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JORGE “AMADO” PELA CHINA: UMA ABORDAGEM HISTORIOGRÁFICA DA TRADUÇÃO DE OBRAS DE JORGE AMADO NA CHINA (1949-1976)

JORGE “LOVED” BY CHINA: A HISTORIOGRAPHICAL APPROACH TO THE TRANSLATION OF JORGE AMADO’S WORKS IN CHINA (1949-1976)

Resumo

Sendo o escritor de língua portuguesa mais traduzido na China, Jorge Amado tem 18 de seus títulos traduzidos para o chinês e foi o primeiro escritor brasileiro a ser publicado em chinês, após a fundação da República Popular da China (RPC), em 1949. A qualidade de membro do Partido Comunista do Brasil e a militância ativa na política do escritor brasileiro eram amados pelo jovem governo chinês, que apresentou, pela primeira vez, Jorge Amado aos leitores chineses em 1951, quando ele recebeu o Prémio Stalin da Paz entre os Povos, cujo critério prevalecente era político e ideológico. Na identidade dupla que lhe foi atribuída, o “lutador pela paz” era mais destacado do que o “poeta”. As quatro primeiras traduções de obras de Jorge Amado desde a fundação da RPC até o término da Revolução Cultural na China em 1976, serão apresentadas de forma historiográfica neste artigo, com o objetivo de mostrar como a tradução faz parte da típica institucionalização da tradução literária da China, em que os fatores, como poder e ideologia, exerceram plena manipulação sobre esta comunicação cultural ocorrida no contexto chinês.

Palavras-chave
Poder; Tradução; Jorge Amado; China

Abstract

As the most translated Portuguese language writer in China, Jorge Amado has 18 of his titles translated into Chinese and was the first Brazilian writer to be published in Chinese after the founding of the People’s Republic of China (PRC) in 1949. The Brazilian writer’s membership in the Communist Party of Brazil and active militancy in politics were applauded by the young Chinese government, which first introduced Jorge Amado to Chinese readers in 1951, when he received the Stalin Prize for Peace Among Peoples, whose prevailing criteria were political and ideological. In the dual identity assigned to him, the “peace fighter” was more prominent than the “poet”. The first four translations of Jorge Amado’s works from the founding of the PRC until the end of the Cultural Revolution in China in 1976 will be presented in historiographical form in this paper, with the aim of showing how translation is part of the typical institutionalization of literary translation in China, in which factors such as power and ideology exercised full manipulation over this cultural communication that occurred in the Chinese context.

Keywords
Power; Translation; Jorge Amado; China

Introdução

Jorge Amado (1912-2001) ficou conhecido pelos leitores chineses logo depois da fundação da RPC, em 1949, e ainda é hoje o escritor brasileiro mais traduzido na China. Totalizam-se 18 obras do escritor brasileiro que foram traduzidas para o chinês, sendo que as primeiras quatro obras traduzidas foram: Terras do Sem-Fim em 1953 (Amado, 1953bAmado, Jorge. Terras do sem-fim. Tradução de Wu Lao. Beijing: Editora de Cultura e de Trabalho, 1953b.), O Cavalheiro da Esperança, a Vida de Luís Carlos Prestes em 1953 (Amado, 1953aAmado, Jorge. O cavalheiro da esperança, a vida de Luís Carlos Prestes. Tradução de Wang Yizhu. Beijing: Editora do Povo, 1953a.), Seara Vermelha em 1954 (Amado, 1954cAmado, Jorge. Seara vermelha. Tradução de Zheng Yonghui. Shanghai: Editora Pingming, 1954c.) e São Jorge dos Ilhéus em 1956 (Amado, 1956Amado, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. Tradução de Zheng Yonghui & Jin Mancheng. Beijing: Editora dos Escritores, 1956.). Ademais, Terras do Sem-Fim foi reeditada em 1958 e Seara Vermelha teve mais duas publicações em 1956 e 1957. No entanto, no período entre 1958 e 1976, nenhuma outra obra de Jorge Amado foi traduzida na China.

Jorge Amado é “[...] o único escritor brasileiro a exercer algum impacto não apenas nos círculos acadêmicos internacionais, mas também junto ao público internacional em geral” (Tooge, 2011Tooge, Marly. Traduzindo o Brazil: o país mestiço de Jorge Amado. São Paulo: Humanitas, 2011., p. 21). A carreira literária de Jorge Amado foi marcada por sua militância ativa na política, daí que os livros do início de sua carreira eram fortemente ideológicos. A introdução das obras dele na China deu-se num contexto histórico especial, em que o antigo país oriental tinha passado por uma fase histórica cheia de drásticas mudanças políticas e sociais. Durante todo o processo da tradução de obras literárias estrangeiras, inclusive obras de Jorge Amado, no contexto chinês, pode-se problematizar a correlação entre as atividades de tradução e o poder.

Este trabalho tem por objetivo apresentar uma pesquisa historiográfica acerca da tradução de obras de Jorge Amado na China desde 1949 a 1976. Buscará verificar as razões pelas quais essas obras foram “importadas”, assim como o porquê da interrupção de sua tradução entre as décadas de 1950 e 1980, tentando evidenciar a manipulação ideológica das autoridades chinesas sobre as atividades de tradução de literaturas estrangeiras neste período histórico.

Teoria da manipulação

Bassnett & Lefevere (1990)Bassnett, Susan & Lefevere, André (Orgs.). Translation, History & Culture. Londres: Printer Publishers, 1990. associam a tradução à manipulação, quando afirmam que a tradução é uma reescrita de um texto fonte e que reflete uma ideologia e uma poética, manipulando assim a literatura para funcionar na sociedade de certa maneira.

A ideologia e a patronagem são dois fatores de manipulação na abordagem de Lefevere (1992)Lefevere, André. Translation, Rewriting and the Manipulation of Literary Fame. Londres & Nova York: Routledge, 1992.. O sistema literário é restringido por um par de fatores controladores: o primeiro dentro do sistema literário e o segundo fora dele. O primeiro fator é representado por “profissionais” tais como, entre outros, críticos, editores, professores e tradutores, que controlam o sistema literário de acordo com uma série de parâmetros estabelecidos pelo segundo fator, a patronagem, que é “[...] algo como os poderes (pessoas ou instituições) que podem promover ou impedir a leitura, escrita e reescrita de literatura” (Lefevere, 1992Lefevere, André. Translation, Rewriting and the Manipulation of Literary Fame. Londres & Nova York: Routledge, 1992., p. 15, nossa tradução), exercendo sua manipulação através de incentivo e coerção.

