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UM TEXTO, MUITAS VOZES: “AUTORIA DIFUSA” E A TRADUÇÃO DE LITERATURA CLÁSSICA CHINESA PARA O PORTUGUÊS

ONE TEXT, MANY VOICES: “DIFFUSE AUTHORSHIP” AND THE TRANSLATION OF CHINESE CLASSICAL LITERATURE INTO PORTUGUESE

Resumo

Ao apresentar uma visão geral do que significa traduzir literatura clássica chinesa para o português, o presente texto argumenta que as obras literárias na China são criadas coletivamente, produzindo um conceito mais opaco e fluido de “texto de partida”. Para além do “texto primário”, a obra original, a tradução de tais textos envolve absorver as diferentes contribuições de “autores secundários”, como editores, críticos e hermeneutas: o(s) “texto(s) secundário(s)”. Isso cria um dilema, em que o tradutor tem de fazer escolhas entre preservar a fidelidade estrita ao “texto primário” ou violá-la para realçar a inteligibilidade e/ou valor literário da obra para o público da tradução. O argumento está organizado em três partes. Explica-se, primeiro, como as peculiaridades da tradição literária clássica chinesa produzem o conceito de “autoria difusa”. A seguir, sob uma situação de incerteza sobre o que a obra queira dizer, debate-se como o tradutor deve fixar o texto de partida. Por fim, analisam-se os problemas estético-estilísticos que influenciam o gozo da obra pelo público leitor, sugerindo-se, na conclusão, quatro modelos de tradução, que variam de maior literalidade a maior literariedade.

Palavras-chave
tradução chinês-português; literatura chinesa clássica; filologia comparada; chinês clássico (“wenyan”); “autoria difusa”

Abstract

After a general discussion about the implications of translating Chinese classical literature into Portuguese, this article argues that Chinese literary works are created collectively, rendering the concept of “source text” more opaque and fluid. More than translating the “primary text”, i.e. the original work, it is necessary to absorb into it the contribution from “secondary authors”, such as editors, critics and interpreters: the “secondary text(s)”. The translator falls into a dilemma, in which one must choose between maintaining strict fidelity to the “primary text” or else sacrificing it in order to make the work intelligible to the reading public and/or revealing its literary value. The argument is set into four parts: The first section explains how the features of the Chinese classical literary tradition produce the concept of “diffuse authorship”. The second departs from a situation of uncertainty regarding what the text means, debating how the author should set the “source text”. The third section analyses the aesthetic-stylistic obstacles faced by the reading public in order to enjoy such works. The conclusion proposes four models of translation, varying from stricter literality to greater literariness.

Keywords
Chinese-Portuguese translation; Chinese classical literature; comparative philology; classical Chinese (“wenyan”); “diffuse authorship”

Introdução

O presente artigo intenta apresentar uma visão geral do que significa traduzir literatura clássica chinesa para a língua portuguesa. Como ideia central, enfatiza-se que a literatura clássica chinesa difere, em muitos pontos, da sua contrapartida ocidental, de modo que o tradutor deve ter esses pontos em consideração, adaptando o seu trabalho para tentar atingir dois objetivos, em parte contraditórios: ser fiável, por um lado, e cativar o leitor, por outro. A metáfora do título, “um texto, muitas vozes”, destaca que as obras literárias na China são criadas de forma coletiva e têm um conceito mais opaco e fluido de “texto”. Consequentemente, traduzir essas obras envolve absorver as diferentes contribuições autorais, não apenas do que este artigo define como “autores primários” (a autoridade a que é atribuída a obra, bem como o seu círculo de colaboradores), mas também dos “autores secundários” (editores, críticos e hermeneutas). Por conseguinte, o “texto de partida” não se resume ao que chamamos “texto primário”, indicando, ainda, uma nova camada de sentido que se lhe amolda, que denominamos de “texto secundário”. Nesse contexto, o tradutor é confrontado com questões de compatibilidade estético-estilística entre português e chinês, para as quais não há uma resposta fácil, sendo colocada a questão de se, e como, modificar o “texto primário”.

Para esmiuçar esse raciocínio, é preciso falar sobre três grandes problemas, que dão estrutura ao presente texto. Em primeiro lugar, explica-se como as peculiaridades da tradição literária clássica chinesa produzem o que este texto denomina de “autoria difusa”. A seguir, sob uma situação de fluidez e incerteza sobre o que a obra quer dizer, debate-se como o tradutor deve fixar o “texto de partida”. Por fim, analisa-se como a “obra traduzida” deve ser orientada ao público leitor, o que levanta dúvidas sobre as limitações das técnicas de tradução mais predominantes, de caráter literal.

“Autoria difusa” na literatura chinesa antiga

Antes de mais nada, é necessário explicar o que significa a “autoria difusa” das obras da literatura chinesa clássica. Na tradição intelectual ocidental, “autoria” é vista, em geral, como um comportamento de pura criação individual. O mesmo não vale necessariamente para outras tradições literárias, sendo necessário delimitar os pressupostos culturais de que se parte. Em última instância, esses pressupostos sobre o que é um “autor” definem parte do conceito do que é “Literatura” (Berensmeyer & Buelens, 2019Berensmeyer, Ingo & Buelens, Gert. The Cambridge Handbook of Literary Authorship. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.).

Sob o conceito de “World Literature”, formou-se o hábito de pensar que há um substrato comum às diferentes tradições literárias, a despeito das diferenças linguísticas e de convenções que as separam. Desta forma, nada parece impedir um leitor lusófono de apreciar um texto de literatura clássica chinesa em tradução, empregando as mesmas ferramentas de leitura e crítica usadas para ler um best-seller premiado da atualidade (Damrosch, 2018Damrosch, David. How to Read World Literature. New Jersey: Wiley Blackwell, 2018.). Embora isso seja de fato possível, há muito que passa despercebido, para não mencionar os erros e equívocos inevitáveis de interpretação e até de entendimento.

Como contraparte material do conceito de “World Literature”, em particular no presente século, o conceito de “literatura” homogeneizou-se a ponto de relativizar as fronteiras culturais entre as diferentes tradições literárias. Esse fenômeno deve-se, basicamente, à universalização do modelo educacional ocidental, à alfabetização numa escala sem precedentes e à progressiva mercantilização das obras de literatura (Eagleton, 2011Eagleton, Terry. Literary Theory: An Introduction. Beijing: Foreign Language Teaching and Research Press, 2011.). A Literatura tornou-se uma indústria, num nível macrossocial, e um passatempo, num nível microssocial, fenômenos que reduzem a sensibilidade para com o que há de peculiar em cada tradição literária.

Com relação à China, uma “literatura” no sentido ocidental começou a surgir apenas em 1917, com o “Movimento da língua coloquial”. Essa “literatura moderna chinesa” teve como primeira obra-prima “Nahan” 吶喊, uma compilação de textos curtos de Lu Xun 魯迅 (1881-1936) publicada em 1923 (Sun Chang, 2014Sun Chang Kang-i. The Cambridge History of Chinese Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. 2 tomos.). Antes disso, a “alta literatura” chinesa era grosso modo escrita na língua clássica (“wenyan” 文言), um idioma arcaico e artificial, diferente da língua falada (“baihua” 白話)1 1 A dicotomia língua clássica (“wenyan”) e línguas coloquiais (“baihua”) é fundamental para definirmos o que significa “Literatura” na China antiga. O “wenyan” existiu apenas como língua escrita. Nela foi composta a coleção de textos “sagrados” que balizavam a educação da classe governante/elite cultural chinesa. Esses textos serviam de modelo de bom gosto para imitação e de critério de correção vernacular para composição das obras literárias. Neste sentido, a “alta literatura” chinesa, criação da elite cultural, seguia, por definição, os padrões estéticos e estilísticos do “wenyan”. Malgrado ser uma língua escrita, o “wenyan” tradicionalmente definia a pronúncia “padrão” dos ideogramas/palavras chinesas, de modo que a língua coloquial utilizada na burocracia imperial, e, portanto, falada na capital, espelhava-se no “wenyan”. O termo genérico “baihua” define os falares coloquiais. É importante assinalar que, além da língua falada na burocracia/capital (língua “comum”), a China antiga possuía uma grande quantidade de outras línguas coloquiais. Divididos em zonas dialetais, muitos dos “baihua” eram mutuamente incompreensíveis, não apenas devido a diferentes sistemas fonéticos, mas também a diferentes características gramático-lexicais, remetendo às culturas locais existentes na China antiga. Apesar de que obras em “baihua”, muitas delas transmitidas de forma oral, influenciassem criações de “alta literatura”, elas não eram consideradas “literárias” em si, sendo marginalizadas nos “Quatro Depósitos”. A tendência geral era a de que toda obra deveria ser escrita em “wenyan” para postular o estatuto de “alta literatura”, de maneira que obras em “baihua” eram consideradas “literatura popular” ou “baixa literatura”. Nada obstante, em especial a partir da dinastia Song (séc. X-XIII), sob influência de fatores socioeconômicos, o “wenyan” sofreu ligeiras transformações, vindo a se tornar marginalmente mais próximo do falar coloquial. Ao mesmo tempo, também surgiu uma “literatura popular” de estatuto um pouco mais elevado, vinculada a língua coloquial da corte imperial/capital da China. , e era produto de uma classe de eruditos, uma proporção minúscula da população chinesa, classe que, em última instância, dependia, de forma direta ou indireta, de emprego na burocracia imperial para sobreviver. Por mais de dois milênios, essa “alta literatura” permaneceu organizada em quatro grandes categorias bibliográficas, os “Quatro Depósitos” 四庫 (Yao, 2005Yao Mingda. Zhongguo Muluxueshi. Shanghai: Shanghai Shiji Chubanshe, 2005.). Qualquer produção literária ancorava-se a um cânone relativamente pequeno de obras muito antigas. Por conseguinte, há uma poderosa dose de intertextualidade e imitação nos fundamentos da literatura clássica chinesa, derivada desse cânone.

