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TRADUZINDO A AMAZÔNIA HOLANDESA: JOURNAAL VAN DE REIJS DOOR DEN VAANDRIGH FREDRIK HOEUS, GEDAEN NAER DE ACOURIES, 2 APRIL-7 JUNI 1717

TRADUZINDO A AMAZÔNIA HOLANDESA: JOURNAAL VAN DE REIJS DOOR DEN VAANDRIGH FREDRIK HOEUS, GEDAEN NAER DE ACOURIES, 2 APRIL-7 JUNI 1717

Resumo

Neste artigo, tratarei mais especificamente da tradução para o português do Brasil do texto Journaal van de reijs door den vaandrigh Fredrik Hoeus, gedaen naer de Acouries, 13 juni – 22 augustus 1717. Desde a expedição comandada pelo espanhol Vicente Yáñez Pinzón, em 1500, a Amazônia povoa o imaginário europeu e mundial por suas riquezas naturais, seus povos e seus mistérios As expedições amazônicas organizadas por portugueses, espanhóis, franceses e ingleses, futuros colonizadores da região, são amplamente conhecidas entre nós. Representados pela Companhia das Índias Ocidentais, os holandeses que colonizaram o atual Suriname também descreveram em detalhe as gentes e as riquezas dessa parte do mundo. As incursões holandesas, porém, ainda encontram pouco eco no Brasil, apesar da abundância de fontes documentais disponíveis. Tal lacuna pode ser explicada, entre outros motivos, pelo fato de esses documentos terem sido escritos em neerlandês, o que dificulta o acesso a seu conteúdo por parte de pesquisadores brasileiros e pelo público em geral. Objeto deste trabalho, a tradução de documentos (diários, cartas, crônicas, entre outros) para a língua portuguesa permite juntar mais essa peça ao mosaico de leituras da Amazônia que nos legaram os primeiros europeus que chegaram a essa que, provavelmente, é a mais fascinante região do Novo Mundo.

Palavras-chave
Estudos da Tradução; Amazônia; Fontes Primárias; Neerlandês

Abstract

In this paper, I will deal more specifically with the Brazilian Portuguese translation of the text Journaal van de reijs door den vaandrigh Fredrik Hoeus, gedaen naer de Acouries, 13 juni - 22 augustus 1717. Since the expedition led by Spaniard Vicente Yáñez Pinzón in 1500, the Amazon has populated the European and world imagination for its natural riches, its people and its mysteries. The Amazon expeditions organized by the Portuguese, the Spanish, the French and the English, the future colonizers of the region, are widely known among us. Represented by the West India Company, the Dutch who colonized present-day Suriname also described in detail the people and riches of this part of the world. The Dutch incursions, however, still find little echo in Brazil, despite the abundance of documentary sources available. This gap can be explained, among other reasons, by the fact that these documents were written in Dutch, which makes it difficult for Brazilian researchers and the general public to access their contents. The translation of these documents (diaries, letters, chronicles, among others) into Portuguese allows us to add another piece to the mosaic of readings of the Amazon bequeathed to us by the first Europeans who arrived in what is probably the most fascinating region of the New World.

Keywords
Translation Studies; Amazon; Primary Sources; Dutch Language

Antes de tratarmos do diário de Hoeus e de sua tradução para o português do Brasil, cumpre recuperar alguns dados que justificam o presente artigo. Não é demais lembrar que a presença holandesa na América do Sul circunscreveu-se a dois territórios ocupados em tempos distintos e por períodos diferentes: o chamado Brasil holandês no nordeste do atual Brasil e as colônias no Planalto das Guianas, na região amazônica. Ambas ocupações foram levadas a cabo pela Companhia das Índias Ocidentais (West-Indische Compagnie) e tinham caráter primordialmente comercial. Como veremos adiante, o tratamento que foi dado pelos historiadores e demais pesquisadores brasileiros a cada uma dessas ocupações varia grandemente.