Lefevere (1992)Lefevere, André. Translation, Rewriting and the Manipulation of Literary Fame. Londres & Nova York: Routledge, 1992. define ideologia como sendo rede de formas, convenções e crenças que determina nossas ações e vê a patronagem como sendo ideologicamente orientada. A ideologia exerce influência sobre o processo da tradução em três domínios: a seleção de textos a serem traduzidos, a adoção de estratégias de tradução, assim como a difusão e a recepção de textos traduzidos, funcionando como uma mão invisível nas atividades de tradução.

Poder e tradução

O poder não existe, o que existe são as relações de poder (Foucault, 1977Foucault, Michel. Discipline and Punish: The Birth of the Prison. Tradução de Alan Sheridan. Nova York: Pantheon, 1977.). O poder é uma rede composta de todos os poderes que governam e controlam. Sendo assim, os poderes se dividem em dois tipos: os poderes visíveis como órgãos do Estado e disposições jurídicas e, os invisíveis são como ideologia, tradições e costumes culturais, assim como as influências religiosas. Todos estes poderes formam uma rede gigantesca e nenhum pode existir independente desta rede, que regula o comportamento das pessoas. A viragem cultural dos estudos de tradução é, de certa maneira, “a viragem de poder” (Tymoczko & Gentzler, 2002Tymoczko, Maria & Gentzler, Edwin (Eds.). Translation and Power. Boston: University of Massachusetts Press, 2002., p. 16). O poder já se tornou o tópico central das pesquisas historiográficas em tradução e das pesquisas de estratégias de tradução.

As relações entre tradução e poder podem ser lidas em três dimensões: a tradução do poder, que significa que a tradução é manipulada pelo poder; o poder da tradução, que se refere à influência, valor e funções da tradução; as relações de poder no processo da tradução, que são as relações entre o tradutor e o autor, entre o texto fonte e o texto alvo.

Os dois fatores controladores que restringem o sistema literário: os profissionais e a patronagem, representam fatores de poder que influenciam a tradução. Ademais, a manipulação feita pela cultura de chegada sobre a tradução também contém fatores de poder, como público-alvo e questões de mercado. Já o poder da tradução se mostra no fato de que a introdução de elementos alheios para a cultura de chegada ajuda a sua transformação e incentiva, por conseguinte, a transformação na sociedade. A tradução constitui um tipo de “catalisador” para a transformação cultural e social da China (Lin, 2002Lin, Kenan. “Translation as a Catalyst for Social Change in China”. In: Tymoczko, Maria & Gentzler, Edwin (Eds.). Translation and Power. Boston: University of Massachusetts Press, 2002. p. 160-183.). No que toca às relações de poder no processo de tradução, o tradutor desempenha o papel de “ponte” que liga o texto fonte ao texto alvo e ele representa todos os tipos de poder, provenientes tanto da cultura de partida como da cultura de chegada.

Institucionalização da tradução literária na China

Na literatura contemporânea chinesa, durante os 17 anos entre 1949 e 1966, ano que se iniciou a Revolução Cultural, se evidencia um estereótipo de integração que contém basicamente três dimensões: em primeiro lugar, a integração literária se refere a um processo de evolução literária, em que a literatura de esquerda evoluiu para ser a literatura dominante, até se tornar a única literatura; em segundo lugar, a forma de organização e a maneira de produção da literatura nacional são altamente integradas. Estão envolvidos quase todos os elementos acerca da literatura, inclusive instituições literárias, jornais e revistas de literatura, os processos como a criação, publicação, difusão, leitura e crítica da literatura; em terceiro lugar, a integração constitui a característica principal das obras literárias da época, que mostravam uma grande convergência em termos de tema, estilo e método de criação (Hong, 2010Hong, Zicheng. 问题与方法. [Questões e Metodologias]. Beijing: Editora da Universidade de Pequim, 2010.).

No processo da integração, a presença do governo e do Estado se traduzirá pelas relações de poder, o que deu origem à institucionalização da tradução literária, que fazia parte da construção da literatura nacional desde 1949 e era uma tarefa do Estado, organizada pelo governo. A tradução institucional é, por conseguinte, a tradução manipulada pelo governo e se afirma basicamente nos seguintes aspetos: a formação de instituições literárias e suas funções, a identidade de tradutores, assim como a organização das atividades de tradução, inclusive o mecanismo de leitura e crítica literária.

Instituições literárias e tradutores

Sendo a maior instituição literária que se responsabiliza por regular todos os trabalhos relacionados com a literatura e a arte, a Federação Chinesa de Círculos Literários e Artísticos (FCCLA) foi fundada em 1949. À Federação ficam subordinadas as federações locais e as associações em diferentes áreas, inclusive a Associação Chinesa de Escritores (ACE), que tem sido a associação mais importante da Federação e é diretamente liderada pelo Departamento de Propaganda do Comitê Central do PCC.

As editoras e revistas literárias e acadêmicas passaram por uma transformação socialista antes de 1955, ocasião em que o país se apossou de editoras pequenas e privadas, formando editoras maiores e públicas, que eram controladas e administradas pelo governo, e não se viam em qualquer publicação conteúdos divergentes da ideologia dominante do país, nem existia qualquer concorrência entre elas, porque era o país que se responsabilizava pelos gastos e ganhos sob a planificação unificada nacional do país.

O novo regime comunista fez uma classificação da mão de obra que foi dividida em diferentes categorias e as mais comuns eram: quadro, operário e camponês. Os escritores e os tradutores pertenciam à categoria de quadro, que não se referia apenas aos membros da sociedade que exerciam a função da gestão administrativa ou econômica do país, mas também a todos os profissionais e técnicos em todas as áreas específicas da sociedade. O “quadro” representava uma unidade ou uma estrutura institucional que, sendo mais privilegiada na sociedade chinesa de então, ocupava uma posição hierárquica mais alta.

