjunto diversificado. Encontramos aqueles cujos conceitos incorporam valores e percepções ancorados na visão da representação exclusivamente eleitoral. Outros excluem qualquer tipo de representação e negam a legitimidade da participação das organizações da sociedade civil nas políticas e na gestão pública. Outros ainda enfatizam o processo deliberativo ou diferentes composições entre eles.
Os Discursos do Sujeito Coletivo representam a diversidade de sentidos atribuídos aos conceitos polissêmicos de representação, participação, deliberação e democracia, e incorporam fragmentos dos diferentes discursos encontrados no mundo da vida 11 Tatagiba L. Os Conselhos gestores e a democratização das políticas públicas no Brasil. In: Dagnino E, organizador. Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002. p. 47-103.. Os Discursos do Sujeito Coletivo sobre o papel, a influência e a representatividade da conferência municipal de saúde guardam relação com os diferentes atores sociais. Os Discursos do Sujeito Coletivo encontrados têm argumentos complementares, mas também concorrentes, que buscam maior ressonância e influência na esfera pública sanitária e sobre o sistema político e o poder administrativo.
O referencial habermasiano contribuiu para a compreensão dos resultados na medida em que postula que a democracia e as organizações democráticas apoiam-se no poder comunicativo, na possibilidade das pessoas agirem comunicativamente para formar a vontade política e pressionar as instituições a incorporar determinadas demandas entre suas prioridades. A empreitada de Habermas busca superar as visões excludentes de participação versus representação versus deliberação por meio da teoria discursiva da democracia 77 Habermas J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. 2 a Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2003. , 2727 Urbinati N. O que torna a representação democrática. Lua Nova 2006; 67:191-228.. Os conceitos de poder comunicativo, ação comunicativa e discurso, deliberação democrática, sociedade civil e esfera pública 55 Müller Neto JS, Artmann E. Política, gestão e participação em Saúde: reflexão ancorada na teoria da ação comunicativa de Habermas. Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17:3407-16. , 66 Habermas J. Teoria do agir comunicativo. Tomo 1. Racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes; 2012. , 77 Habermas J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. 2 a Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2003. , 88 Artmann E. Interdisciplinaridade no enfoque intersubjetivo habermasiano: reflexões sobre o planejamento e AIDS. Ciênc Saúde Coletiva 2001; 6:183-95. , 2525 Avritzer L. Sociedade civil, instituições participativas e representação: da autorização à legitimação da ação. Dados Rev Ciênc Sociais 2007; 50:443-64. , 2727 Urbinati N. O que torna a representação democrática. Lua Nova 2006; 67:191-228. definidos e utilizados neste estudo, têm contribuído para qualificar o debate contemporâneo sobre a teoria e as práticas democráticas.
Finalmente, sugere-se novos estudos e pesquisas sobre o formato e os procedimentos que regem as conferências municipais de saúde, a fim de contribuir para assegurar e ampliar a participação, a deliberação e a representatividade das mesmas e sua influência na tomada de decisão da gestão municipal de saúde. Nesse sentido, seria desejável alguma norma que obrigasse os gestores do SUS e os conselhos de saúde a prestar contas, no início do processo conferencista, das respectivas medidas tomadas para o cumprimento das deliberações da conferência. A ampliação das práticas democráticas é sempre uma boa receita.
À Fátima Ticianel Schrader, Nina Rosa Ferreira e Simone Charbel, que participaram do trabalho de campo e colaboraram na análise dos resultados, à Regiane Oliveira que colaborou na operacionalização do Qualiquantisoft e a todos os auxiliares de pesquisa do Núcleo de Desenvolvimento em Saúde do Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal de Mato Grosso.
Referências
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1Tatagiba L. Os Conselhos gestores e a democratização das políticas públicas no Brasil. In: Dagnino E, organizador. Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002. p. 47-103.
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2Gerschman S. Conselhos Municipais de Saúde: atuação e representação das comunidades populares. Cad Saúde Pública 2004; 20:1670-81.
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3Labra ME. Conselhos de Saúde: dilemas, avanços e desafios. In: Lima NT, Gerschman S, Edler FC, Suárez JM, organizadores. Saúde e democracia: histórias e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 353-83.
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4Santos Júnior OA, Azevedo S, Ribeiro LCQ, organizadores. Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan/Fase; 2004.
