Resumo
Apresento uma versão atualizada de minha tradução do poema The Raven, de Edgar Allan Poe, para o português brasileiro, acompanhada de um estudo teórico sobre as concepções que nortearam a prática e amparada por comentários referentes às escolhas criativas desse processo. Abro a discussão com a debatida questão da intraduzibilidade na poesia; prossigo com os conceitos de “transcriação” e “paramorfia”, conforme propostos por Haroldo de Campos; por fim, retomo os conceitos expostos para evidenciá-los nos poemas The Raven e O Corvo, especialmente no que diz respeito a como os padrões rítmicos, rímicos e aliterativos são determinantes para a construção de sentidos do poema. Comento escolhas pontuais feitas no processo de transcriação do poema, com atenção extra aos efeitos de sentido paronomásticos entre Lenore – nevermore e Raven – never e ponderando as escolhas de algumas traduções anteriores. Defendo que a postura criativa na tradução de poesia é determinante para a potencialização de efeitos que fogem à dimensão semântica dos poemas.
Palavras-chave
O Corvo; Edgar Allan Poe; Transcriação; Nunca mais
Abstract
I present an updated version of my translation of the poem The Raven, by Edgar Allan Poe, into Brazilian Portuguese, followed by a study on the concepts that guided the practice and comments regarding the creative choices of the process. I open the discussion with the question of untranslatability in poetry; then, I explore the concepts of “transcreation” and “paramorphy”, as proposed by the Brazilian translator Haroldo de Campos; finally, I return to the concepts to address them in the poems The Raven and O Corvo, especially with regard to how the rhythmic, rhymic and alliterative patterns are decisive for the construction of the poem’s meanings. I comment on specific choices made in the process of translation, with extra attention to the paronomastic effects between “Lenore - nevermore” and “Raven - never”, also considering the choices of some previous translations. I argue that the creative attitude on translation of poetry is decisive for the potentiation of effects that are beyond the semantic surface of poetic texts.
Keywords
The Raven; Edgar Allan Poe; Transcreation; Nevermore
Introdução
Desde Machado de Assis, o corvo brasileiro assumiu uma multiformidade de corpos.1
1
Exceto as referenciadas em entradas específicas, todas as traduções mencionadas neste artigo constam no site de Fróes, conforme a seção de referências.
Se com Fernando Pessoa temos, sob o prisma da recepção, o que poderíamos chamar de versão mais expressiva no que se refere a um empreendimento emulativo da forma de The Raven, nenhum esforço brasileiro se restringiu apenas a esse projeto: encontramos extensos corvos corretíssimos como o de Cláudio Weber Abramo, preciosidades como o adorável corvo-cordel de José Lira, o Transcorvo de Augusto de Campos, a tradução em Libras que se corporifica em Emerson Santos (2017)Santos, Emerson Cristian Pereira dos. “The Raven e o seu voo para a língua brasileira de sinais”. Cadernos de Tradução, 37(2), p. 132-158, 2017. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2017v37n2p132
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, a tradução melancolicamente sertaneja da dupla Conde & DráculaConde & Drácula. “O corvo”. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=y3aO8ybtUc0. Acesso em: 06 mar. 2023.
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; no plano da recriação mais rigorosa da forma específica de The Raven, destaco a rebuscada tradução de Milton Amado, a de Sergio Duarte, a de Alexei Bueno, e a tradução portuguesa de Margarida Vale de Gato. O corvo também já se transformou em urubu — com um refrão plenamente escatológico, na polissemia própria da palavra — pela tradução-exu de Guilherme Flores e Rodrigo Gonçalves, e na familiar porém enigmática rola de nosso cotidiano, na tradução de Emmanuel SantiagoSantiago, Emmanuel. “A rola (uma paródia de “The raven”, de Edgar Allan Poe)”. mallarmargens. Disponível em: http://www.mallarmargens.com/2017/03/a-rola-emmanuel-santiago.html. Acesso em: 06 mar. 2023.
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.
Quando entram na conta as inúmeras outras traduções não mencionadas aqui, somos levados a crer que o poema de Edgar Allan Poe desperta um fascínio singular; em boa medida, acredito, por conta de sua muito própria e característica composição formal, que acaba por adensar a atmosfera sinistra desse poema-feitiço e, consequentemente, a experiência dos leitores/ouvintes. E no entanto continua pairando, sobre ele em específico e sobre a atividade translatícia em geral, um problema há muito debatido: a velha questão da intraduzibilidade.
Apresento aqui minha tradução para o poema The Raven, na qual busco potencializar convergências estritas entre os sentidos da forma do texto de partida e da tradução. A partir desta, derivarei reflexões sobre a pretensa intraduzibilidade da poesia e sobre os pressupostos teóricos que ampararam a prática translatícia, para então retomar a tradução do poema que, somada às reflexões teóricas, ensejará uma seção propriamente analítica sobre o processo de recriação. A apresentação da tradução antes da exposição de seus pressupostos e das reflexões teóricas reflete uma postura translatícia que vê a prática situada dialeticamente como chão e horizonte da teoria.
sobre muitos e curiosos, obscuros manuais;
cabeceando, adormecido, escuto um súbito ruído
como algum gentil batido, um batido em meus umbrais.
“É visita”, então murmuro, “e vem bater aos meus umbrais:
é só isso e nada mais”.
cada flama fenecendo tinha sombras fantasmais.
Sem a aurora, em amargura, em vão buscava na leitura
um amparo para a dura, dura perda de Lenais —
a radiante e rara moça que anjos chamam de Lenais —
nome aqui já não tem mais.
sussurrava fantasias e terrores sem iguais;
pra conter a nervosia do meu peito eu repetia:
“É visita e vem tardia e pede entrada em meus umbrais —
vagamente vem tardia e pede entrada em meus umbrais...
É só isso e nada mais”.
“Senhor”, disse, “ou madame, penso se me perdoais:
’stava quase adormecido e tão gentil foi o ruído,
foi tão débil o batido que batia em meus umbrais
que tão mal eu pude ouvir-vos...” — nisso, abri os meus umbrais:
só o escuro e nada mais.
a sonhar em sonhos dúbios que um mortal sonhou jamais;
e ao silêncio persistente — na calada, de repente,
uma fala tão somente — um sussurro assim: “Lenais?”
