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QUADRINHOS EM TRADUÇÃO: PENSANDO A ESCRITA COMO IMAGEM

COMICS IN TRANSLATION: THINKING THE WRITING AS IMAGE

Resumo

A tradução de histórias em quadrinhos implica uma revisão da página inteira em que se insere o texto traduzido, e demanda um novo serviço gráfico muitas vezes desnecessário na tradução de escritas: o letreirista, considerado por Assis como um outro tradutor das obras em quadrinhos (Assis, 2018). Analisando algumas traduções e a dificuldade de traduzir-se a letra, verifica-se a como esse tipo de tradução aponta para o caráter predominantemente imagético das histórias em quadrinhos, bem como lembram o caráter visual da escrita. A partir dessas relações entre a tradução da letra e da imagem (Christin, 2013), apresento alguns exemplos de nós tradutórios, entre a tradução linguística e o releitreiramento, em uma tentativa de contribuir para uma teoria dos quadrinhos.

Palavras-chave
quadrinhos; imagem escrita; letreiramento; tradutologia; teoria dos quadrinhos

Abstract

Translating comics implies reviewing the page where the translated text is inserted in full, and it demands a new graphic service many times unnecessary on the translation of writing only works: the letterer, considered by Assis as another translator in comics work pieces. (Assis, 2018). When analyzing some translations of comics and the difficulty on translating the letter, it is possible to verify how this kind of translation points out the predominantly imagetic character of comics, as so reminds us the visual character of the writing. From these relations between translating the letter and the image (Christin, 2013), I present some examples of translation knots, on language translation and re-lettering, in an attempt to contribute for a theory of the comics.

Keywords
comics; writing image; lettering; traductology; comics theory

A tradução da letra e as histórias em quadrinhos

Em “A noisy alphabet” (Figura 1) Tom Gauld cria alfabetário de monstros misturando seres de ficção científica e horror. Cada letra indica a onomatopeia do ser ilustrado, pois um alfabeto barulhento. Em uma página, Gauld nos traz alguns problemas de tradução: apenas seis das onomatopeias ilustradas também ocorrem em nossa língua (aarg, grrr, miau, poing, vrrr, zzz), e outras onomatopeias teriam que ser adaptadas com muita criatividade por seu tradutor (em uma primeira tentativa de tradução: bizz, crá, éééé, fuén, óóóó, rrrr, uuu). Por sorte, o elemento alfabético não está imbrincado no desenho, o que facilitaria a simples substituição de um conteúdo verbal por outro – sua grafia, aparentemente manual, pode ter sido digitalizada, transformada em imagem vetorial, para, por fim, ser reproduzida em tipografia eletrônica para simular o efeito manuscrito da letra, e aplicada na diagramação.

Figura 1
“A noisy alphabet”

Aqui, o conteúdo linguístico, onomatopeico, não impediria, a priori, uma atualização em língua estrangeira desse quadrinho – a onomatopeia, por sinal, é o exemplo mais frequente dos problemas de tradução em quadrinhos, pela sua materialização em imagem em meio às cenas; um texto que se irrompe na imagem, a superfície inacessível ao tradutor linguístico.

As onomatopeias são até por vezes consideradas o elemento mais “quadrinho” das histórias em quadrinhos, vide suas reinterpretações canonizadas pela Pop Art de Lichtenstein ou até em teorias sobre os quadrinhos. “Entre os elementos mais característicos dos quadrinhos estão as interjeições e onomatopeias, a visualização de sons paralinguísticos e ambientais que, assim como os efeitos sonoros do cinema, são indispensáveis para a elaboração da sua mensagem” (Meireles, 2007Meireles, Selma. “Onomatopéias e interjeições em histórias em quadrinhos em língua alemã”. Pandaemonium Germanicum, 11, p. 157-188, 2007. DOI: https://doi.org/10.11606/1982-8837.pg.2007.62158
https://doi.org/10.11606/1982-8837.pg.20...
, p. 158)e gramáticas e dicionários fr eqüentemente restringem-se a apresentar uma definição estereotipada e alguns poucos exemplos. Desprezadas pela literatura tradicional, essas expressões encontram seu \”habitat natural\” nas histórias em quadrinhos, nas quais se tornam elementos imprescindíveis da linguag em própria desse gênero textual. Este breve experimento sobre interjeições e onomatopéia s presentes em mangás (histórias em quadrinhos japonesas. A visualização dos sons não seriam, no entanto, “mais característicos” dos quadrinhos, pois a escrita já tornaria “visível a palavra” (Christin, 2012Christin, Anne-Marie. Histoire de l’écriture. Paris: Flammarion, 2012., p. 10): esta é uma característica intrínseca à escrita, não restrita ao conteúdo linguístico das histórias em quadrinhos: todo texto escrito é imagem. Certamente, quadrinhos de produção em massa fazem uso intenso da irrupção de palavras-barulho, mas esse não é um dado universal em quadrinhos e muito menos indispensável. O que acontece especificamente nos quadrinhos é que a plasticidade dada ao conteúdo escrito torna mais evidente a visualidade da própria escrita. E, assim, as dificuldades de tradução de uma história em quadrinhos apontam para essa relação bem estreita entre o que a narrativa dá a ler (sua narratibilidade) e o que ela dá a ver (sua plasticidade ou visualidade), e o presente trabalho pretende explorar esses elementos específicos das histórias em quadrinhos a partir de alguns problemas de tradução nessa linguagem.

