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A QUEDA DE SATANÁS: GONÇALVES DIAS TRANSLUCIFERADOR DE TURQUETY

THE FALL OF SATAN: GONÇALVES DIAS “TRANSLUCIFERATOR” OF TURQUETY

Resumo

Este artigo discute o poema de Gonçalves Dias “A Queda de Satanás”, incluído em seu livro Últimos Cantos. Embora não haja menção ao original no livro de Gonçalves Dias, demonstramos que se trata de uma tradução parcial do poema de Édouard Turquety La chute de Satan, o que parece ter passado despercebido até agora. Procuramos analisar algumas escolhas tradutórias feitas pelo poeta brasileiro, com destaque para a estrutura métrica. Por fim, discutimos brevemente o trabalho tradutório de Gonçalves Dias à luz do conceito de Haroldo de Campos da tradução como “transluciferação”.

Palavras-chave
Gonçalves Dias; Édouard Turquety; Tradução Poética; Transluciferação

Abstract

This paper discusses Gonçalves Dias’ poem “A Queda de Satanás”, included in his book Últimos Cantos. Although there is no mention of the original poem in Gonçalves Dias’ book, we show that it is a partial translation of Édouard Turquety’s poem “La chute de Satan”, which seems to have gone unnoticed until now. We seek to analyze some translation choices made by the Brazilian poet, with emphasis on the metric structure. Finally, we briefly discuss the translation work of Gonçalves Dias making use of Haroldo de Campos’ concept of translation as “transluciferation”.

Keywords
Gonçalves Dias; Édouard Turquety; Poetic Translation; Transluciferation

1. Introdução: um original obliterado?

Em um texto sobre a história das traduções de Mallarmé no Brasil, Álvaro Faleiros destaca uma “certa prática de traduzir” do fim do século XIX, caracterizada por: “a) inclusão de traduções em livros de poemas dos poetas-tradutores; b) adoção da tradução quase como texto próprio pelos tradutores-poetas; c) ampla liberdade de intervenção nos textos originais” (Faleiros 19Faleiros, Álvaro. “Três Mallarmés: traduções brasileiras”. Aletria, Belo Horizonte, v. 22, n. 1, (2012): 17- 31.). Com efeito, se folhearmos livros de poemas desse período, seja de autores canônicos da literatura brasileira (Gonçalves Dias, Castro Alves, Fagundes Varela, Machado de AssisDias, Antônio Gonçalves. Últimos cantos. Londrina: Redacional, 2016. etc.), seja de nomes hoje mais ou menos desconhecidos (Joaquim Serra, Teixeira de Melo, Regueira Costa, Lucindo Filho etc.), encontraremos traduções desse tipo, geralmente identificadas como traduções por vagas notas abaixo dos títulos: “sobre uma página de Byron”, “traduzido de V. Hugo”, “Sobre uma página de poesia de V. Hugo”, “Imitado de Su-Tchon”1 1 Trata-se de exemplos reais retirados de Vozes da América, Espumas Flutuantes, Os Escravos e Falenas. etc.

Tome-se como exemplo a obra Últimos Cantos de Gonçalves Dias. O livro inclui, entre os poemas autorais, especificamente na seção “Poesias Diversas”, duas traduções: “Canção de Bug-Jargal” e “A Queda de Satanás”. No entanto, a obra não indica claramente quais sejam os originais desses poemas-traduções, cuja condição é discretamente assinalada entre parênteses: “tradução” (Dias 117; 119Dias, Antônio Gonçalves. Últimos cantos. Londrina: Redacional, 2016.). Acreditamos que os dois poemas-traduções demonstram de forma loquaz os pressupostos desse tipo de tradução oitocentista com ampla liberdade de intervenção. O primeiro deles é, como se sabe, uma tradução em verso de um trecho do romance de Victor Hugo Bug-Jargal:

« Pourquoi me fuis-tu, Maria ?pourquoi me fuis-tu, jeune fille ?pourquoi cette terreur qui glaceton âme quand tu m’entends. ?Je suis en effet bien formidable! je ne sais qu’aimer, souffrir etchanter ! (Apud Leão 133) Maria, por que me foges?Por que me foges, donzela?Minha voz! o que tem elaQue te faz estremecer;Tão horrível sou acaso?Sei amar, cantar, sofrer!(Dias 119)

