De todos os instintos inerentes ao ser humano, o de sobrevivência é o mais forte, depois desse vem um instinto deveras primitivo que é o da vingança. São instintos que juntos são ingredientes poderosos para um bom livro ou um bom filme, no caso do objeto da nossa resenha funcionou para ambos os discursos. Por isso não é difícil que o leitor/telespectador se reconheça em alguns momentos. Tais instintos são trabalhados com maestria de The Revenant, Michael Punke, obra baseada em fatos reais. O livro nos conta a saga de Hugo Glass, um explorador estadunidense que se tornou conhecido por suas expedições, sua aventura mais famosa foi a de Rocky Mountain Fur Company1, em 1822, na qual encontrou novas rotas passando por Saint Louis ao Rio Green. O livro de Punke traz um recorte da vida de Glass entre os anos de 1823 e 1824, quando ele trabalhava para o capitão Andrew Henry. Michael Punke é um escritor americano, professor, analista político, consultor de política, advogado e atualmente é embaixador dos EUA na Organização Mundial do Comércio em Genebra, Suíça. Ficou conhecido principalmente pelo romance The Revenant : A Novel of Revenge (2002).
A ideia da adaptação surgiu em 2001, mas o projeto foi abandonado por alguns diretores; em 2011 Iñárritu aceitou levar aquele trabalho à frente; no entanto adiou por conta de outros projetos com os quais estava comprometido. Mas em 2014 as gravações tiveram início. O texto foi adaptado para o cinema por Mark L. Smith e dirigido pelo premiado diretor mexicano Alejandro González Iñárritu. A adaptação é, na maior parte do tempo, fiel ao livro; a riqueza que o livro traz na descrição de suas personagens e também dos armamentos usados na época é recriada no filme, o que nos proporciona uma bela experiência visual. O figurino e o armamento usados no longa nos proporcionam uma viagem no tempo ao Velho Oeste americano.
O rifle de Glass era a única extravagância de sua vida, e quando ele esfregou a graxa dentro do mecanismo do gatilho mola de cabelo, ele o fez com a terna afeição que outros homens podem reservar para uma esposa ou filho. [...] Glass gostava de uma arma mais curta porque mais curto significava mais leve e mais leve significava mais fácil de transportar . [...] Suas experiências nas planícies ocidentais tinha ensinado Glass que o desempenho de seu rifle pode significar a diferença entre a vida ea morte.2
(PUNKE, 2015, p. 19)3
Como descrito no trecho acima, podemos observar tal cena durante o filme quando Glass, interpretado por Leonardo Di Caprio, limpa cuidadosamente sua arma com toda delicadeza e percebemos também que o tamanho do rifle em relação às armas de seus companheiros de brigada. A fidelidade nas pequenas coisas faz com que a adaptação se torne rica em seus detalhes, ainda mais interessantes para os que leram o livro antes de ir ao cinema, pois esses veem na tela tudo o que construíam na mente.
Quando a fotografia aparece, a pintura sente-se finalmente liberta para seu grande voo formal. E, enquanto o cinema surge, a literatura sente que a sua hora chegou. Não mais narrar simplesmente. A grande máquina narrativa acabara de nascer. Agora era o instante mesmo da criação, dos desvios, do gozo provocado pelas palavras que ultrapassam o contar, tornando-se, elas mesmas, potenciais poemas. Deixam de ser habituadas, e ao ser retiradas desta obrigação do contar, tornam-se plásticas, imagéticas.
(TAVARES, 2006, p. 07).
O filme é impecável no quesito fotografia; as imagens são como pinturas, o filme foi gravado inteiramente em “externas”, os atores gravavam ao ar livre, sem cortes e sem direito a repetições, se alguém caísse em cena, aquela queda faria parte do filme. Os atores foram expostos a muitas agruras, como o frio excessivo e algumas cenas de cunho naturalista, como o momento em que Glass come fígado cru e a sequência em que ele dorme dentro da carcaça de seu cavalo morto para combater o frio. Tais cenas causam uma sensação profunda nos telespectadores; todo o filme é uma experiência sensorial: gostos, texturas, cheiros, tudo parece ser sentido pelos telespectadores. Não que o livro não traga tais sensações, pois as descrições são bastante detalhadas, mas na tela é mais fácil alcançar a plateia sem muitos detalhes; uma imagem diz tudo.
