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Dick, Philip K. Espere agora pelo ano passado. Tradução de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Suma, 2018, 266 p.

Dick, Philip K.. Espere agora pelo ano passado. . Tradução de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Suma, 2018. 266 p.

O escritor norte-americano Philip K. Dick (também conhecido como PKD) é considerado um dos principais expoentes da ficção científica. Nascido em 1928, na cidade de Chicago, Dick começou a publicar suas obras em 1950. No entanto, seu primeiro grande sucesso, vencedor do prêmio Hugo, intitulado The Man in the High Castle (traduzido para o português do Brasil como O Homem do Castelo Alto), ocorreria apenas em 1962.

Apesar do reconhecimento da crítica, PKD passou os anos seguintes trabalhando em publicações de baixo custo e editoras menores. Para Dick, o êxito com o grande público viria apenas após a sua morte. Em 1982, Ridley Scott lançou o filme Blade Runner, inspirado no romance Androides Sonham com Ovelhas Elétricas, escrito por PKD em 1968. Alguns anos após o seu lançamento, o filme tornou-se um dos maiores sucessos da história do cinema, fazendo do escritor Philip K. Dick uma fonte em que produtores e cineastas bebem até hoje, em busca de um novo blockbuster.

Ao falecer, em 1982, Dick deixou 130 contos e 44 romances, dos quais 51 e 29, respectivamente, possuem versões para a língua portuguesa. 13 dos seus romances foram publicados em português do Brasil, o que caracteriza significativo interesse do mercado editorial brasileiro por sua obra. Espere agora pelo ano passado (2018), em tradução brasileira de Braulio Tavares, tem como texto fonte Now wait for the Last Year (1966), publicado pela editora Doubleday.

Em Espere agora pelo ano passado, Philip K. Dick mescla os mais diversos assuntos que permeiam uma mente alucinante e transtornada. Uma guerra intergaláctica, um casamento fracassado e algumas viagens no tempo são as premissas básicas do livro. A tradução analisada nesta resenha é a publicação em formato epub (ISBN: 978-85-545-1257-6) de 2018. Nela, é possível perceber, desde os paratextos iniciais, a sua proposta inovadora. Com o uso de tipografia grotesca e ilustração abstrata, a capa da obra de chegada possui um viés moderno e visualmente atrativo.

A partir da folha de rosto, é possível identificar a obra como uma tradução, uma vez que o nome do tradutor Braulio Tavares é apresentado na mesma. Logo após, há uma dedicatória, paratexto inexistente no texto de partida referenciado. Não é possível afirmar se a dedicatória foi escrita pelo tradutor ou inserida por outro integrante envolvido na concepção da obra, ou até mesmo se está presente em uma edição fonte diferente da referenciada nesta resenha. Apesar disso, a mesma causa impacto ao ressaltar o editor e escritor norte-americano Donald A. Wollheim como aquele que fez mais pela ficção científica do que qualquer outra pessoa. Diante disso, a dedicatória presente no texto de chegada pode ser percebida pelo leitor como algo que coloca Wollheim como um mestre de Dick.

O sumário do texto de chegada tem 14 capítulos, identificados apenas pelo número. No texto fonte, por sua vez, há 17 capítulos, 14 deles nomeados apenas pelo número e os demais com títulos diversos. Não é possível saber se essa diferenciação na composição e tradução do sumário faz parte das escolhas do tradutor ou da editora. Com essas informações iniciais em mente, passaremos a explorar a obra e alguns aspectos do texto traduzido.

Logo nas primeiras linhas de Espere agora pelo ano passado, Dick inicia a jornada pela vida do médico cirurgião de órgãos Eric Sweetscent, apresentando algumas das preocupações do protagonista com o próprio casamento: “todo homem mergulhado num casamento infeliz perde a capacidade metabiológica de saber o que quer.” / “every man involved in an unhappy marriage loses the metabiological capacity to know what he does want” (Dick, Espere agora pelo ano passado, 28, grifo nosso) (Dick, Now wait for the last year, 21, grifo nosso). Nesse trecho e pelos grifos presentes, é possível identificar a ênfase que a tradução dá ao sofrimento do protagonista. Ao utilizar o termo “mergulhado”, o texto nos remete a uma situação de imersão em algo. No caso de Eric, a sua vida está afundando em um casamento infeliz. Desse modo, o tradutor aproxima e prepara o leitor para imergir na narrativa profunda e triste que Eric faz da sua vida matrimonial.

