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ENTREVISTA COM ELISA WOUK ALMINO

Elisa Wouk Almino é escritora, editora e tradutora literária radicada em Los Angeles. Dentre seus trabalhos mais recentes estão a coletânea de poemas selecionados This House, de Ana Martins Marques (Scrambler Books), que traduziu, e o livro Alice Trumbull Mason: Pioneer of American Abstraction (Rizzoli), que editou. É editora sênior da Hyperallergic, revista online de arte. Suas traduções e ensaios já foram publicados em sites como Paris Review Daily, Lit Hub, NYR Daily, Asymptote Journal, Words Without BordersALMINO, Elisa Wouk. The Translator’s Bookshelf. Words Without Borders: February 13, 2019. Disponível em: https://www.wordswithoutborders.org/dispatches/article/the-translators-bookshelf-elisa-wouk-almino.
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e outros. Também ensina tradução literária e escrita sobre arte na Catapult e na UCLA Extension.

Marcela Lanius (ML): Como surgiu o projeto de traduzir Ana Cristina Cesar, e quais são os materiais que você já traduziu e/ou ainda está traduzindo? E há quanto tempo vem trabalhando nesse projeto?

Elisa Wouk Almino (EWA): Tudo começou em 2018, numa visita à casa de minha mãe em Curitiba. Ela me entregou uma imensa pilha de cartas e disse, “Toma, essas são as cartas da Ana Cristina. Não sei mais o que fazer com elas”. Minha mãe, Bia Wouk, foi amiga próxima de Ana Cristina quando as duas tinham perto de seus trinta anos de idade. Ela é artista visual e eu sabia dessa amizade entre as duas e, claro, já conhecia a história de vida e a obra de Ana Cristina Cesar, mas eu jamais havia pensado em traduzir nada, até por conta desse histórico familiar; eu sabia, também, que a morte de Ana fora particularmente dolorosa para minha mãe. Mas quando ela me entregou aquelas cartas, eu entendi que era como se ela estivesse me dando permissão – ou mesmo me pedindo – para que eu fizesse alguma coisa com aquele material. Eu já vinha traduzindo poetas do Brasil há algum tempo, inclusive poetas que, como Ana Martins Marques, haviam sido influenciadas por Ana Cristina.

Eu ainda não havia decidido se faria algo com aquelas cartas até que me dei conta de que uma das cartas, escrita em abril de 1980, era na verdade um primeiro rascunho de Luvas de pelica. Foi uma descoberta fantástica – ali, afinal, estava um exemplo concreto de como Ana Cristina costumava incorporar cartas em sua poesia. Também descobri que ela e minha mãe trocaram ideias sobre Luvas de pelica e que, em um determinado momento, Ana Cristina pediu que minha mãe fizesse as ilustrações do livro. Esse projeto acabou não se concretizando, mas minha mãe fez sim o desenho que acompanha a capa de Luvas. É um manequim dentro de uma vitrine; naquela época, ela vinha fazendo vários desenhos desse tipo, que ilustravam reflexos de vitrines – uma imagem à qual Ana Cristina se refere várias vezes ao longo de Luvas de pelica.

Quanto mais eu relia as outras cartas que minha mãe me dera, mais eu encontrava novos trechos que Ana Cristina havia utilizado posteriormente em seus poemas, principalmente aqueles que aparecem em A teus pés. E foram essas cartas que, de certo modo, nortearam meu projeto de tradução, que foi crescendo gradualmente. Além de traduzir Luvas de pelica e algumas cartas selecionadas que Ana Cristina escreveu para minha mãe, também decidi traduzir Correspondência completa e alguns poemas de Cenas de abril e A teus pés, escritos que também brincam com a ideia da escrita epistolar e da escrita em diários – já que Luvas de pelica, de certa forma, também pode ser lido como um diário de viagem ou mesmo como um diário pessoal.