A principal característica da mídia quadrinhos é o estabelecimento da relação entre os elementos da página e em como a disposição desses elementos cria uma dialética: uma leitura por ricochetes. A leitura se depreende das relações estabelecidas tanto entre elementos dispostos no dispositivo específico, e entre conteúdo linguístico e conteúdo plástico. É um percurso que vai da página inteira para os elementos articulados sobre ela, em geral seguindo a mesma lógica de leitura da língua do livro. Mas também, por muitas vezes, envolve retornos, traz de volta o olhar (o ricochetear). O efeito narrativo é criado a partir da disposição do conjunto de elementos, em que algum elemento repetido indica sua coesão: personagem, objeto, ou até mesmo o quadro simulando os diferentes momentos de uma mesma cena são os elementos de coesão de uma narrativa em quadrinhos (Daures, 2016Daures, Pilau. “A repetição como elemento narrativo nas histórias em quadrinhos”. Tradução de Valérie Lengronne. In: Aranguri, Luis & Canela, Victor Gaspari (Ed.). Antílope 2. São Paulo: Antílope, 2016. p. 23-34.). Nesse sentido, o conteúdo linguístico está mais ou menos integrado à imagem, em que a letra desenhada participa da plasticidade da cena, e também compõe parte da narrativa.1 1 A ordem narrativa depende intrinsicamente de uma sequência (causa e consequência, prosseguimento da história). Isso posto, considero definir quadrinho como “arte sequencial” algo vago, pois todas as artes narrativas são sequenciais. Quadrinhos têm seu dispositivo canônico como princípio fundador, a ordem narrativa sendo apenas um dos componentes de (ou efeito gerado por) sua forma.

Gérard Blanchard (1985)Blanchard, Gérard. “Lettrage en bande dessinée”. Communication et Langages, 64(1), p. 65-73, 1985. DOI: https://isidore.science/document/10.3406/colan.1985.1693
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, historiador de quadrinhos, em artigo de 1975, apresentava um histórico da imbricação do texto na imagem, desde o suíço Rodolphe Töpffer (1799-1846) a autores contemporâneos seus. Ele observava como, nas primeiras obras em quadrinhos dirigidas à infância (primeiras décadas do século XX), o texto pertencia a uma escala diferente da página, como dois planos distintos, e constando sobretudo, tipografado. Assim, a letra manuscrita nos Pieds-Nickelés de Louis Forton (1879-1934) reservava-se a comentários curtos, onomatopeias e interjeições – linguagem “menor” –, que os recitativos tipografados, onde figurava a narração. Blanchard cita o quadrinista Franquin (1924-1997), que reverencia seu antepassado Alain Saint-Ogan (1895-1974), por ter criado um quadrinho em que imagem e texto estão extremamente interligados. Zig et Puce, de Saint-Ogan, tem referências ao quadrinho norte-americano do período, e balões de texto inseridos sistematicamente pela primeira vez no quadrinhos franco-belgas – e em letra manuscrita, mesmo se balões eram amplamente utilizados pelo cartum satírico europeu, inspirado, por sua vez, pelas bandeirolas medievais (Blanchard, 1985Blanchard, Gérard. “Lettrage en bande dessinée”. Communication et Langages, 64(1), p. 65-73, 1985. DOI: https://isidore.science/document/10.3406/colan.1985.1693
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, p. 59). O historiador também explica como a reprodução em larga escala e a necessidade de tradução criam a figura do letreirista, cujo trabalho vai aparecer muitas vezes apartado do desenho ou em letreiramentos uniformizados de acordo com diferentes cenas editoriais, ao mesmo tempo em que o trabalho performado por autores únicos valorizaria cada vez mais a letra manuscrita desse autor, já na década de 1970. Como Jochen Gerner, quadrinista, em entrevista de 2014:

A maneira de integrar a tipografia é importante, a letra como se fizesse parte do desenho também. [...]. E quero integrar tudo, que tudo seja uma espécie de conjunto coerente. Dou bastante importância à escrita quanto... e se pudesse ter utilizado o mesmo instrumento, eu teria feito.

(Carneiro, 2015Carneiro, Maria Clara da Silva Ramos. A metalinguagem em quadrinhos: estudo de Contre la bande dessinée de Jochen Gerner. 2015. Tese (Doutorado em Teoria Literária) - Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015., p. 90).

Em livro de imagens e texto, como literatura infanto-juvenil, a imagem ilustra o texto, a priori subordinado à narrativa, em grande parte contada pelo texto: o texto poderia seguir sem imagem, ou ter seu ilustrador mudado sem grandes alterações na narrativa. Porém, quanto mais estreita a relação entre esses dos dois aspectos (verbal e icônico) na página, podemos observar certa poética específica das literaturas visuais, com a potencialidade de toda sua construção ser produtora de sentido.

