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TRADUÇÃO COMENTADA: A RECRIAÇÃO DA “LETRA” DE AZUL CORVO

COMMENTED TRANSLATION: THE RECREATION OF THE “LETTER” OF AZUL CORVO

Resumo

O presente estudo tem como base a minha tradução publicada(2019), do português para o chinês, da prosa ficcional Azul-Corvo (2010). Com bases nos conceitos de “tradução não platônica” e de “tradução da letra” defendidos por Antoine Berman (1985). O objetivo deste trabalho é propor uma tradução que consiga recriar a “letra” de Azul-Corvo em chinês e defender que o modelo hermenêutico de Berman é particularmente útil quando se verifica um tamanho choque linguístico entre a língua de partida e a de chegada tal como no caso do par português–chinês, pois a abordagem bermaniana destaca as características de diferença e estranheza interlinguísticas e interculturais, permitindo assim uma perspectiva mais ampla que toma em consideração uma pluralidade de estratégias de tradução.

Palavras-chave
Azul-Corvo ; Antoine Berman; tradução da “letra”; tradução não platônica

Abstract

The present study surveys the overall strategy and procedures adopted in my published translation of the Brazilian contemporary fiction Azul-Corvo (2010), with reference to the main concepts proposed by French philosopher Antoine Berman, known as “translation of the letter” and “nonplatonic translation”. This paper argues that Berman’s non-literary hermeneutic model is particularly useful for translation critiques from Portuguese to Chinese, as this approach highlights the characteristics of difference and otherness between languages, thus allowing a broader perspective that considers plurality of translation strategies.

Keywords
Azul-Corvo ; Antoine Berman; translating the “letter”; nonplatonic translation

Introdução

Há quem diga que o chinês é uma língua musical devido a sua cadência tonal. Também há quem elogie a melodia do português, a sua sonoridade suave, sua meiguice1 1 Por exemplo, o autor Pascal Mercier comentou sobre o som da língua portuguesa numa entrevista: “É suave, terno, sedativo [...]. Consigo ouvir a melodia do português durante todo o dia”. Entrevista com Pascal Mercier. Disponível em: https://puroacaso.wordpress.com/tag/pascal-mercier/. Acesso em: 1 dez. 2023. . A escrita da escritora contemporânea brasileira Adriana Lisboa é marcada por seus efeitos sonoros e rítmicos, produzidos por meio de frequentes repetições lexicais, frasais, entre outros recursos, que envolvem, por exemplo, aliterações e uma criteriosa escolha vocabular. A sonoridade, conforme Lisboa (2010b)Lisboa, Adriana. “Entrevista com Adriana Lisboa”. Paiol Literário, nov. 2010b. Disponível em: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/um-pouco-em-cada-lugar/. Acesso em: 15 jan. 2021.
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, vai muito além de simples eufonia ou resultado acústico, porque ela e a língua formam uma unidade, como afirma na entrevista:

É difícil falar da língua portuguesa como alguém de fora. Se a língua portuguesa tem uma sonoridade particularmente bonita? É a língua em que sempre escrevi. [...] Então, o português está tão próximo de mim, me sinto tão identificada com essa língua, que é difícil saber se sua sonoridade é feia ou bonita, ou como ela é para os outros. Porque, para mim, essa língua sou eu

(Lisboa, 2010bLisboa, Adriana. “Entrevista com Adriana Lisboa”. Paiol Literário, nov. 2010b. Disponível em: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/um-pouco-em-cada-lugar/. Acesso em: 15 jan. 2021.
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).

Portanto, o uso funcional da sonoridade é determinante para recriar o estilo da Lisboa. A tradução de Azul-Corvo2 2 A estória de Azul-Corvo se desenvolve num contexto globalizado, entre diversos países, inclusive a China, torna o enredo e seus personagens mais próximos do leitor não-brasileiro, e isso contribui para diminuir a enorme distância linguística e cultural entre a China e o Brasil. Os temas abordados no livro são os que concernem não só aos brasileiros, mas a todas as pessoas que vivem nesta contemporaneidade. Por exemplo, a escolha dos personagens de Azul-Corvo, que vivem em lugares e culturas diferentes de suas culturas originais, acabam por tematizar a questão da crise de identidade e sobretudo a questão dos laços familiares, em uma sociedade global que facilita o trânsito das pessoas entre diversos países e promove ondas migratórias, por motivos os mais variados: questões políticas, econômicas, raciais etc. para o chinês parte de uma tentativa de trabalhar esse aspecto, considerando a sonoridade das letras tão essencial quanto o sentido do texto. Dada a enorme distância entre os dois idiomas em questão, abdicamos da abordagem tradicional – como dita a teoria da equivalência (no sentido de Nida, por exemplo)3 3 Refiro-me aos conceitos de equivalência formal e de equivalência dinâmica ou funcional de Eugene Nida (1914-2011), ainda largamente utilizados nos Estudos da Tradução na China. e enveredamos por um caminho menos pisado por tradutores chineses, fundamentando a nossa prática em “tradução da letra” e em “tradução não platônica”, conceitos desenvolvidos pelo tradutor e teórico francês Antoine Berman (1942-1991).

Fundamentação teórica

Tradução da “letra”

No entender de Berman, a tradução literária implica ir “além do sentido”, e a “tradução-da-letra” seria “a essência última e definitiva da tradução” (Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 33). Para melhor apresentar a noção de “letra”, ilustramos um caso específico da tradução de provérbios que constitui, como indicado por Berman (2012, p. 20)logo no início de A tradução e a letra, “um caso altamente simbólico, por revelar toda a problemática da equivalência”. Berman (2012, p. 20)Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012. observa que “os provérbios de uma língua têm quase sempre equivalentes em uma outra língua”. Por isso, a solução mais usual nas traduções de provérbios consiste em “encontrar o seu equivalente (a formulação diferente da mesma sabedoria)” na outra língua4 4 Formular um provérbio de outro modo (já existente na língua de chegada) em outra língua, como por exemplo, quando se traduz “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura” para “磨杵成针” mó chǔ chéng zhēn (moer a barra de ferro tanto quanto ela se torna agulha) seria encontrar uma “equivalência dinâmica”, conforme conceito defendido por Nida, mas não por Berman. . Diante dum provérbio estrangeiro, diz Berman:

O tradutor encontra-se numa encruzilhada: ou busca seu suposto equivalente, ou o traduz ‘literalmente’, ‘palavra por palavra’. No entanto, traduzir literalmente um provérbio não é simplesmente traduzir ‘palavra por palavra’. É preciso também traduzir o seu ritmo, o seu comprimento (ou sua concisão), suas eventuais aliterações etc. Pois um provérbio é uma forma

(Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 20).

