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Arrojo, Rosemary. Fictional Translators: Rethinking Translation Through Literature. Nova York: Routledge, 2018, 195 p.

Rosemary Arrojo apresenta uma defesa sobre a representação de tradutores na ficção, em Fictional Translators: Rethinking Translation Through Literature. O livro é composto por oito capítulos, organizados como ensaios independentes. Trata-se de uma espécie de coletânea de textos da autora, com alguns artigos anteriormente escritos por ela, revisados e expandidos. Há um destaque nos capítulos um, quatro e oito para Borges e para o personagem borgiano, Pierre Menard (do conto “Pierre Menard, autor del Quijote”, de Ficciones, 1944).

O livro visa a valorização dos estudos da tradução na ficção, pois a autora defende que este gênero permite refletir sobre os sentidos construídos a partir de personagens tradutores. A tarefa parece relevante, pois oferece uma percepção mais ampla desses personagens em diferentes épocas, seu comportamento, ou a própria ação de traduzir, sendo possível discernir qual a visão que se tem dessa tarefa. Em seu estudo, a autora utiliza textos de autores, como Julio Cortázar, Mário de Andrade, Jorge Luis Borges, Franz Kafka, Edgar Allan Poe, José Saramago, Italo Calvino, Moacyr Scliar.

Em cada capítulo, contrasta textos de dois autores sobre a mesma questão de tradução para fazer as peças dialogarem entre si, uma iluminando a interpretação da outra. Na introdução, Arrojo apresenta a tradução como uma substituição que necessariamente modifica o teor do texto fonte. Considero bastante positiva a explicitação de suas posições, opostas ao entendimento tradicional. A autora defende a chamada “virada da ficção”, que teria ocorrido no século XX. Ela acredita que tal gênero fornece uma base para a reflexão sobre o processo de tradução, ao estabelecer que as obras literárias devem ser usadas para teorizar a tradução.

No primeiro capítulo, a autora examina “Pierre Menard, autor del Quijote”, de Borges e “Carta a una señorita en París” de Julio Cortázar, para apresentar a teoria da tradução por meio da ficção. Arrojo, ao comentar o texto borgiano, faz uma relação com o trabalho do personagem Menard, que, muitas vezes, traduz de forma a reproduzir o texto fonte. Assim o faz buscando uma aproximação muito fiel, no entanto, tendo consciência de que não é o autor, deseja usar a criatividade e ser ele mesmo. Desta maneira, apresenta-se a dicotomia entre a invisibilidade do tradutor e sua visibilidade criativa e a livre agência sobre o texto.

Para Arrojo, Borges, ao apresentar o modelo de Menard, satiriza o modelo de tradução proposto por Alexander Fraser Tytler em seu Essay on the Principles of Translation, de 1791. Tytler afirma que o tradutor se reveste da alma do autor do texto de origem, de maneira que emana de si, de suas entranhas, a tradução palavra por palavra. Para a autora, isso não corresponde à realidade, e ela deixa isso bem claro. Arrojo faz um alerta aos professores, para que estimulem em seus estudantes uma reflexão crítica, que os leve a perceber que nenhuma tradução é neutra.

No capítulo dois, “Fiction as theory and activism”, Arrojo utiliza um conto de Rodolfo Walsh intitulado “Nota al pie”, para propor reflexões sobre o trabalho do tradutor, que começa numa empolgação pelas suas primeiras obras, e é seguido pelo posterior desânimo ocasionado pela invisibilidade subserviente sob a égide autoritária do editor, o estresse produzido pelo trabalho, as dificuldades financeiras, o desgosto por traduzir livros que não aprecia. Consequentemente, acaba não traduzindo com esmero, entregando trabalhos com omissões e manutenção de expressões complicadas.

No capítulo três, Arrojo utiliza a metáfora da tradução como pintura, refletindo sobre o estereótipo da atividade dos tradutores. Os textos analisados no capítulo são O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde e “O Retrato Oval”, de Edgar Allan Poe. Para Arrojo, esses textos modificam a ideia tradicional acerca da atividade tradutória, ao entender que a alma humana não se traduz ao ser pintada. Tais obras, entretanto, mostram que nem sempre a relação original/representação segue esse modelo. Em geral, se pressupõe uma superioridade da obra de origem em detrimento da sua tradução, que nunca seria capaz de retratar com perfeição o espírito da primeira.