O formato, o tamanho, os materiais, as cores, a repartição das imagens e dos textos em meio à página ou da página dupla vista como unidade e, ao fazendo isso, as possibilidades de jogo oferecidas pela dobra ou virada de página, constituem também elementos ligados ao espaço e à materialidade do suporte que permitem criar ritmo e fazer surgir o sentido, assim como o processo de criação e de recepção.

(Hamaide-Jager & Gaiotti, 2016Hamaide-Jager, Éléonore & Gaiotti, Florence. “Rythmes et temporalités de l’album pour la jeunesse”. Strenæ, 10, 2016. DOI: https://doi.org/10.4000/strenae.1509
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)2 2 Minha tradução. .

Em quadrinhos, além de produzir mais sentidos, a construção da página é o que define sua coesão e efeito narrativo. Suas divisões internas os diferenciam do cartum e vão além da página dupla do livro de literatura infanto-juvenil. A repetição de alguns elementos estabelece sua coerência interna, em que tanto texto, imagem quanto seus espaçamentos (a sarjeta ou o próprio branco da página em uma “splash page3 3 Sobre as “splash pages”, ver Assis (2010). ) participam no estabelecimento dessa coesão ou “artrologia” (Groensteen, 2015Groensteen, Thierry. O sistema dos quadrinhos. Tradução de Érico Assis & Francisca Ysabelle Manríquez Reyes. Nova Iguaçu: Marsupial, 2015.). Para o teórico Thierry Groensteen, quadrinhos têm a imagem solidária como condição necessária, e “a natureza exata dessa solidariedade icônica”, diferentemente de outras artes de semelhante “solidariedade”, é o fato de ela se articular em diferentes níveis em uma espaçotopia, ou seja, “em um espaço compartilhado”, cujo conjunto de articulações ele nomeia “artrologia” (Groensteen, 2015Groensteen, Thierry. O sistema dos quadrinhos. Tradução de Érico Assis & Francisca Ysabelle Manríquez Reyes. Nova Iguaçu: Marsupial, 2015., p. 31).

Figura 2
Bulevar dos sonhos partidos (1)

Na Figura 2, a longa digressão em texto contém imagens que “ilustram” a narrativa. Porém a letra também acompanha o horror vacui operado por seu autor, Kim Deitch (2017)Deitch, Kim. O bulevar dos sonhos partidos. Tradução de Maria Clara da Silva Ramos Carneiro. São Paulo: Todavia, 2017.. O livro se inicia com tal “carta” em texto para logo seguir o dispositivo clássico de quadrinhos, da separação de cenas em quadros. Deitch deixa essas subdivisões pouco regulares, nos dando a ver a loucura que toma personagens (também o autor-narrador ou seu enunciador gráfico). Acostumados a ler quadrinhos, sabemos que os personagens repetidos ao longo da página indicam uma progressão nas cenas. Na Figura 3, por exemplo, o mesmo personagem de boné aparece nos quadros, e um segundo personagem se aproxima dele ao longo das cenas. É possível compreender a narrativa apenas pelo que é mostrado: o incômodo da senhora com o “homem de boné”, o confronto dele com um provável segurança.

Figura 3
Bulevar dos sonhos partidos (2)

Portanto, espaço e repetição vão significar níveis narrativos, em que cada elemento repetido é um signo dentro do dispositivo (ou sistema) das histórias em quadrinhos. Tomamos signo, aqui, na forma como define Jacques Derrida, um elemento que se repete distanciado de sua enunciação primeira (Bennington & Derrida, 1996Bennington, Geoffrey & Derrida, Jacques. Jacques Derrida. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.). Deitch abusa do recurso da repetição para dar um nó nessa história, ao fazer o personagem Waldo, o gato, repetir-se por vezes de forma exagerada na mesma página, significando, para além da progressão narrativa, a loucura que acomete seus personagens, confundindo seus leitores a partir do efeito plástico da página totalmente coberta e pela irregularidade entre os quadros.

Em certos momentos, a palavra escrita atravessa a página inteira, como um grito visualizado ou, como na Figura 3, fazendo efeito de capítulo. Na página seguinte, por exemplo, o gato Waldo performa quase o Waldo do livro de jogos “Onde está Wally?” (Where’s Waldo?): no lançamento dos bonecos que imitam sua forma, ele se repete intensivamente no último quadro (Figura 4). Assim, essa vontade de ocupar toda a página deixa mais interligada tanto imagem e escrita quanto o processo narrativo.4 4 Tal recurso é bastante usado em 676 aparições de Killoffer (Killoffer, 2010), em que o espaço da página a princípio é dividido em momentos diferentes do mesmo personagem para em seguida ele ser “assaltado” por si mesmo. Em algumas narrativas em quadrinhos, a quebra da sequencialidade cria alguns efeitos de “viagem no tempo”, como é a base da série Imbattable de Pascal Jousselin (Durupt, 2017). Há muita escrita emergindo nessas páginas: camisetas, letreiros luminosos, cartazes, caixas de brinquedos. A edição em português foi muitas vezes redesenhada pela letreirista Lilian Mitsunaga. Alguns elementos foram deixados como estavam, como o título “Rocket Rat”, embora se traduza “Grande Turnê” (Figura 2). O trabalho de Lilian é praticamente imperceptível, como “Waldo World” virou “Mundo de Waldo na Figura 3, tão “invisível” quanto se espera de um tradutor. A letreirista mimetiza a letra de Deitch com grande apuro técnico, deixando a letra parte inteira do desenho.