Na categoria de quadro, os escritores e os tradutores recebiam remunerações e benefícios respectivos, respeitando o seu código de conduta estabelecida pelo governo. A violação do código de conduta poderia levar a consequências graves, como a expulsão da unidade e a perda dos benefícios que a unidade garantia. Muitos tradutores eram simultaneamente escritores, que pertenciam a mesma estrutura e tinham justamente a mesma forma de trabalho. Além disso, muitos deles eram também oficiais governamentais, isto é, as suas atividades estavam alinhadas com as diretrizes políticas e ideológicas do governo e, de modo geral, as políticas culturais do país foram formuladas por eles, que representavam o poder e tinham uma obrigação intrínseca de defendê-lo e reforçá-lo.

Organização das atividades de tradução

A 1ª Conferência Nacional do Trabalho de Tradução teve lugar em novembro de 1950 em Pequim e permitiu aos tradutores chineses trabalharem de forma organizada e coordenada, de acordo com as necessidades do país. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) era considerada como exemplo nos trabalhos de organização, planificação e coordenação das atividades de tradução. Em agosto de 1954, a ACE e a Editora da Literatura do Povo1 1 A Editora da Literatura do Povo foi fundada em março de 1951 em Pequim e fica diretamente subordinada ao Ministério da Cultura da China. É uma das editoras mais importantes da China e se dedica mais à publicação de obras literárias e tem publicado mais de 3.000 obras traduzidas na China. organizaram a 1ª Conferência Nacional de Trabalho de Tradução Literária. Uma coordenação eficaz das atividades de tradução literária, uma ligação mais forte entre os tradutores literários e o aprimoramento da qualidade de tradução consistiram nas principais abordagens da Conferência. A partir daí a literatura traduzida passou a incorporar-se à literatura nacional, um componente importante da cultura socialista do país comunista. A tradução literária foi elevada ao patamar da construção cultural socialista e era considerada uma parte relevante da causa socialista do país.

Era o governo que selecionava, por via de seus membros na ACE e editoras literárias, as obras para traduzir, e quando as traduções estavam prontas, a Livraria Xinhua2 2 A Livraria Xinhua tem uma história mais longa do que a República Popular da China, pois foi fundada em 1937 pelo Partido Comunista da China. Fica, desde 1949, subordinada ao Departamento de Propaganda do Comité Central do Partido e é a maior livraria estatal. era responsável pela distribuição no mercado. Após o lançamento das traduções ao mercado, o governo ainda organizava eventos como leitura coletiva, crítica literária e aprendizagem mútua, a fim de alargar a influência das obras traduzidas entre os leitores.

Com esta alta institucionalização, a tradução literária se tornou uma ferramenta importante da política e diplomacia do país, deixando de ser uma tarefa individual dos tradutores. Os tradutores eram batizados de “trabalhadores de tradução”, porque por um lado, a tradução era uma tarefa coletiva que exigia a colaboração de muitos; por outro, os tradutores eram construtores do país, sob a liderança do governo. A tradução literária institucionalizada se enquadrava no padrão esquerdista da literatura nacional da China. A seleção de escritores e de obras na tradução era manipulada por essas instâncias oficiais, que excluíam os escritores e as obras que não fossem contra o imperialismo, o colonialismo e o regime capitalista representado pelos Estados Unidos da América de então.

Tradução de obras de Jorge Amado na China (1949-1976)

Primeira apresentação de Jorge Amado na China

Foi o Prêmio Stalin da Paz entre os Povos que levou o escritor brasileiro à China em 1951. O prêmio foi criado em 1949 pela URSS, e era atribuído aos indivíduos reconhecidos pelo governo soviético como grandes nomes que prestaram grandes contribuições para as ciências, a literatura, a arte e a música. No entanto, o critério prevalecente deste prêmio era político e ideológico. Um objetivo do prêmio residia na intenção de aumentar a voz dos países socialistas e contrabalançar a influência dos Estados Unidos na comunidade internacional.

Em 1951, o Prémio foi atribuído a Jorge Amado, que foi posteriormente apresentado, no mesmo ano, na China pela revista Conhecimentos Mundiais3 3 A revista foi criada pelo Partido Comunista da China em 1934, com o objetivo de apresentar a atualidade mundial aos chineses. A revista passou a avaliar a conjuntura internacional, relevar ambições de países fascistas e apelar à união de todos os povos oprimidos. O cunho político da revista é patente em suas publicações. . No artigo O Lutador pela Paz: o Poeta Amado, da autoria de Liu Huai, o escritor ganhou uma identidade dupla: “lutador pela paz” e “poeta” (Liu, 1951Liu, Huai. “巴西的和平斗士——诗人亚马多” [O Lutador da Paz: o Poeta Amado]. Conhecimentos Mundiais, 50, p. 13-14, 1951., p. 13).

O título de poeta atribuído pela revista chinesa a Jorge Amado se deve ao poema Canto à União Soviética, incluído em seu livro de viagens O Mundo da Paz publicado em 1951, em que relata suas impressões de viagens sobre a URSS e outros países do bloco socialista e que lhe rendeu o Prêmio Stalin da Paz entre os Povos. Não é difícil entender que o Prêmio ocultou quase todos os aspectos, a não ser o aspecto político, da obra de Jorge Amado. Os interesses políticos e ideológicos dos líderes chineses foram determinantes para a escolha do escritor brasileiro para os leitores chineses, e um livro de viagens era um disfarce que ocultava o caráter político-ideológico da premiação.

A identidade política fica patente no título e fortemente reforçada no início do artigo em chinês: “suas atividades literárias” estão relacionadas com a “libertação do povo brasileiro” que está disposto a “[...] contribuir com seus esforços para a paz mundial” (Liu, 1951Liu, Huai. “巴西的和平斗士——诗人亚马多” [O Lutador da Paz: o Poeta Amado]. Conhecimentos Mundiais, 50, p. 13-14, 1951., p. 13). Segundo a apresentação no artigo, a dedicação e fidelidade deste “guerreiro persistente” à causa comunista e à luta pela sobrevivência da pátria em meio a conflitos entre as nações poderosas e oprimidas é algo valioso para o bloco dos países socialistas naquela conjuntura de Guerra Fria. Apesar de ser exilado e viver muitos anos fora do país, o patriotismo de Jorge Amado é destacado no artigo.

