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O sol na cabeça de Geovani Martins: um estudo de crítica e tradução

The Sun on My Head by Geovani Martins: A Study in Criticism and Translation

Resumo

O livro de estreia de Geovani Martins, O sol na cabeça (2018), foi instantaneamente recebido com elogios pela crítica, sendo divulgado pela própria editora, a Companhia das Letras, como “o novo fenômeno literário brasileiro vendido para 9 países”. Diferentemente de muitas obras brasileiras traduzidas, que levam tempo para aportar em outras línguas, o livro de Martins foi traduzido e lançado com apenas um ano de diferença para o inglês, o alemão, francês e espanhol. Este trabalho procura refletir sobre o papel da divulgação e da recepção deste livro em solo nacional e estrangeiro de língua inglesa, procurando analisar a formação de uma imagem dessa obra e do escritor através da reescrita, seja esta tanto por meio das resenhas críticas em âmbito nacional e internacional, quanto da tradução para o inglês do livro, conduzida por Julia Sanches e publicada em 2019 pela Farrar Straus & Giroux (EUA) e Faber & Faber (Reino Unido). De modo específico, na primeira parte deste artigo apresenta-se uma análise dos materiais paratextuais ao livro, tanto os presentes na própria obra, como os externos à obra, além de uma breve análise das resenhas publicadas nos primeiros meses do lançamento do livro. Na segunda parte, realiza-se uma crítica da tradução para o inglês do conto “Travessia” / “The Crossing” enfocando as estratégias que a tradutora utilizou para retextualizar as marcas de oralidade do texto-fonte. Pretende-se assim refletir sobre como um “fenômeno literário” é forjado via crítica e tradução, alinhando-se a novas visões sobre o português brasileiro e a literatura brasileira.

Palavras-chave
literatura brasileira traduzida; marcas da oralidade; paratextos; crítica de tradução; Geovani Martins

Abstract

O sol na cabeça (2018) is the first book published by Geovani Martins and it was readily received with critical acclaim, being promoted by Companhia das Letras, its publishing house in Brazil, as “the new Brazilian literary phenomenon sold to 9 countries”. Unlike many Brazilian works in translation, which take time to arrive in other languages, Martins’ book was translated and released just a year later in English, German, French and Spanish. This paper seeks to reflect on the role of dissemination and reception of this book in Brazil and in the English speaking world, in order to analyze the formation of an image of the writer and his work through rewriting, whether this be through critical reviews in Brazil and abroad, or through the English translation, done by Julia Sanches and published in 2019 by Farrar Straus & Giroux (USA) and Faber & Faber (UK). Specifically, the first part of this paper presents an analysis of the book’s paratextual materials, both those present in the work itself and those external to it, in addition to a brief analysis of the reviews published in the first months of the book’s launch. In the second part, a critique of the translation into English of the short story “Travessia” / “The Crossing” is carried out, focusing on the strategies that the translator used to retextualize the orality marks of the source text. The aim is thus to reflect on how a “literary phenomenon” is forged via criticism and translation, aligning itself with new views on Brazilian Portuguese and Brazilian literature.

Keywords
Brazilian literature in translation; orality marks; paratexts; translation criticism; Geovani Martins

1. Introdução

Um dos grandes acontecimentos literários do Brasil em 2018, O sol na cabeça é o livro de estreia de Geovani Martins. Nos treze contos do livro, Martins narra o cotidiano de jovens cariocas moradores de comunidades e subúrbios da cidade do Rio de Janeiro, usando marcas da linguagem oral própria desses jovens. Neste artigo, analisamos a repercussão em torno do lançamento do livro no Brasil, que enfatizou, por um lado, sua venda para vários países, sinalizando o status que a tradução pode conferir a uma obra, e, por outro, destacou o estilo de Martins de usar a variedade linguística das periferias cariocas com uma inovação linguística. Nessa análise, examinamos materiais paratextuais ao livro, tanto os presentes na obra, como capa, orelha e contracapa, como os externos à obra, na forma de releases da editora Companhia das Letras, que lançou o livro, e de resenhas de diferentes jornais e revistas. Por último, tecemos comentários à tradução para a língua inglesa de um dos contos, “Travessia”, como exemplo das estratégias que a tradutora Julia Sanches realizou em toda a obra.

Geovani Martins nasceu em 1991, em Bangu, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, onde viveu até os treze anos. Bangu, um dos bairros mais populosos cidade, é conhecido também por ser um dos mais quentes, ficando a cerca de cinquenta quilômetros da zona sul carioca. Ao sair de Bangu, Martins morou na Rocinha e no Vidigal, comunidades localizadas na zona sul e próximas a áreas elitizadas da cidade.

Esta questão geográfica é importante porque, segundo o autor, o choque resultante da mudança para o Vidigal foi o responsável pelas experiências que embasam os contos do livro. Sempre voltando a Bangu, onde viviam seus avós, Martins passou sua adolescência observando, tentando entender e se adaptar às diferenças nos códigos de conduta de brincadeiras, relações pessoais e maneiras de se expressar entre as diferentes zonas da cidade.

Essa observação das diferenças culturais em sua própria cidade também foi estimulada pela participação de Martins na FLUP (Festa Literária das Periferias) em 2015. Nesse evento, os participantes visitaram uma comunidade diferente a cada sábado, e Martins cita o conhecimento de outras vivências e trocas entre artistas de outras favelas como algo que abriu seus olhos para o caminho que queria seguir com sua obra: “a ideia de que a periferia precisa ser tratada sempre como algo em movimento e que não podia mais ser considerada sinônimo de favela” (Martins, 2018aMartins, Geovani. (2018a, March 6). “Como a favela me fez escritor”. Época. https://epoca.oglobo.globo.com/cultura/noticia/2018/03/geovani-martins-como-favela-me-fez-escritor.html
https://epoca.oglobo.globo.com/cultura/n...
).