Figura 4
Bulevar dos sonhos partidos (3)

No último quadro da Figura 4, é possível observar que nem tudo foi possível modificar, e o estrangeirismo, embora denote certa derrota de tradutora e letreirista, compõem a cena típica de uma loja de brinquedos de um shopping center, estabelecimentos cujo modelo estético, esbanjando anglicismos, tentam “neutralizar” as línguas locais. Para leitores brasileiros, portanto, a presença de trechos em inglês no contexto daquela imagem não aparecem como derrota, e integram totalmente tanto a plasticidade da imagem quanto sua narrativa. Tal êxito não sucedeu à edição espanhola, cujo título aparece como legenda na página de abertura letreirada por Iris Bernádez (Deitch, 2007Deitch, Kim. El bulevar de los sueños rotos. Tradução de Francisco Pérez Navarro. Barcelona: La Cúpula, 2007.), enquanto na edição brasileira o texto foi totalmente modificado para o português, da mesma forma como aberturas de capítulos (como exemplifica a Figura 3).

Mitsunaga é uma das letreiristas referenciadas e reverenciadas por Assis em sua tese, em que advoga esse trabalho de redesenhar a letra como uma tradução. Como ele lembra, o letreirista de um quadrinho de partida realiza costumeiramente um trabalho “técnico”, compondo com um “autor” que conceitua a “obra” por inteiro (Assis, 2018Assis, Érico Gonçalves de. Aproximações entre letreiramento e tradução. 2018. Tese (Doutorado em Estudos da Tradução) - Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018.). Mesmo com a realização um trabalho técnico apurado, a letra de Mitsunaga, porém, também só existe para acompanhar um trabalho já “criado”. Não se questiona a autoria do projeto, que além do mais envolve outros ofícios “técnicos”, tais como preparador de texto, revisor, diagramador, capista e do editor. E muitas vezes, como lembra Assis (2018, p. 102)Assis, Érico Gonçalves de. Aproximações entre letreiramento e tradução. 2018. Tese (Doutorado em Estudos da Tradução) - Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018., o letreirista nem chega a ser creditado, diferentemente de coloristas, por exemplo5 5 “[...] Há 20-25 anos os editores nos pagam em direitos de autor, não por que eles nos considerem autores, mas porque lhes custa menos caro. Em geral, recebo 0,8% de direitos de autor por álbum, o que é até bom, mas sei que há coloristas que não recebem nada.” Brigitte Findakly, colorista para grandes editoras francesas, em e-mail de 4 de fevereiro de 2016, minha tradução. . O letreiramento em geral fica por conta do diagramador da editora, ou do próprio quadrinista.

No Brasil, na grande maioria dos casos, o letreirista recebe por página. E, embora a tradução seja reconhecidamente um trabalho autoral pela legislação brasileira, a criatividade do tradutor também acaba muitas vezes restrita a decisões editoriais – para além da “ingerência [...] reduzida ao material linguístico” (Assis, 2016Assis, Érico Gonçalves de. “Especificidades da Tradução de Histórias em Quadrinhos: Abordagem Inicial”. Tradterm, 27, p. 15-37, 2016. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2317-9511.v27i0p15-37
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, p. 26). Em geral, o tradutor não tem acesso a revisão na prova final ou diagramada de um livro em quadrinhos.6 6 Informações conhecidas através de conversas informais com profissionais da tradução e da edição e experiência própria. Tais questões, no entanto, transbordam o campo estético e adentram em relações éticas, o que foge ao escopo desse artigo: o que me interessa, nessas discussões, é como a necessidade da letra com efeitos específicos no trabalho de tradução de histórias em quadrinhos aponta para a materialidade da escrita, tornada inegavelmente toda imagem nas páginas de histórias em quadrinhos. Dessa forma, o letreirista realiza, em geral, um trabalho de performar a mesma letra ou letra idêntica do autor da obra. Quando há necessidade estética da página de se sobrepor à leiturabilidade, parece haver maior o interesse em se colocar a escrita como imagem, em que se aponta para o fato de a página ser feita de uma mesma matéria, e não um híbrido – como um grau maior de quadrinhabilidade.

Figura 5
“Mas”

Quadrinhos, cartum e muitos livros infanto-juvenis evidenciam o tempo todo a materialidade da página e, por conseguinte, da própria escrita, “que o abstracionismo da letra tende a fazer desaparecer diante dos olhos” (Carneiro, 2017bCarneiro, Maria Clara da Silva Ramos. “O regime autográfico: a negociação entre a narração e a plasticidade nos quadrinhos”. Esferas, 9, p. 57-67, 2017b. DOI: https://doi.org/10.31501/esf.v0i9.8056
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, p. 58); tornam palavras tão “palpáveis” quanto seus personagens, disputando protagonismo com eles. Como no cartum de Rafael Corrêa acima, em que a adversativa “mas” é erigida feito um muro entre o personagem e um possível interlocutor, “localizado” no espaço em branco para onde nossos olhos procuram a sequência de uma tira (Figura 5, publicada em seu Instagram no dia 17 de outubro de 2016). Por essa disposição dos elementos na página, o cartum de Rafael Corrêa por pouco não se configura como uma tira, em que o “mas” ocupa posição de um segundo quadro em uma sequência. A diferença elementar entre a tira e o cartum é a coexistência de diferentes tempos em um mesmo espaço (a simultaneidade), ou seja, o estabelecimento da referida relação artrológica entre diversos elementos em uma página apontando para uma narrativa.