Em contraste, no Ocidente, as obras literárias são em sua maior parte criações individuais (Berensmeyer & Buelens, 2019Berensmeyer, Ingo & Buelens, Gert. The Cambridge Handbook of Literary Authorship. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.). A inclinação de considerar a criação literária num plano individual é tão forte que até os textos homéricos são representados como obras de um único intelecto. É verdade que os autores da Antiguidade às vezes se serviam de amanuenses, podendo ditar as suas obras, terem-nas revistas ou apenas copiadas por terceiros (Dorandi, 2021Dorandi, Tiziano. Nell’officina dei classici. Roma: Carocci, 2021.). É também certo que, antes da invenção da imprensa, a transmissão desses textos criava problemas como interpolações e mesmo falsificação das obras (Chartier, 2015Chartier, Roger. La main de l’auteur et l’esprit de l’imprimeur. Paris: Gallimard, 2015.). Há também o interessante fenômeno dos “ghost-writers”, que não são uma criação exclusivamente moderna. Com exceção de alguns desenvolvimentos (pós-)modernos, exemplificados por Eco (2020)Eco, Umberto. Lector in Fabula. Milão: La nave di Teseo, 2020., a noção de autoridade individual como impulso criador da obra permaneceu intocada nos dois milênios e meio da tradição ocidental.

No que concerne à literatura clássica chinesa, embora se deva reconhecer que o empréstimo da concepção ocidental de autoria seja norma no meio acadêmico atual, como exposto em Berensmeyer & Buelens (2019)Berensmeyer, Ingo & Buelens, Gert. The Cambridge Handbook of Literary Authorship. Cambridge: Cambridge University Press, 2019., é preciso reconhecer que, naquela tradição literária, a noção de “autoria” é mais opaca e incerta. É conveniente tomar os “Quatro Depósitos”, mencionados há pouco, para analisar esse problema. Em geral, só há algo parecido com autoria individual no caso da quarta, e menos importante, categoria, com as limitações a serem relatadas a seguir. Em todo o resto, a autoria coletiva vale como regra2 2 As principais fontes primárias do presente estudo são as passagens bibliológicas dos Registros do Cronista 史記 (Sima, 1963), bem como os tratados bibliográficos compilados por diferentes casas imperiais, em especial o “Tratado de Literatura e Artes” do Livro de Han 漢書藝文志 o “Tratado sobre os Clássicos Ortodoxos e demais Livros” do Livro de Sui 隨書經籍志 etc (Li, 2002). .

Analisemos a questão da autoria em cada um dos “Quatro Depósitos”:

Em primeiro lugar vem um conjunto de obras, em geral material muito antigo, chamado de “Clássicos Ortodoxos” 經 jing. São os livros sagrados da China antiga, cada obra consistindo de duas partes, em regra. A primeira parte é o “Clássico” propriamente dito 經 jing, que ou é de autoria incerta, ou se atribui a grandes potestades, ou se atribui a grandes eruditos. Em todas essas circunstâncias, a composição dos Clássicos é uma questão muito complicada, estendendo-se por um processo secular de edição e transmissão, até que foram fixados ao longo da dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.). A segunda parte são os “Tratados” 傳 zhuan. Como os “Clássicos” são concisos e difíceis de compreender, essas obras são acompanhadas de guias de leitura, material hermenêutico. Os “Tratados” nada mais são do que comentários pontuais organizados por grupos chefiados por eruditos que expandem consideravelmente a dimensão dos textos.

Em segundo lugar vêm as “Crônicas Dinásticas” 史 shi, compilações muito extensas, em formato predominantemente narrativo. Como padrão, essas obras eram comissionadas pelas casas imperiais. Ficavam sob responsabilidade de um intelectual-burocrata de reputação, cuja equipe recolhia e organizava o material. A despeito de terem natureza literária inquestionável, seguindo as convenções e gêneros empregados pelo grande arquétipo – os Registros do Cronista 史記 Shiji de Sima Qian (145-86 a.C.) – a “autoria” das “Crônicas Dinásticas” tem um caráter coletivo bastante explícito. Na maior parte dos casos, eram obras patrocinadas e conduzidas por instâncias governamentais, voltadas para objetivos políticos bem definidos. É interessante assinalar que, neste aspecto, os Registros do Cronista são uma exceção notável à regra, pois surgiram de uma tradição familiar, haja vista que Sima Qian reconhece estar concluindo o trabalho de seu pai, Sima Tan 司馬談 (165-110 a.C.) (Sima, 1963Sima Qian. Shiji. Beijing: Zhonghua Book Company, 1963. 10 tomos.). De qualquer forma, os Sima eram burocratas, cronistas oficiais da corte imperial.

Em terceiro lugar vem a chamada “Literatura dos Mestres” 子 zi, cujas obras levam nomes de mestres individuais, por exemplo, Laozi/Dao De Jing 老子/道德經, Zhuangzi 莊子, Han Feizi 韓非子, etc. Os Analectos 論語 Lunyu e o Livro de Mêncio 孟子 Mengzi podem ser considerados como integrantes dessa literatura, antes de terem sido consagrados como “Clássicos Ortodoxos”. O que importa para a nossa discussão é que, nada obstante os títulos das obras, esses indivíduos não eram autores individuais, mas os protagonistas de um processo de criação coletiva e aberta. Coletiva, porque cada um desses mestres era um “chefe de escola”, ou seja, acumulavam discípulos que funcionavam como assessores, auxiliares e propagandistas, como percebemos, por exemplo, nas contribuições de Wan Zhang 萬章 e Gongsun Chou 公孫丑 (ativos na segunda metade do séc. III a.C.), discípulos do mestre Meng Ke 孟軻 (372-289 a.C.), para a obra epônima (Mêncio), bem como o relatado por Sima (1963)Sima Qian. Shiji. Beijing: Zhonghua Book Company, 1963. 10 tomos.. Em compensação, os “mestres” também sofriam a influência de seus seguidores, inclusive delegando-lhes funções importantes, por exemplo a compilação, revisão e até redação de textos que seriam circulados sob nome do “mestre” ou, de forma mais adequada, da escola que ele chefia. Nisso, um exemplo típico é o dos Analectos, em que Zeng Shen 曾參 (505-435 a.C.) e outros discípulos aparecem em certas passagens referidos como “mestre”Em outras palavras, percebe-se que Confúcio havia falecido e que a liderança de sua escola, ou de ramos da escola, havia sido assumida por esses representantes de mais destaque.

A quarta divisão é a das chamadas “Antologias poéticas” 集 ji. À primeira vista, são obras individuais, pois foram compostas pelos indivíduos que as assinam, com efeito. Porém, quando se tem em vista o contexto social, compreende-se que são devedoras de um processo coletivo de criação poética, numa escala desconhecida na tradição ocidental. Nesse sentido, ressaltamos dois argumentos, (1) o do perfil social homogêneo dos poetas chineses da antiguidade e (2) a motivação estereotipada da escrita poética na China imperial.

Primeiro, ao atentar para o perfil social dos poetas chineses na antiguidade, impressiona que há uma grande proporção de poetas na elite burocrática e mesmo aristocrática, situação documentável com maior facilidade a partir do final da dinastia Han (século III), quando se formam os primeiros grandes círculos de nobres-poetas. Parece não haver exagero em dizer que, pelo menos a partir daí, todo intelectual de relevo tinha que escrever poesia, não só porque era uma prática social muito importante, mas também uma marca de erudição e de estatuto social, servindo de critério para acesso à carreira burocrática. Por exemplo, no ensaio “Sobre a Literatura” 論文 de Cao Pi 曹丕 (187 – 226), uma das mais antigas reflexões sobre a escrita (e autoria) literárias na China, nota-se, por um lado, a preocupação de cumular um estatuto artístico a personagens que já tinham influência político-burocrática, e, por outro, a noção de autoria literária é definida em torno de comunidades criativas, com Cao a enaltecer os chamados “Sete Mestres de Jian’an” 建安七子 (Cao, 2007Cao Pi. “Lunwen”. In: Xiao Tong (compilação) & Li Shan (anotações). Wenxuan, v. VI. Shanghai: Shanghai Guji, 2007. p. 2270-2273.).