Isso eu disse, e algum eco murmurou assim: “Lenais...” —
isso apenas, nada mais.
novamente escuto os toques ressoarem inda mais.
“Certo”, eu disse, “essa mazela é qualquer coisa na janela;
vamos ver o que tem nela, no mistério dos sinais —
que meu coração se aquiete e reconheça esses sinais! —
É só o vento e nada mais...”
e entra um imponente corvo de eras santas e ancestrais.
Não prestou nem cumprimento nem parou nenhum momento:
lorde ou lady em seu alento, foi pousar nos meus umbrais —
pousa em Palas, no seu busto, justo sobre meus umbrais —
pousa e senta, e nada mais.
co’o decoro grave e austero de seus ares tão formais.
“Sem penacho volumoso, mesmo assim não és medroso,
torvo, ancião e pavoroso corvo lá do escuro cais —
diz qual é teu nobre nome às trevas do plutônio cais!”
Disse o corvo: “Nunca mais”.
salvo a pouca relevância de palavras tão banais;
mas fiquemos certos disto: não há humano assim benquisto
que algum dia tenha visto alguma ave em seus umbrais —
ave ou besta no esculpido busto sobre seus umbrais —
com tal nome, “Nuncamais”.
tais palavras, como a alma derramando em termos tais;
isso proferiu apenas, sem mover nem uma pena —
minha voz tornou-se amena: “Feito amigos tempo atrás...
De manhã esvoaçará como a Esperança um tempo atrás”.
E a ave disse: “Nunca mais...”.
“Certo”, eu disse, “o que profere são só falas usuais
que aprendeu de um triste dono com desgraça em seu entorno,
de abandono em abandono até um coro só de ais —
como fado da Esperança, melancólico entre ‘ais’
de ‘nunca — nunca mais’”.
e ajustei minha poltrona frente ao corvo, busto e umbrais.
Mergulhando no veludo, me envolvi num novo estudo,
divagando, atando tudo à ave de eras ancestrais:
por que a torva e ominosa e horrenda ave de ancestrais
crocitava “nunca mais”?
pra ave de olhos que queimavam minhas forças mais fulcrais;
’stive assim ensimesmado com o crânio reclinado
no recosto aveludado sob a luz dos castiçais —
violeta, aveludado, sob a luz dos castiçais:
leito dela... nunca mais.
solto, sim, por serafins com suaves passos musicais.
“Infeliz,” gritei, “Deus deu-te — pelos anjos concedeu-te
trégua — trégua e o nepente pras memórias de Lenais;
bebe, bebe o bom nepente e esquece a perda de Lenais!”
Disse o corvo: “Nunca mais...”.
pelo Tentador trazido ou por severos temporais;
desolado mas ousado neste deserto encantado —
lar de horrores assombrado — imploro, franco, fala mais:
Há bálsamo em Gileade? — fala, imploro, fala mais!”
Disse o corvo: “Nunca mais”.
pelo Deus que nós louvamos — pelos arcos celestiais —,
assegura essa alma insossa caso lá no Éden possa
abraçar a santa moça que anjos chamam de Lenais —
a radiante e rara moça que anjos chamam de Lenais”.
Disse o corvo: “Nunca mais”.
“Vai de volta à tempestade e às trevas do plutônio cais!
Que nenhuma pluma ateste tais mentiras que disseste!
Vai então, me deixa inerte! Sai do busto e dos umbrais!
Tira garra da minh’alma e tua figura dos umbrais!”
Disse o corvo: “Nunca mais”.
busto pálido de Palas justo sobre meus umbrais
com seus olhos semelhando os de um demônio ali sonhando
sob a luz que, tremulando, lança sombras sepulcrais;
e minh’alma dessas sombras que flutuam sepulcrais
elevou-se — nunca mais…
Traduzir o intraduzível
A intraduzibilidade como princípio do que comumente chamamos de texto poético é uma constante nos discursos teóricos sobre tradução. Para Derrida (2006)Derrida, Jacques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006., o problema remonta a tempos bíblicos: o mito de Babel configura tanto a multiplicidade irredutível das línguas quanto um inacabamento, uma impossibilidade de totalizar qualquer coisa da ordem da edificação. Assim, “o que a multiplicidade de idiomas vai limitar não é apenas uma tradução ‘verdadeira’, uma entr’expressão transparente e adequada, mas também uma ordem estrutural [...], uma incompletude da construtura” (Derrida, 2006Derrida, Jacques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006., p. 11-12). É possível desenvolver a proposição da seguinte maneira: a rigor, não há possibilidade de uma “tradução íntegra”, neutra e total como um simples levantar de véu ou como a destruição de um muro que separa dois lotes, tendo-se em vista a irredutibilidade dos termos de uma língua — e as inúmeras relações por eles ensejadas — aos termos de outra. Mais do que isso, a tradução se complexifica quando lidamos com textos validados no domínio do poético, já que, em maior ou menor grau de objetividade intratextual, estamos lidando com um construto estético singular em sua abertura de sentidos; paradoxalmente, essa redução de um poema a outro poema é justamente o que uma tradução exige para se pretender “plena” (ou, na expressão lugar-comum, plenamente “fiel”), mesmo que para tal precisemos reescrever o poema e, consequentemente, com maior ou menor grau de objetividade intratextual e intertextual — já que estamos falando de um processo de derivação estética —, reconstruir sua dimensão estetizada pela produção de outro texto que, em princípio, não é mais o mesmo texto.
No entanto, traduzimos desde Babel. Os corvos todos se traduzem na abertura que habita a irredutibilidade das línguas: “[Deus] enceta a desconstrução da torre como da língua universal e dispersa a filiação genealógica. Ele rompe a linhagem. Ele impõe e interdiz ao mesmo tempo a tradução” (Derrida, 2006Derrida, Jacques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006., p. 18). A tradução é interdita, mas ao mesmo tempo é imposta sobre as gentes; na imposição do impossível situa-se quem traduz, o que significa dizer que nunca se projeta a um lugar definitivo: “[...] transparência proibida, univocidade impossível. A tradução torna-se lei, o dever e a dívida, mas dívida que não se pode mais quitar. Tal insolubilidade encontra-se marcada diretamente no nome de Babel: que ao mesmo tempo se traduz e não se traduz, pertence sem pertencer a uma língua [...] (Derrida, 2006Derrida, Jacques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006., p. 25)”.
