Acessibilidade / Reportar erro

ENTREVISTA COM ERIC NEPOMUCENO

Eric Nepomuceno é jornalista, escritor e tradutor. Nascido em 1948, começou a trabalhar como jornalista em meados da década de 1960. De 1969 a 1976 trabalhou no Jornal da Tarde, de São Paulo, onde foi enviado como correspondente a diversos países da América Latina.

Nepomuceno é reconhecido internacionalmente por ter traduzido para o português diversos gigantes da literatura hispânico-americana, como Gabriel García Marquez, Eduardo Galeano, Juan Rulfo, Julio Cortázar, entre outros.

Cadernos de Tradução [CT]: Você é jornalista, escritor e se denomina um “escritor que traduz”, como você iniciou na tradução e por que essa denominação?

Eric Nepomuceno [EM]: É uma forma de deixar claro que não sou tradutor profissional. Entendo que o meu ofício é escrever, e pratico esse ofício em três vertentes: escrevendo ficção, não ficção e traduzindo. Só traduzo o que quero, aceitei pouquíssimas encomendas na vida – quatro, no máximo cinco livros, e sempre de autores que de alguma forma me instigam – e trabalho do meu jeito, ignorando todas as regras determinadas para traduzir.

Comecei por acaso, por razões afetivas: em 1973 fui-me embora do Brasil para Buenos Aires. Comecei a conhecer escritores e me fazer amigo de vários deles. Num tempo em que não havia internet nem nada parecido, e havia muitas publicações literárias no Brasil, traduzir e publicar aqui meus novos amigos de lá para que meus amigos brasileiros conhecessem era uma forma de apresentá-los, um novo amigo para um antigo amigo. Por isso digo sempre que comecei a traduzir por afeto, e assim continuo até hoje, passados 45 anos e dezenas de livros...

[CT]: Para você o que é ser tradutor?

[EM]: É passar para o meu idioma o que o autor escreveu no idioma dele. Um triângulo conjugal onde os três lados merecem fidelidade absoluta: tenho de ser fiel ao autor, ao idioma do autor e ao meu. Não basta conhecer apenas o castelhano: é importante conhecer também a cultura e os hábitos que cercam o idioma. O humor de um uruguaio, por exemplo, é totalmente diferente do humor de um caribenho, e assim por diante. Há palavras cujo sentido mudam radicalmente de sentido. “Cajeta”, por exemplo, é doce de leite na Argentina, e a genitália feminina no México. Imagine o perigo...

[CT]: Você pode falar um pouco sobre o seu processo tradutório?

[EM]: Trato de não ler antes. Começo a traduzir como começo meus contos: escrevendo à mão. Aprendi isso com o mestre de mestres Juan Carlos Onetti, grande, gigantesco escritor uruguaio: à mão, você escreve muito mais devagar que no teclado. As palavras, então, ganham outro peso. Quando faço uma tradução de livro já lido, trato de fazer um imenso exercício e esquecer tudo. Traduzo, repito, como escrevo contos: gosto de ir aos poucos, e terminar a jornada com a mesma ansiedade pelo que virá depois. Também já disse, e repito aqui: traduzir, para mim, não é você estar numa poltrona de trem vendo a paisagem pela janela. Não, não: é você entrar na paisagem e mostrá-la para quem está na poltrona olhando pela janela...

[CT]: Você é reconhecido como tradutor e amigo pessoal de grandes nomes da literatura latino-americana, como Garcia Márquez, Cortázar, Galeano Benedetti, Juan Rulfo, entre outros. Poderia nos contar um pouco sobre essa experiência?

[EM]: A vida é feita de acasos. Conheci Eduardo Galeano em março ou abril de 1973, recém-chegado a Buenos Aires, onde ele estava criando a Crisis, que foi a mais importante revista cultural latino-americana do seu tempo e insuperável até hoje. A Crisis era um porto onde chegavam enormes transatlânticos, esses que você mencionou e muitos outros. Galeano foi me apresentando, e assim surgiu um mundo novo para mim. Claro que eu sabia quem era quem e qual o seu peso. Mas tudo se deu com tanta naturalidade, tanta mansidão, que a fama de cada um deles sumiu na luz do sol.

