Maria Valéria Rezende é escritora prolífica que coleciona prêmios literários importantes e ativista cultural de fôlego, transmitindo sua energia para muito além de João Pessoa, onde vive. Devido aos seus trabalhos como educadora popular no interior da Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho, desde a década de 60, morou em vários lugares do Brasil e viajou pelo mundo.
Nesta entrevista, ela conta suas experiências como tradutora e intérprete, como autora traduzida e, em especial, fala de sua relação amorosa com as línguas estrangeiras. Maria Valéria Rezende traduziu Cuore (Autêntica, 2012), Kim (Autêntica, 2012), Micrômegas (Autêntica, 2014), Bela Bela ou O Cavaleiro Afortunado, e A Bela e a Fera (Florear, 2019), entre outras obras.
Cadernos de Tradução (CT): Você já me disse que precisa da tradução para ganhar a vida.
Maria Valéria Rezende (MV): Olha, é assim… Preciso. Esses últimos anos eu traduzi menos porque eu ganhei aquele bocado de prêmio e também o MEC comprava livro meu em quantidade, porque eu tenho bastante infanto-juvenil. Como os meus romances não têm nada de escabroso, eles são muito utilizados no ensino médio, pra vestibular. Só que você não consegue viver de direito autoral de jeito nenhum. Eu me lembro a primeira vez, foi em 2008, que me puseram um livro no vestibular, foi na Federal de Santa Catarina. Aí, eu liguei lá pra uma amiga que é professora: “descobre pra mim quantos inscritos que tem pro vestibular”. Tinha 35 mil! Aí eu avisei a editora, falei “olha, puseram meu livro”.
(CT): Qual era?
(MV): Era O Voo da Guará Vermelha. Aí eu mandei fazer o xerox do livro inteirinho, saía por dez reais, ou 9,90, qualquer coisa assim. Escrevi pro pessoal da editora e falei: “Olha, está no vestibular, por que vocês não fazem uma edição? Já tá diagramado. Se a L&PM pode vender livro a 15 reais, vocês também podem”. Se o livro estiver a 15, entre uma cópia xerox, que é lixo depois, e o livro, muita gente vai querer comprar o livro. Que distribuam mais amplamente naquela região... Eles fizeram isso? Nada. E todo ano tem, todo ano tem. Tudo quanto é universidade. Por exemplo, ontem eu passei a manhã inteira sentada no Skype, debatendo com os professores e alunos do 4o ano de Letras da Universidade Estadual do Norte do Paraná. Eles estavam em cima do Quarenta Dias, montando um material didático pra trabalhar com os meninos do ensino médio. Foi uma entrevista que durou das nove da manhã às onze e meia. Tava previsto pra uma hora, mas eles não paravam nunca mais de fazer pergunta. Então é assim, eu vivo no Skype, porque não tenho condição física de andar pra lá e pra cá.
(CT): Quer dizer, mesmo com todo o interesse, eles não publicam?
(MV): Não. Olha, eu ganhei todos os prêmios que tinha com o Outros Cantos, com Quarenta Dias. Muito bem. Era de se supor que A Rainha Louca ia vender bastante, né? Inclusive porque é um livro louco, é um livro original, diferente, e tá fazendo um certo furor aí. Pronto, eles fizeram a primeira… Eu entreguei em 18 de fevereiro de 2018, o contrato só foi assinado em agosto. No contrato consta que, da assinatura do contrato, a editora tem 6 meses pra publicar o livro, senão perde o direito, só que ela publicou no final de abril desse ano. Aí fizeram dois mil exemplares. Dois mil exemplares! Que acabaram em quinze dias. Acabaram em quinze dias! Porque você distribui no Brasil afora, porque eu fui em uma porção de evento… Com a aposentadoria de velhinha do INSS abaixo do teto, a gente não pode… Ninguém vai dar emprego pra uma velhota de 77 anos, meio cega, meio mouca, meio fraca do juízo. Então, eu tenho que me virar com essas coisas, né?
(CT): Você também é uma autora traduzida...