Walter Benjamin nomeava Deus nesse lugar, onde, pela impossibilidade imposta (possibilidade interdita), torna-se possível uma correspondência entre as partes engajadas na tradução. Em se tratando de textos poéticos ou sagrados, para os quais a comunicação não seria o essencial, Benjamin entende que o tradutor não tem por tarefa principal comunicar (não mais que o original, operando assim na divisão marcada entre original e tradução), e aponta como modelo ideal de toda tradução possível a versão interlinear do texto sagrado/poético (Benjamin, 2008Benjamin, Walter. “A tarefa do tradutor”. Tradução de João Barrento. In: Branco, Lucia Castello (Org.). A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2008. p. 82-98., p. 98); ou seja, aquilo que se encontra entreposto à denotação aparente da escritura. Nesse sentido, a demanda que recai sobre o tradutor passa a ser mormente uma questão de forma — entendida aqui em sentido lato, cujo princípio estaria estabelecido no original —, de modo a se restituir e remarcar a afinidade entre as línguas (Benjamin, 2008Benjamin, Walter. “A tarefa do tradutor”. Tradução de João Barrento. In: Branco, Lucia Castello (Org.). A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2008. p. 82-98., p. 83, 85) e a exibir a própria possibilidade da tradução situada na interdição divina pós-babélica, como quer Derrida (2006, p. 44-45)Derrida, Jacques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.. Não se trata aqui de uma afinidade histórica ou genealógica, mas de uma relação mais íntima entre o que as línguas querem dizer além de seu sentido imediatamente comunicável, o que por sua vez remontaria, muito parcialmente, a uma época anterior a Babel-confusão. É nessa íntima relação, nos ínfimos pontos de contato entre o que está além das correspondências estritamente semânticas nas línguas, que se poderia vislumbrar o que Benjamin chama de convergência para a “língua pura”, a língua pré-babélica, absoluta — antes vislumbrar, nunca tocá-la, pois a tradução íntegra sempre estará interdita pela irredutibilidade das línguas.
A aura transcendental das proposições benjaminianas e do mito de Babel assume um caráter mais concreto na teoria brasileira. Haroldo de Campos propõe uma “física” da tradução para a referida metafísica, i.e., reinterpretar o conceito de língua pura da ontoteologia benjaminiana mediante a noção jakobsoniana de função poética, central, segundo ele, para a compreensão da atividade tradutória em poesia e em textos que dela se aproximam. Aqui, o original cai de seu santo assento para ser tocado por mãos bem tangíveis: “bastaria considerar a língua pura repensada em termos laicos [pagãos, eu prefiro], desinvestida de sua aura de restituição messiânica, como se fosse um ‘lugar semiótico’: espaço operatório da tradução em poesia” (Campos, 2011Campos, Haroldo de. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011., p. 47).
Em linhas gerais, a tarefa do tradutor então vem a ser uma prática de metalinguagem, uma “restituição”, baseada no texto de origem, do modus operandi do que Jakobson chamou de “função poética”, tendo-se em jogo a corporeidade mesma dos signos linguísticos em sua singular organização formal. Note-se que essa a tarefa definitivamente não é neutra ou automatizada: o tradutor, que surge propriamente como hermeneuta, está no cerne do ofício, e é somente por meio de seu discernimento que o texto se faz, num intuito “provisoriamente totalizante” sobre o atravessado sentido de seus caminhos. Em vez de operar no terreno daquilo que é, o tradutor opera como se:
O tradutor, por assim dizer, “desbabeliza” o stratum semiótico das línguas interiorizado nos poemas, procedendo como se (hipótese heurística, verificável casuisticamente na prática experimental) esse “intracódigo” de “formas significantes” fosse intencional ou tendencialmente comum ao original e ao texto resultante da tradução. Ou seja, o tradutor constrói paralelamente (paramorficamente) ao original o texto de sua transcriação, depois de “desconstruir” esse original num primeiro momento metalinguístico
(Campos, 2011Campos, Haroldo de. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011., p. 48).
O trecho se vale de conceitos centrais para a teoria haroldiana, além de ter como premissa o que foi debatido no início desta seção: transparência proibida, univocidade impossível. De fato, ao rechaçar uma noção determinística de reprodução de efeitos tal qual o texto de origem, Haroldo exime seu projeto da pretensa correspondência biunívoca entre original e tradução; assim, no mesmo sentido de imposição e interdição simultâneas, a tradução de textos sobre o qual incide o domínio estrito do “poético” vem a ser um trabalho de duas vias: teremos uma versão singular e autônoma — diacronicamente, um texto diverso —, mas recíproca em seu fazer poético — o mesmo texto na ilusão da sincronia:
Então, para nós, tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma porém recíproca. [...] Numa tradução dessa natureza, não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual [...]). O significado, o parâmetro semântico, será apenas e tão-somente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora. Está-se pois no avesso da chamada tradução literal
(Campos, 2011Campos, Haroldo de. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011., p. 34).
A postura criativa resume a questão. O que Haroldo chama de “recriação” no trecho seria mais tarde conhecido como “transcriação” para dar conta dessa via dupla, trans-criativa. Daí o conceito de “paramorfia”, do corpo paralelo, pela recriação dialética do que se discerniu no texto de origem e se potencializou no texto traduzido. Se a convergência nunca é absoluta, ainda assim esses corpos, embora diferentes enquanto linguagem, serão cristalizados “dentro de um mesmo sistema” (Campos, 2011Campos, Haroldo de. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011., p. 34).