O uso da letra no formato da Figura 5, transformada em espaço físico, com perspectiva saltando da página, era marca do autor de cartuns, quadrinhos e tradutor Millôr Fernandes, que Corrêa reverencia nesse desenho. Millôr, por sua vez, tomava de empréstimo muitas referências do cartum americano, assim como da publicidade, essa máquina visual que entendeu muito rápido a importância de impregnar nossos gostos com letras coloridas e variadas.

Voltemos à tira de Gauld (Figura 1). Mesmo se “texto” e “imagem” estão apartados, do conteúdo alfabético se desprendendo das figuras, ela ainda relaciona o campo imagético à ordem verbal, em que os “seres” materializados na imagem integram uma ordem dependente da letra que inicia seu suposto “barulho”. Qualquer tradução dessa página recriaria seus sons no contexto da língua-meta, na ordem estabelecida aleatoriamente pelo alfabeto da língua de partida. Observe-se que aqui não há uma simples legenda de cada figura, é a distribuição metrificada dos quadros e a repetição de uma mesma sintaxe (os pares figura estranha/onomatopeia estranha) que criam o “nó” entre os elementos de toda a tira.

Mesmo se sua distribuição na página recorre a um modelo antigo de figura e legenda, como antigos alfabetários (cf. Figura 6) ou um álbum de figurinhas, a mesma distribuição cria uma coerência que simula uma narrativa com começo (o título), meio (enumeração dos seres) e fim (o último quadro em branco). O que separa o alfabetário de Gauld e o dos macaquinhos da Figura 6 são mais de cem anos. Na imagem de 1880, os desenhos são “meramente ilustrativos” das letras do alfabeto: cada imagem, ali, mesmo justapostas são autônomas, criando uma ação isolada, pois cada quadro contém uma letra para indicas uma ação do macaquinho. Tais ações seguem a ordem aleatória do alfabeto, cada quadro contém uma cena que pode ser totalmente apartada do resto da página. A página de Gauld é uma página inteira, e nos faz imaginar uma história em movimento; e é pela repetição e pela distribuição única em um mesmo “multiquadro” (Groensteen, 2015Groensteen, Thierry. O sistema dos quadrinhos. Tradução de Érico Assis & Francisca Ysabelle Manríquez Reyes. Nova Iguaçu: Marsupial, 2015.) que se cria essa coesão e essa impressão de uma narrativa em curso.

Na Figura 6 também é possível tentar uma tradução de suas letras: M para musicien, N para nourrice, O para opticien, P para peintre, resultariam nas mesmas letras para M (músico), O (oculista) e P (pintor). Por sorte, em português, poderíamos trocar a babá (nourrice) por nenê ou neném, o que não seria possível em outras páginas com débardeur/estivador. Sendo um livro reservado a ensinar alfabeto para crianças francófonas (com regras de acentuação e exemplos de palavras), uma tradução dessa obra seria uma transcriação completa, em um livro totalmente novo, com novos macaquinhos profissionais. O modelo de distribuição das figuras como na Figura 6 é amplamente utilizado por autores de quadrinhos, em que o espaço entre as figuras (chamada sarjeta por alguns autores e pesquisadores), evoca corte de cena ou elipse temporal em uma narrativa. A justaposição com os espaços entre as figuras dos pequenos macacos aparenta uma divisão estética, sem um pressuposto narrativo. Há uma possibilidade de leitura dialética que nos deixa imaginar essa página tal qual uma narrativa em quadrinhos, e isso se deve por estarmos imersos nessa tipologia de leitura.7 7 Se não refrearmos o ímpeto de ler toda imagem solidária como quadrinho, até mesmo pinturas rupestres entrarão no escopo do pesquisador (Cf. Morgan apud Carneiro, 2017a). Porém, as imagens na Figura 6 funcionam apenas a partir do suporte textual, e a substituição de algumas delas ou alteração de sua ordem não obstruem a compreensão interna de seu discurso/texto. Em uma história em quadrinhos, a perturbação da ordem estabelecida pelo autor pode levar a alteração de sentidos.8 8 Há exemplos de autores que tentaram provocar uma nova leiturabilidade com páginas soltas, como Promessas de amor a desconhecidos enquanto espero o fim do mundo v. 2 (Franz, 2012). Projetos como o de Franz jogam com novas territorialidades dos quadrinhos, aproximando-se de certo pós-quadrinhos (Conard, 2020), ou seu campo ampliado (Broering, 2015).