Para Arrojo, trata-se de uma concepção platônica, exposta no Livro X de A República. De acordo com Platão, a obra original é divina. Assim, os homens, ao fabricar coisas, histórias, esculturas, produzem apenas modelos inferiores aos padrões presentes na natureza, e que são obra do Criador. Dessa forma, Deus seria o Original, e os homens apenas imitadores, ao fabricarem comparações de diferentes graus da própria existência. A obra de Wilde modifica essa concepção ao desconstruir o padrão hierárquico de Platão.

Para Wilde, o original não é um objeto idealizado, nem é a representação inferior e incapaz de captar o espírito da primeira. Com isso, a relação entre ambas se mostra complexa. Nós podemos perceber que tal inversão não deixou de ser notada por Arrojo, que, conforme a “virada da ficção”, buscou estabelecer uma compreensão maior da tradução a partir dessa obra ficcional. O espírito de Dorian Gray é trasmutado para o retrato, que deveria ser uma cópia sem alma, mas que, pelo contrário, mostra sua essência como pessoa.

No capítulo quatro, “The Translation of Philosophy into Fiction”, são apresentados dois contos de Jorge Luis Borges do livro Ficciones: “Funes el memorioso” e “Pierre Menard, autor del Quijote”. A trama do primeiro gira em torno de um jovem que, após sofrer um acidente, acaba adquirindo uma memória excepcional. No entanto, por sua incapacidade de utilizá-la apropriadamente, acaba paralisado e impedido de pensar. No segundo, há uma análise de Menard, mostrando como suas obras possuíam o dom do aprofundamento das releituras, sobretudo no Quijote de Cervantes.

Para Arrojo, Borges traz, a partir dessas análises, um entendimento mais amplo da teoria do conhecimento e a maneira como a linguagem funciona. As informações devem ser categorizadas com o fim de se fazer uso delas, pois, sem isso, elas não fazem sentido. Ao universalizá-las, isso acarreta o esquecimento de sua individualidade. O exemplo da folha descrito por Nietzsche é bastante pertinente: é a imagem geral da folha que permanece, permitindo sua abstração, e não as diferenças de uma folha para outra, as quais são necessariamente deixadas para trás.

A teoria platônica mencionada anteriormente é, assim, combatida, tanto por Borges como por Nietzsche, que no ensaio “Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne” [Sobre a Verdade e Mentiras em um Sentido Não-Moral], demonstra como a convencionalidade exerce papel primordial na maneira como a língua funciona e é traduzida: “nunca se trata de verdade, nunca se trata de uma expressão adequada; caso contrário, não haveria tantos idiomas” (Nietzsche 1999, apud Arrojo, 2018Arrojo, Rosemary. Fictional Translators: Rethinking Translation through Literature. Nova York: Routledge, 2018., p. 66).

A teoria das formas de Platão, que postula uma existência original de todas as coisas representadas, a qual é perfeita, e que funciona como modelo para as outras, é deixada de lado. Para Nietzsche, não é possível aceitar tal concepção. Como não há texto que seja verdadeira e objetivamente original, todos são originais, e aquilo que separa os originais de suas traduções é determinado por convenções humanas. Interpretar está, dessa maneira, ligado à vontade de poder e, tal inclinação é indissociável do próprio ato de traduzir, pois este anseia e deve criar.

Segundo Arrojo, Borges reflete tal pensamento, sobretudo ao tratar das traduções de Homero. “Qual dessas muitas traduções é fiel? Meu leitor vai querer saber. Repito: nenhuma ou todas elas” (Borges, 1999, apud Arrojo, 2018Arrojo, Rosemary. Fictional Translators: Rethinking Translation through Literature. Nova York: Routledge, 2018., p. 69). Borges discorre acerca da função dos tradutores de maneira mais extensiva em “Os Tradutores de As Mil e Uma Noites”. Para Arrojo, o sucesso da tradução de Antoine Galland, no século XVIII, deve-se à atenuação de certas características da história, bem como à estratégia de domesticação de aspectos da cultura árabe para o contexto ocidental.