(MV): Quando a gente vende a tradução… Olha, a gente tá falando da Alfaguara, Companhia das Letras. Eu já sei que eu tenho que encher o saco pra ter o adiantamento de direitos autorais maiorzinho que eu puder, porque em geral é assim, mil euros, mil e quinhentos euros. É o que eles te oferecem de adiantamento de direitos autorais. Uma vez que você entregou, você nunca mais tem relatório, nem vê a cara de direito autoral nenhum. Inclusive o direito autoral que dão pra nós lá fora é de 7%, 8 % do preço de capa, que é uma coisa ridícula. Você tem que arrancar… Quer dizer, a não ser que seja… o Chico Buarque, alguém que tem poder pra isso. Como é que eu, com uma coisinha de 7% de direito autoral do livro, que não é nenhum best-seller, vou poder acionar um advogado pra ir cobrar da editora? Não tenho como. Então você vendeu, acabou. Vende por aquela merreca e depois a editora faz, faz, faz.
(CT): Você tem uma agente para cuidar da sua produção literária. E os trabalhos de tradução, como você consegue?
(MV): São contatos meus. Quer dizer, hoje, como eu virei assim um nomezinho, né... Aqui, por exemplo (aponta um livro em cima da mesa), ainda botavam pequenininho, agora, nos últimos, já vem maior o meu nome. Aqui tá na capa (aponta outro livro). A minha vida toda eu traduzi, porque eu fiz muita tradução acadêmica, mas não pra publicar. Era amigo fazendo doutorado de não sei o quê e sabia que tinha tal texto e não conseguia ler. Eu fazia a tradução, precinho por página. Agora mesmo eu tô fazendo uns cinco artigos de psicanálise.
(CT): Em que língua?
(MV): Do francês pro português. Porque eu traduzo do francês, do italiano, do espanhol e do inglês. Eu não sou uma tradutora profissional que estuda a questão, entendeu? Como tradutora, eu sou uma tradutora amadora, formada pela vida. Quer dizer, a função de traduzir… A minha vida toda foi traduzindo oralmente também. Por exemplo, eu trabalhei muito tempo com uma organização da igreja canadense que era pra ajudar os países do terceiro mundo. Então, toda hora eu tinha que ir pro Canadá. Na França também, eu vivia indo pro CCFD, Comité catholique contre la faim et pour le développement. Como eu podia falar inglês e francês, eles me faziam percorrer as paróquias falando dos trabalhos daqui pro povo de lá mandar dinheiro pra nós. Então era toda hora “vai pra lá!”. E os canadenses são fogo! Os que falam inglês se recusam a falar francês, os que falam francês se recusam a entender o inglês. Não é verdade, eles sabem, eles estudam e tudo, mas é uma postura política. Eu me lembro de um encontro que tinha umas cinco mil pessoas, então eu tinha que fazer a tradução dos canadenses franceses pros canadenses ingleses, dos ingleses pros franceses, e a discussão toda. Bom, e tem língua que eu não sei falar, mas eu entendo. Por exemplo, eu passei quatro meses no Timor, eu traduzia tétum, a língua franca do Timor, porque eu descobri que só tinha nomes e verbos. Aí a língua é assim: por exemplo, tudo o que é planta começa com “ai”, então você ouve “ai” e já sabe que é uma planta. E não tinha palavras abstratas. Pra dizer uma palavra abstrata, eles faziam uma poesia, como o árabe também. Era bonito, muito bonito. Então, “aifarinha”, o que é? Mandioca. Porque os portugueses, nas caravelas portuguesas, levaram a mandioca pra lá pra fazer farinha. Aí eu comecei a ouvir palavras em português no meio, todas as palavras abstratas eles pegaram do português. Quando eu saquei o negócio, pronto. Eu fiquei meses lá e fiz uma campanha, foi logo que saíram os indonésios. A gente tava ajudando os movimentos populares, que eram todos clandestinos, ligados à guerrilha, e era uma confusão danada. A escola era em bahasa indonésia, que é uma língua engraçadíssima, porque eles não têm plural, então o plural é repetir a palavra. É muito gozado (ri), é outra lógica de língua. Porque isso que é o difícil, o difícil quando você lida com essas outras línguas que não tiveram a marca latina grega e latina. Então a gente aprende os truques, né. É bonito, eu adoro, eu ainda tenho a esperança de aprender mais alguma língua. Eu sempre tive mania de dicionário. Eu tenho dicionário de língua que não sei pra língua que não sei, porque eu acumulava com a esperança de um dia poder saber, entendeu? Mas eu acho também que tem o fato que eu ouvi tudo que era língua na infância. As brincadeiras infantis eram em tudo que era língua, me lembro que a gente brincava em alemão (começa a cantar em alemão). Era besteira, mas a gente ouvia todos os sons, então eu posso ler em alemão sem entender p. nenhuma. Porque eu estudava, inclusive os livros com que a minha tia me dava aula eram livros antigos de alemão de antes da guerra. Era tudo em gótico, eu lia em gótico!