Em segundo lugar vem o fato de que as composições poéticas tinham, de modo intentado ou não, o papel de definir uma personalidade póstuma para o poeta, em essencial consagrando-o como uma pessoa de escrúpulos morais, erudição e espírito público. Menos do que explorar as personalidades e individualidades, há um esforço de se criar tipos ou de se subsumir os poetas a tipos, dos quais o primordial é o de Qu Yuan 屈原 (339-278 a.C.): “patriota”, “talentoso”, “incorruptível”, etc. Logo, tal como as outras três divisões bibliográficas, as “Antologias” também são literatura de fundo didático e moralizante. Para compreender por quê, devemos nos recordar do fato de que, na base da doutrina poética chinesa antiga, está a noção de “Shi yi yanzhi” 詩以言志3 3 “Shi yi yanzhi” 詩以言志 é um aforismo do Grande Introito aos Poemas do Senhor Mao 毛詩大序 Maoshi Daxu, transmitido por Mao Heng 毛亨 (ativo no séc. III a.C.) e sua escola, a versão canônica do Clássico dos Poemas 詩經 Shijing. O termo “Shi” 詩 indica a mais importante forma poética da literatura chinesa, sendo ainda empregado como antonomásia para Poesia. Não há exagero em dizer que a teoria do “Shi” serve de fundamento e referência para a Poética chinesa. Passando a questões de conteúdo, o aforismo significa: “[compõem-se] poemas para expressar [os próprios] ideais”. Deve-se enfatizar que os “ideais” não indicam livre expressão da personalidade/eu lírico do poeta, estando principalmente relacionados a uma “declaração pública” do próprio calibre moral, amor ao país, intento de trabalhar na burocracia em prol do povo, etc. Desta forma, há um viés moral e político que padroniza as temáticas e a expressão poética, remetendo a uma forma de “autoria difusa” (Li, 1999b). .

Reforçando essa natureza típica das obras, os valores ideais do poeta eram formalizados estilisticamente por meio de numerosas convenções técnicas, de forma e de conteúdo, o que dava grande homogeneidade às obras, permitindo-nos argumentar que a criação poética na China antiga era baseada na imitação de modelos e empréstimo de criações alheias. Podemos citar como exemplos a argumentação do poema na forma Fu “Sobre a criação literária” 文賦 Wenfu de Lu Ji (2007)Lu Ji, “Wenfu”. In: Xiao Tong (compilação) & Li Shan (anotações). Wenxuan, v. II. Shanghai: Shanghai Guji, 2007. p. 761-782. e os capítulos 44, 26 e 27 da obra Esculpindo o dragão e Empenhando o Coração na Literatura 文心雕龍 Wenxin Diaolong (Liu et al., 2000Liu Xie et al. Zengding Wenxin Diaolong Jiaozhu. Beijing: Zhonghua Book Company, 2000. 2 v.), dois marcos da teoria literária chinesa. No fim de contas, a autoria revela-se tão difusa nas “Antologias” como nos outros tipos de obras, pois, para estudá-las, é preciso recorrer de modo contínuo às fontes utilizadas pelo poeta para entender as suas referências, aferindo como manipulam e alteram um vocabulário, técnicas e ideias mais ou menos predeterminados pela tradição literária, de maneira a se consagrarem como tipos.

Por derradeiro, é válido ressaltar que os “Quatro Depósitos” oferecem um mapeamento exaustivo e confiável do que significa “literatura chinesa antiga”. Tal classificação bibliográfica quadripartida surgiu pelo último século antes de Cristo, ramificando-se passo a passo com as mudanças da língua clássica e as transformações socioeconômicas no país, tendo assumido sua forma mais elaborada com a biblioteca Todas as obras dos Quatro Depósitos 四庫全書 Siku quanshu (Ji, 2000Ji Yun. Siku Quanshu Zongmu Tiyao. Shijiazhuang: Hebei People Publishing House, 2000. 4 tomos.), finalizada em 1782. No entanto, com o processo de modernização daquele país, tanto o “wenyan”, como os “Quatro Depósitos” foram pouco a pouco substituídos, respectivamente, pelo “putonghua”, a língua nacional moldada no falar coloquial (“baihua”) da capital Pequim, e pela classificação bibliográfica científica, de proveniência ocidental.

Antes de passarmos à próxima seção, merece relevo o fato de que, nas dinastias Song e Yuan (séculos X-XIV), apareceu um novo tipo de literatura, que podemos denominar de “imperial tardia”, escrita numa língua mais próxima do falar coloquial. Os seus gêneros e temáticas, tais como “romances longos” e peças de teatro musicado (“óperas”) inspirados por narrativas transmitidas fora do ambiente burocrático, refletiam a influência de novas elites, oriundas das classes mercantis e de novos centros urbanos (Lu, 2011Lu Xun. Zhongguo Xiaoshuo Shilüe. Beijing: Commercial Press, 2011.; Wang, 2019Wang Guowei. Songyuan Xiqushi. Shanghai: Shanghai Guji, 2019.). Por mais sucesso que tenham tido junto ao “grande público” e mesmo elite intelectual, essas obras não só possuem um profundo débito para com relação à literatura clássica propriamente dita, como também ocupavam uma posição periférica na cultura literária chinesa, possuindo um estatuto inferior às obras em “wenyan”.

O tema da literatura coloquial antiga, de fato, importa em dificuldades para o argumento da “autoria difusa”. É preciso reconhecer que, em contraste com a literatura em “wenyan”, tais obras despertaram um interesse mais limitado de editores, críticos e hermeneutas durante a Era Imperial. Em sua origem, elas estão vinculadas a narrativas orais, lendas e tradições, etc., remetendo a grupos de autores, parte anônimos e parte conhecidos. Nota-se que, dentre os conhecidos, não poucos são pessoas do “povo”, ou seja, indivíduos os quais, apesar de terem educação mais ou menos sólida, não conseguiram ter acesso às camadas mais elevadas da vida burocrática e, portanto, cultural da China. Além disso, a circulação dessas obras também é diferente em termos qualitativos das obras clássicas (escritas em “wenyan”), por exemplo, servindo mais como passatempo “privado”, leitura pessoal/voz alta de membros “periféricos” do grupo familiar, como mulheres e crianças, etc. De qualquer maneira, estou convencido de que as observações gerais sobre a “autoria difusa” permanecem válidas, ainda que requira ajustes e reservas, pois os mesmos fenômenos observados na autoria da “alta literatura” não estão ausentes, de fato, dessas obras.

Diálogo com várias vozes: o tradutor como editor e intérprete

A segunda parte do presente estudo enfoca a questão de como a autoria de um texto influencia o processo de tradução. Para isso, utilizam-se dois conceitos: o de “autoria individual”, característico da tradição literária ocidental, e de “autoria difusa”, em que se reconhece uma marca distintiva da tradição literária chinesa.

Na literatura ocidental, o esquema teórico que descreve o processo de tradução é mais simples e linear do que necessitamos para discorrer sobre o trabalho com literatura clássica chinesa. No Ocidente, a tradução surge do diálogo imediato entre autor e tradutor, centrado na obra original, concebendo-se o autor, por instinto, como uma pessoa que, em determinado momento de sua vida, ou no percurso de sua vida, cria e modifica uma obra (Bettini, 2012Bettini, Maurizio. Vertere. Turim: Einaudi, 2012.). Do ponto de vista da teoria da tradução, parece natural dizer que alguém é “tradutor de Santo Agostinho”, “de Ronsard”, “de Kafka”, etc. – o que enfatiza a natureza individual e personalizada desse diálogo. Em consequência, também é mais clara a natureza “autoral” do trabalho de tradução. Por exemplo, no grande movimento de tradução dos clássicos no Renascimento europeu, distinguem-se personagens como Desidério Erasmo, Guillaume Budé, Leonardo Bruni, entre outros – que eram pessoalmente responsáveis pelos seus textos (Botley, 2004Botley, Paul. Latin Translation in the Renaissance. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.).

É preciso reconhecer que, mesmo sob essa presunção de autoria individual, há complicações que exigem uma reflexão mais detida do tradutor. As mais comuns envolvem verificação de autenticidade, tais como enfrenta o tradutor de Virgílio que se debruça sobre os Poemas Menores. Há também questões como definir qual a melhor redação do original face a um grande número de variantes, a exemplo de quem traduz Balzac, ou outros autores que revisavam febrilmente as suas obras. Há casos especiais, muito interessantes, tais como o crescimento para dentro de certas obras, por exemplo as sucessivas edições dos Ensaios de Montaigne ou, situação mais extrema ainda, as diferenças entre as edições torrentiniana e justina das Vidas dos Artistas de Vasari, que, de fato, podem passar como duas obras distintas. Nada obstante, em todas essas situações, o tradutor continua a dialogar com um único autor, ainda que sujeito a reservas e condições (Chartier, 2021Chartier, Roger. Éditer et traduire. Paris: Seuil & Gallimard, 2021.).