A frase fica como um criptograma incapaz de suscitar um estado sentimental enquanto sua fórmula não for traduzida em dados claros e sensíveis através das operações intelectuais, que interpretam e reúnem, numa ordem lógica, termos abstratos para deles deduzir uma síntese mais concreta.
Por outro lado, a simplicidade extrema com que se organiza uma sequência cinematográfica, onde todos os elementos são, acima de tudo, figuras particulares, requer apenas um esforço mínimo de decodificação e ajuste, para que os signos da tela adquiram um efeito pleno de emoção
(EPSTEIN, 1983a, p. 293-19).
Assim como ao ler um livro o leitor deve ter um conhecimento de mundo e uma “bagagem literária” que o ajude a compreender o que o autor está a contar em sua narrativa, no cinema não é diferente, o telespectador deve ter um bom background para compreender a visão do diretor e alcançar a mensagem que está por trás de toda aquela experiência:
[A imagem] entrava em relação dialética com o espectador num complexo afetivo-intelectual, e a significação que adquiria na tela dependia, em última análise, quase tanto da atividade mental do espectador quanto da vontade criadora do diretor [...]. Tudo que é mostrado na tela tem, portanto, um sentido e, na maioria das vezes, uma segunda significação que só aparecem através da reflexão; poderíamos dizer que toda imagem implica mais do que explicita
(MARTIN, 2003, p. 92).
O clímax da narrativa de Punke é o momento em que Glass luta contra uma ursa; o livro traz detalhes desde o momento em que o explorador percebe a presença da ursa até o momento em que o grande animal o dilacera (PUNKE, 2015, p. 25-27):
Ele ouviu seu tamanho antes de vê-lo. Não apenas a rachadura do arbusto que se mudou para o lado como grama curta, mas o próprio rosnado, um som profundo como um trovão ou uma árvore que cai, um baixo que poderia emanar apenas através de conexão com alguma grande massa. [...] Glass ficou maravilhado com a musculosidade absoluta do animal, os tocos grossos de suas patas dianteiras dobrando-se em ombros enormes, e acima de tudo a corcunda prateada que a identificou como um urso pardo.4
A narrativa do ataque se estende por páginas e no filme não é diferente, a luta é longa e ao espectador cabe a aflição de ver tão grotesca cena, aquele animal enorme dilacerando o corpo de Glass e o explorador tentando se defender como pode, quase impossível não fechar os olhos ou se retorcer na poltrona durante a sequência.
Ele lutou com outro instinto - para disparar imediatamente. Glass tinha visto ursos absorverem meia dúzia de balas de rifle sem morrer. Ele tinha um tiro. [...] O sílex provocou o disparo do Anstadt5, disparando o rifle e enchendo o ar com a fumaça e o cheiro de explosão do pó preto. O urso rugiu quando a bala entrou em seu peito, mas seu ataque não diminuiu. Glass deixou cair seu rifle, inútil agora, e estendeu a mão para a faca na bainha em seu cinto. O urso derrubou sua pata, e Hugo sentiu a sensação nauseante das garras de seis polegadas do animal rasgando profundamente a carne da parte superior do braço, ombro e garganta. O golpe jogou-o de costas. A faca caiu, e ele a empurrou furiosamente contra a terra com seus pés, inutilmente buscando a cobertura dos salgueiros. [...] Ele gritou em agonia. [...] Ela soltou um rugido final, que registrou na mente de Glass como um eco através de uma grande distância. Ele estava ciente do enorme peso em cima dele6
(PUNKE, 2015, p. 26-27).