Com a intenção de mostrar uma periferia conectada, consumidora de cultura pop, de clássicos e atravessada pela ótica de seu próprio contexto local, o autor construiu a linguagem usada em seus textos. Martins relata numa entrevista que não queria produzir uma narrativa uniforme, mas sim uma mistura de gírias, oralidade e norma padrão: “Onde a linguagem ia para o português mais canônico, eu fazia questão de inserir gírias e expressões populares. Onde usava e abusava da oralidade para contar uma história, sempre havia espaço para uma palavra mais recorrente ao português formal” (Martins, 2018aMartins, Geovani. (2018a, March 6). “Como a favela me fez escritor”. Época. https://epoca.oglobo.globo.com/cultura/noticia/2018/03/geovani-martins-como-favela-me-fez-escritor.html
https://epoca.oglobo.globo.com/cultura/n...
). As marcas da oralidade também ficam evidentes quando observamos que, dos treze contos do livro, dez são narrados em primeira pessoa e três em terceira pessoa, mas estes ainda assim carregam um ponto de vista bastante próximo ao dos protagonistas e trazem marcas da variedade linguística das periferias cariocas.

Do ponto de vista linguístico, Martins trabalha com a variedade urbana da periferia carioca, exemplificada por meio de marcas de oralidade na sintaxe e no léxico, distanciando-se de marcas do registro de uma norma literária, mais identificada com o que se convenciona chamar norma padrão do português brasileiro, mas que com ela não se identifica totalmente (Faraco, 2008Faraco, Carlos Alberto. (2008). Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós. Parábola.; Lucchesi, 2015Lucchesi, Dante. (2015). Língua e sociedade partidas: a polarização sociolinguística do Brasil. Contexto.). Além disso, Martins trabalha também com a norma urbana de prestígio do português brasileiro, mais evidente em alguns contos que em outros. O fato do escritor não se propor a reverenciar a norma literária é um dos destaques da obra dele segundo grande parte da crítica literária.

Outro destaque da linguagem em O sol na cabeça é como Martins constrói a representação racial dos personagens, prescindindo de descrições da cor da pele. Segundo o autor, ele queria se contrapor à literatura de Jorge Amado em que o escritor baiano só descreve a cor da pele de personagens negros, propondo, ao invés, a descrição dos personagens brancos e, quanto aos outros personagens, deixar a cargo dos leitores inferir, a partir das situações, a identificação étnica (Meireles, 2018Meireles, Maurício. (2018, July 28). Na Flip, espectador insinua que Geovani Martins só é incensado por morar na favela. Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/07/na-flip-espectador-insinua-que-geovani-martins-so-e-incensado-por-morar-na-favela.shtml
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/...
).

2. Peritextos

O sol na cabeça foi lançado no início de 2018 pela Companhia das Letras em uma tiragem de 10.000 exemplares segundo O Estadão (Brasil, 2018Brasil, Ubiratan. (2018, March 2). Geovani Martins estreia na literatura com obra empolgante: jovem escritor lança 'O Sol na Cabeça' e impressiona pela precisão com que recria a realidade sem perder o colorido da imaginação. Estadão. https://www.estadao.com.br/cultura/literatura/geovani-martins-estreia-na-literatura-com-obra-empolgante/
https://www.estadao.com.br/cultura/liter...
), algo bastante significativo para um livro de um autor estreante, e já estando encaminhada uma primeira reimpressão, a venda dos direitos autorais para o cinema e um contrato para um segundo livro, um romance intitulado Via Ápia cujo lançamento foi em setembro de 2022 também pela Companhia das Letras.

Segundo Gérard Genette, peritextos são materiais que estão no objeto livro, mas que não fazem parte do texto literário em si. São textos de responsabilidade principal, mas não exclusiva, do editor. Aqui, para O sol na cabeça, analisamos a capa, a contracapa e a orelha.

No lançamento da obra, uma informação bastante destacada nas resenhas e que está em adesivo na própria capa do livro (abaixo, Figura 1) diz que este é o “novo fenômeno literário brasileiro” e que já foi vendido para sete países, número que foi sendo atualizado até nove, conforme nossas pesquisas, nos adesivos das novas reimpressões. Isso demonstra o prestígio que a tradução e a divulgação da obra em línguas estrangeiras traz para o autor em solo doméstico.

Na contracapa, a estratégia utilizada pela editora Companhia das Letras foi o uso de comentários elogiosos formulados pelos próprios editores, ou equipe editorial, e também de intelectuais brasileiros. Na Figura 1, apresenta-se a capa e contracapa do livro, na arte de Alceu Chiesorin Nunes:

Figura 1
Capa e contracapa de O sol na cabeça (2018), de Geovani Martins

Para facilitar a leitura, transcrevo abaixo parte dos comentários da contracapa que podem ser vistos na Figura 1:

Com a estreia de Geovani Martins, a literatura brasileira encontra a voz de seu novo realismo. (sem autoria)

Geovani pula da oralidade mais rasgada para o português canônico como quem respira. Uma nova língua brasileira chega à literatura com força inédita. — João Moreira Salles

Fiquei chapado. — Chico Buarque

(Martins, 2018bMartins, Geovani. (2018b). O sol na cabeça. Companhia das Letras., contracapa)

Os comentários enfatizam aspectos da obra que a equipe editorial prevê como chamarizes comerciais: a ideia da novidade, a questão dos usos da língua e o tema das gírias. Sobre esses comentários, Vinícius Lourenço Linhares (2020)Linhares, Vinícius Lourenço. (2020). Capa, orelhas e quarta capa como espaços enunciativos de promoção de obras literárias. Linguagem em (Dis)curso, 20(3), 517–532. https://doi.org/10.1590/1982-4017-200307-10919
https://doi.org/10.1590/1982-4017-200307...
chama a atenção para o fato de que tanto João Moreira Salles quanto Chico Buarque são de famílias abastadas e com tradição intelectual, de maneira que o nome deles, colocados como leitores de Martins, confere ainda mais prestígio a um autor novato.

