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ENTREVISTA COM RUBENS FIGUEIREDO

Escritor e tradutor Rubens Figueiredo possui formação acadêmica em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na especialidade português-russo1 1 A tradução minha desta entrevista ao russo foi enviada em 18 jan 2021 para publicação em anais da Conferência internacional “XXIVªs leituras tchekhovianas” em Iujno-Sacalínsk, Federação Russa. . No âmbito acadêmico atua como professor de português no Ensino Médio e foi professor de tradução literária na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Ainda no âmbito literário exerce um papel reconhecido no nível nacional de autor de resenhas literárias, de editor de revistas de cunho literário e de autor de traduções de obras literárias escritas em russo, inglês, francês e espanhol. Figueiredo também é escritor, autor de 7 livros (dados de ano 2006)2 2 Disponível em https://www.dicionariodetradutores.ufsc.br/pt/RubensFigueiredo.htm. Acesso em 29 sep 2021. , premiado com Prêmio Arthur Azevedo da Fundação Biblioteca Nacional por livro As palavras secretas em 1999 e com Prêmio Jabuti de melhor romance por obra Barco a seco em 2002. Traduziu ao português do Brasil mais de 40 obras literárias completas, principalmente russas, de tais autores como Tolstói, Tourgueniev, Gontcharóv, Gogol, Górki contando com tais obras como Anna Karenina, Guerra e Paz, Pais e Filhos, Oblomov, O nariz, Infância entre várias outras. Apenas sua tradução de contos de Tolstói em três volumes, publicada pela Editora Cosac & Naify em 2015, conta com uma coletânea de 270 obras do autor clássico russo. Em 2018 apresentou para público brasileiro a primeira tradução direta de russo ao português do Brasil do livro A ilha da Sacalina de Anton Tchékhov, a tradução inédita até então no país, que foi consequentemente publicada pela Editora Todavia. A referida tradução foi marcada pela nomeação ao Prêmio Jabuti da Literatura em categoria de tradução literária.

Cadernos de Tradução [CT]: Gostaria de começar com a primeira pergunta: Porque a cultura e literatura russa? Como aconteceu que você decidiu escolher este caminho e dedicar tanto do seu tempo, estudos e trabalho a tradução de literatura russa?

Rubens Figueiredo [RF]: O motivo inicial do meu interesse pela Rússia foi a leitura da literatura russa clássica, ainda na adolescência. Logo em seguida, veio o interesse pela Revolução Soviética, pela música clássica russa e, por fim, pela cultura e pela história russa em conjunto, com sua riqueza extraordinária. O curso de língua e literatura russas que fiz na faculdade, no Rio de Janeiro, entre os dezoito e os vinte e dois anos (1974-1978) foi consequência daquele interesse inicial. Seguiu-se (1981-1982) uma pós-graduação com a professora Maria Aparecida Pereira Soares, que havia estudado no Instituto Púchkin de Moscou, graças a um programa de bolsas de estudo para estudantes pobres, ligados a sindicatos de operários.

Os anos seguintes, no entanto, foram muito confusos, para mim e para todos em meu país. Porém, após dezesseis anos de afastamento dos estudos de russo, tive a oportunidade de voltar à língua russa graças à minha experiência profissional de tradutor de livros de língua inglesa. Retomei o trabalho com o russo, primeiro, nos fins de semana. Comecei a fazer traduções por conta própria e, aos poucos, fui convencendo editores a publicar, primeiro, textos curtos e, depois, alguns livros. Com os anos, eu pude expandir essa atividade. Por sorte e grande felicidade minha, ultimamente minhas traduções têm sido feitas exclusivamente a partir da língua russa.

Esta foi uma forma feliz de eu reencontrar minha juventude e fazer justiça aos meus pobres esforços para estudar a língua russa. De certo modo, também é uma forma de poder viver, em pensamento, a cultura russa, embora a milhares de quilômetros de distância. No entanto, devo ressaltar uma grande limitação da minha parte: minha competência para falar o russo é bem reduzida, ao passo que, na leitura, eu me saio um pouco melhor.

[CT]: Lendo sobre o senhor e seus trabalhos da tradução, percebi que o seu foco literário diacrônico (se podermos aplicar um termo linguístico a este contexto) é a literatura do século XIX. Seria alguma razão específica que motivou o senhor a se focar nesse período?

