CSP e os artigos de Ciências Sociais e Humanas em Saúde: o que tem sido, o que está por vir

Cadernos de Saúde Pública (CSP) comemora 40 anos mantendo viva a missão de publicação ampla em todos as áreas disciplinares da Saúde Coletiva. Mas como tem sido a participação das Ciências Sociais e Humanas em Saúde nessa trajetória? Para realizar essa discussão, analisamos a produção de Ciências Sociais e Humanas em Saúde publicada em CSP nos últimos 20 anos (2004-2023).

Nesse intervalo temporal temos um total de 284 artigos que foram analisados e aprovados pelos editores associados de Ciências Sociais. Podemos mesmo dizer que nos últimos 20 anos a participação dos textos de Ciências Sociais e Humanas em Saúde no total de artigos publicados pela revista foi muito modesta, variando de cerca de 2% (2008) a 9% (2013). Algumas hipóteses podem animar nossa discussão, como a existência de outras excelentes revistas com perfil mais dedicado à publicação em Ciências Sociais e Humanas em Saúde, que atraem um número maior de artigos da área, e a “fuga de artigos” para revistas internacionais. Todavia, com uma taxa de cerca de 80% a 90% de textos recusados dentre os submetidos, a questão da qualidade dos artigos é um tema que precisa ser enfrentado. São textos que no sistema de avaliação das editoras-chefes ou, posteriormente, na análise por pares foram apontados como apresentando problemas de ordem teórica, metodológica ou não aportando reflexões originais. Tal quadro alerta para a questão da formação de Ciências Sociais e Humanas em Saúde no campo da Saúde e da Saúde Coletiva em particular, reafirmando a necessidade de maiores investimentos em um campo que é interdisciplinar por definição e, portanto, com muitos pesquisadores oriundos de distintas áreas científicas que demandam aprendizado de base teórico-metodológica. A baixa ou irregular oferta de cursos de metodologias em Ciências Sociais e de teoria social para alunos de programas de mestrado e doutorado tem sido apontada em estudos há algum tempo ^1,2,3. O decrescente número de professores da área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde nos programas de pós-graduação em Saúde Coletiva ⁴ é um fato que merece ser analisado e torna ainda mais difícil a tarefa de formação, repercutindo na qualidade das produções científicas em geral e também nos artigos.

Outrossim, ao analisar o conjunto dos artigos de Ciências Sociais publicados em CSP podemos afirmar sem qualquer hesitação que está ali representada a enorme diversidade temática e os debates mais relevantes do campo.

Estudos dedicados à análise de políticas, programas, serviços e aspectos dos atendimentos em saúde foram o principal conjunto temático publicado, indicando que o histórico envolvimento das Ciências Sociais e Humanas em Saúde como campo de conhecimento vinculado à análise crítica e aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e das políticas públicas de saúde se mantém vivo. A seguir, artigos que tratam dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres foram destaque, mas gradativamente se consolida a visibilidade de outros sujeitos, como os textos que colocam em foco os homens e as distintas masculinidades, as pessoas trans e questões relacionadas à saúde de pessoas LGBTQI. Nesse conjunto, o tema do aborto foi significativamente presente, denunciando as inúmeras dificuldades e preconceitos que mulheres sofrem ao recorrer à interrupção legal da gravidez, bem como as barreiras para a implantação de políticas públicas que reconheçam o direito de mulheres decidirem por ter ou não filhos. As diferentes violências e seus impactos na saúde foram o terceiro conjunto temático que reuniu mais artigos, especialmente em textos que tratam da violência contra mulheres cis e trans, as formas de atendimento e as relações com os agentes do campo da Saúde. Também se destacaram os temas igualmente caros ao campo das Ciências Sociais e Humanas em Saúde, como as representações e práticas relacionadas ao processo saúde-doença-atenção, processo de trabalho e a saúde dos trabalhadores, sexualidades e IST-HIV e saúde mental.

Além desse quadro temático geral, aqui descrito em linhas muito superficiais, destacamos duas valiosas contribuições em textos também publicados em CSP: os estudos que discutem procedimentos metodológicos qualitativos e os de teoria social. São artigos que refletem sobre o pensamento social em saúde na América Latina, a atualidade da determinação social, das concepções de risco, além de abordar a contribuição de autores seminais como Pierre Bourdieu, Roger Bastide, entre outros. Há também os trabalhos que tratam temas teórico-práticos da operacionalização metodológica e, juntamente com os textos de pesquisa teórica, se mostram essenciais à formação de pesquisadores de nosso campo.

No doloroso marco da emergência da COVID-19, os artigos de Ciências Sociais e Humanas em Saúde publicados em CSP discutiram temas de vital relevância para a compreensão de como a pandemia foi vivida no Brasil. Assim, as inegáveis marcas do racismo estrutural expostas no cenário das mortes por COVID-19, as representações midiáticas da pandemia, o debate sobre vacinas nas redes sociais, as dimensões do cuidado em um contexto sem precedentes na história recente foram assuntos tratados em artigos nesse período. Uma agenda de pesquisa para as Ciências Sociais e Humanas em Saúde em tempo de COVID-19 também foi tema de editorial em 2021.

CSP também se fez presente no apoio e visibilização dos Congressos de Ciências Sociais e Humanas em Saúde. A cada edição desse congresso seminal do campo, um editorial foi publicado e seus organizadores puderam ali divulgar os principais pontos do debate e das agendas políticas colocadas por essa comunidade de pesquisa e práticas.

Em síntese, poderíamos dizer que CSP tem contribuído com artigos relevantes em Ciências Sociais e Humanas em Saúde e que segue apoiando a produção e as inciativas do campo, mas essa participação pode ser ainda maior, garantindo tanto os espaços para as produções consagradas e de máxima relevância para a Saúde Coletiva, como dando visibilidade aos muitos trabalhos que tratam das necessárias transformações e rupturas, sejam epistêmicas, teóricas e das práticas de pesquisa e dos serviços. Discussões que emergem no contexto das decolonialidades, das situcionalidades identitárias, das condições que sinalizam opressões e negação de direitos, mas também empoderamento e agência, das transformações processadas pelo capitalismo digital e suas tecnologias, da justiça ambiental e crise ecológica, entre tantos outros temas que nos exigem reflexão sobre o “tempo presente” e que podem enriquecer a comunidade de debates que CSP representa.

Eis o convite, eis o desafio. Façam de CSP o espaço vivo do debate inquieto, criativo e transformador que caracteriza a reflexão das Ciências Sociais e Humanas em Saúde!

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• ¹
  Deslandes S, Maksud I. Ensino de metodologias em Ciências Sociais e Humanas nos programas de pós-graduação em Saúde Coletiva (2002-2016). Cad Saúde Pública 2020; 36:e00133619.
• ²
  Deslandes SF, Iriart JAB. Usos teórico-metodológicos das pesquisas na área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde. Cad Saúde Pública 2012; 28:2380-6.
• ³
  Nunes ED, Ferreto LE, Oliveira ALO, Nascimento JL, Barros NF, Castellanos MEP. O campo da Saúde Coletiva na perspectiva das disciplinas. Ciênc Saúde Colet 2010; 15:1917-22.
• ⁴
  Iriart JAB, Trad LAB. Perfil da produção bibliográfica em Ciências Sociais e Humanas em Saúde e a percepção de pesquisadores: avanços, limites e desafios. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00085019.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  22 Jul 2024
• Data do Fascículo
  2024

Histórico

• Recebido
  12 Jun 2024
• Aceito
  14 Jun 2024