(CT): Eu sabia que a sua família e Santos, onde você nasceu, eram muito importantes para o seu amor pela literatura, mas, pelo visto, também pra sua relação com as línguas.
(MV): Santos, nos anos 40 e 50, era o meio do mundo. A quadra que eu morava, da rua Tolentino Filgueiras, da Washington Luiz, da Luiz Suplicy, a outra eu esqueci... Então, cada casa era gente de um lugar do mundo. A gente era a última casa antes da Luiz Suplicy, então à esquerda tinha uma família síria, falava árabe e era muçulmana. Depois você virava a esquina e tinha uma família de judeus poloneses refugiados. Vocês conhecem a minha amicíssima, tinha até um rebaixamento no muro de tanto que a gente pulava pra lá, que é a Regina Elza Solitrenik? Ela foi professora na USP, mas já tá aposentada. Depois da casa dela, tinha uma família de alagoanos; do lado de cá da minha casa, tinha pernambucanos; depois, passando aquela casa, tinha um inglês casado com uma alemã, que depois o filho deles se casou com a minha prima… Aí passando pra outra casa, depois dos poloneses, tinha uma família de um médico de Goa. Eles eram indianos, mas eram indianos aportuguesados, né, porque Goa nesse tempo ainda pertencia a Portugal, mas as comidas eram as comidas indianas. Eu sei que a gente brincava de falar qualquer língua que a gente nem sabia o que era. A gente pulava de casa em casa, porque em cada casa era uma comida diferente, tinha as festas religiosas todas, dos judeus, dos árabes, dos não sei o quê. A gente ia comer em casa durante o dia e, de noite, ia pra casa dos muçulmanos comer o ramadã, que era farto, uma maravilha.
(CT): E foi assim que você foi aprendendo outras línguas?
(MV): Então, o que tinha acontecido era assim… No fim da guerra de 1914, tinha montes de mulheres em todos os países da Europa que ficaram sozinhas, sem família, sem filho, sem marido, sem pai, sem mãe, sem nada, porque aquilo foi uma guerra horrorosa, que matou de montão… Mulheres que tinham uma educação, uma escolarização. Então, o que é que elas faziam? Elas se enfiavam no porão, na terceira classe de qualquer navio e desembarcavam, vinham pra América. Em Santos, na primeira metade do século XX, não tinha escola pras meninas, tinha que mandar pro colégio interno em São Paulo. Meu avô, que tinha cinco filhas e, naquele tempo, era rico, porque mexia com café - depois, em 29, ficou até sem casa pra morar -, não queria mandar as filhas pro colégio interno em São Paulo. Então em casa tinha uma francesa, que eu conheci muito bem, ainda convivi muito com ela, Mme. Bonast. E falar francês pra minha geração era o normal. A gente não sabia ler inglês. No colégio a gente tinha três horas de francês pelo menos, por semana, enquanto era uma de inglês, e olhe lá. Então, quando eu era criança, tinha as duas: a Mme. Bonast e a Leine, que a gente chamava Leine, que era Frauleine Mathilde Schneider… A Frauleine Mathilde Schneider falava alemão com a gente e a Mme. Bonast falava francês, porque elas nunca aprenderam português direito.
(CT): Mas elas ensinavam a ler, ensinavam outras matérias?
(MV): Elas ensinavam tudo. Davam aula de geografia, de arte, de ciências, de história, de tudo. Então, a Mme. Bonast até os dez anos de idade, doze, ela ainda tava lá. A Leine morreu quando eu tinha uns 5 anos, então o meu alemão é um alemão de uma criança de 5 anos conversando com uma senhora de 80. É engraçado porque eu sou capaz de pegar um texto em alemão e ler em voz alta, com pronúncia perfeita, porque a minha tia insistiu em continuar me dando aulas de alemão, mas depois eu me enchi, não queria mais. A gente tinha uma certa questão com os alemães porque estava muito perto da guerra ainda, né. Eu nasci em 42, no meio da guerra, sob blecaute.