A orelha, outra forma de peritexto, foi escrita por Antonio Prata e da qual destaco a seguinte frase: “Vai chegar o dia em que a orelha de um livro do Geovani Martins poderá ignorar o fato de que ele é um escritor nascido em Bangu e morador da Rocinha ou do Vidigal, porque Geovani Martins é um escritor, ponto” (Prata, 2018Prata, Antonio. (2018). Orelha. In Geovani Martins. O sol na cabeça. Companhia das Letras., orelha). Prata aborda diretamente a questão identitária como sendo algo marcante porque talvez ainda incomum nesse espaço literário e editorial de uma das maiores editoras brasileiras e ao mesmo tempo aponta para o universal, de que Geovani Martins é um escritor que não está circunscrito ao seu meio e que tem temas que transcendem seu lugar de origem e que não exotizam o subúrbio e as comunidades.

Além desses peritextos, o livro apresenta também uma dedicatória à mãe, à companheira e a “todos os meus irmãos e irmãs”, e dois contos possuem dedicatórias específicas (“Rolezim”, “A viagem” e “O mistério da vila”), talvez sinalizando um teor biográfico nas histórias. Apesar de ser escrito com muitas marcas da variedade linguística das periferias cariocas, o livro não apresenta glossários e nem notas explicativas, não facilitando a leitura para as pessoas que não fazem uso dessa variedade do português e ao mesmo tempo aproximando o texto dos leitores das periferias.

3. Epitextos editoriais

Gérard Genette chama de epitexto editorial todo o material que não se encontra no objeto livro, mas que circula ao seu redor em todos os tipos de mídia. São as resenhas, entrevistas e materiais de divulgação que podem vir antes, durante ou depois do lançamento do livro. Nesta seção, exploramos principalmente o conceito de “epitexto editorial”: “hipérboles valorativas ligadas às necessidades comerciais” (Genette, 2009Genette, Gerard. Paratextos Editoriais. (2009). (Á. Faleiros, Trad.). Ateliê Editorial., p. 305), isto é, textos que são autorizados pelos editores para divulgação da obra.

Aqui, tecemos comentários sobre o material encontrado no site da Companhia das Letras, tanto no Blog da Companhia como no site de vendas da própria editora, ambos textos sem identificação de autoria. Os materiais de epitexto nos sites dão importância mais uma vez à projeção internacional do livro, comentando o que editores internacionais disseram sobre O sol na cabeça. Também trazem comentários de escritores brasileiros conhecidos como Nelson Motta, Marcelo Rubens Paiva e Milton Hatoum. Destaco abaixo os comentários que comparam Martins a outros escritores pela força que isso tem de aproximar um autor estreante de uma tradição literária já existente:

A linguagem [...] se aproxima do realismo sujo de Rubem Fonseca.

Clara Capitão, da Companhia das Letras em Portugal, afirmou que o autor reúne o ritmo contemporâneo e a agilidade narrativa de Irvine Welsh ao realismo tradicional de Jorge Amado na maneira de contar histórias.

“[algumas narrativas] podem ser lidas como um roteiro do Tarantino, é o caso de ‘A história do periquito e do macaco’ e ‘Travessia’.”, escreveu o editor alemão Frank Wegner [...].

“Se Lima Barreto estivesse vivo, sem dúvida leria com emoção as narrativas deste livro tão necessário em tempos de intolerância, ódio e ignorância." Milton Hatoum

(Blog da Companhia, 2018Blog da Companhia. (2018, March 2). Geovani Martins: guarde este nome. https://www.blogdacompanhia.com.br/conteudos/visualizar/Geovani-Martins-guarde-este-nome
https://www.blogdacompanhia.com.br/conte...
)

A matéria do Blog da Companhia também destaca a predileção de Geovani Martins por Machado de Assis, em especial, Memórias póstumas de Brás Cubas, obra que o autor afirma ter lido muitas vezes, sendo esta uma informação que será repetida em diversas resenhas sobre o autor e o livro.

A estratégia editorial foi, portanto, declarar o aspecto inovador do livro, afirmando ser um novo fenômeno na literatura brasileira, ao mesmo tempo em que procura demonstrar as filiações literárias da obra e seu caráter de continuidade com a literatura brasileira. Essa estratégia parece ter surtido efeito, pois a recepção no Brasil foi, na maioria, positiva, como podemos inferir pelos títulos das resenhas publicadas entre março e maio de 2018, primeiros três meses de lançamento da obra, nos maiores veículos da imprensa brasileira:

  1. Muito próximo e muito distante: A trajetória de Geovani Martins, o escritor cuja obra de estreia, sobre a vida nas favelas cariocas, já está vendida para publicação em nove países (Jerônimo TeixeiraTeixeira, Jerônimo. (2018, May 2). Muito próximo e muito distante: a trajetória de Geovani Martins, o escritor cuja obra de estreia, sobre a vida nas favelas cariocas, já está vendida para publicação em nove países. Veja. https://veja.abril.com.br/revista-veja/muito-proximo-e-muito-distante/
    https://veja.abril.com.br/revista-veja/m...
    , Veja);