(ML): Como o seu projeto de tradução vem mostrando, Bia Wouk foi uma pessoa importante para Ana Cristina Cesar durante o período de composição de Luvas de pelica – e a artista chegou mesmo a criar a ilustração que adorna a capa do livro. Além disso, Wouk também ilustrou a capa de Inéditos e dispersos, o primeiro livro póstumo de Ana C.; essa ilustração traz, como título, “É difícil ancorar um navio no espaço” – um aceno, parece, ao poema que abre Cenas de abril, o primeiro livro publicado pela poeta: “é sempre mais difícil / ancorar um navio no espaço”. Particularmente, acho esse gesto bastante comovente, uma vez que ele consolida a importância que Wouk teve na vida e na obra de Ana Cristina e vice-versa – e firma um laço de amizade que parece ganhar ainda mais força com o projeto que você vem construindo. Também me parece que o seu projeto de tradução é bastante significativo na medida em que pode ampliar o que já sabemos sobre tópicos como o processo criativo de Ana Cristina Cesar, os temas que ela explorava em sua escrita e os artistas que a influenciavam. Você poderia falar um pouco mais sobre o projeto, que parece ter começado como algo bastante pessoal e que agora pode potencialmente contribuir para as áreas de pesquisa acadêmica e biográfica sobre a escritora?

(EWA): Luvas de pelica costuma ser entendido pela crítica especializada como o livro mais visual de Ana Cristina. Nesse sentido, a amizade com minha mãe sem dúvidas foi um elemento de grande influência – ela era fascinada pelos desenhos de minha mãe e pelo caminho que a amiga vinha trilhando como artista visual. As cartas também são recheadas com observações sobre artistas, de Velázquez a Hockney, e sobre as diferenças entre a escrita e o desenho; e observações bem similares aparecem em Luvas de pelica. Na minha opinião, isso é bastante revelador e pode sim influenciar a forma como lemos e interpretamos o livro.

Além disso, esse projeto de tradução também é um exemplo bastante sólido de como Ana Cristina incorporava trechos de suas cartas aos poemas que escrevia e vice-versa. Como o poeta Armando Freitas Filho observou certa vez, se tirarmos “para fulana de tal” e “com um beijo da Ana” das cartas, veremos que as partes restantes do texto carregam uma grande semelhança aos poemas.

Também é importante destacar que as cartas às quais tive acesso foram escritas durante um período bastante formativo na carreira de Ana Cristina, bem quando ela estudava tradução literária na Universidade de Essex e começava a burilar aquilo que realmente importava para ela, como escritora e também como leitora. Em muitas das cartas, é possível ter um vislumbre dos artistas e escritores diversos que começavam a influenciar seu modo de pensar – de Walt Whitman a Katherine Mansfield. O projeto de tradução, me parece, oferece diversos caminhos para que possamos avaliar com mais detalhes o estilo de escrita de Ana Cristina e as influências às quais ela estava exposta.

(ML): A escrita epistolar é um elemento central para a composição e para o estilo narrativo de Luvas de pelica, pois, para além do fato de que partes do livro vieram originalmente de cartas que Ana C. escreveu para a sua mãe, há passagens que realmente soam como cartas e que até se assemelham a elas, ao menos momentaneamente. Isso é particularmente interessante, pois o livro que precede Luvas de pelica é Correspondência completa – que, contrário ao seu título, é na verdade composto por apenas uma longa carta. Você acha que Correspondência completa poderia funcionar, de certo modo, como uma primeira excursão ao modo de escrita que Ana C. exploraria em Luvas? E qual é a sua opinião sobre a prosa de Luvas de pelica?

(EWA): Com certeza. Em Correspondência completa, Ana Cristina começara a explorar uma voz narrativa que se comunica diretamente com o leitor, ou, para usar o termo que ela preferia, com “o interlocutor”. Luvas não é tão explicitamente construído como uma carta, mas carrega a mesma voz que se observa em Correspondência completa. Ana Cristina certa vez disse que a escrita de um poema e a escrita de uma carta tinham um mesmo propósito: “o desejo de mobilização do outro”. E é possível perceber esse anseio nos dois livros.