(CT): E em Santos era muito forte isso, né? Por causa do porto.
(MV): Muito forte. Eu me lembro quando acabou a guerra. Eu me lembro o dia em que acabou o blecaute. Meu pai veio com aquele carro que tinha uma caixa preta amarrada atrás, com cinta de couro, que não tinha nem plástico na época. Como ele era médico, tinha direito a usar o gasogênio pra atender os clientes, né, e papai chegou em casa antes do sol se pôr… Era uma coisa incrível porque o papai era médico daqueles tempos, ia na casa dos clientes, chamou vai, então ele chegava em casa sempre pra jantar e a gente ficava esperando. Então ele chegou no fim da tarde, mas ainda com sol, “vamos, vamos, vamos, vamos pra dentro do carro”. Aí minha mãe, eu e minha irmãzinha menor, porque éramos só duas nesse tempo, fomos pra praia. E tava a população inteira de Santos lá na praia! Eles não falavam pras crianças o que era, eles diziam “tá quase, é pra já, vai acontecer uma coisa maravilhosa, vai, tá quase”. E todo mundo olhando pra serra assim, o sol se pondo por trás… De repente, quando entra o sol e começa a escurecer um pouquinho, se acendem as luzes da cidade toda. Aquele foi um negócio indescritível!
(CT): Quanto tempo foi de blecaute?
(MV): Foi de agosto de 42 até fim de 45. Eu tinha 3 anos. Pra nós a guerra demorou mais pra acabar porque tínhamos que ter certeza que não tinha mais nenhum alemão doido ali no Atlântico com o seu periscópio procurando…
(CT): E você tem a lembrança disso?!
(MV): Tenho! Tenho! Tenho lembrança que só depois eu fui entender o que era, aquilo que eu via, arrancar papéis pretos, rasgar papéis pretos. Isso era o blecaute das janelas de casa. Então, pronto, francês pra mim sempre foi… E eu queria trabalhar, porque não era brincadeira, né, meu pai médico, com seis filhas, minha mãe o dia inteiro na máquina de costura. Aí eu vi que eu podia, tendo o diploma superior de francês, eu tinha que fazer só didática de francês...
(CT): Onde você estudou?
(MV): Na Católica de São Paulo, no Sedes Sapientiae, que naquele tempo era uma faculdade. Eu não tinha que aprender a língua, tinha que aprender a literatura e, naquele tempo, estudar literatura era uma maravilha, não tinha teórico nenhum, era ler, ler, ler. Eu li Chanson de Roland até Sartre e Camus, que tavam publicando na época. Todo navio tinha lojinhas, sobretudo os de passageiros, mas também os de carga. A gente ia comprar… Mas os livros, era ótimo porque eu pedia. Papai mandava um radioamador pra um capitão de navio, porque ele era médico de várias companhias de navio. E depois uma coisa maravilhosa que tinha lá em Santos, e isso também foi muito importante para o meu desembaraço com as línguas... O que marinheiro fazia nas horas de folga em navio de carga? Não tinha televisão, não tinha internet, não tinha coisa nenhuma. Tinha rádio de ondas curtas e olhe lá, mas era na cabine do capitão. Aí, eles liam… O alojamento da tripulação num navio de carga é minúsculo, é menos do que isso aqui. Então eram umas estantezinhas assim, entre um beliche e outro, que cabiam, sei lá, quarenta livros, e livros de vários idiomas. As tripulações eram sempre muito internacionais, então a cada porto que eles chegavam, eles trocavam os livros nos sebos dos… Os sebos perto do cais eram uma coisa sensacional! Eu me lembro a primeira vez que eu achei um livro chinês, de trás pra frente, a capa era do lado de cá (ri), que eu não entendia nada, nem o número das páginas. E eu comprei aquele livro e voltei pra casa, eu devia ter, sei lá, onze, doze anos. Voltei pra casa como se estivesse carregando uma relíquia, imaginando “veio do outro lado do mundo”. A China era longíssimo... Agora ficou pertinho, todo mundo vai na China, só eu que não vou pra China hoje, nem morta, porque não quero me decepcionar. Eu percorri a China todinha, em 1988, pelo interior, passei três meses andando, e era outro mundo. Eu vou ter uma decepção tão grande porque aquilo foi uma coisa de encantamento, sabe? Porque o problema é que a parte agricultável da China é muito pequena e tinha dois bilhões de habitantes, dois bilhões! É gente, é gente. Mas eu nunca vi uma gente tão alegre, tão equilibrada... Agora eu não sei, né, eles devem ter ficado todos loucos também, como nós.