Logo nos primeiros parágrafos da obra, somos apresentados à manipuladora e controversa esposa de Eric, Katherine Sweetscent, a Kathy. O narrador deixa claro que Kathy tem sérios problemas com o uso de drogas ilícitas, chegando a se endividar com fornecedores. Ao longo dos capítulos, Kathy é descrita com traços cada vez mais autoritários e controladores. São constantes, ao longo da narrativa, situações em que o personagem coloca o seu marido em situação de inferioridade, descrevendo-o como alguém sem ambição: “Então você está satisfeito, disse Kathy, a voz abafada, amarga — somente em parecer bem-sucedido. Quando na verdade você não é. — E depois, fungando, fanhosa, completou: — E você é péssimo na cama” / “‘So you’re content,’ Kathy said, in a muffled, bitter voice, ‘to appear to be successful. When you really aren’t.’ And then, sniffling and snuffling, she added, ‘And you’re terrible in bed.’” (DickDick, Philip K. Espere agora pelo ano passado. Tradução de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Suma, 2018, 266 p., Espere agora pelo ano passado, 57, grifo nosso) (DickDick, Philip K. Espere agora pelo ano passado. Tradução de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Suma, 2018, 266 p., Now wait for the last year, 43, grifo nosso). Os grifos no trecho corroboram com a construção do personagem manipulador que é Kathy. Ao utilizar a sequência “somente em parecer”, o tradutor enfatiza o desdém do personagem pelo sucesso profissional do marido. Podemos ver essa ênfase novamente na escolha da locução “na verdade”, uma vez que a mesma carrega o significado de introduzir um fato. Desse modo, a tradução proposta por Braulio Tavares realça a personalidade abusiva de Kathy.

A narrativa da obra, até então, poderia parecer comum, não fosse pelos detalhes adicionais que nos são fornecidos desde as páginas iniciais. O casal Eric e Kathy vive no ano de 2055. Eric é o médico pessoal do centenário Virgil L. Ackerman, proprietário da empresa Tijuana Fur & Dye (TF&D). Os serviços médicos de Eric incluem, dentre outras tarefas, substituir os órgãos defeituosos de seu chefe por órgãos artificiais, chamados artificiórgãos na versão de Braulio Tavares. Kathy, por sua vez, atua como curadora pessoal de Ackerman. São funções de Kathy pesquisar e resgatar artefatos antigos para a colônia que seu chefe possui em Marte, a Wash-35.

Apesar de ainda estarmos no enredo dos primeiros capítulos, é possível identificar um determinado elemento padronizado na tradução: os nomes de empresas, lugares e produtos não foram traduzidos. São exemplos: a Tijuana Fur & Dye, as colônias de Wash-35 e Cheyenne e os cigarros Lucky Strike.

Ao mesmo tempo em que somos informados sobre a situação do casal Eric e Kathy, PKD introduz diversos elementos que descrevem como é a vida em 2055. O planeta Terra, sob o comando de Gino Molinari (Secretário Geral das Nações Unidas) está em guerra contra os reegs, seres extraterrestres, de representação física clássica (por exemplo, seres com antenas), considerados militarmente inferiores e de fácil dominação. Devido à guerra, diversas indústrias, incluindo a TF&D, tornaram-se locais de fabricação de material bélico. Com isso, Virgil Ackerman ganha considerável poder. Ao longo dos 14 capítulos, Virgil é descrito como alguém muito poderoso e rico. Com muito prestígio e sempre eficaz, Ackerman é importante econômica e politicamente. Graças aos serviços de Eric, como cirurgião de órgãos, Virgil é também descrito como alguém cheio de vida.

Apesar da importância do trabalho de Eric para Virgil, este decide transferi-lo para a localidade de Cheyenne, com o intuito de ajudar o seu grande amigo, o comandante Gino Molinari.

Molinari é descrito como “o líder supremo e eleito na cultura unificada do planeta Terra e o supremo comandante de suas forças armadas na guerra contra os reegs” / “supreme elected leader of Terra’s unified planetary culture, and the supreme commander of its armed forces in the war against the reegs” (DickDick, Philip K. Espere agora pelo ano passado. Tradução de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Suma, 2018, 266 p., Espere agora pelo ano passado, 35, grifo nosso) (DickDick, Philip K. Espere agora pelo ano passado. Tradução de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Suma, 2018, 266 p., Now wait for the last year, 26, grifo nosso). Percebe-se por meio dos grifos que “reegs” é um dos termos relevantes para a trama e que foi mantido em inglês no texto traduzido.