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5Müller Neto JS, Artmann E. Política, gestão e participação em Saúde: reflexão ancorada na teoria da ação comunicativa de Habermas. Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17:3407-16.
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6Habermas J. Teoria do agir comunicativo. Tomo 1. Racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes; 2012.
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7Habermas J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. 2 a Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2003.
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8Artmann E. Interdisciplinaridade no enfoque intersubjetivo habermasiano: reflexões sobre o planejamento e AIDS. Ciênc Saúde Coletiva 2001; 6:183-95.
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9Müller Neto JS, Schrader FAT, Pereira MJVS, Nascimento IF, Tavares LB, Motta AP. Conferências de saúde e formulação de políticas em 16 municípios de Mato Grosso, 2003-2005. Saúde Debate 2006; 30:248-74.
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10Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Editora Hucitec/Rio de Janeiro: ABRASCO; 1992.
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11Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadores. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005.
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12Lefèvre F, Lefèvre, AM. Depoimentos e discursos: uma proposta de análise em pesquisa social. Brasília: Líber Livro; 2005. (Série Pesquisa, 12).
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13Brasil. Lei no 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 31 dez.
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14Callahan K. Elements of effective governance: measurement, accountability and participation. Newark: Auerbach Publications; 2006.
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15Manim B. Legitimidade e deliberação política. In: Werle DL, Melo RS, organizadores. Democracia deliberativa. São Paulo: Editora Singular/Esfera Pública; 2007. p. 15-45.
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16Côrtes SMV. Conselhos e conferências de saúde: papel institucional e mudança nas relações entre Estado e sociedade. In: Fleury S, Lobato L, organizadores. Participação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde; 2009. p. 102-27.
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17Guizard FL, Pinheiro R, Machado FRS. Vozes da participação: espaços, resistências e o poder da informação. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva, Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ABRASCO; 2005. p. 225-38.
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18Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. A 13a Conferencia Nacional de Saúde: ampliação da participação, congestionamento de propostas e fragmentação das demandas. Informativo da ABRASCO 2007; XXIV(99):4-5.
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19Conselho Nacional de Secretários de Saúde. As Conferências Nacionais de Saúde: evolução e perspectivas. Brasília: Conselho Nacional de Secretários de Saúde; 2009. (CONASS Documenta, 18).
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20Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde. Participação social no SUS: o olhar da gestão municipal. Brasília: Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde; 2009.
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22Fraser N. Rethinking the public sphere: a contribution to the critique of actually existing democracy. In: Calhoun C, organizador. Habermas and the public sphere. Cambridge: MIT Press; 1992.
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23Fung A. Receitas para esferas públicas: oito desenhos institucionais e suas conseqüências. In: Schattan VP, Nobre M, organizadores. Participação e deliberação: teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora 34; 2004. p. 173-209.
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24Miguel LF. Representação política em 3-D: elementos para uma teoria ampliada da representação política. Rev Bras Ciênc Sociais 2003; 18:123-40.
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25Avritzer L. Sociedade civil, instituições participativas e representação: da autorização à legitimação da ação. Dados Rev Ciênc Sociais 2007; 50:443-64.
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26Almeida DCR, Cunha ESM. O potencial dos conselhos de políticas na alteração da relação entre estado e sociedade no Brasil. In: Anais XIV Congresso Brasileiro de Sociologia; 2009. http://www.sbso ciologia.com.br/portal/index.php?option=com_ docman&task=cat_view&gid=226&Itemid=171 (acessado em 28/Ago/2012).
» http://www.sbso ciologia.com.br/portal/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=226&Itemid=171 -
27Urbinati N. O que torna a representação democrática. Lua Nova 2006; 67:191-228.
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28Bobbio N. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra; 1986.
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29Cotta M. Representação política. In: Bobbio N, Matteucci N, Pasquino G, organizadores. Dicionário de política. Brasília: Editora UnB; 1992. p. 1101-7.
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30Lima Júnior OB. Instituições políticas democráticas: o segredo da legitimidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores; 1997.
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31Pitkin HF. Representação: palavras, instituições e ideias. Lua Nova 2006; 67:15-47.
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32Santos BS, organizador. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 2002.
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33Cohen JL. Sociedade civil e globalização: repensando categorias. Dados Rev Ciênc Sociais 2003; 46:419-59.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan 2014
Histórico
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Recebido
14 Set 2012 -
Revisado
13 Jun 2013 -
Aceito
06 Ago 2013