  2. Geovani Martins estreia na literatura com obra empolgante: Jovem escritor lança 'O Sol na Cabeça' e impressiona pela precisão com que recria a realidade sem perder o colorido da imaginação (Ubiratan Brasil, Estadão);

  3. 'O Sol na Cabeça' revela escritor capaz de ver o mundo com liberdade: Geovani Martins constrói um universo variado de personagens com dramas humanos (Roberto TaddeiTaddei, Roberto. (2018, March 2). 'O Sol na Cabeça' revela escritor capaz de ver o mundo com liberdade: Geovani Martins constrói um universo variado de personagens com dramas humanos. Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/03/o-sol-na-cabeca-revela-escritor-capaz-de-ver-o-mundo-com-liberdade.shtml
    https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/...
    , Folha de São Paulo);

  4. Crítica: em boa estreia, Geovani Martins não reduz as comunidades a pobreza e violência (Juliana CunhaCunha, Juliana. (2018, March 2). Crítica: em boa estreia, Geovani Martins não reduz as comunidades a pobreza e violência. O Globo. https://oglobo.globo.com/cultura/livros/critica-em-boa-estreia-geovani-martins-nao-reduz-as-comunidades-pobreza-violencia-22448482
    https://oglobo.globo.com/cultura/livros/...
    , O Globo);

  5. Geovani Martins é nova aposta do mercado editorial brasileiro: O autor tem o livro de contos sobre personagens de favelas vendido para oito países. A primeira edição chegou a 10 mil exemplares (Nahima MacielMaciel, Nahima. (2018, March 10). Geovani Martins é nova aposta do mercado editorial brasileiro. Correio Braziliense. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2018/03/10/interna_diversao_arte,665082/geovani-martins-o-sol-na-cabeca.shtml
    https://www.correiobraziliense.com.br/ap...
    , Correio Braziliense);

  6. Na travessia, ele inventou o próprio ritmo (Miguel CondeConde, Miguel. (2018, March). Na travessia, ele inventou o próprio ritmo. Suplemento Pernambuco. https://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/72-resenha/2071-na-travessia,-ele-inventou-o-pr%C3%B3prio-ritmo.html
    https://www.suplementopernambuco.com.br/...
    , Suplemento Pernambuco);

  7. O universo da favela carioca: Geovani Martins tem recebido elogios por sua capacidade de levar as ruas e vielas das favelas cariocas para suas páginas (Gustavo RochaRocha, Gustavo. (2018, April14). O universo da favela carioca: Geovani Martins tem recebido elogios por sua capacidade levar as ruas e vielas das favelas cariocas para suas páginas. O Tempo. https://www.otempo.com.br/entretenimento/magazine/o-universo-da-favela-carioca-1.1599943
    https://www.otempo.com.br/entretenimento...
    , O Tempo);

  8. Prosa a pino: Livro de estreia de Geovani Martins é mosaico de imagens cintilantes e sombrias (Luciana Araújo MarquesMarques, Luciana Araújo. (2018, May 1). Prosa a pino: Livro de estreia de Geovani Martins é mosaico de imagens cintilantes e sombrias. Quatro Cinco Um. https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/literatura/prosa-a-pino
    https://www.quatrocincoum.com.br/br/rese...
    , Quatro Cinco Um);

  9. Sobre caxangas e memeias: gírias são bacanas, mas ainda bem que Geovani Martins não se limita a elas (Sérgio RodriguesRodrigues. Sérgio. (2018, May 3). Sobre caxangas e memeias: gírias são bacanas, mas ainda bem que Geovani Martins não se limita a elas. Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2018/05/sobre-caxangas-e-memeias.shtml
    https://www1.folha.uol.com.br/colunas/se...
    , Folha de São Paulo).

  10. ‘O Sol na Cabeça’: um fenômeno pouco fenomenal (Eder AlexAlex, Eder. (2018, March 28) ‘O Sol na Cabeça’: um fenômeno pouco fenomenal. Escotilha. https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:f1ydMpDIFkYJ:https://escotilha.com.br/literatura/livro-o-sol-na-cabeca-geovani-martins-companhia-das-letras-resenha-critica/&cd=9&hl=pt-BR&ct=clnk≷=br
    https://webcache.googleusercontent.com/s...
    , Escotilha);

  11. Muito sol na cabeça faz mal (Gustavo Nogy, Gazeta do Povo);

  12. O sol na cabeça (Maurício DuarteDuarte, Maurício. (2018, April 19). O sol na cabeça. Rolling Stone. https://rollingstone.uol.com.br/guia-livro/o-sol-na-cabeca/
    https://rollingstone.uol.com.br/guia-liv...
    , Rolling Stone). (grifos meus)

Nos títulos de 1 a 9, as palavras grifadas em itálico mostram os assuntos que receberam destaques nas resenhas que foram positivas sobre o livro, isto é, a biografia de Geovani Martins, personagens e cenários das favelas, a venda do livro para diversos países e a linguagem inovadora. Já os títulos de 10 a 11 se referem às resenhas de tom mais crítico ao livro que, em comum, discordam que o autor seja “o novo fenômeno brasileiro” por existirem autores que retratam temáticas semelhantes e com uso de linguagem próxima à oralidade como Aluísio Azevedo, Paulo Lins ou João Antônio, citados pela Escotilha, e Rubens Fonseca, citado pela Gazeta do Povo. A resenha da Gazeta do Povo é a única que faz críticas à linguagem, dizendo que o livro é “infestado” de “gírias e outros erros de concordância”, “lugares-comuns e [...] incorreções gramaticais” (Nogy, 2018Nogy, Gustavo. (2018, April 11). Muito sol na cabeça faz mal. Gazeta do Povo. https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/gustavo-nogy/muito-sol-na-cabeca-faz-mal/.
https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/gu...
), o que demonstra uma visão política conservadora e preconceituosa sobre a língua.