(CT): Você já escreveu sobre esse seu ambiente multilíngue e multicultural?
(MV): Não, não… Eu tenho tanto livro pra escrever que não vai dar tempo. Porque assunto não acaba, viu. Eu tô escrevendo dois romances ao mesmo tempo agora. Um é com o meu avô. Ele era genial, era um grande fotógrafo, sabia de cor todo o Gonçalves Dias, todo o Castro Alves, todo Álvares de Azevedo, os poetas românticos todos. Então, uma das coisas que a gente fazia de noite era ouvir o vovô que dizia poemas, e isso até quando a gente já sabia ler e tudo. Era divertidíssimo, todos nós sabíamos poemas. Santos então… A gente nasceu sob a batuta cultural da Pagu. No comecinho dos anos 40, ela casou com o Geraldo Ferraz e foi pra lá e criou o Festival Nacional do Teatro do Estudante. A gente vivia tudo em volta dela. Eu só fui saber que a Pagu era a Pagu já grande. As companhias de teatro, de ópera, de balé europeias, quando chegava o verão europeu, paravam em Santos pra ir se apresentar no Teatro Municipal de São Paulo. Então a Carolina Costa, que era uma liderança cultural também, criou o Centro de Expansão Cultural. As famílias de Santos pagavam todo mês uma mensalidade pra ela ter dinheiro pra poder convencer o artista a fazer uma apresentação em Santos, ou na ida ou na volta. Eu cansei de ver o Marcel Marceau se apresentando com as mímicas dele no teatro Coliseu, o Ballet Bolshoi, que vinha da Rússia, porque nos anos 50, antes de começar a Guerra Fria pra valer, não tinha problema. Vinha a Comédie-Française, a Opéra de Paris, o diabo a quatro. Eu assistia a tudo! Eu me lembro que assisti… Pirandello! Eu sabia de cor trechos e trechos de Pirandello. Porque repetia muito, né, eram os grandes clássicos. Vinham em italiano, claro, porque em São Paulo só tinha italiano.
(CT): E você já sabia italiano?
(MV): Eu aprendi italiano sem saber que tava aprendendo italiano porque a minha melhor amiga do colégio era… A avó e o pai eram italianos. Eu vivia na casa deles, que era um casarão com uns cachorros dinamarqueses. A nonna só falava italiano, dentro de casa só se falava italiano, então pronto, eu aprendi italiano assim. Até que um dia fui pra Itália. Em Verona tinha um centro de formação dos missionários que vinham pra América Latina, tinha os leigos do MLAL, Movimento Laici America Latina, e eu fui lá dar aula de Metodologia dell’Intervento, que era Metodologia da Educação Popular. Quando eu cheguei, eles disseram: “você tem que dar aula em italiano porque se você der aula em português, atrapalha os que tão aprendendo espanhol”. Eu falei “putz grila!”. Faltava uma semana pra começar. Eu fui na biblioteca, peguei um bocado de romance em italiano, me enfiei no quarto e devo ter lido uns vinte romances italianos… Quando chegou a aula, eu fiquei na minha, né, comecei a falar italiano, e todo mundo seriamente tomando nota, ninguém tava dando risada, nem ninguém me perguntando nada… Bom, “io parlo italiano!”. (risos)
(CT): Você também viajou muito.