E, de fato, não se pode dizer que esteja errada. Quem teve acesso ao texto fonte, e mesmo os estudiosos, admitem a importância da atuação do arabista francês como tradutor dos contos oriundos da tradição oral oriental. Os traços clássicos e de acordo com a cultura da época e do local, isto é, a França do século XVIII, contribuíram para tornar essa obra o sucesso que foi. Arrojo, assim, mostra como o tradutor intervém na história, vivificando uma narrativa pouco ajustada aos padrões. Isso levanta o questionamento: que diferença faz um tradutor? E a resposta é: muita. Compreender isso é tornar-se um profissional melhor.

Segundo Arrojo, sendo o tradutor invisível, Galland se destacou em seu trabalho, ao realizar uma tarefa semelhante à de um autor. Nisso, se observa a vontade de poder autoral. Trata-se da chamada belles infidèles1 1 Les belles infidèles é uma concepção tradutória predominante na França do século XVII, segundo a qual as belas traduções, deveriam necessariamente pecar contra a fidelidade à obra original e permanecerem esteticamente desejáveis para o público francês. , por meio da qual o tradutor é infiel para embelezar a obra, e, priorizando seus interesses particulares, torná-la aceitável ao grupo de destino. Arrojo acredita que o acontecido com Funes após o acidente, em que a queda de um cavalo ocasionou sua situação singular, pode ser associado à metamorfose do camelo e do leão em Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche.

O camelo representa o desejo da verdade, conforme argumenta Arrojo, bem como a própria moral, submissão e humilhação: ele aceita aquilo que lhe é dado e obedece. Por isso leva uma carga. No deserto, contudo, diante da metamorfose, o dragão com seus valores milenares, brada e ordena, mas o leão, não mais camelo, se apodera de suas forças e da liberdade para criar. Assim, a antiga devoção dá lugar ao ato de enfrentar aquilo que é sagrado e conquistar o direito de criar e modificar valores fixos. Trata-se da libertação do tradutor, que ao ver a si como formador de sentidos, ao invés de tão somente imitá-los, os redescobre e transforma.

Isso é parte do processo, bem como o próprio ato de esquecimento daquilo que era antes e a perda de alguns aspectos. No capítulo cinco, a autora usa para análise três textos de ficção. São eles “A Toca” de Kafka, “A morte e a bússola”, de Borges, e “Gallus”, de Kosztolányi. Analisando a trama ficcional presente nos textos, Arrojo reflete a respeito das nuances presentes na área da tradução. Ao trazer à luz o animal na ficção de Kafta, a autora nos mostra que esse é, metaforicamente, uma representação do autor da obra original.

Por isso, Arrojo atribui ao autor o mesmo instinto protetor que o animal possui de defender sua toca/lar dos intrusos. Nessa analogia, como já dito, o animal é entendido como o autor, e assim, da mesma maneira, podemos supor que os intrusos que buscam invadir a toca do animal são os tradutores. O autor, com seu instinto de preservação, busca proteger aquilo que é sua “posse exclusiva”, a obra. Partindo disso, a autora mostra que a tentativa de proteger o texto, esse instinto de preservação, beira o ilusório.

Para Arrojo, é impossível que o autor exerça o controle total sobre o seu texto quando este passa a ser veiculado e traduzido. O texto estará à mercê das marcas pessoais do tradutor, suas percepções, cultura. Portanto, o animal (autor) falha em proteger seu lar (obra original), pois essa, sempre estará à vista do intruso (tradutor) que terá uma visão diferente do lar do animal, outra perspectiva e ponto de vista. Ao analisar o enredo de Borges, a autora passa a discorrer sobre as lutas pelo poder que permeiam a tradução.

A partir da mesma estratégia, ao analisar o animal em Kafka, Arrojo faz analogias para nos remeter a assuntos temáticos nos estudos da tradução. Erik Lönnrot, o detetive imaginado por Borges em “A morte e a bússola”, seria o leitor, que tenta prender Red Scharlach, o assassino (autor). Erik (leitor) é pego em uma espécie de labirinto textual elaborado por Red Scharlach. Nessa analogia, segundo Arrojo, percebemos através da narrativa ficcional a “vontade de poder” daquele que traduz.