Portanto, na visão bermaniana, a tradução literária deve considerar questões além do sentido, como o ritmo, comprimento, aliterações, elementos constituintes da “letra”. Neste caso, tomemos o exemplo da tradução de Berman para um provérbio citado num romance de Roa Bastos, o que poderá nos elucidar como Berman entende a tradução literária e a tradução-da-letra. Ao traduzir o provérbio espanhol citado no romance Eu, o Supremo, de Roa Bastos, “A cada día le basta su pena, a cada año su daño”, Berman propõe uma abordagem ao mesmo tempo literal e livre: “À chaque jour suffit sa peine, à chaque anné sa déveine”, e comenta:

O duplo jogo aliterativo do original, día/pena, año/daño, desaparece, mas para ser substituído por uma outra aliteração peine/déveine. Não se trata, pois, de uma tradução palavra por palavra ‘servil’, mas da estrutura aliterativa do provérbio original que reaparece sob uma outra forma. Tal me parece ser o trabalho sobre a letra: nem calco, nem (problemática) reprodução, mas atenção voltada para o jogo dos significantes

(Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 21).

Trabalhar sobre a letra, portanto, significa considerar o jogo dos significantes no texto fonte e buscar reformulá-lo no texto alvo. Isso implica considerar as relações não apenas de sentido entre os significantes. Ao relermos o provérbio em espanhol e em francês, podemos perceber que o sentido se mantém o mesmo, assim como a estrutura da frase, que é composta por duas orações, em que a segunda oração mantém o verbo implícito (basta / suffit). As repetições são também mantidas (A cada.../A cada //À chaque.../À chaque), e os jogos de rima e de aliteração são reformulados, uma vez que os dois idiomas não oferecem vocábulos de mesmo sentido e com sonoridade similar. Vale notar que na tradução as rimas obtidas não são entre os vocábulos correspondentes (no original, año rima com daño, e esses dois termos estão na segunda parte do provérbio; em francês, peine rima com déveine, sendo que o primeiro termo, peine, está localizado na primeira parte do provérbio, e, o segundo, déveine, está na segunda parte). Essa liberdade na tradução foi uma maneira possível de se produzir um resultado rítmico no provérbio traduzido semelhante ao do original, uma vez que as rimas contribuem para a recriação do ritmo na tradução em francês.

Se o provérbio tivesse sido simplesmente substituído por um outro já existente na língua de chegada, estaria sendo “fiel” unicamente ao sentido, mas não à letra. Esse tipo de tradução que privilegia unicamente o sentido é definido por Berman, em A Tradução e a Letra ou O Albergue do Longínquo, como tradução “platônica”, que parte da separação entre o sensório – o “corpo” (a letra) e o não sensório – o “espírito” (o sentido) do texto traduzido, base da filosofia do grego Platão (428-348 a.C.). Berman refuta esta abordagem platônica na tradução, e defende uma tradução não platônica para a prosa literária, aquela que proporcionaria uma mesma atenção tanto ao individualismo e à particularidade de cada língua quanto à exploração de seus significados universais, o que reside no âmago da tarefa do tradutor. Sob esse viés, “a tradução é um dos lugares onde o platonismo é simultaneamente demonstrado e refutado”, e esse refutar “recai fortemente sobre a tradução” (Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 55). Foi contra essa ótica platônica que Berman fundamenta sua área de tradutologia hermenêutica numa tradição Alemanha romântica e clássica, a qual tem Schleiermacher e Goethe como referências principais.

Na visão de Berman, os tradutores devem acolher o texto fonte (o Estrangeiro) com toda sua corporeidade, visto que ele é “um ser carnal, tangível na multiplicidade de seus signos concretos de estrangeiridade” e “uma realidade carnal, tangível, viva no nível da língua” (Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 98). E essa proposta de “acolher o estrangeiro na sua corporeidade carnal, só pode estar ligada à letra da obra” (Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 98). Berman advoga uma abordagem estrangeirizadora (ou estrangeirizante) para “reconhecer e receber o Outro enquanto outro” (Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 69). Para Berman, a maioria das traduções ocidentais se caracterizam por três traços: “Culturalmente falando, ela é etnocêntrica. Literariamente falando, ela é hipertextual. E filosoficamente falando, ela é platônica” (Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 34). E os traços ético, poético e filosófico relacionam-se todos, segundo Berman, à “letra”. Ao defender uma tradução não platônica para a prosa literária, que incluiria não somente a consideração do sentido (do espírito) do texto como também e sobretudo de sua captação da “letra” (de seu corpo).

Na história da tradução literária, como destaca Berman, a tentativa de trabalho sobre a “letra” vivencia uma constante frustração, ao passo que a tradução que privilegia o sentido, como no caso da “equivalência dinâmica” de Nida, continua desempenhando um papel diretriz entre os tradutores. Como observa Berman, “a tradução ‘literalizante’ constitui a face escondida, o continente negro da história da tradução ocidental. Mas absolutamente nada de experimental” (Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 22). Ao nosso ver, esse “continente negro” não se refere somente à história da tradução ocidental, mas também à tendência da tradução apresentada nos últimos anos na China, onde a ocidentalização nas teorias tradutológicas tem ganho terreno entre os tradutores chineses. No artigo intitulado “Repertoire Transfer and Resistance – The Westernization of Translation Studies in China”, Nam Fung Chang (2009)Fung Chang, Nam. “Repertoire Transfer and Resistance: The Westernization of Translation Studies in China”. The Translator, 15(2), p. 305-325, 2009. DOI: https://doi.org/10.1080/13556509.2009.10799283
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afirma ter havido duas fortes ondas de ocidentalização nos Estudos da Tradução na China, tendo sido a primeira delas no início dos anos 1980, quando foram introduzidas sobretudo as teorias de Nida, Catford e Wilss. Com relação à recepção de Nida na China, destaca Abi-Sâmara (2012)Abi-Sâmara, Raquel. “Antoine Berman na China: a tradução e o ideograma ou o albergue das letras longínquas”. Scientia Traductionis, 11, p. 377-387, 2012. DOI: https://doi.org/10.5007/1980-4237.2012n11p377
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:

Bai Liping acrescenta que a teoria da tradução de Nida foi introduzida na China por Tan Zaixi, e que teve uma receptividade tão grande a ponto de tornar popular o seguinte dizer: ‘yan bi cheng naida’ – falar de teorias da tradução é o mesmo que falar de Nida

(Abi-Sâmara, 2012Abi-Sâmara, Raquel. “Antoine Berman na China: a tradução e o ideograma ou o albergue das letras longínquas”. Scientia Traductionis, 11, p. 377-387, 2012. DOI: https://doi.org/10.5007/1980-4237.2012n11p377
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, p. 383).