O estado em que Hugo Glass ficou depois do ataque é relatado em detalhe no livro e no filme percebemos o cuidado do diretor em trazer à tela todo o terror e sofrimento a que Glass foi submetido. Ele estava quase morto, dilacerado, as cenas que seguem ao ataque são bastante realistas, mostrando as chagas em detalhe. Vejamos como Punke (2015, p. 29) descreveu tal situação:
Mas ele [ Harris ] nunca tinha visto uma carnificina humana como esta, fresco na esteira do ataque. Glass foi retalhado da cabeça aos pés. Seu escalpo estava pendendo para um lado, e Harris demorou um instante para reconhecer os componentes que compunham seu rosto. Pior estava sua garganta. As garras do urso cortou três faixas profundas e distintas, começando no ombro e passando em frente de seu pescoço. Outra polegada e as garras teriam cortado a jugular de Glass. Como era, elas [garras] tinham previsto abrir sua garganta, cortando através do músculo e expondo sua garganta. As garras também tinham cortado a traqueia, e Harris observou, horrorizado, como uma grande bolha se formava no sangue que se filtrava a partir da ferida. Foi o primeiro sinal claro de que Glass estava vivo.7
Contudo, sabemos que uma adaptação cinematográfica não é idêntica ao livro, e com The Revenant não foi diferente. Algumas mudanças significativas foram cruciais para que o diretor alcançasse seus objetivos, por exemplo, o fato de Glass, no filme, ter um filho mestiço com uma índia, filho este que não existiu na realidade; o jovem Hawk sofre bastante preconceito dos outros membros da brigada, principalmente da parte da personagem Fitzgerald, o responsável por abandonar Glass à própria sorte após o incidente com a ursa.
Eles efetivam ou concretizam ideias; fazem uma seleção simplificadora, mas também amplificam e extrapolam; fazem analogias; criticam ou demonstram seu respeito, e daí por diante. No entanto, as histórias que eles relatam são tomadas de outro lugar, não inventadas. [...]. Adaptações têm uma relação notória e definida com o texto de partida [...] [e] normalmente declaram essa relação abertamente. (HUTCHEON, 2006, p. 3).8
A presença do jovem Hawk tem todo um discurso engajado sobre a presença do mestiço nos EUA, o preconceito, a “invisibilidade” social, que – por ser mexicano – o próprio Iñárritu conhece bem e ele deixou isso bastante claro em seu discurso na cerimônia do Oscar quando foi premiado como melhor diretor. Se no livro a questão central é a luta pela sobrevivência e o desejo de vingança de Glass, no filme tais fatores servem como plano de fundo para o choque cultural entre o homem branco e o povo indígena em um período no qual os Estados Unidos estavam sendo invadidos por povos europeus interessados no comércio de pele de animais. Os conflitos apresentados na película, com baixa dos dois lados, nos levam a uma análise sobre o modo como a civilização se estabeleceu nos países do continente americano.
Um aspecto importante na adaptação de The Revenant, é o fato do filme ter sido gravado na natureza quase em sua totalidade – a cena do ataque do urso pardo foi gravada em CGI – expondo os atores e toda a equipe a condições climáticas extremas. O diretor achou necessário que assim fosse, pois, a paisagem é de suma importância para que o filme cause toda a experiência sensorial a que o telespectador é sujeito durante a sessão de cinema.
A experiência sensorial parece real; sentimos frio, calafrios, sentimos as dores de Glass, seu desespero e medo, todos as sensações são amplificadas pela atmosfera criada pelo diretor mexicano. As dificuldades em torno das filmagens, a busca por neve, pois a medida em que o tempo passava o inverno ia acabando e o diretor precisava levar sua equipe para outro lugar que tivesse um cenário natural parecido com o anterior para que a continuidade do filme não fosse prejudicada. Isso os levou a começarem as gravações no Canadá, passando pelos Estados Unidos e concluindo-as na Argentina. Essa necessidade de mudar a locação, por causa da falta de neve, trouxe uma discussão sobre o aquecimento global, agregando ao filme mais um aspecto de engajamento.
Aclamado pela crítica, The Revenant ganhou diversos prêmios em festivais de cinema espalhados pelo mundo. O filme agradou a muitos, tanto aos que leram como aos que não leram o livro; na verdade, o livro ganhou uma nova edição (esta que usamos para redigir a resenha) após o sucesso da adaptação de Mark L. Smith e Alejandro González Iñárritu. A história do explorador Hugo Glass não era muito popular fora da América do Norte até ser levada às telas de cinema.