Ao traduzir um trecho de romance e inserir essa tradução em seu livro autoral, Gonçalves Dias não só transforma profundamente o trecho de Victor Hugo, pela adoção das contraintes metrorrímicas da poesia oitocentista, mas também se apropria dele: o poema-tradução pode ser lido à luz de dados biográficos do poeta maranhense, particularmente seu envolvimento com Ana Amélia Ferreira do Vale (Ribeiro 94Ribeiro, Maria Aparecida. “A aurora eo crepúsculo: recepçao de Bug-Jargal ea questão racial do Brasil”. Biblos: Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, n. 1, (2003): 87-110.).

Quanto ao original do segundo poema-tradução, “A queda de Satanás”, não encontrei nenhum trabalho que o identificasse. O pesquisador Claudecir Oliveira Rocha, por exemplo, que dedicou toda uma dissertação à poesia romântica brasileira de temática satânica, trata o poema como um texto original:

Essa temática não foi comum na obra de Gonçalves Dias, esse poema sobre Satanás foi publicado no livro Últimos Cantos, de 1851, e, talvez, tenha sido influenciado pelas tendências grupo paulista [sic] (Álvares de Azevedo; Bernardo Guimarães; Aureliano LessaAzevedo, Álvares de. Macário/Noite na Taverna. São Paulo: Editora Globo, 2007.) que já estava no seu auge literário

(Rocha 31Rocha, Claudecir de Oliveira. Poemas satânicos no Brasil. 2014. Dissertação (Mestrado em Letras) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba.).

Outros trabalhos consultados que abordam especificamente a atividade tradutória do poeta maranhense também não mencionam a tradução parcial de Turquety (Silva, XavierSilva, Camyle de Araújo; Xavier, Wiebke Röben de Alencar. “Gonçalves Dias e a Tradução Periódica Oitocentista”. Cultura & Tradução, vol. 3, n.1, 2014.; SalgadoSalgado, Marcus Rogério. “Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX”. eLyra: Revista da Rede Internacional Lyracompoetics, n. 9, 2017.). Trata-se, de qualquer forma, do poema “La chute de Satan” de Édouard TurquetyTurquety, Édouard. Poésies. Paris: Sagnier & Bray, 1846. (1807 – 1867), incluído em Poésie Catholique (1836), que transcrevemos na seção seguinte cotejado da tradução de Gonçalves Dias2 2 Procuramos agrupar as seções correspondentes, marcadas por números arábicos. . Hoje um nome menos conhecido, o poeta francês parece ter gozado de um certo prestígio entre os autores de nosso romantismo. Além de traduzi-lo, Gonçalves Dias usou versos seus como epígrafes de quatro poemas de Primeiros Cantos (1846): “A escrava”, “O Mar”, “O Templo” e “Seus Olhos”. Também Álvares de Azevedo conhecia o autor de Poésie Catholique, tendo incluído uma menção direta a ele em Macário:

Macário: [...] Foi talvez um delírio, mas foi da cabeça e do coração que se exalaram aqueles cantos selvagens. Foi numa vibração nervosa, com o sangue a galopar-lhe febril pelas veias, com a mente ébria de seu sonho ou do seu pesadelo que ele cantou. Se as fibras da harpa desafinam, se a mão ríspida as estala, se a harpa destoa, é que ele não pensou nos versos quando pensava na poesia, é que ele cria e crê que a estância é uma roupa como outra - apenas, como o diz George Sand - a arte é um manto para as belezas nuas: é que ele preferira deixar uma estátua despida, a pespontar de ouro uma túnica de veludo para embuçar um manequim. É que ele pensa que a música do verso é o acompanhamento da harmonia das ideias e ama cem vezes mais o Dante com sua versificação dura, os rasgos de Shakespeare com seus versos ásperos, do que os alexandrinos feitos a compasso de Sainte-Beuve ou Turquety

(Azevedo 64Azevedo, Álvares de. Macário/Noite na Taverna. São Paulo: Editora Globo, 2007.).