(MV): Muito, muito. Sim, porque é verdade, eu dei quatro voltas ao mundo sem nunca pagar uma passagem, graças a Paulo Freire. Graças a Paulo Freire e à minha facilidade de… Eu também fui field representative de uma coisa chamada American Friends Service Commitee, que é uma organização da igreja quaker. Há ramos muito conservadores, mas o ramo que criou o American Friends Service Commitee não, eles até ganharam o Prêmio Nobel da Paz em 47, porque, depois da guerra, foram pra Alemanha resgatar, ajudar as crianças e as mulheres. Então eles me convidaram pra ser representante de campo deles e pra mim foi a salvação porque eu não tinha dinheiro, não tinha como manter meus projetos. Aí eles me pagavam, me ajudavam a manter o projeto de educação popular aqui, mas com a condição de que eu fosse pra onde eles me mandassem. Depois teve a ONU, a UNESCO, porque você entra nesse circuito internacional, você começa a ser conhecido, e eu era conhecida como aquela que não tem medo, então eles me mandavam pros lugares mais… Sabe, pra ponta do Haiti mais maluca, perigosíssimo porque tava…, pro Timor Leste quinze dias depois de os indonésios saírem de lá, enfim. Mas eu tenho um anjo da guarda (risos). Eu sou contadora de histórias, vocês me desculpem, mas todo mundo que vem aqui fazer uma entrevista acaba ficando… Eu desato a contar história. Olha, eu sou sobrinha-bisneta do Vicente de Carvalho, que era o grande poeta de Santos, e a maioria dos filhos dele morava lá ou ia e vinha, então… A minha tia tinha paralisia infantil, nunca se casou, tinha algumas filhas também do tio Vicente que nunca se casaram e foram essas que publicaram...
(CT): As mulheres que não casaram foram as que…
(MV): Foram as que publicaram! Mas as outras escreviam também! Vocês já ouviram falar de Cacy Cordovil? Cacy casou-se com o filho mais novo de tio Vicente. O pai dela morreu cedo, ela tinha uma porção de irmãozinhos e conseguiu emprego no Banco do Brasil. Naquele tempo era por nomeação, né, mas mandaram ela pro Rio Grande do Sul. Quando ela descobriu a cultura do povo, o pampa, tudo aquilo, ela ficou tão fascinada que escreveu um primeiro livro de contos chamado Raça, publicado, em 32, pela Editora Globo, que era gaúcha. Em 42, ela publicou outro volume de contos chamado Ronda de Fogo, que é maravilhoso. Foi publicado pela José Olympio, louvado por todos os críticos da época, porque acharam que Cacy Cordovil era um homem. Aí descobriram que era uma mulher e aí você tem as reações, né. Tem um trecho do Monteiro Lobato dizendo: “com grande surpresa, descobri que Cacy Cordovil é uma mulher, o que demonstra que mulheres também podem ser capazes de escrever, uma escritura de forma varonil, sem nhem-nhem-nhem”. Enfim, ele não usou esses termos, o “varonil” sim, “com directedness”, e não sei o quê. Aí quando foi em… 98, ela morreu em 2000, velhinha já, saiu uma edição pequenininha daquela editora Musa… Bem, ela tinha publicado o livro e casado com o Mimi, entende? Nunca mais publicou nada! A não ser, dois anos antes de morrer… Os filhos nem sabiam, quer dizer, foi alguém que foi atrás dela, que era amiga… Ela tá em antologias feitas sei lá por quem, pelo Graciliano Ramos, dos melhores contos da literatura brasileira. Tá ela lá e nunca ninguém ouviu falar. Ninguém nunca ouviu falar! E é fantástica!
(CT): Mulher não pode escrever, mas fazer tradução pode, né?
(MV): Fazer tradução pode. Tradução é trabalho pesado. Agora, eu gosto de fazer tradução porque eu acho um desafio. Você tem de achar soluções. Por exemplo, esse livro aqui é incrível, eu pude traduzir ipsis litteris quase, porque é muito bem escrito em francês. O Micromegas, Micrômegas. Mas o Candide… É muito mal escrito, muito mal escrito. A gente só percebe na hora que vai traduzir. Quando você lê a primeira vez ou a segunda, sei lá, devo ter lido Candide sei lá quantas vezes, você não percebe, você tá interessado aonde que vai dar, você não tá analisando. Agora quando eu traduzi isso aqui, eu me tornei uma especialista em Índia, eu danei a estudar Índia pra entender que raio de país é esse… Essa é a primeira edição do Kim, que eu achei linda, só que ela ficou muito cara, aí a Autêntica teve de mudar. Eles estão fazendo uma coleção de clássicos juvenis. Sou amiga da Sônia há séculos. Então, quando eu tô precisando, eu ligo e digo “Sônia, pelo amor de Deus, me dá uma tradução”. E ela me arruma (risos). O Kim só tinha a tradução do Monteiro Lobato, que eu li criança, uma edição do meu avô. Mas eu tenho por princípio o seguinte: eu não leio outra tradução. Mas eu preciso, às vezes, da ajuda de outro tradutor, então eu baixo em outras línguas. Quando é um clássico, esse aqui por exemplo, eu baixo digital, tá no domínio público. Então quando eu tô numa coisa que eu digo “mas que raio de coisa que é essa?”, aí eu vou ver como que traduziram pro italiano, como que traduziram pro francês, como que traduziram pro espanhol. Às vezes tem duas ou três traduções, pronto. Aqui por exemplo, o Kipling escreveu pros ingleses do tempo dele, que provavelmente entendiam muito de Índia, viviam enfiados lá. Então tinha coisas que era óbvio pra eles o que queria dizer, mas não é pra nós. No Cuore também tinha coisas que seriam incompreensíveis, e aí na primeira edição… Foi o Cuore ou foi outro que a gente teve que botar umas notas de pé de página? Mas eu fico irritada com isso. Eu acho que burocratiza um livro de ficção, dá um ar de coisa acadêmica. São duas atitudes diferentes: você lê um livro acadêmico, você tá querendo destrinchar um assunto, e você lê isso aqui pra te levar em uma viagem a um outro lugar, certo?