Em uma carta escrita para Bia Wouk no dia 18 de agosto de 1980, Ana Cristina menciona que estava relendo Correspondência completa, “meu livrinho de exatamente 1 ano atrás”. Ela estava relendo o livro como uma forma de estudar seu próprio estilo, avaliando o que já havia escrito enquanto trabalhava naquele que viria a ser seu próximo livro. Na carta, ela escreve: “A técnica central – abuso de entrelinhas – é que acho que está dando agora pra levar além, ou seja, para soltar mais”. “Lá a entrelinha ainda é dura, e não adianta que é tudo metáfora mesmo, e tudo carta”.

(ML): A tradução é outro tema central para o livro, embora isso possa escapar aos leitores e leitoras que não estejam familiarizados com a biografia e as obras de Ana Cristina Cesar. O período durante o qual ela escreveu Luvas de pelica e se correspondeu com Bia Wouk, afinal, foi também o período em que ela viveu na Inglaterra e trabalhou na tradução comentada do conto “Bliss”, de Katherine Mansfield. Luvas, inclusive, apresenta aqui e ali algumas pistas sobre o envolvimento da autora com esse projeto de tradução. Você cogitou realizar uma tradução comentada de Luvas de pelica? Os escritos de Ana Cristina sobre tradução afetaram, influenciaram ou inspiraram o seu trabalho?

(EWA): Ah, adorei essa ideia! Eu não tinha pensado nisso, mas pretendo sim incluir um ensaio autoral no qual discuto meu processo de tradução. Os escritos de Ana Cristina sobre o tema me influenciaram sim, e eu os li antes de começar a tradução. Mas acho que, mais do que isso, esses escritos me ajudaram a cultivar uma ideia de permissão; uma permissão para começar a traduzir aquilo que eu tinha na minha frente. Enquanto eu lia o que Ana Cristina havia escrito sobre tradução, percebi que ela estava na vanguarda do que vinha se pensando sobre a tradução como uma arte que envolve interpretação e criação – tanto que, em suas traduções de Katherine Mansfield, ela reconhece que suas escolhas são influenciadas pelas experiências pessoais que carrega como leitora e escritora. Ela também era uma tradutora bastante zelosa e detalhista, pois prestava muita atenção a como as palavras soavam em inglês e em português, e investigava com muito cuidado os possíveis padrões na escrita de Mansfield. Enquanto eu traduzia, me vi utilizando alguns de seus métodos – como, por exemplo, listar diversos sinônimos para uma mesma palavra para só então verificar qual deles funcionaria melhor na tradução.

(ML): Você já publicou alguns trechos de suas traduções em revistas literárias como A Virada, Literary Hub e, mais recentemente, a Circumference – mas você tem planos de publicar o material em livro? Se sim, como seria esse livro? Ou melhor: se você pudesse publicar sua tradução ideal, como ela seria? Uma edição bilíngue? Uma edição com uma introdução e um prefácio da tradutora? Uma edição com reproduções dos manuscritos originais?

(EWA): Adoro essa pergunta da tradução “ideal”. Eu adoraria publicar tudo em livro, pois acho que todos os materiais – os poemas, as cartas, os desenhos e as fotos que tenho de Ana Cristina – tornam-se ainda mais fascinantes quando são colocados em diálogo uns com os outros. Eu gostaria de montar um livro que seguisse uma ordem cronológica por esses materiais, começando com Cenas de abril (1979) e terminando com a última carta que Ana Cristina enviou para minha mãe, logo após a publicação de A teus pés em 1982. Também estou escrevendo pequenos ensaios introdutórios para cada seção do livro, pois acredito que eles não só ajudarão a costurar todos os materiais em um único volume, mas também poderão funcionar com uma espécie de minibiografia sobre a vida e a obra de Ana Cristina. Eu adoraria incluir as versões originais dos poemas mais curtos – algo que é bastante viável quando se trabalha com poesia e não com outros tipos de texto, como contos. Eu também gostaria incluir reproduções das cartas que Ana Cristina enviou para minha mãe, dos desenhos de minha mãe que inspiraram a amiga, e algumas fotos que meus pais tiraram dela ao longo dos anos.