O tradutor, por sua vez, ecoa os pontos de vista que o autor original tinha em mente. Vale lembrar que esse eco se distancia cada vez mais do original, pois, a cada instante entra em contato com novos ares. É possível vislumbrar Arrojo falando a respeito de “Gullus”, que também nos revelaria a fracassada tentativa do tradutor de poder entender de forma plena o que o autor original quis expressar em sua escrita. Nisso, se corrobora a limitação imposta ao profissional da tradução, que se manifesta mais complexa à medida que Arrojo vai explicando os vários elementos que servirão para reforçá-la.

Para ela, apesar das habilidades linguísticas, o tradutor nunca conseguirá abarcar em sua tradução todo o sentido transmitido pelo autor original. Dessa forma, o tradutor, assim como “Gallus”, é tomado por uma compulsão de roubar, ou seja, ele acaba por preterir um sentido a outro. Metaforicamente, isso se caracteriza como roubo, mesmo que a tradução seja do mais elevado nível. Quando o estudante de tradução é levado a contemplar a verdade daquilo que Arrojo anuncia aqui, a inevitabilidade da perda, ele se torna consciente de seus limites.

A partir desse ponto, a autora conclui que esse fato implica que a “vontade de poder autoral” do tradutor deve ser reprimida; do contrário, o tradutor encontrará punição da mesma forma como aqueles que praticam furtos/roubos encontram. Aqui Arrojo adota uma postura conservadora, mostrando que mesmo na liberdade há restrições. Isso deve servir aos estudantes de tradução como um aviso para não cometerem abusos com relação ao texto alheio. Há uma responsabilidade que decorre do privilégio da liberdade.

No capítulo seis, “Autoria como Afirmação da Masculinidade”, a autora discute questões de gênero que, para ela, permeia o campo criativo, a saber, as relações existentes entre autoria, criatividade, tradução / revisão. Nesse capítulo, esses assuntos são relacionados à dicotomia masculinidade e feminilidade. Segundo Arrrojo, em História do cerco de Lisboa, de José Saramago, é possível observar que o protagonista, Raimundo, toma a decisão de exercer sua vontade de poder de autoria. Só após isso é que Maria Sara, a revisora, passa a nutrir certo interesse por ele.

O que ocorre é que, segundo Arrojo, isso ilustra aquilo que ela chama de “despertar da masculinidade”. Existe uma ligação clara com a decisão tomada por ele, e isso não foi colocado ali sem sentido. Devemos apreender esse sentido. A mudança de postura está intrinsicamente ligada à mudança de identidade de tradutor para escritor, o que corrobora os pontos de vista tradicionais, que veem os escritores como sendo o “masculino criativo”, o ápice, enquanto que o tradutor simboliza a feminilidade e a submissão.

Essa mesma premissa, diz a autora, encontramos em “Guy de Maupassant”, de Isaac Babel. Arrojo estabelece conexões entre escrita criativa e exploração de gênero. Após assumir o papel de escritor e reescrever as histórias de Maupassant, que é o escritor favorito de Raissa, ele passa a ser mais sedutor aos olhos da mulher. Raissa, a mulher seduzida, está, figurativamente, representando as mulheres ignorantes, o que ecoa os pontos de vista essencialistas sobre a superioridade dos homens sobre as mulheres.

De fato, nos textos deste livro, Arrojo tenta desmistificar a ideia de tradução como simples transposição palavra a palavra para uma outra língua. À medida que vai nos apresentando os tradutores na ficção, procura defender o tradutor como autor da obra traduzida. Também chama a atenção para as vezes em que a ficção pode ser uma forma de teoria mais acessível sobre a tradução. O motivo é simples: diferentemente de traduções mais técnicas, a ficção exige criação e adaptação, já que, tendo por finalidade o prazer, confere ao tradutor maior liberdade.

No capítulo sete, a autora sublinha as diferenças de gênero como fundamento da função e dos papéis que se vinculam ao texto. A tarefa do escritor é, assim, tida como uma espécie de dom masculino, com poder criativo, assim como é tradicionalmente atribuído à virilidade dos homens o poder de fecundar, sendo o agente ativo. É importante que o leitor, ao se deparar com a descrição crítica de Rosemary Arrojo, possa buscar ler as obras que ela cita e concomitantemente se aprofundar nos estudos da tradução a partir dessas análises, uma a uma.