Gino é essencial para a trama, bem como para os personagens envolvidos, pois representa o ser que pode levar a Terra à vitória na terrível guerra. Apesar disso, Gino encontra-se profunda e misteriosamente doente. Como forma de garantir sua saúde e vitalidade, Eric trabalha incansavelmente, estando sempre ao lado de Gino como seu médico pessoal.

Ao longo do tratamento, Eric descobre que as doenças de Molinari estão associadas ao uso de uma droga alucinógena desenvolvida como arma de guerra, chamada JJ-180, com poder de alterar a percepção do tempo pelo usuário. Ao fazer uso da ‘tempogogic drug’, ou droga tempogógica, na tradução de Braulio Tavares, o usuário consegue mover-se para momentos no passado, futuro ou mesmo para presentes paralelos. Apesar do enorme poder, a droga possui efeitos colaterais avassaladores e, com uma única dose, o usuário pode tornar-se fatalmente dependente.

Além de Molinari, fazem uso da JJ-180, Kathy, para quem a droga traz dolorosos efeitos colaterais e Eric, que é enganado pela esposa e consome a droga sem saber. Ao usar a JJ-180, Kathy sempre viaja para o passado, Molinari viaja para presentes paralelos e Eric sempre viaja para o futuro. Por ser o único na trama a ir para o futuro, Eric ganha significativas vantagens, pois descobre informações sobre a guerra e como vencê-la, sobre a JJ-180, como curar-se do terrível vício e, sobretudo, informações sobre seu eu futuro.

Diversos outros personagens contribuem para a trama da guerra, em maior ou menor medida. No entanto, apesar da complexidade do confronto interplanetário e das influências que a JJ-180 no curso da guerra, Espere agora pelo ano passado é um livro sobre Eric Sweetscent e seu karma pessoal com uma esposa abusiva.

Narrado, a maior parte do tempo, pelo personagem, os momentos significativos da história estão relacionados a decisões e acontecimentos ocorridos em seu casamento. O emprego de Eric foi conquistado graças à indicação de Kathy, sua transferência para Cheyenne foi impulsionada, sobretudo, pela vontade do personagem de manter-se longe da esposa, as suas viagens no tempo e a busca por um antídoto para a JJ-180 são motivadas pelo desejo de curar Kathy de seu vício e livrar-se dela. O ódio que o protagonista tem da companheira é tão profundo, que todo o resto pode ser considerado consequência desse ódio. “E depois passou os anos seguintes fazendo todos os esforços possíveis para controlar o ódio que sentia pela sua esposa [...] E seu ódio por ela — disse o Dique — transformou-se em ódio por você mesmo.” / “‘And you spent the next few years directing your efforts toward controlling your hatred for your wife [...] ‘And the hatred for her,’ Mole said, ‘became hatred for yourself’” (DickDick, Philip K. Now wait for the last year. New York: Doubleday, 1966, 197 p., Espere agora pelo ano passado, 60, grifo nosso) (Dick, Now wait for the last year, 45, grifo nosso). O texto traduzido grifado ressalta um Eric empenhado em melhorar a situação de seu casamento. A escolha do termo “todos”, ao falar dos esforços do personagem, parece causar mais impacto na personalidade do personagem do que o proposto no texto fonte. Tal impacto pode gerar no leitor ainda mais empatia pelo marido de Kathy.

Ao perceber a importância do fracasso do casamento do protagonista para a narrativa é, e como a responsabilidade desse fracasso é atribuída a Kathy e seu comportamento autodestrutivo, uma leitora da obra pode sentir o desejo de compreender melhor este personagem. Kathy é descrita como uma mulher competente no trabalho, mas desequilibrada emocionalmente.

Ao longo da narrativa, Kathy é descrita como sexy, viciada em drogas, impulsiva, manipuladora e opressiva. A competência no trabalho, seu único traço positivo, é questionável, pois é a base da sua soberba e prepotência. Em um dos episódios, onde o autor quer colocar em xeque o caráter de Kathy, ele narra um episódio, em que Kathy oprime o marido de modo agressivo e homofóbico: “Porque você é uma bicha -- disse Kathy. [...] Você é um homossexual enrustido. Duvido sinceramente que você saiba disso, num nível consciente, mas está lá.” / “‘Because,’ Kathy said, ‘you’re a fairy.’ [...] ‘You’re a repressed homosexual. I sincerely doubt if you’re aware of it on a conscious level, but it’s there.” (DickDick, Philip K. Espere agora pelo ano passado. Tradução de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Suma, 2018, 266 p., Espere agora pelo ano passado, 58, grifo nosso) (DickDick, Philip K. Espere agora pelo ano passado. Tradução de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Suma, 2018, 266 p., Now wait for the last year, 44, grifo nosso). Os grifos mostram que ambos os textos, seja na cultura de partida ou na cultura de chegada, buscam utilizar expressões depreciativas. Possivelmente, essas escolhas corroboram para a caracterização de Kathy como alguém de más intenções.

