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VINCENZO GROSSI: TRADUZINDO O OLHAR COLONIAL

VINCENZO GROSSI: TRANSLATING THE COLONIALIST POINT OF VIEW

Resumo

Este texto é o paratexto da tradução de dois capítulos de Nel paese delle Amazzoni, livro publicado pelo professor italiano Vicenzo Grossi (1860-1913) em Roma em 1897, após uma longa viagem à América do Sul e, especificamente, ao Brasil e à Amazônia (1891-1892). A relevância do texto de Grossi é devida à apresentação de vários aspectos da região amazônica, à síntese de textos de outros viajantes estrangeiros do século XIX e à exposição, mais uma vez, do olhar estrangeiro colonialista sobre a Amazônia e o Brasil em geral, vistos como importantes para o comércio e os interesses econômicos europeus. Os trechos traduzidos vertem sobre os aspectos antrópicos da região, por um lado, e sobre mitos e canções dos índios (neste caso, não apenas amazônicos).

Palavras-chave
Vincenzo Grossi; Nel paese delle Amazzoni; Tradução; Colonialismo

Abstract

This text is the paratext of the translation of two chapters of Nel paese delle Amazzoni, published in Rome in 1897 by the Italian professor Vicenzo Grossi (1860-1913), after his long trip to South America and specifically to Brazil and the Amazon (1891-1892). The relevance of Grossi’s text is due to the presentation of various aspects of the Amazon region, to the synthesis of texts by other foreign travelers of the 19th century and to the exposition, once again, of the colonialist foreign point of view on Brazil, seen as important for trade and European economic interests. The translated excerpts deal with the anthropic aspects of the region, on the one hand, and with the myths and songs of the Indians (in this case, from various Brazilian regions).

Keywords
Vincenzo Grossi; Nel paese delle Amazzoni; Translation; Colonialism

Não é um acaso que, principalmente no final do século XIX e no começo do século XX, tenha havido tantas publicações europeias e norte-americanas sobre o Brasil e, em especial, sobre a região amazônica1 1 Para mais exemplos, veja as traduções e comentários às traduções de relatos de viagens sobre a Amazônia publicados anteriormente na Cadernos de Tradução nas edições especiais Traduzindo a Amazônia I (Guerini, Torres & Fernandes, 2021) e Traduzindo a Amazônia II (Guerini, Torres & Fernandes, 2022). . Tensões no continente europeu, desejos ou necessidade de expansão política, militar e comercial, por um lado; o aprofundamento da doutrina Monroe, pelo outro, ao passo em que o Brasil, recém saído da escravatura e do império, buscava um novo povoamento, inclusive com a conhecida missão de acrescentar mão de obra etnicamente “mais interessante” para o projeto de um Brasil renovado, ou seja, de branqueamento do país. Interessante, ou seja, evidentemente, não negra. Lembremos que na Europa as ideias de Francis Galton, primo de Darwin e pai da eugenia, estavam sendo desenvolvidas desde a segunda metade do século XIX: se no Brasil Renato Kehl fundou só em 1918 a Sociedade Eugênica Brasileira (cf. Carvalho, 2021Carvalho, Leonardo Dallacqua de. “Diferentes sentidos da eugenia galtoniana interpretados por Renato Kehl durante a campanha eugê>nica brasileira”. Anos 90, 28, p. 1-14, 2021. DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.101192
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; sobre Kehl, cf. também Goés, 2015Goés, Weber Lopes. Racismo, eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl. 2015. 276 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista Jú>lio de Mesquita Filho, Marília, São Paulo, 2015. e Fiuza, 2017Fiuza, Denis Henrique. “A Propaganda da Eugenia no Brasil: Renato Kehl e a implantação do racismo científico no brasil a partir da obra ‘‹>Liçõ>es de Eugenia’”. Revista Aedos, 8(19), p. 85-107, 2017.), apoiado pela entusiástica admiração de Monteiro Lobato, entre outros (Carvalho, 2021Carvalho, Leonardo Dallacqua de. “Diferentes sentidos da eugenia galtoniana interpretados por Renato Kehl durante a campanha eugê>nica brasileira”. Anos 90, 28, p. 1-14, 2021. DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.101192
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), certamente as ideias eugênicas vigoravam no país havia vários anos. Neste sentido, Kehl escreveu em 1935 uma espécie de manifesto do branqueamento que, mesmo sendo muito posterior à entrada no Brasil de enormes contingentes de imigrantes europeus, bem se enquadra com a receptividade concedida aos imigrantes vindos de nações mais aceitáveis em termos étnicos: “Ninguém poderá negar que no correr dos anos desaparecerão os negros e os índios das nossas plagas, assim como os produtos resultantes desta mestiçagem. A nacionalidade embranquecerá a custa de muito sabão de coco ariano” (Kehl apud Maciel, 1999Maciel, Maria Eunice. “A eugenia no Brasil”. Anos 90, 11, p. 121-143, 1999. DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.6545
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, p. 132). Era este o devir-branco tão almejado por grande parte da sociedade brasileira: lembremos que Kehl apoiava com entusiasmo a ideia da esterilização obrigatória dos “tarados”, a saber, cegos, surdos, “degenerados e criminosos” (apud Maciel, 1999Maciel, Maria Eunice. “A eugenia no Brasil”. Anos 90, 11, p. 121-143, 1999. DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.6545
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, p. 131), e é interessante saber que tais práticas aconteciam não apenas na Alemanha, mas também na Suíça, na Dinamarca, na Suécia, na Noruega e nos Estados Unidos, onde, radicalizando, a esterilização forçada era aplicada também a prostitutas e mães solteiras (Maciel, 1999Maciel, Maria Eunice. “A eugenia no Brasil”. Anos 90, 11, p. 121-143, 1999. DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.6545
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).