2. Original e tradução: melhor reinar no inferno que servir no céu

Il tombait, il tombait de la suprême voûteLe séraphin déchu, l’archange audacieux ;Déroulant son corps spacieux,Il tombait comme un monde arraché de sa route,Comme un vivant débris des cieux. Il tombait, il tombait de la hauteur brillanteOù rayonnaient encor les esprits ses pareils ;Il tombait dans l’espace, et sa tête brûlanteRougissait en passant d’une rougeur sanglanteLa chevelure des soleils. (1) Eis que tomba da abóbada celesteO arcanjo audaz, o serafim manchado.Desenrolando o corpo volumoso,Despenhado precípite,— qual mundoDos eixos arrancado,— como um vivoDos céus fragmento enorme ele caía!Caia lá daqueles céus brilhantes,Donde inda os seus iguais lançavam raios;Caía! — e a cerviz no espaço ardendoAs esferas dos sóis de cor de sangue,Passando, avermelhava. (1’) Le voilà le maudit, l’archange du blasphème,Le rival du Dieu créateur ;Le voilà tournoyant et percé jusqu’au cœurPar les flèches de l’anathème :Il roule, — un flot de feu le devance et le suit, —Il roule et recule la tête,Comme pour cacher sa défaiteDans les entrailles de la nuit. (2) Ei-lo, o maldito, o arcanjo da blasfêmia,Rival do criador! — ‘té o imo peitoPelas frechas da anátema varado,Como n’um turbilhão, desce rodando;Ondas d’um mar de fogo o vem cercando,E ele oculta a cabeça,Como que procurasseNas entranhas da noiteEsconder seu desdoiro. (2’) Et les mondes lointains criaient d’une voix forte :Où va-t-il, l’insensé, dans son vol furieux ?Où va-t-il, et quel vent le porteD’astre en astre, de cieux en cieux ?Regardez ; qu’il est sombre ! — Oh ! ce n’est plus l’archangeL’archange au front si beau, l’éclatant Lucifer,Dont le souffle allumait hierCes aurores du ciel qu’aucun matin ne change.Oh ! qui de vous l’a reconnu ?Hier brillant et jeune, aujourd’hui chauve et nu,Bien loin des célestes limites,Il tombe, il tombe, il roule avec les ouragans,Et ses yeux foudroyés fument dans leurs orbitesComme des bouches de volcans. (3) Clamavam —longe—os mundos com voz forte:« Que insensato! onde vai? Nesse arrojado,Frenético voar, que vento o impeleQue de astro em astro vai, d’um céu em outro?Vede como é sombrio!Oh! quão outro que está d’aquele arcanjoDe tão belo semblante,Lúcifer radiante,Cujo sopro era como o romper d’alva,Que as portas da manhã nos céus abria,Trazendo consigo a aurora,Que o seu alento acendia!Acaso o reconhecestes?Era ontem brilhante, novo e belo;E hoje é feio e nu e descalvado,Nas asas da tormenta balouçado,Nas asas dos vulcões;E os seus olhos fulminadosJá sem pupilas fumegamQuais crateras de vulcões! (3’) Et lui les entendait, lui, dans sa chute même,Les menaçait de son coup d’œil ;Car il sentait déjà sur son front plein d’orgueilUn formidable diadème ;Il dardait les éclairs de son œil irritéSur tous les astres d’or dont l’étendue est ceinte,Et les astres tremblaient et saluaient de crainteSa flamboyante royauté. (4) O arcanjo os escutava, ameaçando-osCom o olhar fulminante;Que cheio d’ímpio orgulho já sentiaUma c’roa de rei cingir-lhe a fronte.Todos os astros que no espaço giramSeus olhos d’irritados fascinavam;E os astros todos de terror tremiam,Saudando a coruscante realeza. (4’) Enfin les vastes cieux, les étoiles, les