A influência poética também segue esse viés, sendo para ela, um ponto decorrente da rivalidade entre homens, como representado por Laio e Édipo. Arrojo cita Harold Bloom, para quem, quando pai e filho se encontram na encruzilhada e se enfrentam, conforme o mito, Édipo, o filho sonhador e poeta mata o pai, representado como o criador que merece respeito e reverência. O jovem luta para substituir o precursor tradicional, sendo a posse da figura feminina o prêmio. Para Arrojo, tal aspecto tem claramente uma inspiração freudiana, e destaca a noção de uma separação de gênero.

Assim, o domínio da escrita é um domínio do masculino sobre o feminino, este o gênero a ser mantido sob controle. Com isso, o direito de posse do texto é vinculado à própria compreensão da autoria na literatura. Ainda segundo Arrojo, a noção, anteriormente mencionada de belles infidèles traduz bem esse ponto, ao mostrar a ligação dos papéis de gênero com o processo de autoria e tradução.

O escritor é descrito como o marido de uma mulher, que deve necessariamente ser infiel a ele, isto é, ao texto original, para que seja carregada de beleza poética. Semelhante a Édipo, que para possuir a mulher, Jocasta, deve matar o próprio pai Laio. Em “Notas ao Pé da Página”, de Moacyr Scliar, e Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino, Arrojo percebe a aceitação do papel do tradutor como profissional habilitado para criar. No entanto, os papéis convencionais de gênero permanecem, sobretudo na rivalidade dos personagens autorais, sempre masculinos, e na maneira como as mulheres são retratadas.

No conto mencionado, de Moacyr Scliar, o tradutor apresenta detalhes da vida do autor por meio das notas de rodapé à medida que conta sua história. As informações adicionais são acrescentadas de tal forma que é possível ter acesso à biografia do autor, o que orienta o leitor para permanecer alerta quanto à parcialidade da obra original. O autor conta a história baseado em sua percepção; no entanto, o leitor lê as notas informativas que esclarecem a situação, mas não perfeitamente.

Com o desenrolar da trama, fica evidente que o autor fora abandonado pela amante que o deixou para casar com o tradutor. As notas de rodapé se tornam inconfiáveis, já que elas também apresentam um parecer parcial: pertencem ao homem que fora rival do escritor. Arrojo faz uso desse exemplo para provar seu argumento. O desespero causado pela perda acarreta a morte do autor, descrita pelo tradutor nas notas, o qual roubou-lhe a amante e causou-lhe a perda. E, assim, percebe-se a natureza complexa da relação entre original e tradução, nunca fixa e plenamente fiel.

Segundo Arrojo, cada tradutor representará a obra de maneira criativa, e de acordo com sua própria percepção do mundo. Há aqui uma clara menção ao lema das belles infidèles. A bela infiel é, portanto, a amante, sendo a causa dos infortúnios e da rivalidade entre autor e tradutor. Quando esta é infiel e escolhe ficar com o segundo, causando a morte do primeiro, isso apenas indica a vitória da liberdade criativa, nunca fiel e jamais literal em cada letra, do tradutor sobre o autor, já que, de certa forma, sempre se sobrepõe ao original.

Arrojo chega a afirmar, que, mesmo ao discorrer sobre a necessidade da invisibilidade do tradutor, o teórico da tradução Lawrence Venuti estabelece um padrão que não é seguido em algumas obras, cuja trama envolve explicações e comentários. Estes, muitas vezes, compõem a própria natureza e estilo do livro. Os tradutores das obras analisadas neste capítulo transgridem bastante esse padrão, sendo sua presença de vital importância.

A visibilidade também é marcante em Se Numa Noite De Inverno Um Viajante, de Italo Calvino, e Arrojo demonstra como isso é indispensável para a ideia do livro em si, que mostra não somente os agentes atuando e se relacionando com a história da produção do livro, mas também o leitor. Se trata exatamente desse ponto: as inúmeras possibilidades da escrita. No capítulo oito, “Tradução como Transferência ‘Pierre Menard’, Cervantes, Borges e Whitman”, percebemos as implicações da tradução com relação aos vínculos estabelecidos entre textos, tradutores e autores.