[RF]: Eu sou um tradutor profissional, o que significa que eu sou obrigado a vender a minha força de trabalho para empresas capitalistas, para usar as palavras certas. Em geral, eu não escolho o que traduzo. Porém, no caso da literatura russa, tive algumas vezes a chance de convencer editores a fazer a tradução de determinados livros. Foi o caso de Oblómov, de Gontcharóv, de Ressurreição, de Tolstói, e de algumas outras obras. Mas não é a regra. Com o tempo, no entanto, minhas sugestões têm merecido um pouco mais confiança da parte dos editores e, por isso, ultimamente, têm sido aceitas com um pouco mais de facilidade. Mas não na maioria dos casos.

A questão do século XIX merece uma reflexão mais detalhada. Minha tese parte da ideia de que, na Europa, o século XIX foi a era da ascensão da burguesia, em luta contra a ordem social feudal, monárquica e aristocrática. Naquela época, a visão de mundo da burguesia, como classe, ainda abria espaço para fomentar uma perspectiva crítica da sociedade e a ideia do progresso geral da humanidade, embora de forma intrinsecamente contraditória.

No século XX, ao contrário, o capitalismo se consolidou como forma imperialista e monopolista, de dominação e exploração brutas e crescentes. Perdeu-se o horizonte de um progresso humano real e a face decadente, e cada vez mais desesperada, da burguesia se exprimiu com mais arrogância, e mais desespero, na literatura que ela produziu e que produz até hoje.

Não admira, portanto, que no conjunto, a meu ver, a melhor literatura se encontra no século XIX. Não se trata de uma questão de talento individual, de técnica ou inovação literária, de teorias filosóficas ou sociológicas. A questão de fundo reside na relação entre a literatura e a sociedade. No tipo de relação que se estabeleceu entre as obras e a população de cada país. No conteúdo dessa relação.

Foi exatamente isso que as traduções da literatura clássica russa me ensinaram, pois naquele conjunto de obras, produzidas na Rússia, a relação entre a literatura e a sociedade (ou seja, o povo) constitui, de forma bem visível, o fundo e a forma, o primeiro e segundo planos de cada livro. Os debates que envolviam aqueles escritores determinavam não só cada parágrafo dos livros como também a sua concepção geral. E é daí que provém seu alcance histórico fora do comum e sua longa sobrevida.

Para mim, isso representou uma verdadeira descoberta e me permitiu pensar na literatura de uma forma bem mais abrangente, esclarecedora e racional. Representou a descoberta de que a literatura pode ser concebida e interpretada de um modo muito diferente daquele que eu conhecia – basicamente, uma concepção individualista. Entendi também que o alcance e a profundidade dos livros não dependem dos autores individualmente. É fruto, sobretudo, de fatores históricos objetivos. De uma relação e de um processo.

[CT]: Fazendo o meu curso de Estudos da Tradução tenho bastante interesse em pesquisas sobre o processo tradutório a respeito de seus métodos, abordagens teóricas etc. Queria ver como senhor compararia a tradução de russo ao português com tradução de outros idiomas-fontes. Alguns inconvenientes específicos ou desafios quanto à tradução no par russo-português que você poderia destacar?

[RF]: Difícil responder. Mas sei que, entre nós, brasileiros, todos estranham muito quando eu digo que, em russo, só existe uma palavra para pé e perna, e só uma palavra para mão e braço! As pessoas abrem a boca e perguntam: como é possível? Mas, ao traduzir, vemos que é perfeitamente possível, e é até muito bonito e expressivo que seja assim.

Veja aqui abaixo um exemplo curioso, retirado de minha tradução de Guerra e paz, em que Tolstói usa apenas uma vez a palavra рука, mas a tradução para o português é obrigada a desdobrá-la em duas palavras, primeiro braço e depois mão. Pois a “mão” não tem cotovelo, e o “braço” não pode amassar o programa da ópera!!

‘Ее черные глаза смотрели на толпу, никого не отыскивая, а тонкая обнаженная выше локтя рука, облокоченная на бархатную рампу, очевидно бессознательно, в такт увертюры, сжималась и разжималась, комкая афишу’ (Tolstói 324Tolstói, L. N. Pôlnoie sobránie sotchinênii v 91 t. Tom 10. “Voiná i mir”. Moscou: Gossudárstvennoe izdátelhstvo Khudôgestvennaia literatura, 1938.). – ‘Seus olhos negros fitavam a multidão sem encontrar ninguém, o braço fino e desnudo até acima do cotovelo se apoiava no parapeito de veludo do camarote, enquanto a mão, num gesto obviamente inconsciente, fechava e abria no ritmo da música da abertura, amassando o programa da ópera’

(Tolstói 217-8Tolstói, L. Guerra e paz. Volume 2. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Editora Schwarsz S.A., 2017.).