Figura 6
Grand alphabet des singes

Uma história em quadrinhos é mais “quadrinhos” quanto mais essas relações se estabelecerem de forma inalterável, ou seja, quanto mais suas posições forem determinantes para uma progressão narrativa ou uma apreciação plástica, e mais intricados estão os nós estabelecidos dentro do campo imagético. Seria, talvez, nesse nó o lugar em que reside a dificuldade tradutória de um dado quadrinho: para além da dificuldade de uma tradução do verbal, a dificuldade em se substituir a letra do autor.

O caráter visual da escrita

Iniciei o presente artigo com esse “Noisy Alphabet” também como um aceno ao importante texto de Antoine Berman (2007)Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andreia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras/PGET, 2007., pois a tradução das histórias em quadrinhos deixa visível o traduzir a letra, “corpo mortal” do texto. Como escrevem seus editores:

[A letra] não é a palavra, mas o lugar habitado onde a palavra perde sua definição e onde ressoa o “ser-em-línguas”. Por meio da tradução do “corpo mortal” da letra, com sua firmeza, consistência [...]. A letra insiste, inspira o tradutor. Ela não é a palavra, mas o lugar habitado onde a palavra perde sua definição e onde ressoa o “ser-em-línguas”.

(Berman, 2007Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andreia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras/PGET, 2007., p. 10-11).

A letra que toma forma material sobre a página atravessa toda a história da escrita, como apresentou Anne-Marie Christin. A teórica faz tais observações ao conceituar o “pensamento de tela” que levou ao desenvolvimento das civilizações. “A escrita nasce da imagem” (Christin, 1995Christin, Anne-Marie. L’image écrite, ou la déraison graphique. Paris: Flammarion, 1995., p. 5), seja no sistema ideogramático ou alfabético, e sua eficácia reside na imagem. Mesmo as sociedades supostamente “ágrafas” recorrem a inscrições, imagens ou elementos visuais como parte de sua comunicação (desenhos, arquiteturas, tessituras ou estampas). “A visão, por uma via simbólica, é aquela cuja origem é exterior, por exemplo as mensagens vindas de deuses” (Christin, 1995Christin, Anne-Marie. L’image écrite, ou la déraison graphique. Paris: Flammarion, 1995., p. 5, minha tradução). O “pensamento de tela” seria a compreensão de que o mundo, primeiramente o céu, pode ser visto como uma tela a ser lida. Um pensamento de tela que leva à ideia de mundo como superfície, em que se lê e em que se inscreve a escrita.

A imagem introduziu nessa estrutura uma modificação essencial ao oferecer à comunicação dos homens com o além [...], o meio de se manifestar de modo concreto e duradouro por intermédio de certas superfícies-testemunhos, nas quais as revelações do invisível e as mensagens que lhe são destinadas seriam acessíveis permanentemente ao olhar noturno dos deuses, mas também ao dos membros do grupo que tiverem sido delegados para sua leitura – quando não ao olhar do grupo em seu conjunto.

(Christin, 2013Christin, Anne-Marie. “A imagem e a letra”. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Linguagem: Estudos e Pesquisas, 2(1), p. 337-350, 2013. Disponível em: http://escritos.rb.gov.br/numero02/FCRB_Escritos_2_15_Anne-Marie_Christin.pdf. Acesso em: 14 nov. 2022.
http://escritos.rb.gov.br/numero02/FCRB_...
, p. 339).

As histórias em quadrinhos e a tradução de histórias em quadrinhos tornam mais evidentes esse caráter imagético da escrita. Além da consciência, na tradução literária, de que “produzir um texto que reproduza, na língua-meta, todos os aspectos da literariedade do texto original – é, em última análise, inatingível” (Britto, 2012Britto, Paulo Henriques. A tradução literária. São Paulo: Civilização Brasileira, 2012., p. 54), na tradução em quadrinhos há um elemento sempre mais ou menos autográfico na própria letra que escreve o texto, também impossível de ser recriado pelo tradutor. Esse efeito da mão visível de quem escreve, chamado “efeito de esboço” (Marion, 1993Marion, Philippe. Traces en cases : travail graphique, figuration narrative et participation du lecteur. Louvain: Academia, 1993., p. 163), ou seja, marcas de autoria mais ou menos aparentes no traço do desenho, indicam também o vestígio da pessoa que escreve a letra no texto. O letreiramento digital veio auxiliar autores e editores nas traduções a adaptar com mais facilidade a letra, seja na primeira edição da obra ou para suas versões em línguas estrangeiras ao autor. Ainda assim, espera-se um efeito de esboço em obras que enfatizem o aspecto plástico da página em quadrinhos, ou que trazem a letra como parte integrante de toda a visualidade da página. Isto é, quanto mais a letra tiver certa fluidez pouco distinguível do traço daquele que desenha, aparenta maior indissociabilidade do desenho. Em obras de caráter mais narrativo ou de entretenimento, a letra preza sobretudo pela clareza, e as fontes acabam se assemelhando na maior parte dos casos. A não ser no caso das onomatopeias integradas ao desenho, a letra é praticamente desimportante nesses quadrinhos.

Figura 7
Pequeno Pirata, de David B.