Passando aos textos clássicos chineses, notamos que, pelo fato de autoria das obras ser “difusa”, o processo de tradução não pode mais ser descrito como um diálogo unidirecional entre duas pessoas, autor e tradutor, baseado num “texto de partida” inequívoco. Nesse sentido, embasados nas conclusões da seção anterior, analisemos o conceito de “autoria difusa” na tradição literária chinesa, para que possamos entender suas implicações do ponto de vista da teoria da tradução.

Façamos uma breve digressão linguística, de modo a destacar o pano de fundo cultural da “autoria difusa”. Em chinês arcaico, não há uma palavra equivalente a “autor”, nem tampouco para “autoria”4 4 O léxico chinês difere das línguas clássicas ocidentais, em que há uma evidente tendência a que descrições concretas prevaleçam sobre generalizações abstratas. Por tal razão, não há uma palavra específica para “autoria”, cujo sentido deve ser depreendido da “pessoa que cria” 作者 ou do ato concreto de “criação/composição literária” 作文. . Mesmo em chinês moderno, é preciso escolher dentre diferentes termos aplicáveis, o que trai a origem estrangeira dessa ideia e a inexistência dessa instituição nas concepções culturais dos chineses antigos5 5 O termo chinês moderno para “autor” é uma herança direta da língua arcaica: 作者 zuozhe, lit., “aquele que faz (algo)” – com 作 zuo funcionando como verbo e 者 zhe como partícula ergativa. Os vários conceitos de “autoria” são substantivos compostos, tal como “作者身份” zuozhe shenfen, lit., “o estatuto desse que faz (algo)”. Idem para o conceito de “direito autoral”, 著作權 zhuzuoquan, lit., “o direito/poder sobre a obra escrita”. . Embora esses termos exprimam a quem coube a feitura da obra, pondo em relevo os seus dotes artísticos ou intelectuais, falta-lhe o elemento de “autoridade”, isto é, o da personalidade que “autoriza” a obra, noção abrangida etimologicamente pelo conceito de “autor”6 6 Nesse caso, o termo que mais se aproxima ao de “autoridade” é (作)家 (zuo)jia, como em 一家之言 yijia zhiyan, “o ensinamento de uma escola” ou 諸子百家 zhuzi baijia, “os diversos mestres e as cem escolas”. .

O dado linguístico reflete uma situação social. Quando se observa a realidade da China Antiga, fica patente que, a despeito de as obras literárias serem, em forma, associadas aos seus “autores primários”, a distinção entre o ato de “fazer” e o poder de “autorizar” sugere que os chineses afrouxavam a individualidade/personalidade do conceito de “autoria”, julgado da perspectiva da cultura ocidental. O paradigma dessa relativa separação entre “fazer” e “autorizar” é Confúcio 孔丘 (551-479 a.C.). Segundo as tradições mais antigas, diz-se que, na condição de crítico textual, foi ele que coligiu os textos que deram origem ao Clássico dos Documentos 書 Shu; na condição de compilador, foi ele que organizou uma versão mais antiga do Clássico dos Ritos 禮 Li e do Clássico de Música 樂 Yue; na condição de editor, foi ele que selecionou as trezentas e poucas composições que integram o Clássico dos Poemas 詩 Shi; também há uma tradição, menos disseminada, de que foi Confúcio o editor do dicionário Er’ya 爾雅. Enquanto “autor”, é Confúcio que está por trás dos dez pequenos textos que hoje figuram como os Tratados ao Clássico das Mutações 易傳 Yizhuan e a ele se deve o Clássico da Primavera e do Outono 春秋 Chunqiu7 7 A tradição mais antiga sobre a “autoridade” confuciana dos Seis Clássicos é a de Sima Qian 《史記》 卷第四十七 《世家第十七·孔子世家》. Sobre o Clássico dos Documentos e o Clássico dos Ritos: “孔子之時,周室微而禮樂廢,詩書缺。追跡三代之禮,序書傳,上紀唐虞之際,下至秦繆,編次其事 (…) 故 《書傳》、《禮記》 自孔氏.” Sobre o Clássico da Música: “孔子語魯大師: 「樂其可知也。 始作翕如,縱之純如,皦如,繹如也,以成。 」「吾自衛反魯,然後樂正,雅頌各得其所。」”. Sobre o Clássico dos Poemas: “古者詩三千餘篇,及至孔子,去其重,取可施於禮義,上采契后稷,中述殷周之盛,至幽厲之缺,始於衽席”. Sobre o Clássico das Mutações: “孔子晚而喜易,序彖、繫、象、說卦、文言。” Sobre o Clássico da Primavera e do Outono: “子 (…) 乃因史記作《春秋》,上至隱公,下訖哀公十四年,十二公。”. O Livro de Mêncio também busca “autoridade” em Confúcio, mas como elemento ortodoxo da transmissão (Confúcio-Zeng Shen-Zi Si-(anônimo)-Mêncio). Sobre os dois últimos textos restantes da coleção final de Treze Clássicos 十三經 Shisanjing, o testemunho mais antigo sobre o Clássico da Piedade Filial 孝經 Xiaojing é o de Ban Gu, 1962, p.1701, que também situa sua “autoridade” na transmissão Confúcio-Zeng Shen: “孝經者,孔子為曾子陳孝道也。”. O dicionário Er’Ya é o clássico de menor influência, não tendo atraído a mesma atenção de Sima Qian ou Ban Gu; mesmo assim, conforme o boshi (especialista nos Clássicos) da dinastia Wei dos Três Reinos Zhang Yi 張揖 existe uma tradição de que Confúcio expandiu a edição original do Er’Ya, compilada em um rolo pelo Duque de Zhou, para a edição transmitida de três rolos 《廣雅》 卷第一: “今俗所傳三篇 《爾雅》,或言仲尼所増,或言子夏所益. . Porém, os intelectuais e literatos chineses de tempos imperiais sabiam muito bem que Confúcio não atuava sozinho, pois conheciam de primeira mão o ensino de mestre a aluno e a pertença a grupos intelectuais e literários – o locus em que se desenvolvia o trabalho de criação literária/autoral. Eles reconheciam Confúcio como o centro desse círculo, tout court, e assimilavam a contribuição de outros integrantes ao corpo da obra do mestre, mediante a autoridade deste8 8 Cf. a descrição de Sima Qian sobre como os ensinamentos de Confúcio eram produzidos em conjunto com os seus discípulos (Sima, 1963, p. 2185). .

Com base nesse dado da história social, é possível assumir o caso de Confúcio como padrão para outros autores e demais tipos de obras reconhecidas como “alta literatura” na China antiga. É esperável que haja diferenças de grau de situação a situação, sem, contudo, alterar o padrão. Logo, o tradutor de um autor clássico chinês está condicionado a essa visão cultural, sabendo que uma suposta noção de “autoria” na literatura clássica chinesa é frouxa, em termos comparativos, a ponto de admitir vários tipos de “intervenção transformativa” do texto por terceiros, influenciando a interpretação autorizada e até a própria redação do texto. Por conseguinte, estes acréscimos possuem uma natureza autoral inquestionável. Dito de outra forma, além da “autoridade” pessoal a quem uma obra é relacionada, é necessário considerar também a influência de um círculo de auxiliares diretos dessa “autoridade”, a que, em conjunto, denomina-se de “autores primários”. Num trabalho de tradução, via de regra, a obra desses “autores” é considerada o “texto original”. No entanto, dada a natureza “difusa” da autoria, seria importante refinar o conceito de “texto original” para “texto primário”, já que há uma outra série de contribuições, de natureza autoral, que o tradutor tem de considerar no seu trabalho.