Se tentarmos extrapolar essas percepções para os demais personagens femininos da obra, nos deparamos com um número pequeno de personalidades para avaliar. Entre elas, ressaltam: Phyllis Ackerman e Mary Reineke. Phyllis é sobrinha-neta de Virgil; apesar de inteligente, a sua única e rápida função na trama é provocar sexualmente o protagonista Eric, que é casado. O personagem aparece apenas em três passagens relevantes da obra. Em todas elas, Phyllis age de modo sexualizado.

Mary, por sua vez, ocupa bastante espaço na narrativa. A jovem, de aproximadamente 19 anos é, há muito tempo, amante do grande Gino Molinari. Apesar de décadas mais nova que o comandante, exerce uma opressiva influência sobre ele, tratando-o de modo controlador e abusivo. Acrescenta-se a isso, o fato do clichê de Mary ser secretária de Molinari. “Não comente com Mary Reineke essa sua comparação — disse o Dorf. — Ela vai te dizer que ele é um bastardo. Um porco na cama e na mesa, um homem safado de meia-idade com sede de estupro, e que devia estar na cadeia. Ela o tolera… porque ele é caridoso.” / “‘Don’t tell Mary Reineke about your comparison,’ Dorf said. ‘She’ll tell you he’s a bastard. A pig in bed and at the table, a lewd middle-aged man with rape in his eye, who ought to be in jail. She tolerates him... because she’s charitable.’” (DickDick, Philip K. Now wait for the last year. New York: Doubleday, 1966, 197 p., Espere agora pelo ano passado, 73, grifo nosso) (DickDick, Philip K. Espere agora pelo ano passado. Tradução de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Suma, 2018, 266 p., Now wait for the last year, 56, grifo nosso). A escolha do termo “sede”, uma necessidade fisiológica natural, na tradução apresentada, enfatiza mais o teor repugnante da fala do personagem que no texto de partida. Com isso, Mary Reineke pode parecer ao leitor um ser ainda mais desprezível.

Diversas outras passagens do livro podem ser consideradas questionáveis para o público leitor feminino. Como exemplo, podemos citar o episódio onde o protagonista Eric viaja no tempo para o ano 2065 e, ao parar o carro em um sinal de trânsito, recebe como oferta o serviço de prostituição de uma menina de 7 anos. Absolutamente nenhum juízo de valor é feito acerca de tal episódio, que é tratado de modo natural.

— Garotas, senhor? — Um garoto com não mais do que onze anos se pendurou na manga do paletó de Eric, obrigando-o a parar. — Minha irmã só tem sete anos. Ela nunca se deitou com um homem na vida. Garanto perante Deus, o senhor vai ser o primeiro dela. — Quanto é? — disse Eric. — Dez dólares mais o quarto, precisa ser num quarto, em nome de Deus. A calçada transforma o amor numa coisa sórdida, a pessoa não pode fazer isso num lugar assim e depois continuar se respeitando. — Há certa sabedoria nisso aí — concordou Eric. Mas seguiu em frente.

(DickDick, Philip K. Espere agora pelo ano passado. Tradução de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Suma, 2018, 266 p., Espere agora pelo ano passado, 234).

Espere Agora pelo Ano Passado exibe todo o talento de Philip K. Dick. O livro flui, a história acelera em um ritmo acertado e os plot-twists prendem a atenção do leitor. Somam-se a essas qualidades, as da tradução publicada pela editora Suma e realizada por Braulio Tavares, onde, em diversas oportunidades, é possível ver a construção e as características dos personagens sendo exploradas e enfatizadas por meio do processo tradutório. Apesar disso, a tradução acompanha a construção social e cultural da obra de partida. Nela, a criação positiva de personagens só funciona para os homens. As mulheres são agressivas, instáveis, ordinárias, questionáveis e descartáveis. Assim, a sociedade de 2055 parece enxergar as mulheres da mesma forma que em 1966, de modo que muitas leitoras podem chegar ao fim de Espere Agora pelo Ano Passado e se sentir desesperançadas com os próximos anos.

Referências

  • Dick, Philip K. Espere agora pelo ano passado Tradução de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Suma, 2018, 266 p.
  • Dick, Philip K. Now wait for the last year New York: Doubleday, 1966, 197 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2020
  • Aceito
    02 Abr 2021
  • Publicado
    Maio 2021
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