Na tradução de Le Roi Rose, de David B. para o português em Pequeno Pirata (B., 2011B., David. Pequeno Pirata. Tradução de Maria Clara da Silva Ramos Carneiro. São Paulo: Barba Negra e Leya, 2011.) a fonte eletrônica foi produzida por Fanny Dalle-Rive, diagramadora da editora francesa L’Association (que detinha direitos de outras obras de David B.). Hoje, muitos contratos de direitos autorais já preveem os arquivos para trabalho, e entre os arquivos às vezes há a fonte especialmente criada ou selecionada para a obra em questão. Mas, para ampliar o efeito de esboço, o diagramador da edição brasileira, Guilherme Costa, precisou criar uma “máscara” digital, cotejando o arquivo em francês com o texto em português, acrescentando certo “movimento” às letras, acompanhando o desenho dos balões (Figura 7).

Um problema nessa visualidade do código escrito foi o uso da pontuação em francês, em que exclamações e interrogações são apartados por um espaço da frase, diferentemente do português. Como é possível verificar no terceiro quadro da Figura 7, a pontuação “correta” quebraria a visualidade da exclamação na ponta do balão, e a noção estética de se aproximar mais do efeito “manuscrito” foi decisivo.

Em muitos casos, a dificuldade em se apartar letra do desenho podem apontar para entrelaçamentos estéticos mais profundos. Há casos como da autora Dominique Goblet, que exige reletreirar suas obras traduzidas. Sua obra Faire semblante c’est mentir, só não teve as “letras” da autora ao ser traduzida para o russo, cujo alfabeto ela não ousou aprender9 9 Informação dada pela autora em conversa informal. . Em outros casos, como cita Assis ou ainda Aragão (2011)Aragão, Sabrina Moura. “A séria tarefa de traduzir o humor nos quadrinhos”. In: Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, 1., São Paulo, 2011. Anais [...]. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011. p. 1-10. Disponível em: http://www2.eca.usp.br/jornadas/anais/1asjornadas/q_linguagem/sabrina_aragao.pdf. Acesso em: 14 nov. 2022.
http://www2.eca.usp.br/jornadas/anais/1a...
, que trata mais especificamente do humor, há contextos na imagem que talvez não fiquem claros ao leitor na língua-meta. Em uma experiência de tradução de tiras de humor italianas, a pessoa que escreve o presente artigo teve bastante dificuldade ao traduzir referências culturais, como personalidades italianas. Não era possível modificar algumas piadas visuais, por exemplo: a expressão alea jacta est, que em italiano é “il dado è tratto”, era “traduzida” visualmente para dados sendo lançados por seu suposto autor, Júlio César. A simples tradução “a sorte está lançada”, para provocar comicidade, dependia que o leitor reconhecesse a relação entre o jogo de dados, a expressão latina e seu autor desenhado. “Se você vai traduzir quadrinhos humorísticos, prepare-se para rir, mas também para sofrer”, comenta o tradutor Fernando Scheibe sobre sua tradução de tiras de humor de Philippe Gluck. Ele obteve o “milagre” de receber uma alteração em um desenho, dada a impossibilidade de tradução de um trocadilho visual (Scheibe, 2016Scheibe, Fernando. “Entre a impotência e o milagre: a tradução H.O.O.Q. ou je vous carmemirandise le mouton sans problème”. Tradterm, 27, p. 321-326, 2016. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2317-9511.v27i0p321-326
https://doi.org/10.11606/issn.2317-9511....
). São aspectos bem específicos a ser levados em conta na tradução de humor, sobretudo porque os modos de rir variam bastante de uma língua e cultura a outras.

A nota, “declaração de fracasso de tradutor”, acaba por se tornar recurso detestável para o leitor de quadrinhos, por “transfigurar” a arte: na tradução de quadrinhos, o “original” continua sempre aparente e seu conteúdo linguístico, quando bem adaptado pelo letreirador, retorna à página como se sempre estivesse ali. O letreiramento se calca ao estilo do autor, ou do contrário provoca dissonâncias não desejadas, perturbando a estética da página, apartando ainda mais a letra do desenho. Alguns casos, como as traduções bilíngues da coleção história da obra de Rodolphe Töpffer da Editora SESI (2016-2018), a coexistência das duas escritas criou efeito retórico de documento, em que a imagem “original” é complementada com uma forma de legenda elucidativa (a tradução).

Considerações finais

A tradução de histórias em quadrinhos traz mais uma dimensão ao trabalho do tradutor: o pensamento da imagem. A operação de tradução, em si, já enfrenta a aporia entre carregar consigo o estrangeiro (abrigando-se na letra) ou a trazer mais seu sentido. E se “toda grande tradução se diferencia pela sua riqueza neológica, mesmo quando o original não possui nenhuma” (Berman, 2007Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andreia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras/PGET, 2007., p. 101), os neografismos na tradução podem também compor a obra de forma original, apontando para sua materialidade, em que dissonâncias entre a letra e a imagem pura-imagem nos lembram o caráter imagético da letra, e a participação da letra na imagem. Texto e desenho participam da constituição desse objeto que é lido pelo ricochetear entre os elementos dispostos na página.