Essas contribuições adicionais harmonizam-se à fluidez do conceito de autoria, abrangendo, inclusive, o trabalho realizado por compiladores, editores e críticos. Neste particular, os Clássicos Ortodoxos também podem ser utilizados como padrão para que se compreenda como isso ocorre na prática. Como indicado na seção anterior, os Clássicos via de regra são acompanhados por uma “segunda parte”, chamada de “Tratados”. Esses textos eram também elaborados de forma coletiva, sob a liderança e autoridade de um erudito que chefiava os trabalhos, reproduzindo o modus operandi dos autores do Clássico. Contudo, os “Tratados” têm uma finalidade mais modesta, em aparência, a de dar mais inteligibilidade ao texto principal dos Clássicos. Devido a um conjunto de razões, os “Tratados” terminaram sendo vinculados aos Clássicos, em certas situações produzindo leituras de teor diferente na substância, não havendo erro em postular que os próprios “textos primários” sofriam alterações9 9 Os exemplos mais antigos são o Tratado de “Confúcio” ao Clássico das Mutações (as “Dez Asas” ou “Ajudas” 十翼) e o Tratado de Fu Sheng 伏勝 ao Clássico dos Documentos (hoje perdido). O Tratado de Mao Heng 毛亨 ao Clássico dos Poemas e as três tradições sobre o Clássico da Primavera e do Outono, com Zuo Qiuming 左丘明, Guliang Chi 榖梁赤 e Gongyang Gao 公羊高 são hoje consideradas ortodoxas. Há duas tradições do Registro (Clássico) dos Ritos 禮記 Liji vinculadas ao clã Dai – a mais antiga e extensa de Dai De 戴德 e a versão de Dai Sheng 戴聖, que por fim se consagrou como a versão canônica do texto. É preciso notar que havia um conjunto substancial de outras tradições, que foram se perdendo com a sucessão das épocas. Tomando o Clássico dos Poemas como exemplo, havia três tradições canônicas relacionadas à região em que o respectivo mestre estava ativo: Lu 魯, Qi 齊 e Han 韓. Havia tradições dentro das tradições, donde a existência de “Tratados Esotéricos” 內傳 Neizhuan e “Exotéricos” 外傳 Waizhuan. É sintomático que, por fim, foi a tradição de Mao Heng a se tornar a única ortodoxa – em parte pelo fato de não ser uma linhagem fechada (Ban, 1962). . Com o passar do tempo, surgiram mais camadas de textos, de natureza hermenêutica, os Comentários 註 (voltados aos Clássicos/“Tratados”) e Glosas 疏 (destinadas a explicar os próprios “Comentários”!), donde não só se ampliar a extensão dos “textos originais”, mas, o que é mais importante, também promoverem alterações importantes em termos de redação, interpretação e valoração de partes dessas obras10 10 Um exemplo bastante significativo é o dos comentários de He Yan 何晏 (196-249) e Zhu Xi 朱熹 (1130-1200) aos Analectos de Confúcio. Para além das diferenças individuais entre os dois eruditos/pensadores, assinala-se que tais comentários partem de situações históricas e respondem a problemas e necessidades diversos, produzindo leituras diferentes em substância (Li, 1999a). .

Sabendo que essas diferentes funções podem ser e são fundidas como “autoridade” na mente dos chineses antigos, o tradutor moderno deve ser capaz de discriminá-las, para perceber a realidade e práticas sociais de que se originam. Embora possa ser chamado de “autoria” com muitas reservas em relação à concepção ocidental, editores, especialistas, certos leitores mais influentes e, o que é importantíssimo, as próprias instâncias governamentais exercem um papel a que o tradutor não deve tergiversar em seu trabalho sobre o “texto de partida”. Denomina-se tais instâncias de “autores secundários”, em reconhecimento de seu papel criativo para a fixação do texto, mesmo que apenas orientando a interpretação autorizada dos mesmos.

Nunca é demais enfatizar que os “autores secundários” contribuem para a fixação do próprio “texto primário” no tempo, pois nada impede que eles, com efeito, alterem a forma e até o conteúdo de partes mais ou menos significativas do que diríamos ser a “obra principal”. Mesmo que o tradutor admita, de forma pacífica, as escolhas editoriais e explicações canônicas que foram feitas ao longo de séculos (e mesmo milênios) sobre o texto que está a traduzir por definição (o “texto primário”), ele será inevitavelmente confrontado com tais “interferências criativas” de terceiros durante a definição do “texto de partida”. Em que pesem as práticas de leitura chinesas, não é possível traduzir literatura clássica sem as levarem em conta. Portanto, no momento em que esse material hermenêutico é assimilado ao processo de leitura que culmina na tradução, verifica-se uma nova camada de sentido amoldada ao “texto primário”, que chamamos de “texto(s) secundário(s)”.

Para compreender a relação entre as contribuições de “autores primários” e “autores secundários”, o tradutor deve estar atento a três fatores estruturais que possibilitam a “autoria difusa”. O primeiro deles é (1) a própria natureza da língua arcaica e dos hábitos linguísticos chineses. A seguir vêm (2) os requisitos de conhecimento da tradição literária, incluindo um conjunto mais ou menos fixo de obras canônicas. Em terceiro lugar, há (3) questões de vogas estilísticas, relacionadas aos gostos de épocas específicas e às inovações de círculos intelectuais e literários.

Dados esses três fatores, não há exagero em argumentar que obras da “alta literatura” chinesa antiga eram privativas dos iniciados e incompreensíveis, mesmo através de performances orais, para pessoas pouco mais do que alfabetizadas11 11 Um dos exemplos mais típicos dessa realidade é o das Conversações Puras 清談, prática social desenvolvida no final da dinastia Han, em que os letrados discutiam a situação política com base em citações/interpretações obscuras de obras literárias (Liu, 2006). . Nisso, o contraste é evidente com a literatura antiga ocidental, grega e latina, que podia ser razoavelmente compreendida por quem conhecesse o idioma, sem ter uma educação esmerada ou mesmo sequer serem alfabetizados. Na tradição ocidental, a sua “alta literatura” podia ser transmitida através de performances orais, como documenta a prática romana das recitaciones e declamatio e, após a cristianização, das enarrationes e sermones – corolários da tradição greco-romana de se falar em público (Cavallo & Chartier, 2009Cavallo, Guglielmo & Chartier, Roger. Storia della lettura nel mondo occidentale. 2. ed. Bari: Casa Editrice Laterza, 2009.). No caso chinês, sua literatura clássica (“alta literatura”) é marcada por uma larga medida de intertextualidade, o que obrigava os leitores originais a irem buscar referências e fontes para saberem o que estava em questão. Embora isso não impossibilitasse performances orais, em princípio, restava a onerosa exigência de que o ouvinte estivesse familiarizado, de antemão, com os conteúdos pressupostos e referidos implicitamente pelo “texto” (“metatexto”). Do lado da tradução, não estranha que o tradutor moderno por vezes não compreenda o que o texto chinês antigo queira dizer ou, ainda mais comum, perca-se entre várias interpretações possíveis.

Por conseguinte, cabe ao tradutor realizar o mesmo tipo de trabalho filológico-hermenêutico que os leitores chineses do original, conforme as suas práticas culturais específicas, familiarizando-se com as fontes, dominando as referências e habituando-se a apreciar e valorizar o estilo comum e os maneirismos de cada círculo intelectual e literário. Nesse processo, é inevitável que o “texto primário” se amplie, para integrar o jogo de referências cruzadas, inclusive podendo acomodar uma coleção de comentários críticos e explicativos. Merece relevo que, embora na cultura ocidental os “textos secundários” sejam ancilares à obra literária, relegados às notas de rodapé ou até ignorados numa tradução, no que toca a China, eles são inseparáveis da leitura e da compreensão do “texto primário”. Portanto, da perspectiva das práticas chinesas de leitura, faz todo o sentido que ele seja assimilado, em certa medida, ao “texto de partida”. Resta a questão de como isso pode/deve ser feito, que tocaremos na conclusão deste artigo.

É preciso admitir que uma consequência inusitada da influência de “autores secundários” é a de que o entendimento do texto, e até mesmo trechos do próprio texto, talvez não sejam aqueles intentados pelos “autores primários”. Isto é, o que um texto significa dependerá do resultado de um jogo de forças entre várias vozes que reclamam para si a visão correta, seja sobre qual o texto a ser adotado, seja sobre qual a leitura mais apropriada, uma vez não haja um critério rígido de autoria para resolver a questão. Por isso, a tradução dessas obras exige que escutemos com atenção a cada uma dessas vozes, autorais que são, comparando-as ao texto em mãos e dialogando com aquelas que parecem mais autorizadas ou, no mínimo, mais razoáveis. Esse é um diálogo de muitas vozes, embora o “texto de partida”, depois de fixado, seja um só.

Disso decorre que o tradutor é obrigado a exercer poderes editoriais e assumir uma linha hermenêutica para produzir um texto de chegada inteligível. Isso faz com que o tradutor se torne parte do processo de construção coletiva do texto como transmissor/intérprete “autorizado” da versão que traduziu. É nítido, mais uma vez, o contraste com a tradição ocidental, em que se separa a crítica textual da crítica hermenêutica. A crítica textual cabia ao filólogo: uma disciplina voltada para o problema de qual texto é, de fato, autêntico e qual leitura é textualmente autorizada – o tradutor que trabalha com textos ocidentais herda estas funções. Já a crítica hermenêutica cabia ao filósofo: ao investigar o conteúdo de um texto, intentava descobrir o seu sentido profundo – uma área vedada ao tradutor de textos ocidentais, a preço de violar o “dever de fidelidade” ao “texto de partida” (Quilliet, 2002Quilliet, Bernard. La tradition humaniste. Paris: Fayard, 2002.; Turner, 2014Turner, James. Philology. New Jersey: Princeton University Press, 2014.). É preciso repensar se o mesmo é aplicável a quem se debruça sobre a versão de literatura chinesa clássica ou se o tradutor deve aliar ambos os papéis em certa medida.

O desafio do público: os clássicos chineses podem gerar “boa literatura” em português?