mondes,Tout s’effaça derrière lui ;Et l’ange abandonné n’aperçut dans la nuitQue des solitudes profondes.Il s’effraie, il regarde... un astre, un astre encor,Loin des cieux, loin du jour égarait son essor ;Satan le voit, Satan arrive,Il le frappe en passant d’une main convulsive,L’entraîne, et dans un bond, avec son bras de fer,Le pousse haletant jusqu’au seuil de l’enfer. (5) E já os céus sem fim, estrelas, mundos‘Trás dele se perderam;E nas profundas solidões do espaçoO arcanjo abandonado apenas viaA noite, e sempre a noite!Tem medo, olha, procura.... —Um astro! um astroTransviado nos céus! — O arcanjo o avista!Estende a mão convulsa arrepelando-o;Segura, arrasta-o, e d’um só pulo ardidoTrá-lo potente ao limiar do inferno,Alentando açodado. (5’) Deux fois il étreignit contre le gouffre immondeCette comète vagabonde,Deux fois comme un vautour qui lutte corps à corps, O errante cometa duas vezesAo tetro boqueirão levou consigo,E duas vezes, como um negro abutre, Il l’épuisa par ses efforts,Et deux fois sa pâle victime,Suppliante, effarée, avec un cri sublime,Éleva ses ailes de feu,Et lui, deux fois vaincu par le grand nom de Dieu,Retomba tout seul dans l’abîme. (6) Lutando corpo a corpo, de cansaçoSentiu-se esmorecer.Duas vezes também o astro vítima,Suplicando medroso, as ígneas asasBateu, sublime grito aos céus mandando.O nome do Senhor por duas vezesO rebelde venceu, — ele sozinhoCaiu no fundo abismo. (6’) Alors un des échos du grand cygne éternel,Un archange monta sur un des caps du ciel,Sur un cap revêtu de sa splendeur première,Et dont les pieds touchaient des vagues de lumière ;Et là, debout, les yeux vers le haut firmament,L’archange prit son luth formé d’un diamant :« Hosanna ! hosanna ! cieux et sphères sans nombre,« Globes d’en haut, vous tous qu’a fait jaillir de l’ombre« Le bras du Créateur,« Vous tous, fleurons divins de sa couronne auguste,« Saluez, saluez le seul grand, le seul juste,« Le seul triomphateur !« Chantez sa force, et vous, comètes murmurantes,« Qui traînez dans la nuit vos crinières errantes,« Et vous, astres vermeils,« Vous tous, et toi, chaos, père antique des mondes,« Toi qui couvas longtemps leurs semences fécondes,« Vieux nid des vieux soleils !« Hosanna ! hosanna ! l’ange impur de l’aurore,« Qui, le front tout fumant, se débattait encore,« L’ange est enfin banni,« Banni, précipité du haut des grandes sphères,« Au dernier échelon des gouffres solitaires,« Au bas de l’infini.« Il marchait contre Dieu les deux mains sur son glaive ;« Mais Jéhovah regarde et Jéhovah se lève« A la cime des airs :« Il se lève et reprend, comme pour une fête,« Son armure durcie au vent de la tempête,« Et son casque d’éclairs.« Et lui recule et tombe. — O suprême vengeance !« Lucifer ! Lucifer ! quelle horrible espérance« Avait gonflé ton sein,« Toi le charme des cieux, l’amour de la nature,« Toi qui, le front penché, trempais ta chevelure« Dans les lacs du matin ! « Hosanna ! hosanna ! cieux et sphères sans nombre,« Globes d’en haut, vous tous qu’a fait jaillir de l’ombre« Le bras du Créateur,« Vous tous, fleurons divins de sa couronne auguste,« Saluez, saluez le seul grand, le seul juste,« Le seul triomphateur ! » (7)     (Turquety 173 - 177) (Dias 117 - 119)