Estas caraterísticas peculiares de Jorge Amado combinaram perfeitamente com as demandas da ideologia dominante na China e com a necessidade urgente do novo regime comunista de encontrar mais aliados no mundo. Esse perfil ideologicamente marcado de Jorge Amado foi reforçado pela ideologia dominante da China de então, que enfrentava ainda muitos inimigos capitalistas, além do que, o socialismo chinês buscava se fortificar com a solidariedade de companheiros de luta.

Primeira tradução de Jorge Amado na China

Na sequência da entrega do Prêmio Stalin da Paz entre os Povos ao escritor brasileiro, a revista Literatura do Povo publicou, no dia 1 de abril de 1952, a 22ª parte do terceiro capítulo do volume I: Os Ásperos Tempos do romance Os Subterrâneos da Liberdade, traduzido do russo por Chen Yongyi. Pela primeira vez, Jorge Amado foi apresentado como romancista, mas é de salientar que por trás da revista Literatura do Povo eram os interesses políticos que manipulavam a seleção do texto original e as estratégias de tradução. Por um lado, a revista Literatura do Povo fazia parte da rede da institucionalização e era administrada pela ACE que representava a ideologia dominante da sociedade chinesa.

É interessante verificar uma discordância entre a data de publicação do romance Os Subterrâneos da Liberdade no Brasil, em 1954 e a data de publicação da tradução de um trecho do volume I do romance na China, em 1952. A trilogia Os Subterrâneos da Liberdade foi iniciada em março de 1952 em Dobris, na Tchecoslováquia, onde o escritor se encontrava exilado e mantinha uma relação mais próxima com o bloco dos países socialistas. Não é difícil, pois, compreender o aparecimento da tradução de uma parte do romance traduzido do russo para o chinês, quando o romance ainda não tinha sido concluído completamente.

Esta parte é composta de um enredo que não apresenta grande complexidade: por causa de uma denúncia do traidor Camaleão, a polícia arquitetou uma ação de caça aos comunistas feita a uma oficina onde os comunistas se reuniam. A apreensão dessa oficina é liderada pelo delegado policial Barros, que é um inimigo experiente e cruel dos comunistas em São Paulo e que tem alimentado o forte desejo de provar sua capacidade de espancar e liquidar comunistas através de métodos finos, aos seus superiores. Pode-se tirar este trecho do romance para publicar como uma parte independente por causa de sua brevidade e completude. O tamanho, porém, não é o único critério para a seleção do artigo. Durante todo o conflito, os comunistas, apesar de acabarem sendo gravemente feridos, presos e mortos, se comportam como heróis e não cedem nem um passo aos inimigos. O conteúdo central desta parte está em perfeita conformidade com a ideologia dominante do bloco dos países socialistas liderado pela URSS, que traduziu primeiramente o romance para russo.

Uma abordagem de estratégias de tradução

O texto de chegada é fruto da tradução indireta, com o texto intermediário em russo. Descobre-se que o texto intermediário é inteiramente fiel ao texto de partida, e a tradução literal é a estratégia mais utilizada, mantendo todos os elementos do texto de partida. Contudo, o texto de chegada apresenta bastante disparidade em termos linguísticos em comparação com os textos intermediário e de partida, devido a várias estratégias de tradução adotadas. A manipulação do poder e da ideologia dominante também se traduz na adoção de estratégias de tradução, que tem como objetivo adequar o texto de chegada às demandas concretas do contexto chinês.

A estratégia mais utilizada é a da omissão, a fim de garantir um ritmo acelerado de narração e intensificar as tensões durante toda a ação de caça, que tem no texto de partida a tarefa dupla: a apreensão e a utilização da oficina. Mas a tradução omitiu a parte de utilização da oficina, que fez parte do plano de Barros: após a apreensão da oficina, a polícia poderia aproveitá-la para imprimir falso material a fim de gerar confusões nos meios operários, o que seria interessante à polícia. Contudo, a ideia de Barros foi logo reduzida a cinzas pelas primitivas bombas que o comunista Orestes tinha fabricado. Quebrada a ideia de Barros, a utilização da oficina não vale a pena ser desenvolvida mais no texto de chegada. A eliminação desta parte, que se mantém no texto intermediário, diminui a sagacidade de Barros, mas duplica sua crueldade sangrenta, pelo que a tradução o caracteriza como um policial grosseiro, impaciente e tolo, o que constitui um grande desprezo para com os inimigos reacionários, uma atitude aplaudida pelo governo comunista no poder. Pelo contrário, com a omissão dos conteúdos respeitantes à utilização da oficina, a perspicácia dos membros comunistas fica mais salientada ao destruir todas as máquinas antes de os policiais entrarem. Além disso, a narração sobre a troca de tiros entre policiais e comunistas fica, com a estratégia de omissão, mais intensa e rápida, prendendo firmemente a atenção dos leitores.

Vale a pena conhecer mais dois exemplos de omissão na tradução (TP: Texto de Partida, TI: Texto Intermediário, TC: Texto de Chegada):

Tabela 1
Exemplo de omissão na tradução
Tabela 2
Exemplo de omissão na tradução

Nos dois exemplos acima, pode-se ver uma troca de insultos entre Jofre e Barros e as partes em itálicos são omitidas. Apenas o insulto dirigido ao comunista Jofre foi omitido na tradução, ao passo que os insultos feitos por Jofre a Barros se mantêm. Esta pequena diferença é interessante para uma abordagem de estratégias na tradução, visto que é uma evidente prova da manipulação que a ideologia dominante exerce sobre a tradução. Ademais, na tabela 1, foi omitida também a descrição de ferimento de Jofre e na tabela 2, a ameaça feita por Barros foi omitida, ficando o diálogo mais direto e rápido, o que eleva consideravelmente o grau de confronto entre os dois.