Se a bibliografia brasileira sobre a ocupação holandesa no nordeste é vastíssima e carece de maiores apresentações, o mesmo não pode ser dito sobre as áreas no extremo norte do continente sul-americano, pois a bibliografia brasileira sobre a presença holandesa na Amazônia concentra-se nos relatos de emissários da coroa portuguesa sobre disputas pela posse de territórios, sendo o outro lado, o holandês, quase invisível para nós. As obras que tratam do tema não abordam aspectos sobre a política de colonização de territórios hoje pertencentes à República Cooperativa da Guiana e à República do Suriname. Suas empreitadas comerciais, militares e de povoamento ainda são consumidas pelo público brasileiro interessado na região por meio de obras estrangeiras traduzidas ou, no mais das vezes, em seu idioma original. Aí reside o primeiro obstáculo para a divulgação e produção de conhecimento desses fatos históricos.

Embora tratada de maneira díspar, a presença holandesa nas duas regiões da América do Sul apresentam traços em comum. Do ponto de vista da produção, distribuição e consumo de material histórico no Brasil (incluo aqui romances históricos, ainda que de modo provisório e certamente insatisfatório), as fontes primárias e secundárias (mesmo as terciárias) raramente são originais em neerlandês. Some-se a isso a abundância de fontes primárias produzidas originalmente em português, principalmente sobre região nordeste do Brasil, e tem-se um primeiro diagnóstico do que causa a desigualdade no trato às duas regiões.

Se os efeitos da ausência de material traduzido do neerlandês para o português do Brasil não impactou, em termos quantitativos, a produção intelectual sobre o Brasil holandês, o mesmo não pode ser dito com relação à ocupação holandesa no extremo norte do continente. Pode-se especular sobre os motivos dessa lacuna nas obras produzidas, e esses se explicam mutuamente: o fato de o neerlandês ser uma língua de difusão mínima entre nós dificulta o acesso a fontes produzidas nesse idioma; se não há fontes disponíveis, não há como gerar/aumentar interesse pela ocupação holandesa e, consequentemente, pesquisa sobre esse fato histórico.

Chegamos, assim, aos motivos de traduzir documentos do neerlandês para o português do Brasil, mais especificamente, no caso deste artigo, de material sobre a região amazônica. Os motivos são de, pelo menos duas ordens: o fornecimento de material para pesquisa trans e multidisciplinar sobre a ocupação europeia da Amazônia e, no âmbito dos Estudos da Tradução, como ponto de partida para uma discussão sobre a tradução de fontes documentais primárias. No que concerne a contribuições para outras áreas do conhecimento, podemos elencar, provisoriamente, o aumento da oferta de fontes primárias traduzidas para o português do Brasil para uso de pesquisadores das áreas de história, relações internacionais e antropologia, entre outras.

Quanto aos Estudos da Tradução, a tradução de fontes primárias e a reflexão teórica sobre sua produção, distribuição e consumo permite colocar em perspectiva temas como paleografia e sua relevância para a tradução de documentos, convenções de grafias de nomes indígenas/autóctones, arcaísmos, exotismos, variação linguística diacrônica, uso de paratextos, entre outros.

Passo, a partir deste ponto, a tratar da tradução do Journaal e sua relação com os pontos acima mencionados.

Figura 1
O Journaal van de reijs door den vaandrigh Fredrik Hoeus, gedaen naer de Acouries, 2 april-7 juni 1717

A tradução para o português do Brasil foi produzida a partir da cópia transcrita do manuscrito disponível no Arquivo Nacional em Haia (Nationaal Archief te Den Haag). O manuscrito foi transcrito no Arquivo Nacional em Haia segundo as normas da Real Sociedade Histórica Holandesa (Koninklijk Nederlands Historisch GenootschapKONINKLIJK NEDERLANDS HISTORISCH GENOOTSCHAP. Disponível em: https://knhg.nl.
https://knhg.nl...
) e acrescido de notas.

A transcrição do manuscrito foi essencial para que a tradução fosse levada a cabo pois eu, a exemplo da maioria dos tradutores, não possuo nenhuma formação em paleografia que me permitisse trabalhar a partir do texto manuscrito. Embora extrapole os limites deste artigo, não posso deixar de indagar se não valeria a pena investir na formação de tradutores especializados em técnicas de consulta a documentos manuscritos e sua posterior transcrição, quando necessário.