Por último, acredito que seria importante publicar uma versão desse livro no Brasil, pois acho que todo esse material inédito pode interessar bastante o público-leitor brasileiro. Mas, antes, preciso encontrar editoras interessadas – tanto aqui como aí!

(ML): Ao ler o trecho que você publicou na Circumference, que vem acompanhado por uma reprodução do datiloscrito de Ana Cristina, percebi que a versão publicada de Luvas de pelica lembra uma espécie de quebra-cabeças ou mesmo uma colagem – sobretudo porque alguns trechos do datiloscrito, uma versão primeira do que viria a ser o Epílogo de Luvas de pelica, aparecem nos trechos de abertura do livro publicado. Esse material inédito, que nunca fora estudado, auxiliou ou influenciou o seu processo de tradução de alguma forma?

(EWA): Demais! O Epílogo e a carta de 1980, que seria posteriormente adaptada ao texto de Luvas de pelica, foram imensamente úteis durante o processo e influenciaram bastante a tradução, pois me proporcionaram uma visão mais clara do que Ana Cristina estava tentando fazer com aquelas passagens. O fato de que ela estava utilizando alguns trechos e frases que havia escrito em cartas para a minha mãe também me deu um novo contexto de leitura; uma nova forma de interpretar aqueles poemas. A frase “não sou dama nem mulher moderna”, que está no poema “Sete chaves” de A teus pés, havia aparecido primeiro em uma carta para minha mãe. Além disso, minha profunda familiaridade com os desenhos de minha mãe também foi algo que influenciou demais a tradução: eu podia ver os desenhos dela ali nas descrições de Ana Cristina, e isso ajudou bastante no processo de escrita e feitura da tradução.

(ML): Eu queria perguntar também sobre os desafios que você enfrentou (e as pequenas alegrias que você encontrou) durante o processo de tradução, e como você lidou com a linguagem de Ana Cristina – que às vezes é bastante linear, outras vezes fragmentária, repleta de referências à cultura pop, e que esconde também pequenos trechos de poesia dentro de sua prosa.

(EWA): Traduzir Ana Cristina Cesar foi uma das experiências mais desafiadoras que já enfrentei como tradutora; mas foi, também, uma das minhas vivências mais gratificantes. O segredo, me parece, é lê-la e depois relê-la, quantas vezes for necessário – tanto que já não consigo mais nem me lembrar quantas vezes li Luvas de pelica e os outros escritos que traduzi. Cada leitura me mostrava algo novo, tornava aquela escrita mais interessante e me dava mais e mais clareza sobre aquelas passagens. Foram necessários alguns muitos rascunhos da tradução até que eu começasse a ouvir a voz de Ana Cristina em inglês – mas, agora que consigo ouvi-la, é um deleite imenso.

E sim, ela adorava colocar referências pop e referências literárias em tudo o que escrevia. Algumas dessas referências são bastante sorrateiras, e foi só depois de várias releituras que eu as encontrei. Outras talvez tivessem passado batidas não fosse por minha mãe, que regulava de idade com Ana Cristina e, por isso, conseguia identificar o que estava sendo referenciado. Além disso, minha mãe também sabia o que a amiga estava lendo e os tipos de arte e conteúdos visuais que ela vinha descobrindo naquela época. Em uma passagem de Luvas de pelica, por exemplo, Ana Cristina descreve a cena de uma mulher acendendo o “charuto do anão” com um “céu à régua”1 1 Published in 2018 by Parlor Press, the book was translated by Brenda Hillman, Helen Hillman, and Sebastião Edson Macedo, and edited by Katrina Dodson. ao fundo – que, como minha mãe esclareceu, é uma alusão a um desenho de William Hogarth.

Algumas passagens e frases permanecem opacas para mim, pois não sei se entendi completamente aquilo que ela está querendo dizer. Mas isso acabou me encorajando a ter paciência e a aceitar; a resistir, como tradutora, à vontade de querer aumentar o texto para deixar tudo “claro” e “explicado”.