Para além de omissão, outra estratégia utilizada na tradução é a alteração e, através da qual o texto de chegada é capaz de transmitir informações divergentes por vários motivos. Veja-se o seguinte exemplo:

Tabela 3
exemplo de alteração na tradução

Na tabela 3, o sentido da expressão “sujeito decidido” do texto de partido, que se mantém no texto intermediário e foi literalmente traduzido, designa uma pessoa que tem vontade firme e que está convicto de seus objetivos ou propósitos, é alterado no texto de chegada, em que a expressão é traduzida como “战斗小伙子” (jovem combatente). Pode-se verificar uma intensificação da vontade individual e identidade comunista de Jofre, sobretudo quando a expressão é proferida pelo seu inimigo Barros. O propósito do tradutor está evidente: mesmo nos olhos do inimigo, o jovem Jofre é, em primeiro lugar, um comunista decidido e corajoso e nunca cede às tentações nem às ameaças, e ao mesmo tempo, ainda luta, como um guerreiro firme, contra toda as forças reacionárias. Com esta alteração de sentido, a imagem de Jofre como um guerreiro leal à ideologia comunista é reforçada para os leitores chineses.

No texto de chegada, com tanto conteúdo omitido, pode-se verificar o fato de que na tradução é empregue também a estratégia de adição. Veja-se o exemplo:

Tabela 4
exemplo de adição na tradução

Há apenas um sintagma nominal no texto original e no texto intermediário, ao passo que no texto de chegada é adicionada a oração coordenada: “夜是漆黑的”, formando uma sentença composta. A adição da descrição da noite em que teve lugar a ação policial pode intensificar a atmosfera perigosa. A noite preta, com a cidade adormecida, em vez de diluir o perigo e acalmar as almas cansadas dos membros comunistas, oferece uma proteção à ação de caça.

A tradução desta parte do romance Os Subterrâneos da Liberdade demonstra o reconhecimento de Jorge Amado pela ideologia dominante da China e pelo partido político no poder, o PCC. Foi manipulada, mais uma vez pelo poder e pela ideologia dominante, a tradução desta parte do romance, cujo texto de chegada possui apenas três páginas, mas é fruto de várias estratégias de tradução: a omissão, a alteração e a adição. A ideologia individual e a subjetividade do tradutor também são relevantes nas atividades de tradução, mas, no caso de Jorge Amado, só poderiam atuar em conformidade com a ideologia dominante do país e seguir as exigências dos patronos das atividades de tradução, pelo que os tradutores chineses seguiam diretrizes ideológicas do país nos anos 1950 e 1960.

A publicação do trecho de Os Subterrâneos da Liberdade foi o primeiro passo da introdução e tradução de obras de Jorge Amado na China e prevê as traduções posteriores nos anos seguintes.

Primeiras quatro obras traduzidas de Jorge Amado

Nos primeiros romances amadianos traduzidos, destacaram-se o conflito entre proprietários rurais e pobres e o conflito entre os imperialistas. As posturas políticas que o autor evidenciou nas obras, assim como sua aproximação proletária, eram aplaudidas pelo jovem regime vermelho chinês. A tradução das obras de Jorge Amado na primeira metade dos anos 50 do século XX reflete justamente a função dos fatores ideológicos e de patronagem nas atividades de tradução que aconteceram na China.

Publicado na China em 1953 pela Editora de Cultura e Trabalho, o romance Terras do Sem-Fim constitui o primeiro romance completamente traduzido para chinês4 4 A tradução foi feita a partir da versão em inglês The Violent Land, com tradução de Samuel Putnam. . O tradutor, Wu Lao, chama o romance de “obra épica” (Amado, 1953bAmado, Jorge. Terras do sem-fim. Tradução de Wu Lao. Beijing: Editora de Cultura e de Trabalho, 1953b., p. 469), e dedicou quase toda a nota da tradução à apresentação da atitude proletária e da militância política do escritor brasileiro e dos motivos que são capazes de explicar sua posição política. A abordagem literária apenas se limita a uma simples análise textual: uma apresentação do enredo da narração e das características dos personagens principais da história, a fim de revelar, de forma rápida, os conflitos manifestados entre diferentes camadas sociais, assim como as funções ideológicas e políticas da tradução do romance. Ao final da tradução está anexado outro artigo acerca de Jorge Amado publicado em maio de 1952 na revista Literatura da União Soviética, da autoria do escritor soviético, Boris Polevoy, que era “colega e amigo” de Jorge Amado “na luta pela paz” (Amado, 1953bAmado, Jorge. Terras do sem-fim. Tradução de Wu Lao. Beijing: Editora de Cultura e de Trabalho, 1953b., p. 471). É destacado o amor do escritor pela URSS e pela sua pátria, o Brasil, no artigo da revista soviética, em que Jorge Amado é descrito como um combatente persistente que luta pela paz mundial e pela felicidade do povo brasileiro. A publicação do artigo de Boris Polevoy demonstra a grande influência da URSS sobre a China na área da recepção de literaturas estrangeiras, provando que a China adotava uma política cultural em conformidade com a política cultural soviética. Sem dúvida nenhuma, foram o poder político e a ideologia socialista que possibilitaram a tradução do romance Terras do Sem-Fim na China e desenvolveram uma positiva atitude oficial ao seu autor, Jorge Amado.