4. A tradução para a língua inglesa

A tarefa de traduzir essa obra marcada pela oralidade foi designada à tradutora paulista Julia Sanches. Formada em Literatura Inglesa e Filosofia pela Universidade de Edimburgo, Sanches completou seu mestrado em Literatura Comparada e Tradução Literária na Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona. Foi agente literária e atualmente se dedica exclusivamente à tradução. Ganhou diversos prêmios e atuou como jurada em diferentes concursos de tradução. Sanches traduz do português, do espanhol, do catalão e do francês para o inglês e tem traduções publicadas de autores brasileiros contemporâneos como Daniel Galera e Noemi Jaffe (Sanches, n.d.Sanches, Julia. (n.d.) Julia Sanches. https://www.juliasanches.com/pt
https://www.juliasanches.com/pt...
). A tradutora descreve as dificuldades que enfrentou durante a tradução de O sol na cabeça em um texto publicado no Blog da Companhia (Sanches, 2018Sanches, Julia. (2018, September 28). Traduzindo O sol na cabeça. Blog da Companhia. https://www.blogdacompanhia.com.br/conteudos/visualizar/Semana-dos-Tradutores-Julia-Sanches
https://www.blogdacompanhia.com.br/conte...
) e classifica os dilemas de tradução como “espinhosos” e “desesperadores” e que mal dormiu enquanto durou o trabalho.

The Sun on My Head foi publicado em junho de 2019 pela editora Farrar Straus & Giroux nos Estados Unidos e pela Faber & Faber na Inglaterra. Como se pode ver na Figura 2 a seguir, o nome da tradutora aparece na capa da edição americana (arte de Alex Merto), mas não na britânica (arte de Clare Skeats).

Figura 2
Capas de The Sun on My Head (2019)

Ainda, observando as capas, vemos que a edição britânica apresenta um blurb de D. B. C. Pierre, autor australiano do livro Vernon God Little, vencedor do Booker Prize em 2003, um livro igualmente sobre jovens e publicado pela mesma editora. Ali, lê-se “Every so often a writer blasts a whole through a wall, Geovani Martins is that writer” [“De vez em quando um autor explode um buraco na parede, Geovani Martins é esse tipo de escritor”].

Yingyi Liang (2023, p. 215-216)Liang, Yingyi. (2023). Traduzindo a diversidade linguística e o contexto cultural em Terra sonâmbula, de Mia Couto: estratégias de tradução e paratextos na versão chinesa. Cadernos de Tradução, 43(esp. 3), 209–232. https://doi.org/10.5007/2175-7968.2023.e97136
https://doi.org/10.5007/2175-7968.2023.e...
comenta que os textos traduzidos podem acrescentar elementos paratextuais que não estavam presentes nas edições originais e “esses elementos também possuem o potencial de explicar o texto, de acrescentar informações de referência, e de moldar a recepção do texto estrangeiro pelos leitores”. Assim, no blurb acrescentado à edição britânica, as obras de Martins e Pierre se conectam ao abordar a vida de jovens e pelo uso de uma linguagem com marcas e ritmos próximos da oralidade, o que justifica o aval dado por Pierre com fins de aproximar leitores de ambos os autores. Com relação à recepção do texto estrangeiro, a edição britânica aproxima o texto traduzido da cultura anglófona, enquanto que a edição americana, ao apresentar o nome da tradutora na capa, marca a estrangeiridade e o não-pertencimento do livro à cultura receptora.

Como ocorreu no Brasil, também no mundo anglófono a tradução The Sun on My Head foi bastante resenhada. Pela nossa pesquisa, contabilizamos doze resenhas, algumas breves, outras de tamanho médio, algumas em grandes veículos da mídia como The Guardian, Times Literary Supplement (TLS) e The New York Times. Também encontramos resenhas nos seguintes websites de jornais e revistas literárias: Asymptote; Booklist Online; Financial Times; Irish Times; Kirkus reviews; Paperback Paris; Publishers Weekly; The Skinny; e The White Review. De modo geral, podemos dizer que, se no Brasil Geovani Martins já era dado como um fenômeno literário, em inglês o autor é visto ainda como uma promessa literária. Igualmente, as resenhas em inglês enfatizam o retrato da vida na favela e a linguagem marcada pela oralidade, além de apresentar elogios ao trabalho da tradutora Julia Sanches.

Analisamos a seguir a tradução do conto “Travessia”, em inglês “The Crossing”. Narrado em terceira pessoa, o conto centra-se em Beto, um traficante de drogas que matou um cliente da boca de fumo por este ter feito com as mãos um sinal característico da facção rival. A atitude foi mal vista pelo chefe e Beto precisa se livrar do corpo sozinho, caso contrário sua vida também correria perigo. Violência e barbárie estão presentes, mas não são os temas centrais do conto. A narrativa se desenvolve em torno do cotidiano de um trabalhador do tráfico e dos problemas práticos enfrentados por quem lida constantemente com a existência em situações extremas.