Do mesmo modo, questiona Wang PingWang, Ping. “奈达的动态对等翻译理论在翻译实践中的应用” [“A Aplicação de Teoria de Equivalência Dinâmica de Nida na Prática de Tradução”]. Journal of Hubei Adult Education Institute, 15(3), p. 84-85, 2009. em seu artigo “A Aplicação da Teoria de Equivalência Dinâmica de Nida na Prática de Tradução” (2009) que a teoria de equivalência dinâmica pertence à categoria de Tradução Aplicada, a qual está em quase plena concordância com os estudos tradutórios da escola tradicional da China, feitos pelos nomes mais ilustres no campo de tradução chinesa, como Dao An (Dinastia Jin), Fu Lei (1908-1966) e Qian Zhongshu (1910-1998). Porém, essas teorias estão sempre voltadas para a questão de equivalência de sentido, colocando a letra à parte.

Na prática, a tradução da “letra” não é um conceito simples para implementar, especialmente no que diz respeito a traduções entre idiomas ocidentais e orientais. Com frequência, os tradutores entre o português e o chinês optam por traduções “platônicas”, pois partem do princípio que a enorme distância linguística entre os dois idiomas impossibilita a tradução de aspectos que não semânticos. A tradução “platônica”, conforme Berman, é em geral indissociável de outros dois tipos de tradução também por ele definidos: a tradução etnocêntrica e a tradução hipertextual.

A tradução etnocêtrica é definida por Berman como aquela que rejeita a acolhida do Estrangeiro: “Etnocêntrico significará aqui: que traz tudo à sua própria cultura, às suas normas e valores, e considera o que se encontra fora dela – o Estrangeiro – como negativo ou, no máximo, bom para ser anexado, adaptado, para aumentar a riqueza desta cultura” (Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 28). A tradução etnocêntrica (e platônica), segundo Berman, “sob pretexto da transmissibilidade, opera uma negação sistemática da estranheza da obra estrangeira, [o que impede de] receber o Outro enquanto outro” (Berman, 2002Berman, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica. Traduzido por Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002., p. 18 apud Alves, 2009Alves, Regysane Botelho Cutrim. A crítica de traduções na teoria e na prática: o caso da “Versão Brasileira”. 2009. 118 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009., p. 44). A tradução hipertextual, por sua vez, está intrinsecamente ligada ao etnocentrismo. Ela reside em imitar outros textos já existentes na cultura para a qual se traduz, e caracteriza-se por “uma relação de engendramento livre, quase lúdico, a partir de um ‘original’”(Alves, 2009Alves, Regysane Botelho Cutrim. A crítica de traduções na teoria e na prática: o caso da “Versão Brasileira”. 2009. 118 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009., p. 47). Uma tradução hipertextual, conforme Berman, pode consistir em um pastiche, uma paródia, uma recriação livre, uma paráfrase, uma citação, um comentário, etc. O hipertextual está estreitamente ligado ao etnocêntrico, quando o forte desejo do tradutor de tornar o texto traduzido como se fosse o texto original acaba por levá-lo a fazer uma tradução hipertextual (Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 49).

Segundo Berman, a tradução etnocêntrica e a tradução hipertextual são duas formas dominantes na tradução literária, e essas duas formas estão baseadas na tradução platônica. Em suma, o que Berman propõe é a negação desses traços numa tradução literária. “Colocar em discussão esses dois modos de tradução”, afirma Berman, “não significa afirmar que a tradução não comporta nenhum elemento etnocêntrico ou hipertextual” (Berman, 2007Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007., p. 37), mas significa conscientizar os tradutores dos prejuízos sofridos no texto alvo por causa desses traços. Conforme Berman, as tendências reducionistas são inerentes a todas as culturas, ou seja, a cultura de chegada costuma “censurar e filtrar o Estrangeiro para assimilá-lo” (Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 41). Desse modo, o Estrangeiro não vai ser recebido da forma como ele é, e consequentemente, não vai ser traduzido à “letra”.

As tendências deformadoras na tradução de prosa literária

Segundo Berman, a essência etnocêntrica, hipertextual e platônica – os traços que costumam predominar nas traduções de prosa literária, acabam por desvendar três fundamentos: ético, poético e pensante, nos quais se baseiam uma boa tradução literária que definem o que chamamos a “letra”. Partindo dessa perspectiva, traduzir a “letra” é alcançar um outro patamar de destaque, uma outra dimensão, e para alcançar esta dimensão, “é necessário operar uma destruição da tradição etnocêntrica, hipertextual e platônica da tradução” (Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 34). É através de uma destruição sistemática das teorias dominantes e de uma análise (no sentido cartesiano freudiano ao mesmo tempo) das tendências deformadoras que operam em toda tradução que poderemos abrir um caminho em direção ao espaço positivo do traduzir e simplesmente do seu próprio (Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 61).

No livro A tradução e a letra ou o albergue do longínquo, Berman examina treze deformações frequentes na tradução de prosa literária, tal como a racionalização, a clarificação, o alongamento, o enobrecimento e a vulgarização, o empobrecimento qualitativo, o empobrecimento quantitativo, a homogeneização, a destruição dos ritmos, entre as outras5 5 Cabe ressaltar que essas tendências deformadoras detectadas por Berman dizem respeito à área da tradução literária, ou, mais especificamente, à tradução da prosa literária. . Um dos aspectos da “letra” constantemente descuidado nas traduções entre o português e o chinês é a sonoridade do texto original. No entanto, na prática de traduzir, algumas destruições, que podem parecer descuidos, são necessárias, ou até mesmo obrigatórias, como vamos exemplificar mais adiante.

Tomemos a clarificação como um dos exemplos das treze tendências de deformação. Segundo Berman (2012)Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., a clarificação é um corolário da racionalização, mas concerne particularmente ao nível de “clareza” das palavras ou de seus sentidos, ou seja, serve para pôr um sentido definido naquilo que é propositalmente indefinido numa prosa ficcional. Na medida em que o ato de tradução é explicitante, a clarificação é inevitável e inerente. Algumas explicitações resultam em “sobretradução”, ao tornarem claro e aberto algo oculto no texto original. Reparemos que, na literatura, grande parte de sua riqueza reside nos múltiplos sentidos, em seu carácter polissêmico, que pode permitir várias interpretações simultâneas e engendrar vários percursos possíveis para o desenrolar da história. Na maioria das vezes, o autor manobra intencionalmente esse “jogo de palavras” com intuito de insinuar algo oculto nas entrelinhas. Por isso, para não deturpar o texto original, uma leitura profunda e reflexiva é sempre recomendada a fim de melhor sondar as relações internas e intrínsecas entre as “letras” e os possíveis sentidos. No caso específico da tradução do português para o chinês, a clarificação apresenta-se como uma estratégia imprescindível, considerando a diferença linguística e gramatical entre os dois idiomas. Por exemplo, em português, a conjugação verbal faz com que o verbo mude de acordo com o ator da ação. Esse processo gramatical permite que o pronome da frase seja oculto. Por isso, é frequente em português a omissão do pronome tanto na fala quanto na escrita. Em contrapartida, em chinês, já não há conjugação de verbos; os verbos mantêm-se invariáveis em todos os tempos e para todas as pessoas do discurso. Essa característica da língua chinesa obriga seus falantes a indicarem claramente o pronome, e consequentemente torna a clarificação inevitável na tradução.