Publicada 1953 pela Editora do Povo e traduzido por Wang Yizhu, a biografia do secretário-geral do Partido Comunista do Brasil, Luís Carlos Prestes, O Cavaleiro da Esperança: Vida de Luís Carlos Prestes5 5 A tradução foi feita a partir da versão em russo, tradução de Yermolayev. leva consigo mais valor político do que cultural. A tradução leva uma nota da tradução da autoria do tradutor chinês, uma introdução feita pelo tradutor russo, uma introdução escrita pelo próprio autor, Jorge Amado, e mais um adendo que é o discurso proferido por Jorge Amado, intitulado “Os Movimentos pela Paz na América Latina”. Destaca-se a introdução feita pelo tradutor russo, em que é apresentada a grande contribuição das obras de Jorge Amado para os leitores da URSS: “[...] permitem aos leitores soviéticos conhecerem a vida e a luta do povo brasileiro e perceberem que o povo brasileiro está, ao lado de outros povos do mundo, defendendo a paz mundial” (Amado, 1953aAmado, Jorge. O cavalheiro da esperança, a vida de Luís Carlos Prestes. Tradução de Wang Yizhu. Beijing: Editora do Povo, 1953a., p. 24). No entanto, a identidade de escritor de Jorge Amado fica bastante escondida pela ideologia individual tanto do tradutor russo quanto do tradutor chinês, que é determinada pela ideologia dominante socialista na URSS e na China. A inserção da avalição por parte da URSS na tradução em chinês, para além de facilitar e aprofundar o conhecimento sobre a obra e o escritor em questão, ainda é capaz de justificar, ideológica e politicamente, a tomada da decisão da tradução na China.

Na nota do tradutor chinês, é primeiramente citada uma carta enviada por Jorge Amado, a 15 de setembro de 1952, para festejar o Congresso da Paz da Ásia e Região do Pacífico realizada em Pequim. Na carta o escritor brasileiro reafirmou sua fraternidade para com a URSS e a China, e a firme posição do povo brasileiro contra a invasão encabeçada pelos Estados Unidos da América na Coréia do Norte, o que era aplaudido pelo governo chinês.

Em 1954, o romance Seara Vermelha6 6 A tradução foi feita a partir da versão em francês, tradução de Violante do Canto. foi traduzido por Zheng Yonghui e publicado pela Editora de Pingming na China. Na parte inicial da tradução, é adicionada uma biografia resumida de Jorge Amado em que são destacados dois fatos: o romance já teve tradução em russo e era muito popular entre os leitores soviéticos; Jorge Amado era um lutador excelente pela paz, enquanto um escritor extraordinário.

Dois anos depois, em 1956 foi lançada na China a tradução de São Jorge dos Ilhéus7 7 A tradução foi feita a partir da versão em francês, tradução de Violante do Canto. (Amado, 1956Amado, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. Tradução de Zheng Yonghui & Jin Mancheng. Beijing: Editora dos Escritores, 1956.), feita por Zheng Yonghui e Jin Mancheng e publicada pela Editora de Escritor. Escreveu o tradutor Zheng Yonghui na nota da tradução: Estes três romances (Terras do Sem-Fim, Seara Vermelha, e São Jorge dos Ilhéus) descreveram três fases da história do povo brasileiro. O Terras do Sem-Fim relatava a história em que proprietários rurais disputaram terras e reservas de mata, expulsando e matando os pobres; O São Jorge dos Ilhéus contava a história em que exportadores de cacau, na qualidade de agentes de imperialistas norte-americanos e alemães, conquistaram terras aos proprietários rurais, nos anos 20 e 30 do século XX; O Seara Vermelha descrevia a vida extremamente miserável das pessoas pobres que tinham perdido terra ou emprego (Amado, 1956Amado, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. Tradução de Zheng Yonghui & Jin Mancheng. Beijing: Editora dos Escritores, 1956.).

A tradução das quatro obras de Jorge Amado não sucedeu por acaso e pelo contrário, pode-se constatar a manipulação do poder que existia desde o início da tradução das quatro obras. A primeira trilogia traduzida na China contém tópicos totalmente alinhados com a ideologia dominante no bloco dos países socialistas, demonstrando a firme posição proletária do escritor comunista. Além disso, o itinerário político e a participação ativa de atividades sociais de Jorge Amado elevaram, de forma substancial, sua voz a favor da paz, liberdade e democracia no mundo, em que reinava a rivalidade entre os dois blocos de países que defendiam os interesses de diferentes classes sociais. Ademais, estas quatro obras, antes de serem introduzidas para a China, tinham sido traduzidas na URSS, o que serviria de uma garantia ideológica e política para as posteriores traduções no contexto chinês.

Tradução restrita de literaturas estrangeiras na China

A partir de meados dos anos 1950, sobretudo no fim da década, devido a uma série de mudanças ocorridas dentro e fora da China, a tradução de literaturas estrangeiras conheceram determinados ajustamentos. A manipulação do poder sobre as atividades de tradução na China se evidencia nas opções feitas pelos patronos das atividades de tradução, que tomavam decisões acerca de tradução de acordo com as mudanças das relações de poder no contexto tanto doméstico quanto internacional.

Contexto internacional: conflito sino-soviético

O conflito sino-soviético se manifestou nas áreas diplomática, ideológica e até militar. Dentro do bloco de países socialistas, a URSS mantinha uma imagem preponderante sobre os demais membros socialistas. O chauvinismo contra os Estados Unidos se desenvolveu para um nacionalismo agressivo, que solicitava uma sujeição e obediência absoluta dos outros países socialistas, o que danificou, de certo modo, os interesses desses países e a fraternidade entre si. Em meados da década 1950, uma posição sem alinhamento veio a ser preconizada pelo governo chinês no palco internacional, o que trouxe para o país cada vez mais influência na comunidade internacional. De certo modo, a influência ascendente da China, apesar de poder aumentar a voz do bloco dos países socialistas, não era algo de que a URSS gostava, porque isso implicava a diminuição da influência que mantinha sobre o jovem regime comunista da China, e o estatuto de irmão mais velho do bloco socialista ficaria abalado.

O XX Congresso da URSS (1956), em que o secretário-geral do Partido Khrushchev fez o famoso Discurso Secreto, denunciando a política e o culto da personalidade de Stalin, gerou uma grande confusão no mundo comunista. Para além disso, Khrushchev propôs o princípio de Transição Pacífica, Concorrência Pacífica e Coexistência Pacífica, a fim de atenuar as tensões com os Estados Unidos e controlar o mundo em colaboração com os mesmos. A URSS acabou ampliando este princípio até todos os países socialistas, obrigando-os a servir aos interesses soviéticos, em detrimento do desejo da independência e igualdade dos países periféricos. Desde então, os atritos vinham emergindo entre a China e a URSS e se desenvolveram até a ruptura sino-soviética em 1964.