Além dos perigos que enfrenta para manter sua vida, o revés do personagem possibilita extrair de “Travessia” certo aspecto de universalidade das temáticas das relações hierárquicas de trabalho, do esgotamento, da exploração, de questionamentos morais, da busca pelo respeito dos pares e da manutenção de status. O texto é repleto de marcas de oralidade, como o uso de expressões e elementos linguísticos que reproduzem a linguagem falada pelo grupo social que protagoniza a narrativa.

O conto escolhido para análise da tradução ilustra bem as estratégias empregadas por Sanches para criar, manter e transpor efeitos característicos da fala da variedade do português brasileiro utilizado nas comunidades do Rio de Janeiro para a língua inglesa. Respeitando a estrutura do texto de partida, Sanches mesclou a utilização de traços da norma padrão do inglês, a manutenção de termos em português da variedade oral do texto-fonte e a variante African American Vernacular English (AAVE).

Com características gramaticais, fonológicas, culturais e sociais específicas e falada por um grande número de pessoas nos Estados Unidos — entre 80 e 90 por cento da população negra (Baugh, 1983Baugh, John. (1973). Black Street Speech: Its History, Structure and Survival. University of Texas Press.; Green, 2002Green, Lisa J. (2002). African American English: A Linguistic Introduction. Cambridge University Press.) o AAVE também é conhecido como Ebonics, Black English, Black English Vernacular e African American English. Racial e culturalmente estabelecido num contexto originado pela escravidão num país onde os negros ainda enfrentam graus alarmantes de preconceito, o AAVE está muitas vezes associado ao discurso das comunidades periféricas, especificamente da classe trabalhadora, da população pobre e não escolarizada das áreas urbanas.

No conto “Travessia”, não há diálogos. O narrador relata os acontecimentos e reproduz falas de alguns personagens que interagem com Beto, com ocasionais intervenções do personagem, que se manifesta por pensamentos marcados por aspas. Mesmo sem efetivamente expressar trocas de turno características do diálogo, o efeito de verossimilhança (Britto, 2012Britto, Paulo Henriques. (2012). A Tradução Literária. Civilização Brasileira.) se dá na medida em que em nenhum momento a variedade linguística entre discursos do narrador, relatos de fala de outros personagens e pensamentos de Beto são alterados. É um discurso representativo do grupo selecionado pelo autor.

A tradutora ora elegeu a variedade linguística AAVE, ora manteve termos da variedade oral do português no texto de partida. Nesse sentido, percebemos que a estratégia do uso de uma variedade específica no texto-alvo, o AAVE, considerada não padrão, buscou o efeito de identificação com a variedade específica regional e social do texto-fonte, carregando o significado social que a acompanha e conferindo autenticidade (Pym, 2000Pym, Anthony. (2000). Translating Linguistic Variation: Parody and the Creation of Authenticity. In Miguel A. Vega & Rafael Martín-Gaitero (Eds.), Traducción, metrópoli y diáspora (pp. 69–75). Universidad Complutense de Madrid. https://usuaris.tinet.cat/apym/on-line/research_methods/2000_authenticity.pdf
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) à tradução, mas sem dominá-la. A variedade AAVE costura o texto-alvo, mas a escolha da tradutora de manter termos do português brasileiro sem exotizá-los nem explicá-los mantém o estranhamento que também ocorre no texto-fonte.

Como exemplo dos usos de AAVE, apresentamos o Quadro 1 a seguir:

Quadro 1
Uso de AAVE em “The Crossing” (grifos e símbolo Ø nossos)

Percebe-se que em inglês o uso de marcas de AAVE não correspondem necessariamente a marcas de variedade não padrão no texto-fonte. A tradutora aproveitou a familiaridade que o público dos Estados Unidos já possui com o AAVE para trazer uma proposta tradutória que busca conectar as culturas negras brasileiras e estadunidenses. Ambas as variedades são características de populações com passado histórico de escravidão, opressão e marginalização, que têm sua força de trabalho explorada e, apesar de tudo, produzem cultura. Mesmo que ainda exista preconceito e resistência à variante em espaços que a consideram imprópria ou errada, seu alcance permite que o grande público a reconheça na representação escrita e faça inferências e associações sobre enredo e personagens.

Continuando, em “Travessia” o registro apresenta marcas predominantemente provenientes do uso oral da língua, em especial aquela usada nas periferias cariocas. Martins (2018b)Martins, Geovani. (2018b). O sol na cabeça. Companhia das Letras. reproduz marcas de fala quando contrai preposições; utiliza palavrões; e modifica a ortografia de palavras, registrando como ocorrem na oralidade de muitos falantes do Rio de Janeiro, como nos seguintes exemplos (grifos nossos): “Quando eu era menó” (p. 114), “o corpo doía como se tivesse levado um coro” (p. 116), “que os cara era capaz de mandar matar mermo” (p. 117), “Beto sentiu logo que dessa num ia passar” (p. 118). Gírias também são amplamente empregadas no texto: “isso deixava ele bolado (...) tá nesse perrengue de ter que sumir com o presunto (...) essas paradas” (p. 114).

No texto de Martins (2018b)Martins, Geovani. (2018b). O sol na cabeça. Companhia das Letras., o verbo estar e suas flexões aparecem contraídos pela queda da sílaba es inicial (aférese): “Sentia que tava sendo observado (...) dois deles tavam sem camisa” (p. 116). No entanto, mesmo num texto tão marcado pela oralidade, o autor manteve a estratégia de mesclar registros, o que pode ser observado pelas poucas ocorrências de falta de concordância de número, tanto verbal quanto nominal: “igual a ele tinha vários (...) os alemão” (p. 113), “os cara tudo” (p. 114), “que os cara era capaz” (p. 117).