Embora sejam as deformações exercidas na tradução que “desviam a tradução de seu verdadeiro objetivo” (Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 63), a inevitabilidade de encontrar essas forças destruidoras acompanha todo o processo do traduzir. Na visão de Berman (2012, p. 87)Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., o propósito de levantar a questão do sistema de treze tendências deformadoras não é para apenas “criticar”, mas encontrar “uma outra essência do traduzir”. Pois, nas palavras de Berman (2012, p. 87)Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., “se, de certa forma, a letra deve ser destruída, de outra – mais essencial – ela deve ser salva e mantida”.

Traduzir a “letra” de Azul-Corvo

Partindo de uma pesquisa empírica do texto fonte, chegamos à conclusão de que o principal desafio na prática de traduzir reside em recriar satisfatoriamente em chinês a coloquialidade rítmica da Adriana Lisboa. Portanto, nos exemplos da tradução de Azul-Corvo que serão apresentados a seguir, privilegiaremos questões relacionadas à transposição do ritmo (e da musicalidade, em última instância), da escrita de Lisboa para a língua chinesa. Vale notar que estas foram questões enfrentadas ininterruptamente ao longo de todo o processo de tradução do romance para o chinês. No entanto, o exemplo que apresentaremos consiste em um mais “radical”, digamos, de nossa tradução, onde a tradutora ousou testar uma estratégia arriscada, com a finalidade de se aproximar da “letra” do texto fonte. Outros aspectos da tradução serão também discutidos, mas de forma secundária.

Vejamos no Quadro 1 abaixo o primeiro exemplo a ser comentado. No quadro, as iniciais “TA” e “BT” significam “texto alvo” e “back translation” respetivamente. A sonoridade do texto alvo em chinês, ou, em outras palavras, a pronúncia dos caracteres chineses será apresentada em PINYIN, sistema de transcrição fonética por via do alfabeto latino. PINYIN é composto por três partes, a saber, tom, consoante (inicial) e vogal (final)6 6 O chinês tem quatro tons principais e um mais leve que normalmente recai nas palavras de interjeição e de partícula modal. Os tons principais são grafados respetivamente como “ ˉ ” (uniforme), “ ˊ ” (ascendente), “ ˇ ” (ascendente descendente), “ ˋ ” (descendente), e o tom leve não tem um sinal tonal particular. . O sistema de PINYIN permite aos estrangeiros pronunciarem o chinês corretamente e, por sua vez, é a maneira mais eficaz para dar uma noção da sonoridade do texto alvo.

Quadro 1
Exemplo de tradução

O ritmo no texto fonte:

Já que analisaremos e discutiremos o ritmo da prosa de Azul-Corvo, destacamos aqui ao menos uma breve explicação do que entendemos por ritmo. Vejamos a seguinte definição de Evanildo Bechara, no capítulo sobre a prosódia7 7 Prosódia, conforme define Bechara (2009, p. 90), “é a parte da fonética que trata da correta acentuação e entonação dos fonemas”. do idioma português, em que trata por exemplo do acento de intensidade na frase:

A distribuição dos grupos de força e a alternância de sílabas proferidas mais rápidas ou mais demoradas, mais fracas ou mais fortes, conforme o que temos em mente expressar, determinam certa cadência do contexto à qual chamamos ritmo. Prosa e verso possuem ritmo. No verso, o ritmo é essencial e específico; na prosa, apresenta-se livre, variando pela iniciativa de quem fala ou escreve

(Bechara, 2009Bechara, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. rev., ampl. e atual. conforme o novo Acordo Ortográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009., p. 96).

Bechara define (2009, p. 96)Bechara, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. rev., ampl. e atual. conforme o novo Acordo Ortográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. “grupos de força” como “a sucessão de dois ou mais vocábulos que constituem um conjunto fonético subordinado a um acento tônico predominante”. Por exemplo, nota-se na primeira parte da frase de Azul-Corvo citada acima, “Meu pai/podia estar:”, dois grupos de força, indicados com o uso da barra ( / ). No primeiro grupo, no sintagma nominal “meu pai”, o pronome possessivo “meu” é subordinado ao acento predominante do substantivo “pai”, e, no segundo grupo de força, “podia estar”, há um acento secundário na sílaba final de “estar”. Vê-se que no texto fonte, a escritora, ao enumerar os possíveis paradeiros e estados do seu pai, logo após o uso de dois pontos quebra a construção normal da frase, onde se podia esperar uma continuidade fluida e sem interrupções entre o sujeito (meu pai) e o predicativo do sujeito (o restante da frase logo após os dois pontos).

Os grupos de força na segunda parte da frase, logo após os dois pontos, ocorrem na justaposição de verbos em forma de particípio e de gerúndio. O procedimento da justaposição é possibilitado muitas vezes pelo uso de dois pontos, como é o caso na passagem acima, em que os dois pontos vêm logo depois de “Meu pai podia estar : ”. O uso dos dois pontos nessa passagem gera uma quebra na melodia normal da frase, por introduzir uma pausa logo no início da frase. E essa pausa, logo antes dos dois pontos, obriga a uma leitura de melodia descendente (que recai na última sílaba da palavra “estar”), similar àquela que fazemos ao chegarmos ao ponto final de uma frase qualquer. Sobre esse encadeamento sonoro, que gera ritmo nas frases, vejamos a explicação de Bechara (2009)Bechara, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. rev., ampl. e atual. conforme o novo Acordo Ortográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.:

As orações podem encadear-se, como ocorre com os termos sintáticos dentro da oração, sem que venham entrelaçadas por unidades especiais; basta-lhes apenas a sequência, em geral proferidas com contorno melódico descendente e com pausa demarcadora, assinalada quase sempre na escrita por vírgulas, ponto e vírgula e ainda por dois pontos

(Bechara, 2009Bechara, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. rev., ampl. e atual. conforme o novo Acordo Ortográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009., p. 580-581).

Sob o ponto de vista sintático, as justaposições criam um discurso paratático, composto por ideias avulsas e independentes entre si, embora mantenham uma relação de sentido entre elas. Ao apresentar essas condições incomuns “em quadros rápidos”, a autora optou por colocar diretamente as palavras-chave (preso, morto, viajando, exilado, internado, vivendo...) depois de dois pontos, aí criando vários grupos de força nessa segunda parte da frase. As sílabas proferidas no trecho formam uma espécie de ritmo secundário, ou uma espécie de segundo ritmo. Todas as palavras justapostas são paroxítonas cujos acentos tónicos uma vez postos consecutivamente geram um ritmo sequenciado (Figura 1).