(CT): Então cabe à tradutora resolver de algum jeito...
(MV): Resolver. Então eu fiz assim… Eu optei por fazer, e a Sônia concordou. Eu falei: “olha, quando é impossível, ao invés de criar uma nota de pé de página, vou criar um aposto, o mais curto possível, que esclareça o que é aquilo e pronto”. Aí fica… gostoso. Agora, quando a tradução… Quando eu ganhei o Premio Casa de las Americas, então teve que fazer a tradução pro… (procurando o livro) Quando traduziram meu Outros Cantos pro espanhol, que eu não sei onde é que tá... Aí eu fico enchendo o saco.
(CT): Você interage com as tradutoras?
(MV): Claro, absolutamente. Não deixo ninguém traduzir nada meu sem passar por mim. Quando foram traduzir O Voo da Guará Vermelha pro espanhol... Depois foi pro catalão, mas aí catalão eu não vou me meter porque eu não sei, né. Mas, por exemplo, tem muito feijão no livro. Puxa, na América Latina, feijão é uma coisa comum por todo lugar, você come feijão até o México adoidado e se chama frijoles. E a espanhola cismava de colocar alubias… É feijão, mas a gente diria “fava”. Eu dizia “não, não é alubias, é frijoles.” Olha, ela acabou botando uma vez alubias, outra vez frijoles (ri). Mas, quando a tradutora cubana foi traduzir o Outros Cantos, tinha lá “esse sertão que eu já não creio que possa mais virar mar”. Ela disse: “o que é isso aqui?”, eu disse: “de fato, você tem razão, isso aí é uma fala conhecidíssima do Antônio Conselheiro, de Canudos”… Então o que fazer? Eu sugeri: “é muito simples, a gente faz um aposto, a gente faz ‘já não creio mais que o sertão há de virar mar’, você põe ‘como dijo el Consejero’, bota o ‘Consejero’ com letra maiúscula”. Tá aí, tá evidente que era um beato, um conselheiro. Mas não adiantou, foi pior quando eu expliquei (ri).
(CT): Ela não quis?
(MV): Mas é porque cubano é rigoroso nas coisas. Nossa, os cubanos são absolutamente, sabe… Todo cubano é um acadêmico, porque a educação em Cuba é... Não tem nada no mundo que se pareça. A gente se encontrou com os cubanos em 79, na Nicarágua, porque, quando houve a revolução na Nicarágua, o plano do governo, que era revolucionário naquele momento, agora tá bagunçário, era fazer como se fez em Cuba... A primeira coisa era fazer uma campanha de alfabetização. Foi maravilhosa!
(CT): Quanto tempo você ficou na Nicarágua?