Até este ponto, discutiu-se um problema abstrato, a saber, o de como o tradutor deve fixar a obra a ser traduzida (“texto de partida”), aprendendo a lê-la e interpretá-la de uma forma autêntica, o que implica conformar-se às práticas chinesas originais de “autoria difusa”, considerando a interação entre os textos “primários” e “secundários”. É óbvio que esse diálogo com muitas vozes sobre o “texto primário” tem reflexos sobre o texto traduzido. Portanto, esta última seção enfoca o desafio prático de verter uma obra de literatura clássica chinesa, por um lado, observando o “dever de fidelidade” ao “texto de partida” e, por outro, tendo em mente as preferências do público leitor em língua portuguesa. Há dois fatores estruturais que pressionam o tradutor a que ajuste/modifique a letra do “texto primário”, seja para lhe dar inteligibilidade em português, seja para destacar o valor literário dessa obra para o público de língua portuguesa, a saber: (1) as qualidades estético-estilísticas apreciadas pelos chineses antigos nas obras de sua literatura clássica e (2) as características da língua chinesa clássica (“wenyan”). Falemos com brevidade sobre cada um destes temas:

Em primeiro lugar, no que concerne às qualidades estético-estilísticas, os textos de literatura clássica distinguem-se por sua curta extensão e seu estilo aforístico. Mesmo que, à primeira vista, as obras de literatura chinesa escritas no idioma arcaico possam ser muito volumosas, a verdade é que, não raro, são compilações de um grande número de textos independentes e concisos. Não deixa de ser verdade, como analisado supra, que um conjunto de obras da “literatura imperial tardia” contraria esse padrão. No entanto, são exceções que confirmam a regra, possuindo, de qualquer maneira, um estatuto inferior às obras em “wenyan”.

Do ponto de vista dos leitores lusófonos, a imensa maioria dos textos clássicos chineses é tão lacônica, que deixa de ser prazerosa enquanto literatura, por motivos de fraca inteligibilidade, magreza de detalhes e diferenças estilísticas, de que destacamos, por exemplo, o desapreço pela criação de enredos e pelos procedimentos que a Narratologia ocidental chama de “mimese” (descrição) e “diegese” (narração). Embora críticos literários chineses não referendem essa impressão de leitores ocidentais desabituados à literatura chinesa, acreditamos que se trata de uma impressão que não é de todo injustificada: os próprios leitores originais, e até os críticos, sentem uma forte necessidade de detalhar e explicar esses textos, muito além do que permite a sua literalidade. Como já ilustramos no caso dos Clássicos Ortodoxos, há um hábito perene de explicar os “textos primários”, acompanhando-os de obras derivadas como comentários, glosas e assim por diante, que podem tanto ser meras indicações de leitura, como verdadeiros tratados hermenêuticos. Estes “textos secundários” assumem uma importância comparável ao respectivo “texto primário”. Para fundamentar com ainda mais força este ponto, mencionamos o exemplo da reputada edição anotada de Jin Shengtan 金聖歎 (1610-1661) do Tradições sobre as Margens do Rio 三國演義 Shuihu Zhuan. Embora seja literatura imperial tardia em língua vernacular, que deveria ser prontamente compreensível e apreciável para leitores “em geral”, ainda assim vale o padrão que vimos descrevendo, do acúmulo de camadas de texto a uma obra.

Decorre, portanto, que, a despeito de os leitores de língua portuguesa estarem culturalmente habituados à liberdade de interpretar o “texto primário” por própria conta, pareceria razoável e justificado, do ponto de vista da cultura de partida, acrescentar material do “texto secundário” numa tradução. Um problema incontornável para os leitores lusófonos é o de que uma tradução restrita ao “texto primário” não apenas os priva das discussões seculares sobre o sentido e significância das obras clássicas chinesas, mas os faz correr o risco de interpretar tais obras de modo inadequado ou mesmo de, na prática, não as compreenderem.

Em segundo lugar, as características da língua chinesa clássica e os hábitos linguísticos chineses potencializam as discrepâncias estético-estilísticas vis-à-vis a tradição literária ocidental, o que permitiria o tradutor, em princípio, a ir além mesmo do próprio “texto de partida”. Exploremos o problema.

O “wenyan” é menos claro e menos preciso do que a língua literária portuguesa. Foneticamente, o chinês tem uma quantidade muito reduzida de sons, mesmo admitida a diferenciação destes produzida pelos tons. Morfologicamente, os substantivos e adjetivos não têm desinências nominais e verbais, nem discriminam gênero e número. No plano dos verbos, não há conjugação, pelo que tempo, modo, aspecto verbais e assim por diante são definidos em geral pelo contexto ou interpretação. Sintaticamente, o chinês antigo em sua maior parte é paratático, contando com um sistema muito primitivo de subordinação. Pragmaticamente, os textos caracterizam-se por elipses e ambiguidades – naturais e/ou intentadas.

Sobre os hábitos linguísticos, a língua chinesa caracteriza-se pela sua “topicidade”, em que os enunciados seguem a estrutura geral “tópico (enfatizado na primeira posição de uma frase) + comentário”. Podemos observar que os chineses modernos, em geral, herdaram as mesmas tendências de seus antepassados, expressando-se com o máximo de simplicidade sintática, evitando elocuções mais perifrásticas e prolixas, o exato oposto do que se considera “linguagem literária” em língua portuguesa.

Em termos comparativos, o “wenyan” não parece ter tido a mesma função como língua de debate ou performance oral (afora simples recitação) do que o português (via grego e latim), fato que reforça as diferenças de gosto e estilo literário ora expostas. Um dado marcante da história social chinesa é o de que, malgrado a prática intelectual antiga não carecer de um certo gosto pela discussão, não estiveram reunidas as mesmas condições institucionais para que, na Antiguidade ocidental, encorajasse-se o desenvolvimento da oratória pública e forense. Não só o gênero da “oração/discurso”, voltado para performance/improvisação oral, inexiste na literatura clássica chinesa, como tampouco há uma disciplina análoga à da Retórica, vocacionada para sistematizar e aprimorar a expressão oral, em termos de estilo e eficácia. É desse ponto de vista que devemos fundamentar o truísmo de que as obras chinesas clássicas reconhecem valores diferentes, respondendo a um gosto diferente.

As características expostas concisamente acima definem as forças e fraquezas da literatura chinesa. O chinês arcaico exprime mais por implicação do que por declaração, não sendo apto para desenvolver argumentações lógicas sofisticadas, mas sendo capaz de pronunciar verdades profundas em tom oracular: basta comparar um “diálogo” de Mêncio com um de Platão ou um “ensaio” de Xunzi com um de Plutarco. Em termos estilísticos, apesar das limitações destacadas (e talvez devido a elas), a língua chinesa arcaica assume uma vocação poética e expressiva, com um senso inato de ritmo e de melodia, bem como um vocabulário muito detalhado no que se refere a sentimentos e estados emocionais. A intuição poética, sublimada em poucas sílabas, tem uma atração magnética para quem é bem escolado na apreciação desses textos. É preciso assinalar que a língua portuguesa não parece ser capaz de reproduzir esses efeitos com a mesma intensidade.

Dados todos esses elementos, percebemos que, uma vez circunscrito à extrema literalidade dos “textos primários”, o tradutor confronta-se com uma situação de fracasso inevitável. Além de correr o risco de criar uma tradução pouco inteligível, fica muito vulnerável a produzir um texto pouco instigante em português, do ponto de vista literário. Ainda que traduções literais tenham guarida imediata na circulação das obras clássicas chinesas para fins de pesquisa acadêmica, o “dever de fidelidade” não parece ser forte o bastante para que se sacrifique a atenção do grande público, que espera, até exige, obras vertidas conforme os padrões literários a que estão habituados.

O “diálogo difuso” na literatura clássica chinesa exige que o tradutor vá além da literalidade do texto. Nesse processo, é preciso compreender como o “autor primário” assimilou a tradição canônica pregressa, manipulando criativamente um conjunto de convenções de forma e de conteúdo. Depois, confrontado com o texto dos “autores primários”, é necessário assimilar as contribuições autorais dos “autores secundários”, tais como editores, críticos e hermeneutas, para garantir inteligibilidade e “correção” interpretativa. Valeria a pena discutir, como um terceiro plano do trabalho de tradução, se o tradutor poderia, por agência própria, alterar a forma literária dos textos, tomando em consideração as discrepâncias de história dos gêneros e estilos. Tanto as discrepâncias linguísticas entre “wenyan”/chinês e português, como as diferenças de história literária reforçam a necessidade desse debate.

Logo, o processo de tradução deixa de ser um diálogo imediato entre autor e tradutor, tornando-se um “diálogo difuso” entre diversas fontes que, em maior ou menor medida, reclamam para si o poder autoral, direto ou indireto, de definir o que a obra quer expressar. Em última instância, isso implica que os “autores primários” e “secundários” definem o que a obra é, qual o “texto de partida”, por assim dizer, a ser definitivamente fixado segundo o trabalho hermenêutico do tradutor. Surge então o dilema de, por um lado, escolher uma tradução cingida à literariedade do “texto primário”, que redunda em algo que é pouco e mal compreensível em português, ou, por outro, de assimilar novos conteúdos provenientes de “texto(s) secundário(s)” à tradução, os quais não necessariamente são intentados pelos “autores primários”, amoldando-os linguisticamente ao texto traduzido. Além disso, também é preciso considerar questões de escrita e estilo literários em língua portuguesa, vinculadas ao gosto e expectativas dos leitores do texto traduzido. Ao modificarmos o “texto primário”, é indubitável que se viola, em maior ou menor medida, o “princípio da fidelidade”. Há diversas soluções possíveis para esse dilema. Nenhuma delas é perfeita, mas cada qual consegue responder a necessidades específicas. Esboçaremos algumas delas a seguir, como referência para trabalhos futuros.