Figura 1
Ritmo sequenciado

Há ainda um outro ritmo marcante na frase do nosso exemplo, criado com a sequência de adjuntos adverbiais de lugar (ou complementos circunstanciais de lugar), vejamos: “[...] internado num hospital ou num hospício, vivendo nas ruas, numa ilha caribenha, numa base militar na Bulgária, numa base científica na Antártida, num mosteiro budista nas Filipinas, vendendo quadros e fumando cachimbo numa ponte em Paris”, e reforçados sobretudo com o uso das palavras “num/numa” (em + um / em + uma), contração entre a preposição nasal “em” aliada ao artigo indefinido masculino e feminino.

A repetição do som nasal de “num/numa” contribui para marcar pausas consecutivas entre as locuções adverbiais, cujo contínuo aparecimento gera um ímpeto de continuidade na leitura. Dessa maneira, obtém-se um outro ritmo sequenciado. Assim, a autora transmitiu as respetivas imagens de forma bruta e direta e sobretudo criou uma sonoridade peculiar por meio de emprego de dois ritmos, a saber, “preso, morto, viajando, exilado, internado, vivendo...” (ritmo 1) mais “num...numa...numa...numa...num...numa” (ritmo 2).

Então a seguir, como recriar o ritmo em chinês?

Para melhor desenvolver a nossa análise, convém inicialmente, falar brevemente sobre a diferença constatada entre o português e o chinês em termos do regime linguístico. O chinês é uma língua pertencente ao ramo sino-tibetano, e é basicamente monossilábica. Diferentemente das línguas ocidentais, o chinês é uma língua tonal que traz em si já uma sonoridade definida. Há variações de tom de um mesmo ideograma para designar diferentes sentidos. A gramática do chinês é relativamente mais fácil se comparada com a do português, por não haver no chinês trocas de gênero nem de número. Os verbos chineses também não se flexionam, isso quer dizer que os verbos mantêm-se imutáveis, não são conjugados, seja qual for o sujeito e o tempo da ação. A falta de conjugação verbal em chinês é compensada com o uso de partículas modais, para assinalarem o tempo da ação.

A respeito do ritmo 1 (preso, morto, exilado, vivendo...), começamos por tentar manter tanto a forma frasal quanto o ritmo concebido nas letras. Essa abordagem nos levou a olhar o texto fonte no nível da palavra e a traduzir os verbos flexionados – preso, morto, viajando, exilado, internado, vivendo... – literalmente para o chinês. Desse modo, a construção da frase original pôde ser mantida, ou seja, a frase traduzida manteve a mesma “quebra” como no texto fonte (...estar: / preso...), no entanto a tradução ficou longe de possuir ritmo, e também pareceu soar de modo estranho e vulgar por causa do modo do verbo utilizado. Em chinês, como os verbos não são conjugados, neste caso, os verbos na forma de particípio vão ser tratados como verbo na voz passiva. o “preso” seria 被捕—ser preso, “exilado” seria 被驱逐—ser exilado. Aqui o caractere “被” indica a voz passiva. Em chinês, a estrutura da voz passiva consiste em um caractere inicial – “被” – partícula modal, seguido do verbo da ação central. Por exemplo, o verbo central “捕” (prender) é posto depois de “被”, assim formando “被捕” (ser preso). E o modo gerúndio “viajando” seria traduzido como 在旅行— estar viajando. Aqui o carácter “在” indica o aspecto de continuidade da ação indicada pelo verbo. No entanto, o “morto” já não pode ser traduzido na voz passiva como “ser morto”. Se for traduzido como “morreu”, é evidente não corresponder às formas utilizadas de outros verbos. Além disso, o número de caracteres contidos em cada predicado verbal varia entre dois e três, e os sons tampouco mostram qualquer proximidade. Portanto, não é possível recriar o ritmo manifesto no texto fonte dessa maneira. Por isso ousamos uma outra estratégia para essa passagem, que exigiu, em princípio, alterar a forma do texto fonte, ou seja, deformá-lo para “meu pai podia estar preso, (estar) morto, ou (estar) exilado, (estar) viajando...” e tratar os verbos em particípio e em gerúndio como um complemento predicativo do sujeito “meu pai”. Dessa maneira, os quatro verbos flexionados denotam circunstâncias ou estados possíveis relacionados ao pai de Vanja (a protagonista).