Como um breve cotejo permite ver, Gonçalves Dias não traduz todo o poema de Turquety: entre as várias liberdades que toma, deixa de fora as últimas sete estrofes (seção 7) do original, terminando com o momento da queda no abismo. Claudecir Oliveira Rocha, que não se atentou para o fato de se tratava de uma tradução, parece ter intuído essa incompletude:

Por vezes, dá a entender que Gonçalves Dias continuaria esse poema, mas ele o finaliza com um Satã arrependido, suplicante, gritando o nome de Deus e em um verso dúbio que diz ‘o rebelde venceu’, desconstrói de certa forma o andamento desse Satã arrependido, humilhado e o reafirma como eternamente orgulhoso e vencedor, coroado como majestade dos infernos

(Rocha 32Rocha, Claudecir de Oliveira. Poemas satânicos no Brasil. 2014. Dissertação (Mestrado em Letras) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba.).

Outras liberdades de Gonçalves Dias que se percebem rapidamente dizem respeito à estrofação, que o poeta maranhense rearranja livremente, e à estrutura metrorrímica: as rimas são totalmente suprimidas e os padrões métricos são modificados. Veja-se, a título de exemplo, como a alternação de alexandrinos e octossílabos na seção 1 dá lugar ao decassílabo na seção 1’, conforme demonstra a escansão abaixo:

1                 2             3         4             5                     6               7                   8                       9           10         11     12 Le / / ra / phin / / chu /, l ' ar / chan / geau / da / ci / eux / 1                   2             3                           4                 5                           6               7             8   / rou / lant son corps spa / ci / eux , / 1                 2                     3                   4                         5                       6                         7                 8             9             10             11         12       x Il tom / bait com / me   un mon / de   ar / ra / ché de sa rou / te , 1                             2                         3             4                     5                 6             7                     8 Com / me   un /   vi / vant /   / bris /   des /   cieux / 1                       2                       3                 4                 5               6         7           8               9                     10       x O   ar / can / jo   au / daz ,   /   o   / se / ra / fim /   man / cha / do 1                 2                   3           4           5                     6                 7           8         9           10     x De / sen / ro / lan / do   o /   cor / po /   vo / lu / mo / so ,

Já quando Turquety emprega exclusivamente o octossílabo, Gonçalves Dias geralmente opta pelo hexassílabo, como se vê nas seções 2 e 2’:

1           2                   3                 4         5           6           7           8       x Il /   rou / le   et /   re / cu / le /   la /   / te , 1                               2                 3                     4             5                 6             7           8       x Com / me /   pour /   ca / cher /   sa /   / fai / te 1                               2                 3               4             5               6           7           8 Dans /   les /   en / trail / les /   de /   la /   nuit / . 1                     2               3           4               5                 6           x E   e / le   o / cul / ta   a /   ca / be / ça , 1                         2           3             4           5                 6           x Co / mo /   que /   pro / cu / ras / se 1                       2               3           4                       5             6           x Nas /   en / tra / nhas /   da /   noi / te 1                     2             3                 4                     5             6           x Es / con / der /   seu /   des / doi / ro

Conforme já se terá percebido, refeitura do poema de Turquety pelo poeta maranhense não se limita à mera reorganização estrófica ou metrorrímica. Se é verdade que a tradução poética em geral, mais do que outros tipos de tradução, funciona como um jogo de afastamentos e aproximações, uma vez que não objetiva apenas elucidar o sentido de um texto de partida, mas produzir um novo texto poético na língua de chegada, espécie de “resultante entre uma tensão existente entre forças que, por serem antagônicas, equilibram-se sem anular-se” (Laranjeira 53Laranjeira, Mário. Poética da Tradução: Do sentido à significância. São Paulo: Edusp, 2003.), é interessante examinarmos mais de perto como se sai Gonçalves Dias nesse jogo, especificamente no caso de “A queda de Satanás”.

Desde a primeira estrofe (1’), é perceptível que o projeto tradutório do poeta de Últimos Cantos não envolve uma atitude servil para com o original: embora haja uma relativa fidelidade semântica ao texto de Turquety, o estro de poeta predomina flagrantemente sobre qualquer outra consideração. Veja-se, a título de exemplo, o primeiro verso. Além da supressão da repetição com que Turquety inicia o poema (“Il tombait, il tombait...”), certamente em razão do verso mais curto que adota, o pretérito imperfeito é substituído pelo presente: “Eis que tomba...”. Enquanto a combinação do imparfait com a repetição da primeira frase em La Chute de Satan transmite uma sensação de continuidade distante, lenta, “A queda de Satanás” se desembaraça de mediações e presentifica a ação de forma quase gráfica, com um verso de abertura definitivamente mais contundente e dinâmico. O efeito é auxiliado pela profusão de consoantes oclusivas, como um fragoroso ribombar de um corpo descomunal que caísse: “Eis que tomba da abóbada celeste...”