(ML): Tradutores e tradutoras influenciam – e muito – a forma como um escritor, uma escritora, um poeta ou uma poeta serão lidos em uma outra língua e dentro de uma outra cultura. Tomando como base os trechos já publicados da sua tradução, fica evidente que você não só apresenta Ana Cristina como uma poeta bastante conhecida e querida no Brasil, mas também sempre explicita a relação entre ela e a sua mãe. Considerando que a primeira tradução de peso da obra da poeta é o volume At Your Feet, o seu projeto de tradução é também uma excelente oportunidade para apresentar ao público leitor de língua inglesa um outro lado de Ana Cristina Cesar como escritora – e, desse modo, expandir a imagem que dela se tem nos Estados Unidos. Você concorda?

(EWA): Eu espero que sim! Infelizmente, ela ainda não recebeu o reconhecimento que merece por aqui, em parte porque o público leitor dos Estados Unidos não é muito receptivo à poesia – especialmente poesia traduzida. Inicialmente, minha ideia era traduzir apenas Luvas de pelica e as cartas, mas acabei expandindo meu escopo para incluir também outros poemas e escritos e, assim, oferecer um mergulho mais abrangente à obra de Ana Cristina; e, quem sabe, inspirar mais pessoas a lerem At Your Feet, que ganhou uma tradução maravilhosa.

(ML): Em seu posfácio à tradução The Passion According to G.H. e nos poemas que compõem Clarice: The Visitor, Idra Novey posiciona o ato de traduzir como uma espécie de visita, identificando o autor ou autora como uma visita que invade a vida de seu tradutor ou tradutora e bagunça a rotina diária daquela pessoa. No seu texto “The Translator’s Bookshelf”, você menciona – ao discutir a tradução para o inglês de Looking at Pictures, do suíço Robert Walser – a imagem dos tradutores e tradutoras que vivem “dentro das paredes que compõem as palavras de Walser, descobrindo cada cantinho dos espaços criados pelo escritor”2 2 https://www.wordswithoutborders.org/dispatches/article/the-translators-bookshelf-elisa-wouk-almino. . E, ao escrever sobre os poemas de John Donne, suas traduções para o português e “Elegia”, um poema de Donne que fora traduzido por Augusto de Campos e cantado por Caetano Veloso, Ana Cristina Cesar brinca com a ideia do “tradutor como stuntman”3 3 Cesar, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Editora Ática, 1999. Please refer to page 238. – como alguém que substitui o ator ou atriz original e, ao mesmo tempo, coloca a si próprio em uma posição de risco. Tendo em vista essas três imagens – a da tradução como uma visita demorada por parte do autor ou autora que se traduz; das paredes que compõem as palavras de um escritor ou escritora; e do tradutor ou tradutora como stuntman – como você descreveria sua experiência de traduzir Ana Cristina Cesar, de explorar as paredes desses escritos? Você se sentiu também como uma espécie de stuntwoman?

(EWA): A tradução é sempre uma performance, mas acho que isso nunca havia ficado tão evidente para mim até traduzir os poemas de Ana Cristina. Acho que isso se deve, em parte, ao fato de que a forma como ela escreve é performativa por natureza, especialmente nos escritos em prosa, como é o caso das cartas e, claro, Luvas de pelica e Correspondência completa. Ler essas obras em voz alta é algo bem interessante, pois fica claro que elas funcionam muito bem para serem “encenadas”. Mas também descobri que a voz de Ana Cristina é assustadoramente forte. Traduzi-la não foi tanto me sentir como uma stuntwoman, mas sim sentir que aquela voz me possuía.

(ML): Em algumas crônicas que escreveu após a morte de Ana Cristina, Caio Fernando Abreu menciona a saudade que sentia da amiga e tudo aquilo que ela poderia ter conquistado se tivesse vivido um pouco mais. Em uma dessas crônicas, o escritor gaúcho posiciona Ana C. ao lado de duas outras mulheres que ele admirava: Sylvia Plath e Zelda Fitzgerald. À primeira vista, esse trio de mulheres pode parecer meio inesperado – mas o segredo para entender essa tríade está, possivelmente, na leitura de suas vidas e obras como “não convencionais” – uma classificação que o próprio Caio F. utiliza quando escreve sobre essas mulheres. Você também tem uma tríade de mulheres artistas à qual Ana C. pertence? Se sim, quem são elas?