A recorrente ideia pessimista da tradução como “perda” de poesia se transfigura num potencial criador da mesma. Quando compete ao tradutor uma tomada de posição crítica e criativa em seu trabalho, não mais se está lidando com seu apagamento costumeiro diante da obra; antes, ele se coloca como “poeta do poeta” (Campos, 2011Campos, Haroldo de. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011., p. 60). Como já mencionado, esse projeto está desonerado da busca por um sentido estritamente “literal” de um texto que suplanta o aspecto imediatamente comunicativo da linguagem e se fundamenta na palavra travessa. Em sua releitura benjaminiana, Haroldo afirma caber ao próprio original a tarefa de preconfigurar o conteúdo semântico para efeito da tradução, podendo afinal o tradutor-hermeneuta perseguir a expressão da mais “íntima relação entre as línguas” por meio de sua empreitada transcriadora, da “redoação das formas significantes em convergência e tendendo à mútua complementação” (Campos, 2011Campos, Haroldo de. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011., p. 23). Reforço: essa relação de paramorfia é totalmente dependente do crivo de quem traduz sobre o modus operandi da obra.
Pois bem: se a tradução absoluta de The Raven está interdita, a necessidade imposta assume pelo deus possibilidade na transcriação, simultaneamente autônoma e recíproca, do corpo que se faz via para outro conforme é travessia de si mesmo.
The Raven e O Corvo em análise
O que Ezra Pound chamou de “melopeia” se refere à dimensão sonora do poema e pode ser entendido como “palavra cantada”, do grego antigo mélos (“canção”) e épos (“palavra”). Formalmente salientada, a melopeia incide no sentido daquilo que conota: “[...] as palavras são carregadas, sobre e além de seu sentido estrito, com alguma propriedade musical, que dirige o comportamento e o pendor desse sentido” (Pound, 1954Pound, Ezra. Literary essays of Ezra Pound. Londres: Faber and Faber Limited, 1954., p. 25, tradução minha).
No ensaio Filosofia da composição, Poe elucida seu método para a criação do poema. Sobre a estrutura métrica, o próprio autor de The Raven afirma:
Sem dúvida, não pretendo que haja qualquer originalidade, quer no ritmo, quer no metro do “Corvo”. O primeiro é trocaico, o segundo é octâmetro acatalético, alternando-se com um heptâmetro catalético, repetido no refrão do quinto verso e terminando com um tetrâmetro catalético. Falando menos pedantescamente, o pé empregado no poema (troqueu) consiste em uma sílaba longa, seguida por uma curta; o primeiro verso da estância compõe-se de oito desses pés; o segundo, de sete e meio (de fato, dois terços), o terceiro de oito, o quarto de sete e meio, o quinto idem, o sexto de três e meio. Ora, cada um desses versos, tomado separadamente, tem sido empregado antes, mas a originalidade que “O Corvo” tem está em sua combinação na estância, nada já havendo sido tentado que mesmo remotamente se aproximasse dessa combinação
(Poe, 1997Poe, Edgar Allan. Ficção completa, poesia & ensaios. Tradução de Oscar Mendes & Milton Amado. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997., p. 109)2 2 Note-se que Poe emprega erroneamente um termo técnico: seguindo a própria lógica da convenção explicitada pelo autor, pela qual um verso de três pés e meio é chamado “tetrâmetro catalético”, o verso de sete pés e meio deveria na verdade ser designado “octâmetro catalético”, e não “heptâmetro catalético”. Esse não é um erro de tradução: em inglês, Poe (a) escreve “heptameter catalectic”. .
Para visualizar a estrutura, tenhamos “—” para sílaba tônica, subtônica ou tonicizável segundo a prosódia do verso, e “‿” para sílaba átona; já o símbolo “ | ” indica cesura no meio do verso. Além disso, como o arranjo das rimas ajuda a compor o que o autor chama de “efeitos incomuns” para se referir à “originalidade” (Poe, 1997Poe, Edgar Allan. Ficção completa, poesia & ensaios. Tradução de Oscar Mendes & Milton Amado. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997., p. 109), também o esquematizo abaixo (com “X” indicando ausência de rima):
-
— ‿ — ‿ — ‿ — ‿ (A) | — ‿ — ‿ — ‿ — ‿ (A)
-
— ‿ — ‿ — ‿ — ‿ (X) | — ‿ — ‿ — ‿ — (B)
-
— ‿ — ‿ — ‿ — ‿ (C) | — ‿ — ‿ — ‿ — ‿ (C)
-
— ‿ — ‿ — ‿ — ‿ (C) | — ‿ — ‿ — ‿ — (B)
-
— ‿ — ‿ — ‿ — ‿ (X) | — ‿ — ‿ — ‿ — (B)
-
— ‿ — ‿ — ‿ — (B)
Vejamos como isso se aplica no poema, tomando a última estrofe de exemplo. Destaco as sílabas tônicas e o esquema rímico:
On the pallid bust of Pallas (X) | just above my chamber door; (B)
And his eyes have all the seeming (C) | of a demon’s that is dreaming, (C)
And the lamp-light o’er him streaming (C) | throws his shadow on the floor; (B)
And my soul from out that shadow (X) | that lies floating on the floor (B)
Shall be lifted—nevermore! (B) 3 3 Todos os trechos do poema original reproduzidos neste trabalho foram retirados de Poe (b).
A rima “B”, de terminação em -ore, não predomina somente no interior de uma estrofe específica, mas possui uma correspondência interestancial no poema inteiro, de modo a preconfigurar e retomar o refrão nevermore.
Minha tradução busca seguir de perto a estrutura:
busto pálido de Palas (X) | justo sobre meus umbrais (B)
com seus olhos semelhando os (C) | de um demônio ali sonhando (C)
sob a luz que, tremulando, (C) | lança sombras sepulcrais; (C)
e minh’alma dessas sombras (X) | que flutuam sepulcrais (B)
elevou-se — nunca mais! (B)
O intuito dessa esquematização é explicitar a operação latente do movimento sonoro que nos impele à quase-mistificação da palavra: de fato, a cadência e a repetência dos padrões de tal forma arranjados num poema de atmosfera lúgubre como The Raven assume tons hipnóticos próprios a um encantamento: “na melopeia encontramos uma corrente contrária, uma força que tende a embalar ou distrair o leitor do exato sentido da linguagem. É poesia nas bordas da música, e música talvez seja a ponte entre a consciência e o universo irracional sensível ou mesmo insensível” (Pound, 1954Pound, Ezra. Literary essays of Ezra Pound. Londres: Faber and Faber Limited, 1954., p. 26, tradução minha). Também nesse sentido deve ser entendida a decisão pela recriação radical da estrutura melopeica no texto traduzido: em vez de fundamentado num ímpeto essencialista, meu corvo surge no intuito de explorar o efetivo potencial encantatório dessa estrutura na transposição criativa para o português brasileiro.