Destacamos, ainda, a utilização do pronome tu seguido de verbo na terceira pessoa, em substituição ao pronome você, como ocorre nos seguintes trechos do conto de Martins (2018b)Martins, Geovani. (2018b). O sol na cabeça. Companhia das Letras.: “quem vai pra vala é tu” (p. 113), “tu vai ver” (p. 114), “pior raça que tem pra tu se meter” (p. 116) e a substituição de todos por geral: “um esporro neurótico na frente de geral” (p. 113), “Geral tá ligado” (p. 114), “geral é amigo” (p. 115). O uso de expressões típicas da fala leva o leitor a construir sua leitura em um registro mais conversacional, gerando o efeito de imersão naquela realidade através da familiaridade que estes elementos linguísticos evocam, como se o leitor fizesse parte daquela situação, se aproximando do personagem.

É importante salientar que Geovani Martins não intervém no texto de modo a elucidar significados de termos estranhos ao público habituado à leitura de obras escritas na variedade de prestígio. Acessar todas as dimensões de sentido dos contos de O sol na cabeça requer certo esforço para o leitor que não faz parte do grupo social do autor e seus personagens. Em “Travessia”, é possível exemplificar a estratégia do estranhamento selecionando o trecho “brincando de Bob Teco, matando ratos com uma atiradeira” (Martins, 2018bMartins, Geovani. (2018b). O sol na cabeça. Companhia das Letras., p. 119), que faz referência a uma brincadeira que consiste na fabricação de uma arma caseira utilizando canos e pequenas pedras como munição. É possível inferir informações pelo contexto, mas não há notas explicativas. Em “Ficava fingindo que palmeava os becos” (Martins, 2018bMartins, Geovani. (2018b). O sol na cabeça. Companhia das Letras., p. 113), novamente foi necessário colher mais informações. Em motores de busca, foram encontradas ocorrências de palmear becos em notícias de jornal (Torres & Soares, 2018Torres, Ana Carolina, & Soares, Rafael. (2018, January 11). PMs não atendem a chamados em ‘áreas de risco’. O Globo. https://oglobo.globo.com/rio/pms-nao-atendem-chamados-em-areas-de-risco-22276227
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) e letras de música do estilo funk (McDuduzinho, n.d.), com sentido de vigiar, olhar, patrulhar. Adiante, exemplificaremos como a tradução de Sanches criou soluções para manter o estranhamento das marcas de oralidade em português na sua tradução para o inglês:

Quadro 2
Escolhas lexicais com uso de estrangeirismos

O vocábulo boca é central no texto-fonte. É o local onde a ação se origina, o ambiente de trabalho e de convivência do personagem Beto e para onde ele quer voltar depois de solucionar seu problema. Sanches decidiu manter boca e sua variação no plural, quando necessário, no texto-alvo — são oito ocorrências, ao todo. Outra amostra de português encontrada na tradução é a expressão meu amigo, que possui correspondência em língua inglesa — my friend. Sabemos que nos Estados Unidos existe uma grande comunidade de falantes de espanhol, e que o sentido de meu amigo, bastante próximo da forma espanhola mi amigo, pode alcançar muitos leitores daquele país.

Sanches modificou a grafia de mototáxi para mototaxi, retirando a acentuação tônica e adaptando a grafia de um vocábulo sem correspondente em língua inglesa para aquele idioma, propondo um neologismo. Nesta escolha, a tradutora permaneceu num meio termo entre domesticação e estrangeirização. Já o emprego de baile funk, inclui o vocábulo funk, ausente no texto de partida. No português brasileiro, o vocábulo baile é amplamente utilizado no contexto de reuniões sociais que envolvem música e dança, e, associado ao anglicismo funk, qualifica os eventos realizados em comunidades, com apresentações de MC’s (mestres de cerimônia, como são conhecidos os cantores do estilo musical) e coreografias características. Originados nas favelas do Rio de Janeiro, os bailes funk são manifestações culturais populares de suas comunidades e a escolha pela inclusão do vocábulo restringe o sentido e contextualiza culturalmente a narrativa.

Houve ainda a inclusão da interjeição tchau, ausente no texto-fonte. O vocábulo confere sonoridade ao texto e é relacionável ao termo italiano que lhe originou: ciao. A tática propicia ao leitor uma possibilidade de associação com o significado. Finalmente, a solução de tradução encontrada por Sanches para manter o nome Bob Teco no texto-meta foi criativa: transformou o nome da brincadeira em nome próprio (“always scampering up and down, playing with Bob Teco, sling-shooting rats”). Em “The Crossing”, Beto não brincava de, e sim com Bob Teco. Essa tendência estrangeirizante em traduções recentes de literatura brasileira vem ganhando espaço, como podemos ver nas pesquisas sobre retradução da obra de Clarice Lispector para língua inglesa (Darin, 2023Darin, Leila Cristina de Melo. (2023). Tradução de narrativas ficcionais: a opção estrangeirizadora de Katrina Dodson na tradução para o inglês de “Um dia a menos”, de Clarice Lispector. Cadernos de Tradução, 43(1), 1–30. https://doi.org/10.5007/2175-7968.2023.e92998
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; Freitas, 2018Freitas, Luana Ferreira de. (2018). A radicalidade de Clarice Lispector traduzida para o sistema literário anglófono. Cadernos de Tradução, 38(3), 244–258. https://doi.org/10.5007/2175-7968.2018v38n3p244
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; Widman & Zavaglia, 2017Widman, Julieta, & Zavaglia, Adriana. (2017). Domesticação e estrangeirização em duas traduções para o inglês de A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. Cadernos de Tradução, 37(1), 90–118. https://doi.org/10.5007/2175-7968.2017v37n1p90
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).