As dificuldades em se apartar texto e imagem e de se encontrar o letreiramento que componha com ela, trazem reflexões de ordem estética sobre quadrinhos, que auxiliam a pensar de que forma esse dispositivo compõe um sistema bem específico. Isso aponta por muitas vezes, para certos intraduzíveis, seja seus componentes imbricados na cultura de origem (senso de humor) quanto a impossibilidade de se substituir a assinatura de seu autor primeiro (a mão que assina, a mão que desenha o estilo) ou, melhor dizendo, para a substituição de sua enunciação gráfica para essa outra enunciação que a repete (a tradução). Até mesmo as notas de tradutor demandam uma participação ativa na página e maior invisibilidade de quem traduz, do que uma tradução textual, pois são mais aparentes na página desenhada quanto mais a letra for estranha ao estilo de seu desenho. Dessa forma, a escrita, que já é mestiça entre imagem e palavra (Christin, 2012Christin, Anne-Marie. Histoire de l’écriture. Paris: Flammarion, 2012., p. 10) tem, no dispositivo quadrinhos, o reconhecimento de seu caráter extremamente plástico, remetido diretamente à mencionada enunciação gráfica.

  • 1
    A ordem narrativa depende intrinsicamente de uma sequência (causa e consequência, prosseguimento da história). Isso posto, considero definir quadrinho como “arte sequencial” algo vago, pois todas as artes narrativas são sequenciais. Quadrinhos têm seu dispositivo canônico como princípio fundador, a ordem narrativa sendo apenas um dos componentes de (ou efeito gerado por) sua forma.
  • 2
    Minha tradução.
  • 3
    Sobre as “splash pages”, ver Assis (2010)Assis, Érico Gonçalves de. “O silêncio da splash page (1)”. Blog da Companhia. 23/08/2010. Disponível em: http://historico.blogdacompanhia.com.br/2010/08/o-silencio-da-splash-page-1/. Acesso em: 14 nov. 2022.
    http://historico.blogdacompanhia.com.br/...
    .
  • 4
    Tal recurso é bastante usado em 676 aparições de Killoffer (Killoffer, 2010Killoffer, Patrice. 676 Aparições de Killoffer. Tradução de Maria Clara da Silva Ramos Carneiro. São Paulo: Barba Negra e Leya, 2010.), em que o espaço da página a princípio é dividido em momentos diferentes do mesmo personagem para em seguida ele ser “assaltado” por si mesmo. Em algumas narrativas em quadrinhos, a quebra da sequencialidade cria alguns efeitos de “viagem no tempo”, como é a base da série Imbattable de Pascal Jousselin (Durupt, 2017Durupt, Frantz. “«Imbattable», Un héros de bd inclassable”. Libération. 21/05/2017. Disponível em: https://next.liberation.fr/livres/2017/05/21/imbattable-un-heros-de-bd-incasable_1570524. Acesso em 14 nov. 2022.
    https://next.liberation.fr/livres/2017/0...
    ).
  • 5
    “[...] Há 20-25 anos os editores nos pagam em direitos de autor, não por que eles nos considerem autores, mas porque lhes custa menos caro. Em geral, recebo 0,8% de direitos de autor por álbum, o que é até bom, mas sei que há coloristas que não recebem nada.” Brigitte Findakly, colorista para grandes editoras francesas, em e-mail de 4 de fevereiro de 2016, minha tradução.
  • 6
    Informações conhecidas através de conversas informais com profissionais da tradução e da edição e experiência própria.
  • 7
    Se não refrearmos o ímpeto de ler toda imagem solidária como quadrinho, até mesmo pinturas rupestres entrarão no escopo do pesquisador (Cf. Morgan apud Carneiro, 2017aCarneiro, Maria Clara da Silva Ramos. “[Bartheman] Harry Morgan e as idiotices repetidas sobre quadrinhos.” Balbúrdia. 19/03/2017a. Disponível em: https://balburdia.net/2017/05/19/bartheman-harry-morgan-e-as-idiotices-repetidas-sobre-quadrinhos/. Acesso em 14 nov. 2022.
    https://balburdia.net/2017/05/19/barthem...
    ).
  • 8
    Há exemplos de autores que tentaram provocar uma nova leiturabilidade com páginas soltas, como Promessas de amor a desconhecidos enquanto espero o fim do mundo v. 2 (Franz, 2012Franz, Pedro. Notas sobre o fim. 2012. Disponível em: https://sobreofim.wordpress.com. Acesso em: 14 nov. 2022.
    https://sobreofim.wordpress.com...
    ). Projetos como o de Franz jogam com novas territorialidades dos quadrinhos, aproximando-se de certo pós-quadrinhos (Conard, 2020Conard, Sébastien (Ed.). Post-Comics: Beyond Comics, Illustration and the Graphic Novel. Gante: Het Balanseer; KASK School of Arts, 2020.), ou seu campo ampliado (Broering, 2015Broering, Pedro Franz. Incidente em Tunguska. 2015. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) - Centro de Artes, Design e Moda, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.).
  • 9
    Informação dada pela autora em conversa informal.

Referências

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    » https://doi.org/10.11606/issn.2317-9511.v27i0p321-326

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2022
  • Aceito
    17 Nov 2022
  • Publicado
    Dez 2022
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
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