A noção jakobsoniana da similaridade superposta à contiguidade no funcionamento poético distingue a relação paronomástica entre duas sequências fonêmicas semelhantes próximas uma da outra (i.e., palavras de som semelhante em determinado contexto se aproximam quanto a seu significado); em sua análise de The Raven, é o que o autor chama de “etimologia poética” (Jakobson, 1970Jakobson, Roman. Linguística e comunicação. Tradução de Isidoro Blikstein & José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1970., p. 150-151), ao mencionar por exemplo como o poleiro do corvo surge num “todo orgânico” pela correspondência pallid – Pallas no segmento on the pallid bust of Pallas (“busto pálido de Palas”) (ibid., p. 152). Ademais, a fusão da própria ave com o busto, sugerida numa estrofe anterior pelo vínculo beast – bust (“besta – busto”), é apregoada na última estrofe pela transação just above (“justo sobre”), esta condensada na palavra “busto” que a antecede no mesmo verso (ibid.).
Essa tenacidade também é reiterada na repetição /sti/ – /sit/ – /sti/ – /sit/ do segmento still is sitting, still is sitting, por sua vez recriado em /owa/ – /oa/ – /owa/ – /oa/ com a transação de similaridade /z/ – /s/ – /z/ – /s/ na paraforma “pousa e soa, pousa e soa”. Mais complexa é a relação explicitada entre 1) o corvo, 2) sua sombra 3) e a alma do eu lírico, aos quais são atribuídas respectivamente as expressões 1) never flitting, 2) floating e 3) lifted (Jakobson, 1970Jakobson, Roman. Linguística e comunicação. Tradução de Isidoro Blikstein & José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1970., p. 152). Na tradução, busquei uma relação fechada entre 1) “nunca voa” e 3) “elevou-se”, potencializando apenas uma correspondência tímida com 2) “flutuam” entre as labiodentais /v/ e /f/ (e com a líquida /l/ entre 2 e 3); afinal, pelo próprio enredo as sombras flutuantes já se relacionam mais explicitamente com o corvo e a alma do eu lírico do que aquele e esta entre si.
Mas talvez o cerne dessa abertura paronomástica recaia sobre o vínculo entre ave e refrão, mensageiro e mensagem, ambos singularizados como anúncio de comum fatalidade: raven – never, /r. v. n./ – /n. v. r./ (Jakobson, 1970Jakobson, Roman. Linguística e comunicação. Tradução de Isidoro Blikstein & José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1970., p. 152). Na tradução, nexos menos explícitos foram trabalhados. Determinada a tradução “corvo” para raven como forma de refletir a implicação agourenta da figura, restou configurar a palavra never em semelhante implicação semântica e sonora; e uma vez que o aspecto temporal no refrão do corvo sugere o sinistro domínio de um conhecimento que tradicionalmente não é atribuído aos animais — o do tempo —, me pareceu de suma importância refletir também o aspecto temporal de sua fala.
A tradução de “raven – never: corvo – não agora” como proposta por Vinícius Alves é bastante poderosa, de modo a manter o vínculo sonoro (/k. r./ aproximado de /g. r./, em que oclusivas se separam apenas por um nível de vozeamento) e deslocar o fatalismo do “nunca” pela aflitiva reiteração de um presente que não passa e nada mais promete além da privação que aflige o eu lírico — a de Lenora, não agora (e nunca mais); contudo, já tendo sido proposta essa inventiva solução, decidi retornar, em minha tradução, para a fatalidade anunciada em “nunca”. Assim, ambas as palavras raven e never foram traduzidas por seus correspondentes semânticos mais imediatos e, como se pode notar, para além da contiguidade mantida, a equivalência sonora entre “corvo – nunca” no refrão foi reduzida a /k/ – /k/. De modo a explicitar a correspondência para além da contiguidade e da aliteração em /k/, a fusão raven – never [flitting] foi recriada na última estrofe como “corvo – nunca voa”; assim, /r. v. n./ – /n. v. r./ : /k. o. v./ – /k. v. o./.
Não bastasse a singularização de ave e refrão funestos, do mensageiro e da mensagem formulados num só corpo enunciante, a própria mensagem se desdobra na constante reiteração de uma ausência: Lenore – nevermore. O refrão é encarregado de não somente formular afirmativamente a presença do próprio corpo — seu e do corvo —, mas de transformar a eterna ausência de Lenore numa presença latente. O corvo traduz seu próprio nome — que é raven, mas também é nevermore — a partir do nome alheio — Lenore. O nome da amada e seu destino fatal também estão amalgamados num só corpo, que ao mesmo tempo é corvo em sua figura funesta e corpus do anúncio dessa mesma figura. O corvo, portanto, é o tra-ductor, o hermeneuta que, desde o plutônio cais, no entre-lugar de vida e morte, traz seu corpo e sua fórmula como potencial diá-logos entre esses lugares. Mas o corvo é também o traduzido que se singulariza em toda sua ambiguidade e impossibilita o lugar definitivo, sobreposto ao pálido lógos de Palas Atena.4 4 Segundo Hermes, aliás, deus interveniente na transação verbal e no translado de defuntos, a paronomásia entre o grego antigo kórax (“corvo”) e kêryx (“arauto”) traduz a relação corpo-voz-presença do mensageiro que informa seu anúncio e faz-se ele próprio forma para anunciá-lo em corvo, na língua de Poe.