Por outro lado, alguns vocábulos que são característicos da variedade linguística do texto-fonte foram domesticados. Morro ocorre no texto de partida treze vezes e Sanches decidiu pela correspondência hill, mesmo sendo termo tão importante cultural e narrativamente quanto boca. Martins utilizou presunto, gíria que designa cadáver, três vezes e Sanches encontrou sentido semelhante com corpse, dead guy e body. Fez o mesmo com novinhas, selecionando babe e girls. Por fim, Sanches elegeu lieutenant como a maneira de transpor o sentido da função de gerente do morro para o idioma de chegada. Os exemplos foram reunidos no Quadro 3 abaixo:

Quadro 3
Escolhas lexicais domesticadoras (grifos meus)

Por último, gostaríamos de destacar também uma estratégia criativa de tradução de expressões da variedade do texto de partida. Confrontada pela tarefa de traduzir a gíria “na capa do Batman”, utilizada no Rio de Janeiro para se referir à magreza de alguém, Sanches criou “Batsuit-thin”, mantendo a imagem produzida no texto-fonte.

5. Considerações finais

Com base nas leituras das resenhas brasileiras sobre O sol na cabeça, podemos pressupor alguns pontos em comum na visão da mídia sobre o livro: o primeiro deles é que as resenhas deixam implícito que os prováveis leitores de Martins são pessoas brancas de classe média, para quem a vida na periferia e a variedade linguística ali utilizada são vistas como algo novo.

Também vemos a intenção de demarcar que o livro trata de pessoas e de locais bastante específicos, periferias da cidade do Rio de Janeiro, mas que ao mesmo tempo se conectam com questões mais amplas, mostrando que a obra de Martins pode e deve circular em outros ambientes além das periferias cariocas: em terras estrangeiras e nas casas de pessoas que acompanham o trabalho de homens brancos de classes mais altas como Chico Buarque, João Moreira Salles e Antonio Prata.

Há uma quase unanimidade de que o uso que o autor faz da língua, mesclando marcas de uma variedade não padrão do português brasileiro com marcas de uma variedade de prestígio é algo bastante positivo na obra, com destaque para o uso da variedade linguística das periferias cariocas.

Com relação à tradução “The Crossing”, a tradutora Julia Sanches optou pela escolha da variedade AAVE analogamente à variedade não-padrão do texto de partida ao mesmo tempo em que manteve termos em português, preservando o efeito de estranhamento e produzindo um efeito de autenticidade (Pym, 2000Pym, Anthony. (2000). Translating Linguistic Variation: Parody and the Creation of Authenticity. In Miguel A. Vega & Rafael Martín-Gaitero (Eds.), Traducción, metrópoli y diáspora (pp. 69–75). Universidad Complutense de Madrid. https://usuaris.tinet.cat/apym/on-line/research_methods/2000_authenticity.pdf
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) e verossimilhança (Britto, 2012Britto, Paulo Henriques. (2012). A Tradução Literária. Civilização Brasileira.). Assim como em português, o texto traduzido não se preocupa em trazer explicações para os termos da variedade linguística da periferia utilizados em português, mas sim buscar pontos de contato entre cultura-fonte e cultura-alvo para que os leitores estabeleçam por si os pontos de conexão. De maneira semelhante, é isso que Martins faz em português quando pensamos que o público-alvo, suposto através dos materiais epitextuais da editora e de veículos da mídia, é um público branco e de classe média, que desconhece ou não pratica a variedade linguística das periferias cariocas.

Agradecimentos

Agradeço à Maria Carolina R. C. Cysneiros pela sua contribuição à pesquisa como bolsista UFF do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC, da Universidade Federal Fluminense, durante o segundo semestre de 2018 e o primeiro de 2019.

  • Conjunto de dados de pesquisa

    Em 2020 apresentei uma versão inicial deste texto no VIII Seminário de História da Tradução e da Tradução Literária, Universidade de Brasília. A palestra está disponível no YouTube e o link se encontra nas referências (Paganine, 2020Paganine, Carolina. (2020). Pensar com O sol na cabeça de Geovani Martins: um fenômeno de crítica e tradução. [vídeo] Canal do Núcleo de Estudos em História da Tradução e Tradução Literária (NETHLIT). Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=IzJkPXUJAWc&t=2337s
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    ).
  • Financiamento

    Este projeto contou com financiamento da Universidade Federal Fluminense na forma de uma bolsa PIBIC durante o segundo semestre de 2018 e o primeiro de 2019.
  • Consentimento de uso de imagem

    Informamos que as imagens utilizadas estão acompanhadas das devidas referências bibliográficas, com créditos aos capistas e às editoras das obras.
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa

    Não se aplica.
  • Publisher

    Cadernos de Tradução é uma publicação do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução, da Universidade Federal de Santa Catarina. A revista Cadernos de Tradução é hospedada pelo Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade.
  • Revisão de normas técnicas

    Alice S. Rezende – Ingrid Bignardi – João G. P. Silveira – Kamila Oliveira

Declaração de disponibilidade dos dados da pesquisa

Os dados desta pesquisa, que não estão expressos neste trabalho, poderão ser disponibilizados pelo(s) autor(es) mediante solicitação.

Referências

Editado por

Editores de seção

Andréia Guerini – Willian Moura

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2023
  • Aceito
    18 Fev 2024
  • Revisado
    21 Mar 2024
  • Publicado
    Abr 2024
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
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