Para a recriação do ritmo nessa passagem, recorremos ao uso de palavras fixas chinesas, que contém majoritariamente quatro caracteres. O propósito de justapor essas expressões é o de compensar o ritmo perdido no plano da semelhança silábica, através das pausas a que obrigam essas expressões, as pausas entre uma e outra expressão de quatro caracteres. Essas palavras são escolhidas ou “cunhadas” deliberadamente pelo seu sentido e comprimento vocabular da palavra composta. Algumas dessas palavras são conhecidas como 成语 (chéngyǔ) – “combinações lexicais fixas majoritariamente de quatro caracteres” (Liu, 2012Liu, Mengru. Provérbios e Expressões Idiomáticas em Português e Chinês. 2012. 125 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Interculturais Português/Chinês) – Instituto de Letras e Ciências Humanas, Universidade do Minho, Braga, Portugal, 2012., p. 31). Quanto ao envolvimento de chéngyǔ (significado interlinear de “chéng”- fixo, “yǔ” - língua) na tradução do trecho em questão, há, todavia, preocupações com a antiguidade evocada por essas palavras, visto que estas possuem um maior grau de literariedade, o que possivelmente contradiz com a coloquialidade do vocabulário no texto fonte. Por isso, é pertinente em primeiro lugar conhecer melhor o uso convencional de 成语 (chéngyǔ). Em A Corpus-based Study of Using Frequencies of English and Chinese Idioms (2009), dissertação defendida por Zhang Xin, o autor faz uma análise contrastiva sobre a definição de chéngyǔ e sobre o seu uso cotidiano na China baseando nos dicionários de grande credibilidade. Segundo Zhang (2009)Zhang, Xin. 《基于语料库的汉英成语使用频率研究》[A Corpus-based Study of Using Frequencies of English and Chinese Idioms]. 2009. 65 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Inglesa) – 中国海洋大学 [Ocean University of China], Qingdao, Shandong, China, 2009., chéngyǔ consiste em frases fixas, normalmente em forma sucinta e com significado conciso. Chéngyǔ registra o seu uso constante na história chinesa, e hoje em dia ainda é bastante comum na sociedade chinesa, frequentemente utilizado pelo povo chinês (Zhang, 2009Zhang, Xin. 《基于语料库的汉英成语使用频率研究》[A Corpus-based Study of Using Frequencies of English and Chinese Idioms]. 2009. 65 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Inglesa) – 中国海洋大学 [Ocean University of China], Qingdao, Shandong, China, 2009., p. 7). Conforme a conclusão de Zhang, mais de 80% dos chéngyǔs são utilizados com uma frequência alta ou intermediária. Em contrapartida, somente 30% das expressões idiomáticas no inglês registram a mesma frequência8 8 Notem que o número exato de chéngyǔs existentes em chinês é todavia controverso. A Enciclopédia de Baidu informa no verbete “chéngyǔ”, que até agora há mais de cinco mil chéngyǔs conhecidos no idioma chinês. . A pesquisa de Zhang nos revela não somente o resultado de que chéngyǔ é utilizado muito mais frequentemente em chinês do que seus correspondentes em inglês,9 9 Rigorosamente falando, o chéngyǔ, em chinês, não corresponde exatamente às expressões idiomáticas nos idiomas ocidentais. É importante notar que chéngyǔ é um fenómeno linguístico típico do chinês. A sua comparação com as expressões idiomáticas nas línguas ocidentais estabelecem-se em sentido genérico, lato sensu, com relação à função semântica. Essa observação é também apontada logo no início na dissertação de Zhang. mas também nos proporciona uma explicação concernente. Segundo Zhang, do ponto de vista cultural a diferença constatada na frequência do uso de chéngyǔ em chinês e em expressões idiomáticas em inglês reflete diferenças no modo de cunhar palavras entre duas culturas. Desde a antiguidade, o povo chinês tem o hábito de usar palavras de quatro caracteres. A estrutura simétrica e paralela dessas palavras está em perfeito acordo com a preferência chinesa em termos de cunhar palavras (Zhang, 2009Zhang, Xin. 《基于语料库的汉英成语使用频率研究》[A Corpus-based Study of Using Frequencies of English and Chinese Idioms]. 2009. 65 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Inglesa) – 中国海洋大学 [Ocean University of China], Qingdao, Shandong, China, 2009., p. 40). Além disso, os ideogramas chineses, em contraste com as letras em inglês, são relativamente independentes em termos semânticos (Zhang, 2009Zhang, Xin. 《基于语料库的汉英成语使用频率研究》[A Corpus-based Study of Using Frequencies of English and Chinese Idioms]. 2009. 65 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Inglesa) – 中国海洋大学 [Ocean University of China], Qingdao, Shandong, China, 2009., p. 32). Isso leva à “quebra” de chéngyǔ na medida em que se pode usar separadamente para ser reformulada com outros ideogramas. No final, afirma Zhang (2009, p. 40)Zhang, Xin. 《基于语料库的汉英成语使用频率研究》[A Corpus-based Study of Using Frequencies of English and Chinese Idioms]. 2009. 65 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Inglesa) – 中国海洋大学 [Ocean University of China], Qingdao, Shandong, China, 2009. a respeito do uso de chéngyǔ no tempo atual, “mesmo nos dias de hoje, a estrutura de quatro caracteres ainda prevalece em diversas ocasiões na sociedade chinesa moderna, seja no uso oral, seja na escrita”.

Partindo da ideia de recriar o ritmo através de palavras de estrutura fixa – de quatro caracteres, encontramos três chéngyǔs que significam respectivamente “preso”, “morto”, e “exilado”.

Figura 2
Chéngyǔ 锒铛入狱

Tomemos o chéngyǔ 锒铛入狱 como exemplo para análise semântica. Como mostrado na Figura 2, 锒铛入狱 significa literalmente “ser jogado à prisão com correntes de ferro”. Hoje em dia, se utiliza para denotar alguém preso ou encarcerado.

Do mesmo jeito, apresentaremos a tradução literal de与世长辞 e 背井离乡:

与世长辞 yǔ shì cháng cí (morto) – despedir-se para sempre do mundo humano. 与, com 世, mundo, mundo do ser humano.长, longo. 辞, despedir-se.

背井离乡 bèi jǐng lí xiāng (exilado) – deixar sua terra natal, sair da sua casa. 背, costas, virar suas costas contra. 井, poço. 离, sair. 乡, terra natal campo.

Reparamos que ainda falta uma palavra de quatro caracteres do gerúndio “viajando” para formar uma sequência de chéngyǔ. Para isso, juntamos a palavras “周游 zhōu yóu” e “世界 shì jiè”, que significam respectivamente “percorrer” e “mundo”, a fim de manter em uniformidade a expansão de todas as palavras, tanto chéngyǔ quanto as palavras juntadas por nós.

Para ilustrar o processo da recriação do ritmo, será preciso uma breve análise da estrutura frásica das orações traduzidas. Dada a enorme diferença entre o português e o chinês, mostraremos a ordem dos elementos frásicos do ponto de vista sintático. A abreviatura que será encontrada nesta parte é ADVL (adverbial), que, conforme a definição de Yu Xiang em sua relevante tese para os estudos contrastivos entre o português e o chinês, Contributo para análise dos adverbiais em português e em chinês (2006), é um elemento sintático a nível da função da frase, “especialmente um modificador adverbial e circunstancial, que modifica o verbo, o adjetivo ou outros advérbios” (Yu, 2006Yu, Xiang. Contributo para análise dos adverbiais em português e em chinês. 2006. 471 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Departamento de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro, Aveiro, Portugal, 2006., p. 68).

Vejamos agora como foi feita a recriação do ritmo 1 (nos diagramas e na tabela a seguir: “Trad” significa “tradução”; Ordem = ordem sintática da oração; TL = tradução linear; “Pred” = predicativo).

Trad: 我的父亲 → 说不定 → 已经

Ordem: S → ADVL de dúvida → ADVL de tempo

TL: o meu pai → provavelmente → já

Trad: 锒铛入狱→与世长辞→或者→背井离乡→周游→世界

Ordem: Pred1→ Pred 2→ conj. →Pred3 →V→ Objeto direto locativo

TL: preso → morto→ ou→ exilado → viajando→ pelo mundo

Pausas criadas no texto alvo:

我的父亲说不定已经锒铛入狱//与世长辞//或者背井离乡//周游世界;

Para recriar o ritmo 2 (“num...numa...numa...numa...num...numa”), observa-se na tradução chinesa, há principalmente duas séries de repetições que contribuem para a compensação do ritmo marcado pelas palavras “num/numa”: “说不定” provavelmente (ADVL de dúvida) e “正(在)” estar fazendo (ADVL de tempo):

说不定正在→正在→正→说不定→说不定→说不定→说不定正在

Dessa maneira, o ritmo original é recriado com a substituição do segundo ritmo.