Na tradução de Vinícius Alves, “Lenore – nevermore: Lenora – não agora”. Eduardo Rodrigues assume uma postura semelhante, embora não considere a temporalidade do anúncio como relevante ao seu projeto; em vez disso, o corvo se coloca em posição relativamente servil, o que garante algo de irônico em sua resposta-recusa: “Lenore – nevermore: Eleonor – não senhor”. Já Fernando Pessoa foi bastante pragmático: excluiu o nome da amada, o que permitiu parcialmente a reconstrução associativa pela paráfrase. De minha parte, determinada de antemão a correspondência “nevermore: nunca mais”, optei pelo que faço questão de chamar nem de tradução nem de adaptação, e que, mesmo que no domínio da transcriação, aponto como deformação do nome: “Lenore – nevermore: Lenais – nunca mais”.5 5 Quando pesquisei por soluções semelhantes, descobri que Odair Creazzo Jr., numa tradução de 1998, havia me antecedido em muitos anos. O tradutor, apesar de não se preocupar com um metro fixo ou com a concisão da forma, emulou rigorosamente a rímica do poema. Digno de nota também é o fato de que a tradução de Cláudio Weber Abramo, que chamei de corretíssima por seu pendor rigoroso na reconstituição do plano semântico, não resolveu o problema em questão, ilustrando que mesmo a tradução mais semanticamente rigorosa está sujeita ao que chamaria de “infidelidade” na dimensão mais ampla de sentidos do poema.
O impasse mais imediato não só da formulação “Lenais”, mas do emprego de todas as rimas em “-ais”, contraria, a princípio, a ocorrência do que Poe chamou de “vogal mais sonora” no seu estribilho nevermore (1997, p. 106) e o que Jakobson entende como relação objetiva do simbolismo sonoro (1970, p. 153). No caso em questão, o traço arredondado posterior das rimas em -ore seria responsável por ditar o tom sombrio e melancólico do poema, por existir uma suposta relação objetiva entre a porção de realidade intuída e o som a ela atribuído; nesse caso, por critério sonoro, a tradução “não senhor” para nevermore, como feita por Eduardo Rodrigues, daria mais conta dessa correspondência. E se de fato, como quer Jakobson, dado um contexto de escolha, provavelmente optaríamos pela vogal grave /u/ como mais sombria em detrimento do /i/, ainda assim é contraproducente limitar a análise a uma suposta propriedade inerente aos sons, uma vez que os contextos poético e cultural são capazes de reconfigurar quaisquer propriedades supostamente imanentes e potencializar uma infinidade de novas relações.
“Lenais” e “nunca mais”, bem como todas as palavras que prenunciam ou retomam por ilatência rímica esses dois motes de O Corvo, carregam consigo o termo “ai”, que, apesar da vogal aberta, indicam dor, aflição e tristeza. Arranjei o poema para que essa associação pudesse ser estabelecida sem muito esforço interpretativo:
“Certo”, eu disse, “o que profere são só falas usuais
que aprendeu de um triste dono com desgraça em seu entorno,
de abandono em abandono até um coro só de ais —
como fado da Esperança, melancólico entre ‘ais’
de ‘nunca — nunca mais’”.
Enquanto, no texto de origem, lê-se:
“Doubtless,” said I, “what it utters is its only stock and store
Caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore—
Till the dirges of his Hope that melancholy burden bore
Of ‘Never—nevermore’.”
One burden bore: traziam um só “bordão”, que se traduz também como “fardo” proferido por um único pássaro (one bird): nevermore. Já em meu corvo, a mera alusão ao “coro” de ais trazido pela ave se converte em operação metalinguística, que ao mesmo tempo assinala a sofrida expressão “ai” como autônoma e aponta para a constituição da fala do corvo — e, consequentemente, do nome da amada. Pensemos na coita amorosa de D. Sancho I, de D. Dinis, de Fernão Rodrigues de Calheiros etc. como exemplos numerosos do uso da expressão para lamentar a ausência de alguém amado na tradição lírica portuguesa, a mesma tradição evocada pelo “fado da Esperança”, que é tanto canção como fardo do destino. De modo semelhante, note-se que “Lenais” é a forma do subjuntivo presente de segunda pessoa do plural (hierática como o corvo) do verbo “lenir”, i.e., “abrandar, aliviar, consolar”: mais que a leitura de obscuros manuais ou que o bom nepente do esquecimento, Lenais é o lenitivo definitivo, porém inalcançável, para o eu lírico perturbado de O Corvo. É essa forma potencial da missão tradutória, esse suplemento ambiguador, que se desdobra como autonomia do traduzido.
Não menos relevantes são as circunstâncias que antecipam a chegada da ave. Poe destaca a importância da definição espacial como “circunscrição fechada” para o “incidente insulado” que concentra a atenção (1997, p. 109); mas diferentemente de The Raven, já no primeiro verso busco estabelecer esse espaço. Assim, “Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary: Meia-noite, no meu quarto, refletia fraco e farto”, de modo que o caráter sombrio do momento fique implícito tanto na figuração do quarto tomado pela noite — quase claustrofóbico — quanto no direcionamento sintático e na associação aliterativa de “noite – refletia”, até o momento em que a ambiguidade se dissipe para a definição do novo sujeito: o eu lírico, “fraco e farto”.
Na versão de Poe, o quarto é anunciado um pouco depois, com a expressão chamber door; para ela, contudo, empreguei a clássica tradução “meus umbrais”, já admitida por muitos desde Machado de Assis. A palavra é menos legível do que seu correspondente inglês, mas possibilita aliterações oclusivas (ex.: “sobre meus umbrais”) e potencializa relações se sentido confluentes com o tom do poema: “umbral”, no vocabulário espiritista, designa um lugar transitório entre vida e morte, um entre-lugar dos planos material e espiritual; ademais, remete imediatamente a “penumbra”, além da palavra latina umbra, “sombra”, para os leitores mais doutos.
Em “from my books surcease of sorrow—sorrow for the lost Lenore: um amparo para a dura, dura perda de Lenais”, assumi a possibilidade da segunda ocorrência da palavra “dura” ser enunciada ambiguamente como adjetivo e como verbo, de modo a sugerir não somente a dificuldade do eu lírico em aceitar a perda da amada, mas também o caráter irremediavelmente perdurável dessa perda; de modo semelhante, em “some late visitor entreating entrance at my chamber door: vagamente vem tardia e pede entrada em meus umbrais”, procurei potencializar a ambiguação sonora de “vagamente”, que indicasse tanto a indefinição da suposta visita quanto a dúbia natureza psicológica dessa visita: “vaga a mente”, que se desdobra, incerta, na mente que vaga pelos obscuros manuais e divaga.