[CT]: Você deve ter inúmeras histórias e anedotas de trabalho envolvendo algum desses nomes, poderia nos contar alguma?

[EM]: Conto uma, com o García Márquez: quando terminei os “Doze contos peregrinos”, mandei para ele um fax – sim, naquele tempo era fax – com várias dúvidas, palavras que poderiam ter duas leituras opostas, ambas fazendo sentido. Ele respondeu a cada pergunta: “Vá ao dicionário”, “Vá ao dicionário”... Fiquei furioso, e respondi: “Gabo, vá à merda”. Então ele ligou dizendo que de todos os que traduziam o que ele escrevia, eu era o único que não tinha o direito de perguntar o que fosse. Com o Galeano, a norma – super rigorosa – era revermos tudo lado a lado. Ele conhecia perfeitamente o português brasileiro. E conforme revisávamos, as palavras iam mudando, sempre de acordo com ele ou por iniciativa dele. Por isso, lendo Galeano no português do Brasil e no castelhano original, há tantas diferenças...

[CT]: Qual ou quais obras foram mais desafiadoras no processo de tradução e por que?

[EM]: Cada tradução é um desafio com características próprias. Pedro Páramo, por exemplo, é um livro curto – cento e poucas páginas – e deu muitíssimo mais trabalho que outros, de trezentas. Traduzi três peças de teatro do grande espanhol Sánches Finisterra, e poemas do argentino Juan Gelman, do chileno Gonzalo Rojas e agora, em 2021, do bispo catalão Pedro Casaldáliga. Não tem como comparar, são desafios únicos...

[CT]: Em algumas falas suas em entrevistas que li ou ouvi, você cita a questão do distanciamento do Brasil em relação aos demais países da América Latina. Como você percebe este distanciamento e quais as consequências para a literatura brasileira?

[EM]: Não só para a literatura, mas para tudo, absolutamente tudo, das artes e da cultura à economia e ao meio ambiente, esse distanciamento tem consequências negativas. O Brasil foi ensinado a viver de costas para a sua realidade. Nossas elites são, além de uma perversão abjeta, negadoras de sua própria identidade. Olham no espelho e se imaginam em Nova York ou Paris (a parte que tem alguma ideia de cultura) ou Miami (a maioria...).

[CT]: Durante a pandemia você iniciou um belo trabalho de produção de conteúdo audiovisual no Youtube, com projetos como o “Leituras na quarentena”Nepomuceno, Eric. Leituras na Quarentena. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GjEjfEqKmCU&t=11s. Acesso em: 20 set. 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=GjEjfEqK...
e também produziu vídeos com trechos de obras. Como surgiu essa ideia e como foi este processo?

[EM]: Minha participação foi apenas aparecer. Todas as ideias e formatos vieram do olhar certeiro, delicado e meticuloso do meu filho Felipe, que faz cinema e vídeos com maestria absoluta. Eu apenas cumpro suas determinações...

[CT]: Seguindo essa linha de recomendações literárias, quais obras são indispensáveis para quem quer começar a conhecer a literatura hispano-americana?

[EM]: Pois para quem quiser conhecer a hispano-americana, citarei alguns livros que considero básicos e estão traduzidos no Brasil:

  • Ninguém escreve ao coronel, de Gabriel García Márquez.

  • Pedro Páramo, de Juan Rulfo.

  • O jogo da amarelinha, Julio Cortázar.

  • Eu, o Supremo, Augusto Roa Bastos.

  • Conversa na Catedral, Mario Vargas Llosa.

  • A morte de Artemio Cruz, Carlos Fuentes.

  • O livro dos abraços, Eduardo Galeano.

  • Pássaros na boca, Samantha Schweblin.

  • A noiva escura, Laura Restrepo.

  • Impossível sair da terra, Alejandra Costamagna.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2022
  • Aceito
    25 Maio 2022
  • Publicado
    Ago 2022
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: suporte.cadernostraducao@contato.ufsc.br