As notas que foram acrescidas ao texto original pelos técnicos do Arquivo Nacional em Haia são de caráter histórico e enciclopédico. Referem-se a antroponímia e toponímia e também a arcaísmos do neerlandês do século XVIII. As notas de caráter filológico por vezes surtem um inusitado efeito sobre os leitores cuja língua é o português, pois muito do que é arcaísmo no neerlandês contemporâneo segue vivo em português. Exemplos disso são obedientie (obediência) e retourneren (no sentido de retornar, voltar, em desuso no neerlandês contemporâneo). Esses felizes acasos não tornaram a tarefa mais simples, pois o neerlandês do século XVIII difere grandemente do neerlandês contemporâneo em termos de representação gráfica de palavras, sintaxe e formas de tratamento, para citar algumas mudanças ao longo do tempo. A grafia das palavras, por exemplo, é um desafio à parte que só pode ser vencido por meio de consulta a dicionários etimológicos da língua neerlandesa. Esses dicionários dirimem, a um só tempo, dúvidas sobre a atual grafia da palavra e sobre seu significado.

É chegado o momento de fornecer informações sobre o texto objeto deste artigo e seu contexto histórico: O Journaal é composto pelo relato de duas expedições do alferes Frederik Hoeus à terra habitada pela nação Akuryó (cujo território compreende, historicamente, terras nos atuais estados do Pará e Amapá, além de territórios no atual Suriname) e ocupa duas páginas manuscritas no registro das expedições. As expedições tinham por finalidade fazer contato com os Akuryós para firmar acordos de paz e alianças, e também capturar escravos que teriam fugido para a região habitada pelos Akuryós. A relevância do relato de Hoeus é indiscutível, pois é um dos primeiros a descrever os rituais e costumes dos Akuryós, e essa relevância é o ponto inicial para a decisão de produzir uma versão em português do Brasil.

A tradução do texto, sob o título Diário da viagem aos Acurias, realizada pelo alferes Frederik Hoeus, 2 de abril - 7 de junho de 1717, exigiu a consulta a obras especializadas de etimologia, antropologia e geografia. A tradução do corpo do texto não pôde desconsiderar, como é natural, as necessárias reestruturações de orações e de parágrafos, sob pena de se tornar ininteligível para o público brasileiro.

Mantive, porém, algumas inconsistências, explicadas em notas, no que se refere a termos antroponímicos e toponímicos. Justifico a alternância de termos porque eles oscilam também no texto original e, principalmente, para facilitar aos leitores/pesquisadores a busca de textos de tema similar em arquivos nos Países Baixos e mesmo no Brasil. É o caso dos Akuryós (denominação atual segundo consenso de indigenistas da FUNAIBRASIL. FUNAI. Fundação Nacional do Índio. Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br.
https://www.gov.br/funai/pt-br...
) que aparecem no texto original (e no traduzido, quando necessário) como accouries, acouries, acurias. Ainda sobre as notas, cumpre dizer que as notas históricas e enciclopédicas foram traduzidas, mas que as notas filológicas do texto em neerlandês foram suprimidas e, em casos específicos, foram criadas notas filológicas especificamente para o público brasileiro.

Abaixo, exemplos de trechos que justificam o uso de notas e a reestruturação do texto:

Excerto com necessidade de notas:

Journael off daghregister gehouden bij Fredrick Hoeus, vaandrig onder de militie alhier, gedurende desselfs heen en weder reijsen, op ordre van den hoog welgebooren gestrenge heer Johan Mahonij, gouverneur generael over de colonie van Suriname, revieren en districten van dien &. gedaen met sijn bij hebbende manschap naer de rivier Coppename, omme van daer met de Indiaenschen capiteijn Cornelis te gaen naar seeckere Indiaansche natie genaamt Acouries, woonende seer hoog die rivier opwaarts.

Diário ou registro diário mantido por Frederick Hoeus, alferes junto à milícia local, durante suas viagens por ordem do austero nobre, o Senhor Johan Mahonij, Governador-Geral da Colônia do Suriname, seus rios e distritos &. realizadas com sua tropa ao rio Coppename, para ir dali com o capitão índio Cornelis a uma certa nação índia chamada Akuryós, que vive bem distante, na montante do referido rio.