(EWA): Eu me pergunto se Ana Cristina Cesar gostaria de ser comparada apenas à outras mulheres artistas. No entanto, ela também compreendia muito bem o fato de que as mulheres ocupam uma posição bastante particular e bastante marginalizada dentro da literautra. Logo após a publicação de A teus pés, ela deu uma palestra em uma universidade4 4 Cesar, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Editora Ática, 1999. See “Depoimento de Ana Cristina Cesar no curso ‘Literatura de mulheres no Brasil’”. onde afirmou que as escritoras mulheres manifestam “um outro discurso”: elas teriam “alguma coisa de outra para dizer, que ainda é meio esquisito. Uma outra fala”. Ela também se interessava muito por aquilo que denominou de uma escrita “feminina”, que, na sua opinião, poderia ser produzida tanto por um homem como por uma mulher. Nessa mesma palestra, ela diz que alguns desses traços “femininos” incluem uma preocupação obsessiva com o “interlocutor”.

Recentemente, organizei com outras colegas um evento na UCLA que contou com a participação de duas outras tradutoras que vivem aqui em Los Angeles – Magdalena Edwards e Hilary Kaplan. Eu as convidei porque acho que as três escritoras que nós traduzimos – Angélica Freitas (traduzida por Kaplan), Clarice Lispector (traduzida por Edwards) e Ana Cristina Cesar – possuem uma forte conexão. Há pouco tempo, numa conversa com Heloisa Buarque de Hollanda, eu perguntei como ela apresentaria Ana Cristina Cesar para o público leitor dos Estados Unidos, e ela me respondeu: “Ela é a filha da Clarice”. As duas mulheres, segundo ela, tinham o mesmo impulso, “que é descobrir: Quem sou eu? O que são as mulheres?”. As duas também eram fascinadas pela psicanálise – Ana Cristina, assim como Clarice, consultava-se com um terapeuta lacaniano – e, nas obras das duas, frequentemente nos encontramos embrenhadas na mente de um narrador; e este, quase sempre, é uma mulher. A poesia de Ana Cristina e a prosa de Clarice exploram, de formas que eram inéditas nas épocas em que escreveram, o cotidiano de uma mulher. E acredito que Angélica Freitas vem desenvolvendo esse tema de novas formas – seus poemas, sempre cômicos e audaciosos, tratam explicitamente sobre ser mulher, sobre ter o corpo de uma mulher e sobre ser queer. Hollanda está atualmente organizando uma coletânea de poemas chamada As 26 Poetas hoje, uma atualização do importantíssimo 26 Poetas hoje (1970), que trazia poemas de Ana Cristina. Para essa nova versão, que conta exclusivamente com poetas mulheres, Hollanda preparou uma introdução que consolida a posição de Ana Cristina como uma das grandes influências para essa nova geração de poetas – geração esta na qual Freitas está incluída. Se eu fosse escolher uma tríade de mulheres, então, acho que escolheria essas três escritoras pertencentes a três gerações diferentes, que parecem ter construído uma linha bastante distinta de influências: Clarice, de alguma forma, influenciou a escrita de Ana Cristina Cesar, que por sua vez influenciou a poesia de Angélica Freitas.

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    Published in 2018 by Parlor Press, the book was translated by Brenda Hillman, Helen Hillman, and Sebastião Edson Macedo, and edited by Katrina Dodson.
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    Cesar, Ana Cristina. Crítica e traduçãoCESAR, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Editora Ática, 1999. São Paulo: Editora Ática, 1999. Please refer to page 238.
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    Cesar, Ana Cristina. Crítica e traduçãoCESAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.. São Paulo: Editora Ática, 1999. See “Depoimento de Ana Cristina Cesar no curso ‘Literatura de mulheres no Brasil’”.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2022
  • Aceito
    16 Set 2022
  • Publicado
    Nov 2022
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