Com relação a Jorge Amado, o romancista comunista começou a distanciar-se, em 1955, da ideologia comunista durante os anos de exílio na Checoslováquia. A explicação que o escritor deu com relação ao abandono da militância política era sua carreira profissional como escritor (LBI, 2012LBI. “Cem anos de Jorge Amado: os ‘Subterrâneos’ de um renegado”. 10/08/2012. Blog da LBI. Disponível em: http://lbi-qi.blogspot.com/2012/08/100-anos-do-nascimento-de-jorge-amado.html. Acesso em 20 fev. 2022.
http://lbi-qi.blogspot.com/2012/08/100-a...
). No entanto, ainda se pode verificar alguma desilusão a respeito do comunismo, pelo que o afastamento do Partido Comunista coincidiu com a sua clareza de ideais a respeito da democracia: “[...] a esquerda em geral não é democrata...ditadura do proletariado, que resultou em ditaduras pessoais e violentas. Democracia não tem nada a ver com ideologia” (LBI, 2012LBI. “Cem anos de Jorge Amado: os ‘Subterrâneos’ de um renegado”. 10/08/2012. Blog da LBI. Disponível em: http://lbi-qi.blogspot.com/2012/08/100-anos-do-nascimento-de-jorge-amado.html. Acesso em 20 fev. 2022.
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, s. p.).

O afastamento do Partido Comunista e o abandono da militância política de Jorge Amado não lhe trouxeram problemas no meio comunista, e não se encontrou nenhum registro com relação à mudança ocorrida ao escritor brasileiro no contexto chinês. Durante o conflito sino-soviético, a China excluiu escritores latino-americanos de esquerda que assumiram uma posição pró-soviética, mas Jorge Amado não foi resistido nem criticado na China, o que era determinado pela sua posição política e ideológica refletida em suas quatro obras traduzidas, que se encaixavam perfeitamente na ideologia política dominante da época. Como o único escritor de língua portuguesa da América Latina que já estava afastado do Partido Comunista Brasileiro e fora do grupo soviético, essas quatro obras foram favorecidas pelo PCC e até foram republicadas. Pode-se considerar isso como resultado da escolha natural do poder político.

Contexto doméstico: autorreflexões da China na tradução literária

No contexto chinês, a ênfase demasiada na analogia ideológica e política passou a constituir o único critério na introdução de literaturas estrangeiras. O grande fluxo das obras traduzidas, sobretudo da URSS, começava a prejudicar a consciência nacionalista da sociedade chinesa. Foi neste contexto interno que o governo chinês decidiu reajustar a introdução de literaturas estrangeiras e, na verdade, esta preocupação doméstica se mantinha paralela com a conjuntura política internacional, em que o conflito sino-soviética já era perceptível.

Em abril de 1956, Mao Zedong formulou a diretriz de Que Cem Flores Desabrochem, Que Cem Escolas de Pensamento Rivalizem para diversificar a cultura nacional. Para o jovem regime comunista, a ideologia política no país não deveria encobrir a consciência nacionalista e danificar a independência da cultura nacional. Ademais, pode-se constatar uma sincronia bastante visível entre as autorreflexões da China e o conflito sino-soviético, assim como a confusão que o conflito gerou entre os partidos comunistas do mundo. As autorreflexões do regime chinês, juntamente com a manipulação da ideologia dominante do país, trouxeram mudanças nas atividades de tradução de literaturas estrangeiras. A partir de 1955, a tradução literária foi reduzida e a política de Inclinação para Um Lado na área cultural foi abandonada.

Desde o segundo semestre de 1957, o governo chinês iniciou a Campanha Antidireitista que tinha como objetivo expurgar os que eram considerados de direita dentro e fora do PCC. A ideologia dominante do país voltou a ser mais salientada do que a consciência nacionalista, e a Campanha passou a ser ampliada, interrompendo o reajustamento da tradução literária que teve início em 1955. Sendo assim, a tradução literária assumiu novas caraterísticas. As literaturas dos países do Terceiro Mundo ganharam mais peso, pois o governo pretendia reforçar sua ligação cultural com esses países para aumentar a voz anticolonialista e defender a independência nacional, a fim de fazer face à hegemonia dos Estados Unidos e URSS. A tradução da literatura soviética, por sua vez, apresentou mais uma variação destacada com a intensificação da Guerra Fria, que obrigou a China a fortalecer a conformidade da ideologia dominante com a ideologia soviética e, defender o realismo socialista na área cultural. A tradução da literatura soviética, já diminuída com o reajustamento no país, ganhou mais uma vez força no fim da década. Contudo, esta vitalidade renascida não durou muito tempo, desaparecendo desde 1964, devido à deterioração das relações bilaterais.

Combinando com os fatores externos e internos, Seara Vermelha foi republicado em 1956 e 1957, e Terras do Sem-Fim em 1958, ano em que parou a tradução das obras de Jorge Amado nesta década.

A manipulação maximizada durante a Revolução Cultural

Com a ampliação da Campanha Antidireitista, uma mentalidade orientada para a esquerda passou a ocupar a posição preponderante dentro do PCC e a ideologia dominante no país tendeu a ficar cada vez mais dogmática e irracional. Como resultado, o campo cultural e ideológico da China tornou-se cada vez mais fechado e autocrático. A Revolução Cultural (maio de 1966 - agosto de 1976) foi proposta pelo líder do país, Mao Zedong, que tinha como objetivo prevenir a ascensão da oposição do socialismo e preservar a pureza do Partido Comunista da China.

A literatura e a arte foram muito afetadas na Revolução e a tradução literária foi considerada um ato que admirava coisas estrangeiras e adulava estrangeiros. À maioria das traduções publicadas foi posta a etiqueta de Sementes Venenosas do Capitalismo e muitas obras literárias da URSS foram chamadas de Revisionismo Ressuscitado. Como resultado, as traduções etiquetadas não podiam ser mais vendidas, e muitas livrarias e bibliotecas foram fechadas. Muitas figuras do meio cultural, inclusive tradutores, foram alvos de perseguição política: foram criticados e denunciados em público, e foram depois detidos em chamados “estábulos”.