(MV): Não fiquei muito tempo... Você para um ano o ensino médio e o ensino universitário, e os estudantes vão pro campo alfabetizar os camponeses. Foi feito assim em Cuba, mas, quando chegou na Nicarágua, o pessoal não tinha quadros pra formar os estudantes. Então a gente tinha uma rede de educadores populares freirianos na América Latina toda e foi todo mundo pra lá. Eu tive uma confusão de visto, só cheguei pra fase de encerramento e avaliação, mas os cubanos também foram, montes de educadores cubanos pra ajudar. E quando chegou lá, aquilo não batia de jeito nenhum! No começo foi uma briga danada porque os cubanos eram assim escolásticos, sabe, aquela educação… Tem o conteúdo e tem que enfiar na cabeça dos outros, e nós, freirianos, não. Você primeiro começa a ver o que as pessoas já sabem e vai construindo, tá tá tá tá... Aí no começo era uma briga danada, mas, ao longo do tempo, foi criando uma amizade… (ri)
(CT): Mas a tradutora cubana não aceitava o seu aposto…
(MV): Então o que aconteceu foi pior porque ela pôs o meu aposto e uma nota de pé de página desse tamanho! (ri) Porque aí ela pega toda a história de Canudos... (Sai procurando o livro) Olha o Kim do Monteiro Lobato! Eu comprei num sebo, eu não tinha mais o meu mesmo… O Monteiro Lobato traduzia como um alucinado pra sobreviver, né. (Acha a edição cubana de Outros Cantos, começa a ler uma passagem) Aqui ela não teve como traduzir “benditos”. Não é “benditos” de “benditos”, eram os benditos dos romeiros, dos penitentes, então ela põe embaixo “oraciones que comienzan con estas palabras, canto típico dos penitentes”. É tudo assim. Eu gosto dos cubanos...
(CT): E como você resolveria esse problema?
(MV): “Cánticos”. No caso, acho que eles têm razão, é difícil mesmo. Na tradução você empaca em coisas assim (continua olhando o livro). Olha, tem uma frase em francês, ela fez a tradução no pé de página, claro.
(CT): Você está traduzindo algo neste momento?
(MV): Contos de fadas das mulheres francesas e italianas do século XVIII. A Susana Ventura dá cursos como professora visitante pelo meio do mundo, ela é santista, o pai dela é português. Então, ela tá fazendo um trabalho de tradução desses contos de fadas de mulheres que não podiam escrever a sério, então elas disfarçavam as suas coisas em contos de fadas. Interessantíssimos porque eram naquela estrutura de conto de fada… O que é engraçadíssimo é que tem uns que eu já traduzi em que quem resolve tudo são as mulheres, o cara é… uma nulidade. É isso que é interessante, é uma leitura feminista. Contos de fadas tradicionais você pensa logo em Perrault, Grimm, La Fontaine é mais antigo ainda, né (começa a declamar em francês). Bom, já esqueci (ri).
(CT): Como você encaixa a tradução quando tem que escrever suas coisas?
(MV): Ah, não tem problema nenhum. A tradução eu faço muito rapidamente porque tem prazo pra entregar e eu faço tradução porque preciso do dinheirinho. Quando tenho alguma alternativa, eu não traduzo, eu traduzo porque preciso ganhar dinheiro. Sinceramente, eu gosto muito, mas não é um esporte traduzir.
Referências
- Cordovil, Cacy. A Raça Porto Alegre: Globo, 1932.
- Cordovil, Cacy. Ronda de Fogo Rio de Janeiro: José Olympio, 1941; São Paulo: Musa, 1998.
- De Amicis, Edmondo. Cuore Tradução Maria Valéria Rezende. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
- Kipling. Joseph Rudyard. Kim Tradução Maria Valéria Rezende. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
- Rezende, Maria Valéria. O Voo da Guará Vermelha Rio de Janeiro: Objetiva, 2005; Alfaguara, 2014.
- Rezende, Maria Valéria. Quarenta Dias São Paulo: Alfaguara, 2014.
- Rezende, Maria Valéria. Outros Cantos São Paulo: Alfaguara, 2016.
- Rezende, Maria Valéria. A Rainha Louca São Paulo: Alfaguara, 2019.
- Voltaire. Micrômegas Uma história filosófica. Tradução Maria Valéria Rezende. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
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Voltaire. Candide ou l’Optimisme Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?sele(CT)_a(CT)ion=&co_obra=3492 Acesso em: 06/12/2019.
» http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?sele(CT)_a(CT)ion=&co_obra=3492 - Ventura, Susana e Leslie, Cassia. Na Companhia de Bela: Contos de Fadas por Autoras dos Séculos XVII e XVIII. Tradução Susana Ventura, Maria Valéria Rezende, Maikon Augusto Delgado, Caroline Rodovalho. Londrina: Florear, 2019.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Jun 2020 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2020
Histórico
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Recebido
20 Ago 2019 -
Aceito
02 Dez 2019 -
Publicado
Jan 2020