Conclusão: entre “literalidade incompreensível” e “literariedade falsificadora”, quatro modelos para a tradução de literatura clássica chinesa em português

O presente artigo refletiu sobre os limites da tradução literária entre os idiomas chinês e português, baseando-se nas diferentes concepções de “autor” e “autoria” vigentes nas duas tradições, que conduzem a visões distintas do que é o “texto de partida”.

A primeira parte desenvolveu o conceito de “autoria difusa”, enfatizando que as obras da literatura clássica chinesa não são criações individuais, mas resultado de um esforço coletivo, ainda que sob a liderança de uma autoridade, em cujo nome a obra é transmitida. A esse círculo de intelectuais, denominamos “autores primários”. Além disso, a partir do momento em que a obra começa a circular, ela é submetida ao crivo de gerações de leitores, parte dos quais intervêm criativamente no processo enquanto editores, críticos e hermeneutas, que cognominamos “autores secundários”.

Na segunda parte do artigo, enfocamos a natureza complexa do “texto de partida” na literatura clássica chinesa. Confrontado com o problema da “autoria difusa”, a noção de texto original assume maior fluidez e indeterminação. Além do “texto primário” criado pelos “autores primários”, o tradutor deve estar atento ao que chamamos de “texto(s) secundário(s)”, através da contribuição dos editores, críticos e hermeneutas, o que influi de forma incontestável no entendimento do “texto primário”, chegando a lhe agregar novos elementos.

Delineada a relação entre “texto primário” e “texto secundário” na literatura clássica chinesa, a terceira parte discutiu a questão de até que ponto o tradutor estaria justificado em definir apenas o “texto primário”, ou ambos os tipos, ou parte de um e outro, como “texto de partida”. Além disso, do ponto de vista de um leitor-alvo lusófono não-falante de chinês, as diferenças em termos de hábitos linguísticos e expectativas estético-estilísticas parecem justificar que o tradutor intervenha criativamente no “texto de partida”, de modo que ele corresponda aos padrões estético-estilísticos da língua de chegada. Nesse “diálogo difuso” entre diversas fontes e tendo em mente as preferências dos leitores do texto traduzido, o tradutor deve encontrar um equilíbrio entre os dois extremos de “literalidade incompreensível” e “literariedade falsificadora” como critério para fixação do “texto de partida”.

Por ensejo das reflexões expostas neste artigo, propomos quatro modelos de tradução de literatura antiga chinesa para o português:

Conforme a solução mais tradicional, é possível produzir um texto principal com um mínimo de inteligibilidade a partir de uma tradução literal, seguido ou não de notas de rodapé para registrar as vozes dos “autores secundários”. Desta forma, segue-se a prática corrente na tradução de obras ocidentais, negando o estatuto que os “autores secundários” possuem no sistema literário chinês. Vale ressaltar que tal modelo tampouco é capaz de conceder maior valor literário à tradução. Este método de trabalho é predominante na prática dos países lusófonos, de que destacamos as realizações do Pe. Joaquim Guerra (1984)Guerra, Joaquim. Quadrivolume de Confúcio. Macau: Jesuítas Portugueses, 1984. na tradução dos Clássicos confucianos e de Mário Sproviero (2014)Sproviero, Mário. Dao De Jing/Tao Te King. São Paulo: Hedra, 2014. em sua tradução “literalista” do Dao De Jing para o português, Dao De Jing/Tao Te King.

Alternativamente, pode-se utilizar o formato “obra + comentário” das fontes primárias chinesas. Isso tem a vantagem de revelar, para o leitor de língua portuguesa, a dinâmica autêntica do “diálogo difuso” para construção do sentido do texto primário. Em compensação, produz-se um texto pesado, sacrificando a leitura “vertical” costumeira e sufocando os valores literários em si, de maneira ainda mais radical do que na primeira solução. Esse foi o modelo adotado pelo pioneiro James Legge (1960)Legge, James. The Chinese Classics. Hong Kong: Hong Kong University Press, 1960. 5 v. em seu trabalho hercúleo com os Quatro Livros e Cinco Clássicos 四書五經 Sishu Wujing no final da dinastia Qing (1644-1911) e pela tradução da Arte da Guerra de Sunzi 孫子兵法 Sunzi Bingfa por Samuel Griffith (1971)Griffith, Samuel. The Art of War. Oxford: Oxford University Press, 1971., também para o inglês, The Art of War, com uma escolha de glosas dos chamados Onze Comentaristas 十一家註 Shiyijia Zhu. Recentemente, Brook Ziporyn (2009)Ziporyn, Brook. Zhuangzi: The Essential Writings: With Selections from Traditional Commentaries. Indianapolis: Hackett, 2009. traduziu uma antologia de textos comentados de Zhuangzi para o inglês, Zhuangzi: The Essential Writings: With Selections from Traditional Commentaries.

Uma terceira possibilidade é a de compor um comentário original em língua portuguesa, o que liberta o tradutor para manipular o texto primário, caso assim entenda, atribuindo-lhe os valores literários julgados adequados no sistema literário de chegada. Além de sacrificar a leitura “vertical”, outro problema evidente é que se trata de uma tradução mais livre do texto, o que não é palatável para todos. Tal modelo foi empregado com sucesso por Richard Wilhelm (1924)Wilhelm, Richard. I Ging, das Buch der Wandlungen. Düsseldorf: Eugen Diederichs Verlag, 1924. na sua tradução comentada do Clássico das Mutações para o alemão, I Ging. Hans van Ess (2023)Van Ess, Hans. Gespräche. Munique: C. H. Beck, 2023. adotou-o em sua tradução, muito recente, dos Analectos para o alemão, Gespräche. Embora não se trate de uma tradução direta do chinês, Thomas Merton (1965)Merton, Thomas. The Way of Chuang Tzu. Cambridge: New Directions, 1965 já havia utilizado esse modelo de forma exitosa em seu trabalho com excertos do Zhuangzi, vertidos de idiomas terceiros para o inglês, The Way of Chuang Tzu. Nos últimos anos, encontra-se exemplo de traduções de obras chinesas para o francês neste formato, como o trabalho de Pierre Faure (2021)Faure, Pierre. Yi Jing: Le Classique des Mutations. Paris: Belles-lettres, 2021. sobre o Clássico das Mutações 易經 Yijing, Yi Jing: Le Classique des Mutations.

Por fim, é possível oferecer uma leitura “vertical” da obra chinesa, parafraseando-a e até agregando elementos ausentes do texto original, harmonizando esse conteúdo através dos recursos estilísticos adequados em língua portuguesa e assimilando ao texto primário o que for necessário para lhe garantir plena inteligibilidade e prazer estético. Desta forma, garantem-se o prazer da leitura e o valor literário, mas se sacrifica a literalidade do “texto de partida” e, em certa medida, até parte de sua autenticidade. Enquanto o público-leitor de literatura em geral poderá acolher esse trabalho com mais gosto do que se fosse uma tradução mais correta conforme critérios acadêmicos/profissionais, será necessário debater e convencer especialistas bilíngues no que concerne à viabilidade e mesmo desejabilidade desses trabalhos. Esse foi o modelo utilizado por Arthur Waley (1942)Waley, Arthur. Monkey. London: Allen & Unwin, 1942. em sua condensação do “romance longo” escrito em língua coloquial Viagem para o Oeste 西遊記 Xiyouji para o inglês, Monkey. Pearl Buck (1933)Buck, Pearl. All Men are Brothers. London: Methuen & Co., 1933. utilizou, em certa medida, o mesmo modelo para sua tradução integral de outro “romance longo coloquial”, Tradições sobre a Margem do Rio 水滸傳 Shuihuzhuan para o inglês, intitulada All Men are Brothers.