Note-se, ainda, como o poeta-tradutor escolhe seus adjetivos. Despido de preocupações com a rima pela adoção do verso branco, em vez de “abóboda celeste”, Gonçalves Dias poderia perfeitamente ter traduzido suprême voûte pelo cognato “abóbada suprema”, sem que isso alterasse o número de sílabas poéticas ou a acentuação do decassílabo heroico. No verso seguinte, o adjetivo déchu, decaído, —palavra importante porque relacionada à chute, à queda — é traduzido como “manchado”, quando “serafim caído” caberia sem prejuízo métrico-acentual. Trata-se, no entanto, de pequenos desvios deliberados de um poeta que se apropria da matéria de outro poeta e a reelabora em sua língua de forma mais ou menos livre, orientado mais por seu próprio tino poético do que por um apego excessivo à letra do original.

Mais significativos talvez sejam, na primeira estrofe, os hipérbatos radicais com que a sintaxe bastante direta do texto francês (“Il tombait comme un monde arraché de sa route/ Comme un vivant débris des cieux”) é reordenada em um pequeno dédalo verbal, que faz pensar na sintaxe do latim (língua que Gonçalves Dias lecionou, lembre-se, no Colégio Pedro II):

Despenhado precípite,— qual mundo

Dos eixos arrancado,— como um vivo

Dos céus fragmento enorme ele caía!

Esse jogo de aproximações e afastamentos pode ser observado ao longo de todo o poema-tradução. Por questões de espaço, não procuramos, aqui, fazer uma análise exaustiva das opções tradutórias. Destacamos, no entanto, a título de exemplo, um momento específico de afastamento deliberado em que a perseguição à letra do poema de Turquety afrouxa para que fale o poeta Gonçalves Dias:

Et l’ange abandonné n’aperçut dans la nuitQue des solitudes profondes.(5) E nas profundas solidões do espaçoO arcanjo abandonado apenas viaA noite, e sempre a noite! (5’)

Como se pode ver, há uma inversão sutil, mas muito significativa: em Turquety, a noite é o adjunto adverbial (dans la nuit) em que Satã enxerga as “solidões profundas” (solitudes profondes); já em Gonçalves Dias, pelo contrário, é nas “profundas solidões do espaço” que Satã enxerga a noite, convertida em objeto direto e núcleo de um verso antológico: “A noite, e sempre a noite!” Trata-se, sem dúvida, de um dos grandes momentos de “A queda de Satanás” e de um possível antecessor palimpséstico de outro verso mais conhecido: “A noite desceu. Que noite!” (Andrade 61Andrade, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. São Paulo: MEDIA fashion, 2008.)

3. Tradução e usurpação: Gonçalves Dias transluciferador de Turquety

Ao comentar o clássico ensaio de Walter Benjamin “A tarefa do tradutor” (Die Aufgabe des Übersetzers), Haroldo de Campos (Campos 179Campos, Harold de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981.) opera uma torção: se cabe à tradução uma “função angelical” em seu sentido etimológico, isto é, do ἄγγελος , do mensageiro, a tradução de “mensagens estéticas” não diz respeito à mera “transmissão do conteúdo do original”, mas à subversão do “pacto rasamente conteudístico”. Assim, a “função angelical” da tradução é, por excelência, a do anjo rebelionário:

Não seria descabido, portanto, ultimar a teoria benjaminiana da tradução ‘angelical’, da tradução como portadora da mensagem ‘inter’ (ou ‘trans’) -semiótica da língua pura, dizendo que ela é orientada pelo lema rebelionário do non serviam (da não submissão a uma presença que lhe é exterior, a um conteúdo que lhe fica intrinsecamente inessencial); em outras palavras, como a própria expressão latina o denuncia, estaríamos diante de uma hipótese de tradução luciferina. Pois o desideratum de toda tradução que se recusa a servir submissamente a um conteúdo, que se recusa à tirania de um Logos pré-ordenado, é romper a clausura metafísica da presença (como diria Derrida): uma empresa satânica. O contraparte [sic] ‘maldito’ da angelitude da tradução é a Hýbris, o pecado semiológico de Satã, il trapassar del segno (Par., XXVI, 117), a transgressão dos limites sígnicos, no caso o transgredir da relação aparentemente natural entre o que dicotomicamente se postula como forma e conteúdo. Nesse sentido, o Anjo da tradução bem poderia chamar-se AGESILAUS SANTANDER, como o ‘Angelus Novus’ de W. B., anagrama cabalístico de DER ANGELUS SATANAS, na exegese de Gershom Scholem.

(Campos 180Campos, Harold de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981.).

Portanto, segundo a leitura de Benjamin feita por Campos — ancorada, como se vê, na definição de “uma poética da tradução benjaminiana como estratégia de apropriação e transformação não servil” (Lages 201Lages, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002.) — não se trata de servir ao original; antes, “o original é quem serve de certo modo à tradução, no momento em que a desonera da tarefa de transportar o conteúdo inessencial da mensagem”. (Campos 179Campos, Harold de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981.) Mais do que mera mensageira, a tradução enseja a renovação da vida do original na condição de “desdobramento” [Entfaltung] (apud Branco 54Branco, Lucia Castello (Org.). A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Traduções de Fernando Camacho, Karlheinz Barck, Susana Kampff Lages e João Barrento. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008.), mas um desdobramento usurpatório: “Flamejada pelo rastro coruscante de seu Anjo instigador, a tradução criativa, possuída de demonismo, não é piedosa nem memorial: ela intenta, no limite, a rasura da origem: a obliteração do original. A essa desmemória parricida chamarei ‘transluciferação’” (Campos 209Campos, Harold de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981.).

Embora não pretendamos sugerir que os procedimentos tradutórios de Gonçalves Dias sejam orientados por pressupostos teóricos idênticos aos de Haroldo de Campos — o que seria, evidentemente, um anacronismo —, é possível traçar alguma aproximação entre essa prática tradutória oitocentista marcada, como se viu, por amplas liberdades, e o ideal rebelionário da “transluciferação”3 3 Nesse sentido, é interessante notar que Walter Benjamin atribui aos românticos um entendimento privilegiado da “vida das obras” [Leben der Werke]: “Antes de outros os românticos penetraram na vida das obras, da qual a tradução é um testemunho superior.” (Apud Branco 58) , na medida em que o poeta maranhense, ao traduzir La Chute de Satan de Turquety, se apropria da matéria do original e recria o texto em português como um poema próprio, operando os cortes e modificações que julga pertinentes. Tanto é assim que o original de Turquety, sem identificação precisa em Últimos Cantos, parece ter sido obliterado por A queda de Satanás, cuja terceira estrofe bem que poderia servir de apóstrofe aos leitores:

Lúcifer radiante, [...]

Acaso o reconhecestes?

  • 1
    Trata-se de exemplos reais retirados de Vozes da América, Espumas Flutuantes, Os Escravos e Falenas.
  • 2
    Procuramos agrupar as seções correspondentes, marcadas por números arábicos.
  • 3
    Nesse sentido, é interessante notar que Walter Benjamin atribui aos românticos um entendimento privilegiado da “vida das obras” [Leben der Werke]: “Antes de outros os românticos penetraram na vida das obras, da qual a tradução é um testemunho superior.” (Apud Branco 58Branco, Lucia Castello (Org.). A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Traduções de Fernando Camacho, Karlheinz Barck, Susana Kampff Lages e João Barrento. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008.)

Referências

  • Andrade, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo São Paulo: MEDIA fashion, 2008.
  • Azevedo, Álvares de. Macário/Noite na Taverna São Paulo: Editora Globo, 2007.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2021
  • Aceito
    16 Dez 2021
  • Publicado
    Fev 2022
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