Deformações provocadas na recriação das particularidades estilísticas do texto fonte

Na recriação de particularidades estilísticas de português para chinês, vemos que em alguns casos é obrigatória a destruição da letra em favor do sentido. Por exemplo, para formar as expressões de quatro caracteres, é preciso acrescentar um punhado de informações, o que resulta em “clarificação”, em “racionalização” ou em “enobrecimento” (três deformações descritas na analítica da deformação de Berman) com relação ao texto fonte. O verbo em gerúndio “viajando”, apresentado no exemplo anterior, não necessariamente significa “viajar pelo mundo”, mas pretende simplesmente mostrar uma possível circunstância relacionada ao pai de Vanja. No entanto, para manter as pausas marcadas entre as expressões, traduzimos para o chinês como “viajar por todo o mundo”, o que seria uma “clarificação” e um “alongamento” do original. Ao traduzir “Meu pai podia estar: preso, morto, viajando, [...] vendendo quadros e fumando cachimbo numa ponte em Paris”, o uso de expressões fixas de quatro caracteres conseguem certamente recriar o efeito sonoro do original. Mas por outro lado, as palavras compostas de quatro caracteres em sequência, mesmo que sejam frequentemente utilizadas na fala oral chinesa, contêm um maior grau de literariedade do que as simples e triviais palavras no texto original. Dessa maneira, a deformação “enobrece” o texto fonte. “Enobrecimento”, como se viu, é uma das treze deformações de tradução apresentadas por Berman, que, nesse caso específico, ousamos arriscar para testar seus efeitos sonoros mais próximos do texto original.

Digamos, dessa maneira, que a “letra” e as destruições sejam coexistentes na prática de traduzir. Como entende Berman (2012, p. 86)Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., “é provável que a destruição seja uma das nossas relações com uma obra (na escrita). É provável que a obra chame também esta destruição”.

Considerações finais: a impossível invisibilidade do tradutor

Com os exemplos apresentados anteriormente, chegamos a ter uma ideia geral do processo da recriação dos traços acústicos de Azul Corvo numa tradução não-etnocêntrica que preza a “letra”. Com a ótica tradutória proposta por Berman, conseguimos preservar em grande parte a coloquialidade, o ritmo – recursos bem marcados no original, assim garantindo a recriação de características principais do texto fonte. Vale registrar que a ideia orientadora pautada na “letra” de Berman também transparece em outros aspectos, como respeitar os vocábulos não portugueses, como nesse caso, o espanhol, inglês e o “portunhol”, para recriar o ambiente multicultural em que ocorre a estória. A nosso ver, trazer à luz vários idiomas ocidentais ao texto traduzido, apesar do risco de dificultar a fluência na leitura, consiste em uma maneira eficiente em função de apresentar o pano de fundo em que a obra se desenrola. Para isso, a explicação dessas expressões e palavras não portuguesas foi colocada logo a seguir entre parêntesis, a fim de proporcionar o entendimento delas pelo leitor chinês o mais rapidamente possível. Aliás, a nota de rodapé também é utilizada para dar explicação sobre como o termo “portunhol” foi cunhado. Outro aspecto a destacar: a maioria dos topônimos e dos nomes próprios dos personagens quando traduzidos para o chinês, soam de modo incomum. Porém, julgamos importante traduzir os nomes conforme a pronúncia, ou seja, transcrevê-los, a fim de manter um certo estrangeirismo em chinês. Quanto aos lugares pouco conhecidos que são mencionados frequentemente na história dos guerrilheiros do Araguaia, recorremos a notas de rodapé e a uma breve explicação no prefácio para não somente salvaguardar a pronúncia dessas palavras, mas também para trazer uma ideia do exotismo brasileiro, a fim de introduzir uma sensação de estranhamento ao leitor chinês.

Mesmo operando sob a ótica bermaniana, confessamos que, sendo tradutora de Azul Corvo, em vários momentos, recorremos à domesticação para que o texto traduzido não ficasse confuso. Isso não passa de uma escolha do tradutor. Dessa maneira, percebemos que na atividade da tradução literária, é quase impossível o tradutor se libertar das “tendências deformadoras” no sentido apresentado por Berman. Ao propormos, por exemplo o uso de chéngyû para a recriação do ritmo da prosa de Lisboa em chinês, podemos ter obtido excelente resultado em termos rítmicos e sonoros, mas, por outro lado, gerou-se um certo “enobrecimento” com relação ao texto original, o que acaba por descaracterizar o prosaísmo e a coloquialidade na mesma passagem em português.

A escolha do tradutor é um elemento crucial no processo de tradução. Schleiermacher sugere duas possíveis estratégias para o tradutor, “Ou bem o tradutor deixa o escritor o mais tranquilo possível e faz com que o leitor vá a seu encontro, ou bem deixa o leitor o mais tranquilo possível e faz com o que o escritor vá a seu encontro” (Schleiermacher, 2010, p. 57). Para dar ao leitor a sensação de ser estrangeiro, um tradutor estrangeirizador deve buscar reter os traços originais do texto fonte o mais literalmente possível; no sentido inverso, ao nos aproximarmos do leitor, teremos uma tradução domesticante (domesticadora, assimiladora). Em concordância com o modelo proposto por Schleiermacher, Berman reconhece a estranheza interlinguística e defende o estabelecimento de uma relação dialógica (cujo significado encontra-se instável e “escorregadio”) entre a língua de partida e a de chegada, afirmando “a essência da tradução é ser abertura, diálogo, mestiçagem, descentralização. Ela é relação, ou não é nada” (Berman, 2002Berman, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica. Traduzido por Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002., p. 17).

O padrão de uma boa tradução também tem influência na escolha do tradutor. O testemunho do tradutor contemporâneo Norman Shapiro articula com contundência a perspectiva enraizada na indústria editorial: “uma boa tradução deve ser transparente como vidro, você só depara com ela quando tem imperfeições no vidro” (Shapiro apud Venuti, 1995Venuti, Lawrence. The Invisibility of the Translator. A History of Translation. Londres: Routledge, 1995., p. 1). Em contrapartida, essa noção é interpretada por Venuti como “os efeitos ilusórios” que destinam a facilitar a leitura. Venuti (1995)Venuti, Lawrence. The Invisibility of the Translator. A History of Translation. Londres: Routledge, 1995. argumenta que quanto mais fluente a tradução, mais invisível o seu tradutor. Entendemos que a fluência está, em certa medida, alinhada com o conceito da tradução platônica, apontada e refutada por Berman, conforme apresentamos anteriormente, em que aquilo que é privilegiado é o sentido, e não os modos de construção do(s) sentido(s). Paralelo à problemática do padrão de uma boa tradução, foi levantada ao mesmo tempo a questão de como posicionar a tradução em relação ao texto fonte. Uma vez que ela é preferencialmente de transparência, como afirma Shapiro, se determinará do mesmo modo o inevitável destino do tradutor em relação ao autor: também preferencialmente de invisibilidade.