  • 1
    A dicotomia língua clássica (“wenyan”) e línguas coloquiais (“baihua”) é fundamental para definirmos o que significa “Literatura” na China antiga. O “wenyan” existiu apenas como língua escrita. Nela foi composta a coleção de textos “sagrados” que balizavam a educação da classe governante/elite cultural chinesa. Esses textos serviam de modelo de bom gosto para imitação e de critério de correção vernacular para composição das obras literárias. Neste sentido, a “alta literatura” chinesa, criação da elite cultural, seguia, por definição, os padrões estéticos e estilísticos do “wenyan”.
    Malgrado ser uma língua escrita, o “wenyan” tradicionalmente definia a pronúncia “padrão” dos ideogramas/palavras chinesas, de modo que a língua coloquial utilizada na burocracia imperial, e, portanto, falada na capital, espelhava-se no “wenyan”.
    O termo genérico “baihua” define os falares coloquiais. É importante assinalar que, além da língua falada na burocracia/capital (língua “comum”), a China antiga possuía uma grande quantidade de outras línguas coloquiais. Divididos em zonas dialetais, muitos dos “baihua” eram mutuamente incompreensíveis, não apenas devido a diferentes sistemas fonéticos, mas também a diferentes características gramático-lexicais, remetendo às culturas locais existentes na China antiga. Apesar de que obras em “baihua”, muitas delas transmitidas de forma oral, influenciassem criações de “alta literatura”, elas não eram consideradas “literárias” em si, sendo marginalizadas nos “Quatro Depósitos”. A tendência geral era a de que toda obra deveria ser escrita em “wenyan” para postular o estatuto de “alta literatura”, de maneira que obras em “baihua” eram consideradas “literatura popular” ou “baixa literatura”.
    Nada obstante, em especial a partir da dinastia Song (séc. X-XIII), sob influência de fatores socioeconômicos, o “wenyan” sofreu ligeiras transformações, vindo a se tornar marginalmente mais próximo do falar coloquial. Ao mesmo tempo, também surgiu uma “literatura popular” de estatuto um pouco mais elevado, vinculada a língua coloquial da corte imperial/capital da China.
  • 2
    As principais fontes primárias do presente estudo são as passagens bibliológicas dos Registros do Cronista 史記 (Sima, 1963Sima Qian. Shiji. Beijing: Zhonghua Book Company, 1963. 10 tomos.), bem como os tratados bibliográficos compilados por diferentes casas imperiais, em especial o “Tratado de Literatura e Artes” do Livro de Han 漢書藝文志 o “Tratado sobre os Clássicos Ortodoxos e demais Livros” do Livro de Sui 隨書經籍志 etc (Li, 2002Li Zhizhong. Sanmu Leixu Shiping. Beijing: Beijing Tushuguan Chubanshe, 2002.).
  • 3
    “Shi yi yanzhi” 詩以言志 é um aforismo do Grande Introito aos Poemas do Senhor Mao 毛詩大序 Maoshi Daxu, transmitido por Mao Heng 毛亨 (ativo no séc. III a.C.) e sua escola, a versão canônica do Clássico dos Poemas 詩經 Shijing. O termo “Shi” 詩 indica a mais importante forma poética da literatura chinesa, sendo ainda empregado como antonomásia para Poesia. Não há exagero em dizer que a teoria do “Shi” serve de fundamento e referência para a Poética chinesa.
    Passando a questões de conteúdo, o aforismo significa: “[compõem-se] poemas para expressar [os próprios] ideais”. Deve-se enfatizar que os “ideais” não indicam livre expressão da personalidade/eu lírico do poeta, estando principalmente relacionados a uma “declaração pública” do próprio calibre moral, amor ao país, intento de trabalhar na burocracia em prol do povo, etc. Desta forma, há um viés moral e político que padroniza as temáticas e a expressão poética, remetendo a uma forma de “autoria difusa” (Li, 1999bLi Xueqin. (Ed.). Maoshi Zhengyi. Beijing: Peking University Press, 1999b. 3 v.).
  • 4
    O léxico chinês difere das línguas clássicas ocidentais, em que há uma evidente tendência a que descrições concretas prevaleçam sobre generalizações abstratas. Por tal razão, não há uma palavra específica para “autoria”, cujo sentido deve ser depreendido da “pessoa que cria” 作者 ou do ato concreto de “criação/composição literária” 作文.
  • 5
    O termo chinês moderno para “autor” é uma herança direta da língua arcaica: 作者 zuozhe, lit., “aquele que faz (algo)” – com 作 zuo funcionando como verbo e 者 zhe como partícula ergativa. Os vários conceitos de “autoria” são substantivos compostos, tal como “作者身份” zuozhe shenfen, lit., “o estatuto desse que faz (algo)”. Idem para o conceito de “direito autoral”, 著作權 zhuzuoquan, lit., “o direito/poder sobre a obra escrita”.
  • 6
    Nesse caso, o termo que mais se aproxima ao de “autoridade” é (作)家 (zuo)jia, como em 一家之言 yijia zhiyan, “o ensinamento de uma escola” ou 諸子百家 zhuzi baijia, “os diversos mestres e as cem escolas”.
  • 7
    A tradição mais antiga sobre a “autoridade” confuciana dos Seis Clássicos é a de Sima Qian 《史記》 卷第四十七 《世家第十七·孔子世家》. Sobre o Clássico dos Documentos e o Clássico dos Ritos: “孔子之時,周室微而禮樂廢,詩書缺。追跡三代之禮,序書傳,上紀唐虞之際,下至秦繆,編次其事 (…) 故 《書傳》、《禮記》 自孔氏.” Sobre o Clássico da Música: “孔子語魯大師: 「樂其可知也。 始作翕如,縱之純如,皦如,繹如也,以成。 」「吾自衛反魯,然後樂正,雅頌各得其所。」”. Sobre o Clássico dos Poemas: “古者詩三千餘篇,及至孔子,去其重,取可施於禮義,上采契后稷,中述殷周之盛,至幽厲之缺,始於衽席”. Sobre o Clássico das Mutações: “孔子晚而喜易,序彖、繫、象、說卦、文言。” Sobre o Clássico da Primavera e do Outono: “子 (…) 乃因史記作《春秋》,上至隱公,下訖哀公十四年,十二公。”. O Livro de Mêncio também busca “autoridade” em Confúcio, mas como elemento ortodoxo da transmissão (Confúcio-Zeng Shen-Zi Si-(anônimo)-Mêncio). Sobre os dois últimos textos restantes da coleção final de Treze Clássicos 十三經 Shisanjing, o testemunho mais antigo sobre o Clássico da Piedade Filial 孝經 Xiaojing é o de Ban Gu, 1962, p.1701, que também situa sua “autoridade” na transmissão Confúcio-Zeng Shen: “孝經者,孔子為曾子陳孝道也。”. O dicionário Er’Ya é o clássico de menor influência, não tendo atraído a mesma atenção de Sima Qian ou Ban Gu; mesmo assim, conforme o boshi (especialista nos Clássicos) da dinastia Wei dos Três Reinos Zhang Yi 張揖 existe uma tradição de que Confúcio expandiu a edição original do Er’Ya, compilada em um rolo pelo Duque de Zhou, para a edição transmitida de três rolos 《廣雅》 卷第一: “今俗所傳三篇 《爾雅》,或言仲尼所増,或言子夏所益.
  • 8
    Cf. a descrição de Sima Qian sobre como os ensinamentos de Confúcio eram produzidos em conjunto com os seus discípulos (Sima, 1963Sima Qian. Shiji. Beijing: Zhonghua Book Company, 1963. 10 tomos., p. 2185).
  • 9
    Os exemplos mais antigos são o Tratado de “Confúcio” ao Clássico das Mutações (as “Dez Asas” ou “Ajudas” 十翼) e o Tratado de Fu Sheng 伏勝 ao Clássico dos Documentos (hoje perdido). O Tratado de Mao Heng 毛亨 ao Clássico dos Poemas e as três tradições sobre o Clássico da Primavera e do Outono, com Zuo Qiuming 左丘明, Guliang Chi 榖梁赤 e Gongyang Gao 公羊高 são hoje consideradas ortodoxas. Há duas tradições do Registro (Clássico) dos Ritos 禮記 Liji vinculadas ao clã Dai – a mais antiga e extensa de Dai De 戴德 e a versão de Dai Sheng 戴聖, que por fim se consagrou como a versão canônica do texto. É preciso notar que havia um conjunto substancial de outras tradições, que foram se perdendo com a sucessão das épocas. Tomando o Clássico dos Poemas como exemplo, havia três tradições canônicas relacionadas à região em que o respectivo mestre estava ativo: Lu 魯, Qi 齊 e Han 韓. Havia tradições dentro das tradições, donde a existência de “Tratados Esotéricos” 內傳 Neizhuan e “Exotéricos” 外傳 Waizhuan. É sintomático que, por fim, foi a tradição de Mao Heng a se tornar a única ortodoxa – em parte pelo fato de não ser uma linhagem fechada (Ban, 1962Ban Gu. Hanshu. Beijing: Zhonghua Book Company, 1962. 12 v.).
  • 10
    Um exemplo bastante significativo é o dos comentários de He Yan 何晏 (196-249) e Zhu Xi 朱熹 (1130-1200) aos Analectos de Confúcio. Para além das diferenças individuais entre os dois eruditos/pensadores, assinala-se que tais comentários partem de situações históricas e respondem a problemas e necessidades diversos, produzindo leituras diferentes em substância (Li, 1999aLi Xueqin. (Ed.). Lunyu Zhushu. Beijing: Peking University Press, 1999a.).
  • 11
    Um dos exemplos mais típicos dessa realidade é o das Conversações Puras 清談, prática social desenvolvida no final da dinastia Han, em que os letrados discutiam a situação política com base em citações/interpretações obscuras de obras literárias (Liu, 2006Liu Yiqing. Shishuo xinyu jiaojian. Beijing: Zhonghua Book Company, 2006. 4 tomos.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Nov 2023
  • Aceito
    28 Nov 2023
  • Publicado
    Dez 2023
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