[CT]: Chegando mais ao foco da nossa conversa de hoje, queria perguntar o que motivou o senhor escolher Tchékhov esta vez de novo? Se eu não me engano, esta foi a 11ª obra do Tchékhov que o senhor traduziu, contando com traduções anteriores de A gaivota, A estepe, O professor de letras, Iônitch e Kachtanka entre outras…

[RF]: Fiz também a tradução das quatro peças principais de Tchékhov e de seus últimos contos (1898-1903). Mas esses dois livros ainda não foram publicados. Talvez sejam lançados no ano que vem.

A escolha da tradução de A ilha de Sacalina não foi minha, mas do editor. E eu não posso dizer o que levou o editor a escolher o livro. Mas suponho que tenha sido, pelo menos em parte, a fama de ser um livro de reportagem, ideia que eu, aliás, não aceito.

[CT]: Em A ilha da Sacalina o Tchékhov se apresenta para leitor mais como jornalista e escreve um certo itinerário de viagem, ou uma reportagem. Qual seria a impressão do senhor sobre este “outro” estilo do Tchékhov em comparação com as obras dele com quais você já trabalhou?

[RF]: Desculpe, eu não acho que Tchékhov se apresente como jornalista. Tchékhov deixa bem claro que pretende escrever um estudo de caráter científico, técnico, objetivo. Algo semelhante a uma dissertação ou tese universitária contemporânea. Mas o resultado final, de fato, foi além disso.

A ilha de Sacalina é, antes de tudo, uma pesquisa científica, repleta de dados, estatísticas, hipóteses, conclusões e propostas práticas e realistas para o problema estudado. A visão do médico profissional se soma, por vezes, à de um etnógrafo amador, mas, outras vezes, deriva para a perspectiva de um autor de livros de viagem, como denota o subtítulo: “Notas de viagem”. De outro lado, nos capítulos, se entremeiam o tempo todo passagens de teor autobiográfico em que o leitor é informado sobre o estado de espírito do autor, suas memórias e impressões. Destacam-se também descrições em que o esmero literário sobressai e retratos de personagens reais, traçados com os requintes artísticos de uma página de romance.

Há ainda quem aponte no livro elementos de uma longa reportagem. Mas essa ideia me parece errada e tem até algo de anacrônico. As obras literárias eram, então, publicadas em jornais e revistas, porém, na época, não existiam reportagens, propriamente ditas, no sentido moderno. A meu ver, essa fama atual do livro A ilha de Sacalina deriva de um esforço dos jornalistas modernos para tomar emprestado, à força, de Tchékhov um tipo de prestígio literário e intelectual que a atividade jornalística, por definição, e por razões objetivas, não pode ter.

O certo é que A ilha de Sacalina se trata de uma obra híbrida, que se movimenta em vários sentidos, o que, como se sabe, constitui uma das características mais significativas e constantes da literatura russa.

[CT]: Tchékhov começa a descrever a sua chegada à Sacalina com incêndio de taigá (mato cunífero), talvez para deixar uma impressão de que essa viagem levou ele até o inferno. Do mesmo tom, se parece, o autor descreve as condições de presidiários, condenados ao trabalho forçado, vivendo nesse inferno uma vida longe de ser humana. Qual seria um relato ou evento deste feito itinerário, que impressionou o senhor mais ao decorrer do seu trabalho da tradução deste livro?

[RF]: Eu não compartilho essa visão de que o livro apresenta a ilha de Sacalina como um “inferno”. Acho que essa maneira de apresentar a obra, aliás, exemplifica muito bem a visão “jornalística”, no sentido moderno da palavra, ou seja, uma simplificação sensacionalista.

A rigor, este livro de Tchékhov não apresenta situações piores nem melhores do que suas outras obras, sejam contos ou peças de teatro. Em suas obras de ficção, os sofrimentos humanos e as mais diversas formas de tragédia se espalham por todos os ambientes sociais ou naturais. Faltam os números, as estatísticas, os cálculos, os termos de química e geologia, que Tchékhov adota em A ilha de Sacalina. Mas o cenário humano é o mesmo, ou pelo menos equivalente.