Quando o corvo finalmente aparece, o cenário se adensa: um embate é estabelecido entre o estudante solitário, dúbio do que vê, e a ave hierática e ancestral com sua certeza inexorável. O eu lírico olha para o animal primeiro com alguma graça natural (os corvos, como os papagaios, conseguem imitar a fala humana), mas esse olhar descompromissado assume postura investigativa após o estudante intuir associações funestas a partir da resposta do corvo. É então que quem olha passa a ser olhado, e não com meros olhos: “decifrava isso com pressa, sem nem sílaba expressa / pra ave de olhos que queimavam minhas forças mais fulcrais” — “um animal me olha. O que devo pensar dessa frase?” (Derrida, 2002Derrida, Jacques. O animal que logo sou. Tradução de Fábio Landa. São Paulo: editora UNESP, 2002., p. 19). Antes, o estudante busca traduzir não só a fala críptica do corvo, mas o próprio corvo como signo incerto, seu corpo e o corpo de sua mensagem; a partir do olhar de volta, a tentativa de tradução que permeava a relação entre homem e animal, esse “outro absoluto”, passa da vivência automatizada para uma correspondência atenta. O homem se deixa ser olhado, e é o animal que o traduz na estranheza de ambos os corpos, no olhar atento de corpos díspares mas singularmente vinculados.
Como todo olhar sem fundo, como os olhos do outro, esse olhar dito “animal” me dá a ver o limite abissal do humano: o inumano ou o a-humano, os fins do homem, ou seja, a passagem das fronteiras a partir da qual o homem ousa se anunciar a si mesmo, chamando-se assim pelo nome que ele acredita se dar. [...] eu me identifico a ele correndo-lhe atrás, atrás dele, atrás de toda sua zoo-logia
(Derrida, 2002Derrida, Jacques. O animal que logo sou. Tradução de Fábio Landa. São Paulo: editora UNESP, 2002., p. 31).
Os corpos se vinculam pelo olhar, mas também pelo chamamento e pela resposta, pelo nome: “Nuncamais”. Mas se coube a Adão a nomeação original dos animais, a “Isch antes de Ischa”, ao homem sozinho, o homem da terra; se Deus o deixou “gritar livremente os nomes” (Derrida, 2002Derrida, Jacques. O animal que logo sou. Tradução de Fábio Landa. São Paulo: editora UNESP, 2002., p. 35, 37), subverte-se a ordem na relação entre estudante e corvo. Aqui, o homem se encontra só depois da mulher, o que em certa medida o remonta à solidão adâmica, à saudade prenunciada; aqui, o homem não nomeia, mas pede o nome: “diz qual é teu nobre nome às trevas do plutônio cais!”. O animal, por sua vez, responde ao grito com a sabida fórmula. O grito de ordem passa a grito de desespero diante da impassibilidade da ave:
pelo Deus que nós louvamos — pelos arcos celestiais —,
assegura essa alma insossa caso lá no Éden possa
abraçar a santa moça que anjos chamam de Lenais —
a radiante e rara moça que anjos chamam de Lenais”.
Disse o corvo: “Nunca mais”.
Há uma revolução é temporal não apenas pela posição do homem, mas antes pela situação do animal; pois ao contrário do que tradicionalmente se atribuiu aos animais, o corvo detém o tempo: ele é o profeta e o hermeneuta, e, imerso na temporalidade desse poema-cronômetro, responde seu nome e nesse nome a fórmula do mundo, que é também a fórmula fatal do tempo. O corvo o sabe porque é ancestral, mais velho que o homem que o perscruta:
Há muito tempo, é como se o [corvo] se lembrasse, como se ele me lembrasse, sem dizer uma só palavra [ou apenas uma] o relato terrível da Gênese. Quem nasceu primeiro, antes dos nomes? Quem viu chegar o outro em seu território, há muito tempo? Quem terá sido o primeiro ocupante, e portanto o senhor? O sujeito? Quem continua, há muito tempo, sendo o déspota?
(Derrida, 2002Derrida, Jacques. O animal que logo sou. Tradução de Fábio Landa. São Paulo: editora UNESP, 2002., p. 39).
O corvo então olha e se formula em tempo. Em sua última estrofe, tendo-o também em vista, operei de forma talvez mais intensiva do que nas demais: projetei o fluxo aliterativo em /m/ como prenúncio sensitivo para sua derradeira formulação temporal; assim, “meus umbrais – semelhando – demônio – tremulando – minh’alma – nunca mais”, com a ilatência rímica “Lenais”, também ela alma do eu lírico em angústia demoníaca. Ainda no sentido infernal e extemporâneo da morte, explorei na paraforma “shadow on the floor: sombras sepulcrais” o potencial telúrico de ambas as expressões. Já para recriar a carga sonora de “on the pallid bust of Pallas: busto pálido de Palas”, precisei mover a preposição para o fim do verso anterior: “still is sitting, still is sitting: pousa e soa, pousa e soa ao”. A preposição articulada “ao” praticamente se dilui sonoramente no fim do verbo “soa”, não prejudicando de modo substancial a rima interna com “voa”; mas além disso, essa própria estratégia inusual pode despertar o olhar para o que será a estrofe definitiva, onde a disposição visual “oa ao” grafa o jogo das órbitas e do reflexo demoníaco entre corvo e eu lírico, entre aquele que é olhado e aquele que olha sob nosso próprio olhar. No delírio da forma, o corvo nos olhará de volta, deduzido de “raven: corvo” o “v” comum, bico do corvo e boca do abismo.
De todos os animais, o tradutor é o mais feliz
Haroldo de Campos afirma que o transcriador pode ser visto como “ficcionista da ficcção”, que opera transgressivamente uma nova seleção e uma nova combinação de elementos extra-e-intratextuais; como operação transgressora,
a tradução põe desde logo “entre parênteses” a intangibilidade do original, desnudando-o como ficção e exibindo a sua própria ficcionalidade de segundo grau na provisoriedade do como se. No mesmo passo, reconfigura, numa outra concretização imaginária, o imaginário do original, reimaginando-o, por assim dizer
(Campos, 2011Campos, Haroldo de. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011., p. 60-61).