Nesta atmosfera política particular, nenhuma obra literária estrangeira foi publicada durante os cinco anos desde maio de 1966 a novembro de 1971. Em dezembro de 1971, teve lugar o Fórum do Trabalho de Publicação Nacional que permitiu certa retomada de atividades de publicação, que continuaram muito limitadas. A organização das atividades de tradução foi feita de uma forma extremamente centralizada, que tornou a tradução literária em uma linha de produção controlada pelo poder político, e os tradutores eram como se fossem máquinas na linha de produção, perdendo a independência e a subjetividade. Os nomes verdadeiros dos tradutores não podiam aparecer na obra traduzida e eram substituídos por um pseudónimo e um nome do grupo que fazia a tradução (Xie, 2009Xie, Tianzhen. 非常时期的非常翻译 [Tradução Especial no Período Especial]. Literatura Comparativa da China, 2, p. 23-35, 2009.).

A recepção das obras traduzidas também foi fortemente manipulada pelo poder político, sendo dividida em dois tipos: no primeiro, as obras traduzidas podiam vender-se nas livrarias, contando com uma quantidade reduzida e, dentre as quais, a maioria tinha sido publicada antes da Revolução Cultural e tinha sido aprovada pelo poder político do país. O segundo foi chamado de “circulação interna” (Xie, 2009Xie, Tianzhen. 非常时期的非常翻译 [Tradução Especial no Período Especial]. Literatura Comparativa da China, 2, p. 23-35, 2009., p. 24), segundo a qual as obras traduzidas foram disponibilizadas a um público restrito, que era composto por altos oficiais do PCC e intelectuais próximos do núcleo do poder. Nas notas de tradução, prefácios ou introduções, o valor literário das obras era negligenciado e o destaque residia sempre nos valores aprovados pela censura ideológica, conduzindo a uma leitura parcial e ideologizada.

As atividades de tradução durante a Revolução Cultural demonstram, de forma extrema, todas as caraterísticas da tradução institucionalizada. As relações de poder se maximizaram neste período histórico e o poder político empregou ao máximo a ideologia dominante para controlar todas as atividades de tradução, a fim de atender seus objetivos políticos e ideológicos. As obras de Jorge Amado foram excluídas da China durante a Revolução Cultural, depois de quatro obras terem sido, anteriormente, já traduzidas mesmo antes da década de 1960.

Considerações Finais

O presente trabalho analisou fatos históricos que levaram ao controle político e ideológico, e à manipulação das atividades de tradução na China desde a fundação da RPC em 1949 até o término da Revolução Cultural na China em 1976, com destaque para a tradução de obras do escritor brasileiro, Jorge Amado, o exemplo mais relevante de recepção a nível mundial da literatura brasileira. Esta comunicação cultural entre a China e o Brasil não aconteceu por acaso.

A fim de defender sua independência nacional e a ideologia socialista, a ideologia política dominante da China manipulou as atividades de tradução da época, que eram tomadas na década de 1950 como uma ferramenta política e diplomática do jovem regime comunista e, o critério de seleção das obras para serem traduzidas residiu principalmente nas escolhas e afinidades políticas do regime. O próprio governo chinês foi o maior patrocinador das atividades de tradução no país, mesmo que essas atividades fossem praticadas pelos patrocinadores intermediários, ou seja, as diversas editoras. Os especialistas do meio literário, tais como pesquisadores acadêmicos e tradutores foram alvos da manipulação do poder político e da ideologia dominante, o que se pode ver nitidamente na tradução de obras de Jorge Amado, que se enquadrou na estrutura de institucionalização da tradução literária na China até 1976.

A qualidade de membro do partido comunista de Jorge Amado, bem como sua militância política foram os fatores preferidos pelo governo chinês. Nas relações entre o poder e a tradução, a tradução, por sua vez, também exerce influência sobre o poder. No caso da tradução de obras de Jorge Amado, a tradução das quatro obras durante os anos 1950 serviu diretamente à ideologia dominante do país, contribuindo para consolidar, na área ideológica e cultural, o poder político.

As relações de poder nunca são estagnadas e variam com a evolução da sociedade chinesa e da conjuntura internacional. As opções dos patronos das atividades de tradução refletem a manipulação do poder e as mudanças ocorridas nas atividades de tradução nesta época constitui uma prova cabal do exercício das relações dinâmicas do poder.

  • 1
    A Editora da Literatura do Povo foi fundada em março de 1951 em Pequim e fica diretamente subordinada ao Ministério da Cultura da China. É uma das editoras mais importantes da China e se dedica mais à publicação de obras literárias e tem publicado mais de 3.000 obras traduzidas na China.
  • 2
    A Livraria Xinhua tem uma história mais longa do que a República Popular da China, pois foi fundada em 1937 pelo Partido Comunista da China. Fica, desde 1949, subordinada ao Departamento de Propaganda do Comité Central do Partido e é a maior livraria estatal.
  • 3
    A revista foi criada pelo Partido Comunista da China em 1934, com o objetivo de apresentar a atualidade mundial aos chineses. A revista passou a avaliar a conjuntura internacional, relevar ambições de países fascistas e apelar à união de todos os povos oprimidos. O cunho político da revista é patente em suas publicações.
  • 4
    A tradução foi feita a partir da versão em inglês The Violent Land, com tradução de Samuel Putnam.
  • 5
    A tradução foi feita a partir da versão em russo, tradução de Yermolayev.
  • 6
    A tradução foi feita a partir da versão em francês, tradução de Violante do Canto.
  • 7
    A tradução foi feita a partir da versão em francês, tradução de Violante do Canto.

Referências

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  • Amado, Jorge. Os subterrâneos da liberdade São Paulo: Martins Editora, 1954a.
  • Amado, Jorge. Os subterrâneos da liberdade. Tradução de G. Kalugin, A. Sipovich & I. Tynyanova. Moscow: Foreign Literature Publishing House, 1954b.
  • Amado, Jorge. Seara vermelha. Tradução de Zheng Yonghui. Shanghai: Editora Pingming, 1954c.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Nov 2023
  • Aceito
    17 Nov 2023
  • Publicado
    Dez 2023
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