A atividade tradutória, tendo um caráter criativo e incapaz de ser invisível, constitui uma forma de transferência. Segundo Arrojo, Borges trata em seus ensaios sobre os princípios que regem a tradução, sobretudo diante das ideias de Nietzsche. Mas é a partir da ligação com o poeta americano Walt Whitman, no poema “Himno del mar” (“Hino do mar”), em 1919, e da tradução parcial de “Leaves of Grass”, que Borges pôde vislumbrar, segundo Arrojo, a conexão emocional que se estabelece entre alguns tradutores e as obras trabalhadas.

Na opinião de Arrojo, há um vínculo sentimental dos textos e autores com relação aos tradutores, que muitas vezes não é compreendido. Menard buscou recriar a obra de Cervantes, primeiro através de uma postura imitadora. Houve, de fato, uma tentativa de ser o autor da obra, pensar como ele. Todavia, acabou abandonando depois tal estratégia e decidiu atuar como ele mesmo.

Quando se percebe o uso de tais abordagens, é possível discernir o absurdo da exigência que há em se buscar sempre a fidelidade em uma tradução, e a própria invisibilidade do tradutor. Se tais métodos estão à disposição do tradutor, significa que há uma escolha, podendo conferir à obra frações de si mesmo. No caso da transferência, abordada neste capítulo, tal conceito guarda forte relação com a psicologia, uma vez que a maneira como o tradutor lida com o texto nesse tipo de relação é sempre marcada por um vínculo.

Arrojo cita a opinião de Harold Bloom, para quem a história criada por Borges demonstra esse ponto. Menard queria criar Dom Quixote, apesar de impossível. Porém, através da tradução, estaria, de alguma forma, transferindo seu amor para aquilo que era conhecido, isto é, a obra de Cervantes. O conhecimento é, assim, uma forma de poder. Ainda que tal situação envolva amor, a transferência também traz ambivalência, já que, segundo Arrojo, dois sentimentos contraditórios se alinham ali: a admiração pela obra e a rivalidade com o autor.

Para ela, Menard deseja superar Cervantes, ao mesmo tempo em que o exalta: por isso aceita ser invisível, compensando trabalhar em uma obra ilustre e famosa, ainda que não seja autor. Asssim, ele foge da mediocridade de suas próprias obras, nas quais atua como autor visível, mas sem grande sucesso. Quando Arrojo destaca esse ponto da frustração, ela novamente retorna, mesmo que não cite explicitamente, à questão da submissão e da fraqueza mencionada no capítulo seis, como tendo vínculo com a tradução. Menard se mantém preso à condição de tradutor por não ser forte o suficiente para atuar como autor e obter sucesso nessa condição.

Arrojo observa ainda que o mesmo pode ser dito com relação a Walt Whitman, que, em função da profunda admiração de Borges por esse poeta e sua obra, parece ter desempenhado uma influência muito grande nele, tendo sido essa a razão da existência de seu primeiro poema em 1919, “Himno del mar”, bem como o volume Hojas de hierba, uma pequena antologia de Leaves of Grass traduzida para o espanhol por Borges. Da mesma forma que no primeiro caso, por seu vínculo afetivo com a obra, houve ali, segundo Arrojo, uma espécie de transferência, desta vez no campo da poesia.

De fato, acredito que o vínculo pessoal conduz muitos tradutores a reproduzir modelos, como ocorreu com Borges. No entanto, isso não torna a tradução menos instigante, sobretudo quando se considera a natureza do gênero poesia. Com a leitura de ambas as traduções, é possível vislumbrar as diferenças presentes. A declaração poética da perspectiva pansexual nas obras é muito menos enfatizada em Borges do que em Whitman, por exemplo. Tais situações só conduzem o profissional da tradução a uma reflexão mais profunda acerca de sua responsabilidade com relação às várias direções que um texto estrangeiro pode tomar.

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    Les belles infidèles é uma concepção tradutória predominante na França do século XVII, segundo a qual as belas traduções, deveriam necessariamente pecar contra a fidelidade à obra original e permanecerem esteticamente desejáveis para o público francês.

Referências

  • Arrojo, Rosemary. Fictional Translators: Rethinking Translation through Literature Nova York: Routledge, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2022
  • Aceito
    22 Out 2022
  • Publicado
    Dez 2022
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