O filme tem duração de mais de duas horas e meia; entretanto, não cansa. As cenas são bem distribuídas entre belezas naturais, combates, o sofrimento de Glass e as questões indígenas; tudo mesclado de maneira que o telespectador não fique tenso por muito tempo, mas também não fique entediado. Iñárritu dirigiu o filme com muita sensibilidade, fazendo com que o público participasse e sentisse cada sensação das personagens; o trabalho do diretor de fotografia Emmanuel Lubezki nos permite uma proximidade com toda aquela natureza selvagem, pura, sem intervenção humana, fazendo com que, mesmo depois de toda a batalha de Glass pela sobrevivência e seu desejo de vingança, o que reste do filme em nós seja apenas a beleza.
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1
A venda de pele de animais era o negócio mais rentável dos EUA naquela época.
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2
Tradução nossa.
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3
“Glass’s rifle was the one extravagance of his life, and when he rubbed grease into the spring mechanism of the hair trigger, he did so with the tender affection that other men might reserve for a wife or child. [...] Glass liked a shorter gun because shorter meant lighter, and lighter meant easier to carry. [...] His experiences on the western plains had taught Glass that the performance of his rifle could mean the difference between life and death.”
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4
“He heard her size before he saw it. Not just the crack of the thick underbrush that the sow moved aside like short grass, but the growl itself, a sound deep like thunder or a falling tree, a bass that could emanate only through connection with some great mass. […] Glass marveled at the animal’s utter muscularity, the thick stumps of her forelegs folding into massive shoulders, and above all the silvery hump that identified her as a grizzly.”
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5
Marca do rifle.
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6
“He fought another instinct - to shoot immediately. Glass had seen grizzlies absorb half a dozen rifle balls without dying. He had one shot. [...] The flint sparked the Anstadt’s pan, setting off the rifle and filling the air with the smoke and smell of exploding black powder. The grizzly roared as the ball entered her chest, but her attack did not slow. Hugo dropped his rifle, useless now, and reached for the knife in the scabbard on his belt. The bear brought down her paw, and Glass felt the sickening sensation of the animal’s six-inch claws dredging deep into the flesh of his upper arm, shoulder, and throat. The blow threw him to his back. The knife dropped, and he pushed furiously against the earth with his feet, futilely seeking the cover of the willows. [...] He screamed in agony. [...] She let out a final roar, which registered in Glass’s mind like an echo across a great distance. He was aware of enormous weight on top of him.
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7
But he [Harris] had never seen a human carnage like this, fresh in the wake of attack. Glass was shredded from head to foot. His scalp lay dangling to one side, and it took Harris an instant to recognize the components that made up his face. Worst was his throat. The grizzly’s claws have cut three deep and distinct tracks, beginning at the shoulder and passing straight across his neck. Another inch and the claws would have severed Glass’s jugular. As it was, they had laid open his throat, slicing through muscle and exposing his gullet. The claws had also cut the trachea, and Harris watched, horrified, as a large bubble formed in the blood that seeped from the wound. It was the first clear sign that Glass was alive.”
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8
They actualize or concretize ideas; they make simplifying selection, but also amplifying and extrapolate; they make analogies; they critique or show their respect, and so on. But the stories they relate are taken from elsewhere, not invented anew. […] Adaptations have an overt and defining relationship to prior text […] [and] usually openly announce this relationship. (HUTCHEON, 2006, p.3).
Referências
- EPSTEIN, Jean. O cinema do diabo. Tradução: Marcelle Pithon. In: XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edição Graal: Embrafilme, !983.
- HUNTCHEON, Linda. A theory of adaptation New York. Routledge, 2006.
- MARTIN, Macel. A linguagem cinematográfica Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Brasiliense, 2013.
- PUNKE, Michael. The Revenant London: The Borough Press, 2015.
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TAVARES, Mírian. Cinema e Literatura: desencontros formais. Intermídias n 5-6, ano 2, 2006. Disponível em: <http://ebookshopbrasil.com.br/siteebookshop/phocadownloadap/gratuitosver/cinema_cinemaeliteraturadesencontrosformais_miriantav.pdf>. Acesso em: 21 jun 2016.
» http://ebookshopbrasil.com.br/siteebookshop/phocadownloadap/gratuitosver/cinema_cinemaeliteraturadesencontrosformais_miriantav.pdf
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
May-Aug 2017
Histórico
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Recebido
07 Out 2016 -
Aceito
08 Jan 2017