Isso implica o fato de que o tradutor é frequentemente visto como um coautor invisível na produção da tradução, o que leva à noção de que a tradução é uma forma secundária e subsidiária de produto literário, atribuída a uma posição marginalizada em relação à primazia do original. Além disso, esse status atribuído aos tradutores refere-se ao fenômeno de obliterar a visibilidade da tradução como um produto cultural ativo e participativo no estabelecimento de uma historiografia cultural. Em seu livro A Invisibilidade do Tradutor (1995), Venuti apela para a visibilidade do tradutor, do seu embate com o estranhamento e a natureza alienígena do texto original. Para Venuti, o texto traduzido deve preservar o sabor estrangeiro, e não ser transparente, mas sim opaco, o que em alguma medida dificulta a leitura.

A domesticação, grosso modo, valoriza mais a cultura alvo enquanto a estrangeirização valoriza mais o texto (e a cultura) fonte. Os tradutores chineses costumam optar por domesticação, justificando que assim os leitores chineses podem se identificar mais com a obra traduzida. Quanto à estrangeirização, ela abre portas para culturas diferentes e chega aos leitores de maneira mais verdadeira. No caso de Azul Corvo, face às situações opcionais em relação a domesticar ou estrangeirizar, optamos por manter o máximo possível o sabor estrangeiro, tomando como ponto de partida as noções da “letra” no sentido de Berman. Essa abordagem do tradutor, que busca se aproximar da “letra” do texto fonte, torna seu papel mais visível. Tal como o grande tradutor Ji XianlinJi, Xianlin. 季羡林.《中国翻译词典》序. 中国翻译, 6, p. 4-5, 1995. (季羡林) observa, “a perenidade da cultura chinesa deve-se a um elixir, que é a tradução”10 10 “中华文化之所以能常葆青春,万应灵药就是翻译。” My translation. . Embora a visibilidade possa resultar por vezes em sonoridades estranhas para os leitores, ela serve para que o texto original conserve o máximo possível de seus “nutrientes”, sendo a verdadeira medula da obra, valiosa para uma cultura diferente.

Por fim, vale ressaltar que na prática, a tradução literária não se reduz à aplicação de estratégias tradutórias, mas aborda campos muito mais extensos. Buscar traduzir da “letra”, estratégia que não privilegia unicamente o sentido, mas que considera tudo o mais que compõe a “letra”, certamente abre uma nova dimensão do traduzir, como revelam as palavras de Tsvetaieva, tradutora de Rilke:

Hoje desejo que Rilke fale através de mim. Na linguagem corrente, isto se chama traduzir. [...] Mas a tradução significa também outra coisa. Não se passa somente de uma língua a outra língua (o russo, por exemplo), passa-se também de um lado ao outro do rio. Faço passar Rilke em língua russa, assim como ele me fará passar um dia a outro universo

(Berman, 2012Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Traduzido por Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiarte, 2012., p. 29).

Assim como atravessar um rio, a tradução sempre envolve navegar por correntes turbulentas, escolher o caminho certo e chegar ao outro lado com segurança. É uma jornada que requer habilidade, conhecimento e sensibilidade para perceber e recriar a “letra”.

  • 1
    Por exemplo, o autor Pascal Mercier comentou sobre o som da língua portuguesa numa entrevista: “É suave, terno, sedativo [...]. Consigo ouvir a melodia do português durante todo o dia”. Entrevista com Pascal Mercier. Disponível em: https://puroacaso.wordpress.com/tag/pascal-mercier/. Acesso em: 1 dez. 2023.
  • 2
    A estória de Azul-Corvo se desenvolve num contexto globalizado, entre diversos países, inclusive a China, torna o enredo e seus personagens mais próximos do leitor não-brasileiro, e isso contribui para diminuir a enorme distância linguística e cultural entre a China e o Brasil. Os temas abordados no livro são os que concernem não só aos brasileiros, mas a todas as pessoas que vivem nesta contemporaneidade. Por exemplo, a escolha dos personagens de Azul-Corvo, que vivem em lugares e culturas diferentes de suas culturas originais, acabam por tematizar a questão da crise de identidade e sobretudo a questão dos laços familiares, em uma sociedade global que facilita o trânsito das pessoas entre diversos países e promove ondas migratórias, por motivos os mais variados: questões políticas, econômicas, raciais etc.
  • 3
    Refiro-me aos conceitos de equivalência formal e de equivalência dinâmica ou funcional de Eugene Nida (1914-2011), ainda largamente utilizados nos Estudos da Tradução na China.
  • 4
    Formular um provérbio de outro modo (já existente na língua de chegada) em outra língua, como por exemplo, quando se traduz “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura” para “磨杵成针” mó chǔ chéng zhēn (moer a barra de ferro tanto quanto ela se torna agulha) seria encontrar uma “equivalência dinâmica”, conforme conceito defendido por Nida, mas não por Berman.
  • 5
    Cabe ressaltar que essas tendências deformadoras detectadas por Berman dizem respeito à área da tradução literária, ou, mais especificamente, à tradução da prosa literária.
  • 6
    O chinês tem quatro tons principais e um mais leve que normalmente recai nas palavras de interjeição e de partícula modal. Os tons principais são grafados respetivamente como “ ˉ ” (uniforme), “ ˊ ” (ascendente), “ ˇ ” (ascendente descendente), “ ˋ ” (descendente), e o tom leve não tem um sinal tonal particular.
  • 7
    Prosódia, conforme define Bechara (2009, p. 90)Bechara, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. rev., ampl. e atual. conforme o novo Acordo Ortográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009., “é a parte da fonética que trata da correta acentuação e entonação dos fonemas”.
  • 8
    Notem que o número exato de chéngyǔs existentes em chinês é todavia controverso. A Enciclopédia de Baidu informa no verbete “chéngyǔ”, que até agora há mais de cinco mil chéngyǔs conhecidos no idioma chinês.
  • 9
    Rigorosamente falando, o chéngyǔ, em chinês, não corresponde exatamente às expressões idiomáticas nos idiomas ocidentais. É importante notar que chéngyǔ é um fenómeno linguístico típico do chinês. A sua comparação com as expressões idiomáticas nas línguas ocidentais estabelecem-se em sentido genérico, lato sensu, com relação à função semântica. Essa observação é também apontada logo no início na dissertação de Zhang.
  • 10
    “中华文化之所以能常葆青春,万应灵药就是翻译。” My translation.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Nov 2023
  • Aceito
    24 Nov 2023
  • Publicado
    Dez 2023
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