As aspirações de justiça, respeito e solidariedade presentes nos prisioneiros descritos no livro são contrapostas a tudo aquilo que se opõe a essas mesmas aspirações. Não só no ambiente social e natural, mas nas próprias pessoas, ou seja, em sua mente e em suas ações. E esse é um procedimento constante, e até padrão, em seus contos e em suas peças. Refiro-me à relação entre as falas e os pensamentos dos personagens, de um lado, e, de outro lado, os fatos, o ambiente e os processos objetivos. Creio que é nessa dinâmica que se encontra a chave do alcance e da profundidade das obras de ficção de Tchékhov.

E é isso que permite a Tchékhov escrever de forma muito simples e narrar situações triviais. Pois a questão não são as palavras nem os fatos, mas a relação entre ambos.

[CT]: Os pesquisadores do patrimônio artístico do Tchékhov ainda não chegaram à conclusão sobre o porquê dessa viagem tão longa e perigosa que o jovem escritor empreendeu no final do século XIX. O senhor teria a sua versão do motivo dessa viagem do Tchékhov?

[RF]: Minha visão do problema é a seguinte. O ambiente cultural russo no século XIX pode ser entendido como a expressão imediata de uma sociedade ávida de progresso e de melhorias para o povo e o país. A atividade artística e intelectual, em conjunto, canalizava grande parte das expectativas históricas nacionais. De modo explícito ou não, as ricas polêmicas em curso permeavam as obras artísticas, que, dessa maneira, se articulavam umas às outras, adquiriam uma densidade de fundo e tendiam a formar um conjunto orgânico, ou pelo menos bem mais coeso do que o habitual.

Foi nesse contexto que o jovem Tchékhov recebeu, de escritores e críticos respeitados, a advertência de que deveria levar seu talento mais a sério. A partir de 1886, já médico formado, parou de assinar os textos com pseudônimos e passou a encarar sua atividade literária por outro ângulo, no mínimo, com a mesma responsabilidade com que tratava a medicina e a ciência. Isso já aponta para o caminho que o levou à ilha de Sacalina e ao projeto do livro que resultou dessa verdadeira expedição. Pois o conteúdo da seriedade que ele passou a assumir, como escritor, provinha de um enraizado compromisso histórico da intelligentsia do país, motor da atividade intelectual naquele estágio da sociedade russa.

O fato, porém, é que o interesse de Tchékhov por Sacalina lhe permitia conjugar, de forma produtiva, preocupações de diversas ordens. Primeiro, ele se dizia em dívida com a medicina, e seu projeto compreendia um recenseamento da população deportada, com destaque para as condições higiênicas, sanitárias, nutricionais e médicas. Além disso, a responsabilidade que ele passou a se cobrar no âmbito literário teria ocasião de ser posta à prova, numa esfera em que a gravidade dos fatos não poderia ser mais evidente. Pois, mesmo envolto pelos critérios de objetividade da pesquisa científica e pelos cuidados literários com a linguagem, o tema do livro, em si mesmo, comportava um alcance político que nem o escritor nem ninguém podia ignorar.

A par disso, é bom ressaltar que, entre os contos escritos antes de Sacalina, não eram tão raros aqueles que tinham por tema os criminosos, os julgamentos e a deportação.

[CT]: Pensando em 10 anos daqui para frente, o que o senhor acha que vai certamente lembrar deste relato dum jovem médico russo?

[RF]: Com franqueza, daqui a dez anos, não sei o que será de nós.

Referências

  • Lentz, G.; Piucco, N.; Torres, M.-H. C. “Rubens Figueiredo”. Dicionário de tradutores literários no Brasil Web. 29 sep 2021 https://www.dicionariodetradutores.ufsc.br/pt/RubensFigueiredo.htm
    » https://www.dicionariodetradutores.ufsc.br/pt/RubensFigueiredo.htm
  • Tolstói, L. N. Pôlnoie sobránie sotchinênii v 91 t. Tom 10. “Voiná i mir”. Moscou: Gossudárstvennoe izdátelhstvo Khudôgestvennaia literatura, 1938.
  • Tolstói, L. Guerra e paz Volume 2. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Editora Schwarsz S.A., 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2022
  • Aceito
    18 Maio 2022
  • Publicado
    Ago 2022
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