É nesse sentido que “o texto traduzido não denota, mas conota seu original”, e que, se o poeta é um fingidor, “o tradutor é um transfingidor” (Campos, 2011Campos, Haroldo de. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011., p. 61, 62). Nessa configuração, o original passa a implicar suas possíveis citações translatícias no horizonte de sua recepção; ou seja, o original passa a endividar-se em relação à tradução, porque, ainda que se imponha como origem monolítica, também foi ele o primeiro demandador, foi ele que começou por faltar no mundo pós-Babel (Derrida, 2006Derrida, Jacques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006., p. 40). E se no fim há suplementação harmônica das línguas, esta só se dá depois do conflito.
Estranho movimento o de quem traduz. Na intraduzibilidade, na interdição divina, encontra a força motriz de seu empreendimento; da promessa intangível, do princípio melancólico da saudade diante do original, subverte a obra a um “sempre mais”. Aqui a dimensão transgressora desse movimento avesso à supremacia da unidade, paganismo dos avessos, satanicamente divino, confusamente belo: “Ao invés de render-se ao interdito silêncio, o tradutor-usurpador passa, por seu turno, a ameaçar o original com a ruína da origem. Esta, como eu a chamo, a última hýbris do tradutor luciferino: transformar, por um átimo, o original na tradução de sua tradução” (Campos, 2011Campos, Haroldo de. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011., p. 71-72).
O tradutor é o impostor por excelência, o impostor que se orgulha de sê-lo. Por sua incompostura, a vida da obra se desdobra em novos caminhos. O artifício da palavra travessa, da forma recorrente — tudo isso surge como estímulo ao ludismo inescapável e convidativo à dança da língua e à participação dos corpos sobre o corpo da mensagem. Acontece que toda formulação se singulariza num movimento estranhamente único, mas aberto à pluralidade: traduzível como novo arquivo de uma biblioteca secular e novo fragmento de uma Babel imemorável. Hermes filho de Zeus sorri.
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1
Exceto as referenciadas em entradas específicas, todas as traduções mencionadas neste artigo constam no site de FróesFróes, Elson (Org.). “Uma nuvem de corvos: O Corvo em português: traduções, inspirações e ensaios”. elsonfroes. Disponível em: http://www.elsonfroes.com.br/framepoe.htm. Acesso em: 06 mar. 2023.
http://www.elsonfroes.com.br/framepoe.ht... , conforme a seção de referências. -
2
Note-se que Poe emprega erroneamente um termo técnico: seguindo a própria lógica da convenção explicitada pelo autor, pela qual um verso de três pés e meio é chamado “tetrâmetro catalético”, o verso de sete pés e meio deveria na verdade ser designado “octâmetro catalético”, e não “heptâmetro catalético”. Esse não é um erro de tradução: em inglês, Poe (a) escreve “heptameter catalectic”.
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3
Todos os trechos do poema original reproduzidos neste trabalho foram retirados de Poe (b).
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Segundo Hermes, aliás, deus interveniente na transação verbal e no translado de defuntos, a paronomásia entre o grego antigo kórax (“corvo”) e kêryx (“arauto”) traduz a relação corpo-voz-presença do mensageiro que informa seu anúncio e faz-se ele próprio forma para anunciá-lo em corvo, na língua de Poe.
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Quando pesquisei por soluções semelhantes, descobri que Odair Creazzo Jr., numa tradução de 1998, havia me antecedido em muitos anos. O tradutor, apesar de não se preocupar com um metro fixo ou com a concisão da forma, emulou rigorosamente a rímica do poema. Digno de nota também é o fato de que a tradução de Cláudio Weber Abramo, que chamei de corretíssima por seu pendor rigoroso na reconstituição do plano semântico, não resolveu o problema em questão, ilustrando que mesmo a tradução mais semanticamente rigorosa está sujeita ao que chamaria de “infidelidade” na dimensão mais ampla de sentidos do poema.
Referências
- Benjamin, Walter. “A tarefa do tradutor”. Tradução de João Barrento. In: Branco, Lucia Castello (Org.). A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2008. p. 82-98.
- Campos, Haroldo de. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011.
- Conde & Drácula. “O corvo”. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=y3aO8ybtUc0 Acesso em: 06 mar. 2023.
» https://www.youtube.com/watch?v=y3aO8ybtUc0 - Derrida, Jacques. O animal que logo sou. Tradução de Fábio Landa. São Paulo: editora UNESP, 2002.
- Derrida, Jacques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
- Fróes, Elson (Org.). “Uma nuvem de corvos: O Corvo em português: traduções, inspirações e ensaios”. elsonfroes. Disponível em: http://www.elsonfroes.com.br/framepoe.htm Acesso em: 06 mar. 2023.
» http://www.elsonfroes.com.br/framepoe.htm - Jakobson, Roman. Linguística e comunicação Tradução de Isidoro Blikstein & José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1970.
- Poe, Edgar Allan (a). “The Philosophy of Composition”. The Edgar Allan Poe Society of Baltimore. Disponível em: https://www.eapoe.org/works/campbell/kcp1777.htm Acesso em: 06 mar. 2023.
» https://www.eapoe.org/works/campbell/kcp1777.htm - Poe, Edgar Allan (b). “The Raven”. The Edgar Allan Poe Society of Baltimore. Disponível em: https://www.eapoe.org/works/reading/pp073r1.htm Acesso em: 06 mar. 2023.
» https://www.eapoe.org/works/reading/pp073r1.htm - Poe, Edgar Allan. Ficção completa, poesia & ensaios. Tradução de Oscar Mendes & Milton Amado. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
- Pound, Ezra. Literary essays of Ezra Pound Londres: Faber and Faber Limited, 1954.
- Santiago, Emmanuel. “A rola (uma paródia de “The raven”, de Edgar Allan Poe)”. mallarmargens. Disponível em: http://www.mallarmargens.com/2017/03/a-rola-emmanuel-santiago.html Acesso em: 06 mar. 2023.
» http://www.mallarmargens.com/2017/03/a-rola-emmanuel-santiago.html - Santos, Emerson Cristian Pereira dos. “The Raven e o seu voo para a língua brasileira de sinais”. Cadernos de Tradução, 37(2), p. 132-158, 2017. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2017v37n2p132
» https://doi.org/10.5007/2175-7968.2017v37n2p132
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Ago 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
15 Ago 2022 -
Aceito
01 Mar 2023 -
Publicado
Mar 2023