(Grifos meus).

Excerto com necessidade de reestruturação:

Met deese instrumenten voorsien naderden eerstelijck vier à vijff jonge mans, achter deselve vier vrouwen, gevolgt van een oudt bedaagt man. Eenigsins grijs met lang hair hebbende in beijde wangen, en in sijn onderste lip gaatjes, en in ijeder gaatje een streng witte en heele ligte coralen van haer maaksel lang veertien à vijfftien duijm, nederhangende. Deese wierd door den gantschen troup, soo jonge mans, als vrouwen ten getalle van ses-en-vijftige gevolgt.

Equipados com esses instrumentos, aproximaram-se primeiramente cerca de quatro ou cinco homens jovens, atrás deles quatro mulheres, seguidos por um homem idoso. Um pouco grisalho, com longa barba nas faces, e em seu lábio inferior pequenos furos, e em cada furo pendia um fio de corais brancos e muito finos de sua fabricação, de 14 a 15 polegadas de comprimento. Em seguida, surgiu todo o grupo, composto por cinquenta e seis jovens do sexo masculino e feminino.

(Grifo meu).

À guisa de conclusão, levanto alguns temas que merecem uma discussão mais detida e que escapam ao objetivo deste artigo. O primeiro tema, como não poderia deixar de ser, é a Amazônia e suas representações. A tradução de textos de temática amazônica amplifica e multiplica olhares sobre a região e suas representações nas dimensões humana, histórica, geográfica e estratégica.

O segundo tema, de ordem mais geral, é o reconhecimento das especificidades da tradução de textos primários. Tais especificidades seriam abordadas de forma muito mais eficaz se forem fruto das ações de uma equipe interdisciplinar. Ressalto que a tradução de fontes primárias é, por si mesma, uma fonte primária de pesquisa.

O terceiro tema tem a ver com a formação e a atuação dos tradutores de fontes primárias. É desejável que sua atuação seja reconhecida como a de especialistas no tratamento de fontes primárias, o que não se esgota no seu uso competente dos dois códigos linguísticos. Cabe a eles lançar mão de uma sistematização rigorosa no que diz respeito a questões como, por exemplo, de antroponímia, toponímia e de reestruturação textual, como mencionei acima. Essa nova concepção da tarefa de traduzir deveria, idealmente, se manifestar já na etapa de formação de tradutores.

Por fim, uma palavra sobre o tradutor de línguas de menor difusão entre os brasileiros. A universidade brasileira, na sua busca pela internacionalização, deve assumir o compromisso de formar seus alunos em uma perspectiva verdadeiramente internacional e não anglófila, sob pena de reproduzirmos modos de pensar e de agir mediados por uma só língua e suas culturas. A oferta de línguas deve, seguindo esse raciocínio, ser a mais variada possível, respeitados os limites impostos pela realidade às instituições de ensino superior do país.

No caso específico da língua neerlandesa, a Universidade de Brasília é a única instituição latino-americana a oferecer disciplinas da língua não como extensão, mas como disciplinas optativas regulares para os discentes de todas as graduações da universidade. A expectativa é que, nos próximos anos, surja uma geração de profissionais e de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento (o que inclui, tradutores, naturalmente) competentes em língua neerlandesa. Que venham novos tradutores que nos ajudem a completar o mosaico amazônico.

Referências

  • NATIONAAL ARCHIEF TE DEN HAAG. Journaal van de reijs door den vaandrigh Fredrik Hoeus, gedaen naer de Acouries, 2 april-7 juni 1717 In: NA, Verspreide West-Indische stukken (VWIS) 1092, journaal F. Hoeus, 20 juni 1717; NA, SvS 244, journaal F. Hoeus, 20 juni 1717, 230. Disponível em: https://www.nationaalarchief.nl
    » https://www.nationaalarchief.nl
  • KONINKLIJK NEDERLANDS HISTORISCH GENOOTSCHAP. Disponível em: https://knhg.nl
    » https://knhg.nl
  • BRASIL. FUNAI. Fundação Nacional do Índio Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br
    » https://www.gov.br/funai/pt-br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2022
  • Aceito
    28 Set 2022
  • Publicado
    Nov 2022
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