Voltando a Francis Galton, um artigo sobre sua pouco conhecida viagem à África, em 1852, contém uma interessante reflexão sobre o papel das sociedades geográficas europeias, em especial a Royal Geographical Society britânica: “[...] dentro de um aparato europeu de representação […] mesmo as mais diversas opiniões sobre as condições dos nativos africanos tendem a resultar na legitimação da instância científica europeia como única capaz de gerar sentidos” (Gebara apud Cunha & Carvalho, 2015Cunha, Fabiana Lopes da & Carvalho, Leonardo Dallacqua de. “Relatos de um explorador inglês: uma perspectiva da viagem de Francis Galton pelo Sudoeste da África (1850-1852)”. Sæculum - Revista de História, 33, p. 319-337, 2015., p. 321). Sentidos estes que, em geral, encontramos nas diversas publicações que mencionei no início: o olhar dos viajantes e de suas sociedades geográficas e/ou comerciais (penso aqui no autor do texto do qual apresento aqui alguns trechos, Vincenzo Grossi, docente universitário justamente de geografia comercial) constitui-se como o único legitimado, aquele através do qual devem passar todas as interpretações, inclusive dos habitantes dos locais descritos. Este olhar, portanto, se constituiu, ao longo dos séculos, como um monstruoso espelho que deforma e, mais monstruosamente ainda, apaga qualquer outra possibilidade de visão e interpretação de lugares, fatos, pessoas, que passam a se compreender e até a existir na imagem distorcida de si como criada e fantasiada (mas com objetivos muito concretos) pela perspectiva estrangeira. E, de fato, lembremos que “o pensamento europeu sempre teve tendencia para abordar a identidade não em termos de pertença mutua (co-pertença) a um mesmo mundo, mas antes na relação do mesmo ao mesmo, do surgimento do ser e da sua manifestação no seu ser primeiro ou, ainda, no seu próprio espelho” (Mbembe, 2014Mbembe, Achille. Crítica da razão negra. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014., p. 10). Assim, podemos pensar que os subalternos não só não podem falar (Spivak, 2014), sempre intermediados pelas vozes coloniais e neocoloniais, como não podem nem pensar em si. Neste sentido, e como contraponto, é no século XXI, quando a Europa deixa de ser o centro de propagação de ideias no mundo, que o intelectual camaronês Achille Mbembe, abrindo espaço a um pensamento oriundo do sul global, formula a sua Crítica da razão negra, abordando as questões fundamentais para analisar a questão do negro no contexto da expansão colonial a partir do século XVI. A reflexão empreendida pelo pensador, desde o capitalismo mercantil aos tempos da globalização financeira, aponta para um devir-negro do mundo, posto que os efeitos nefastos do capitalismo desregulado, precarizando a vida, estabelecendo como relação a exploração desmedida das pessoas, retirando-lhes cada vez mais direitos, reduzem-nas a condições análogas a dos negros na modernidade (Mbembe, 2014Mbembe, Achille. Crítica da razão negra. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014.).

De qualquer forma, esclareço que nada nos induz a pensar que Grossi (1860-1913) apresentasse alguma simpatia pelo pensamento da eugenia. Pelo contrário, o professor universitário manifesta em seus escritos, e especificamente os que concernem a região amazônica - do qual retirei os trechos aqui traduzidos - interesse e relativo respeito humano e acadêmico pelos índios, dos quais descreve sinteticamente a cultura, a história e os hábitos. Cito por exemplo, do seu texto mais conhecido, Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della Emigrazione Italiana nello Stato di S. Paulo (Grossi, 1914Grossi, Vincenzo. Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo (1905). 2. ed. Edizione riveduta dall’Autore. Milano-Roma-Napoli: Dante Alighieri, 1914. Disponível em: https://bit.ly/3KZTEOR. Acesso em: 19 mar. 2023.
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), um trecho sobre as bandeiras, que em nada reproduz a visão romântica dos bandeirantes, que recentemente substituíram, através de Fernão Dias, o nome de Paulo Freire numa futura estação de metrô de São Paulo. “[…] os colonos de São Paulo […], desde o começo da ocupação, já exerciam o tráfico dos Índios; tráfico tão odioso quanto lucrativo, que aos poucos foi se estendendo e organizando, sonda forma daquelas terríveis bandeiras, tão famosas nas crônicas e nos anais brasileiros do século XVII” (Grossi, 1914Grossi, Vincenzo. Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo (1905). 2. ed. Edizione riveduta dall’Autore. Milano-Roma-Napoli: Dante Alighieri, 1914. Disponível em: https://bit.ly/3KZTEOR. Acesso em: 19 mar. 2023.
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, p. 110)2 2 “[…] i coloni di S.Paulo […], fin dagli inizi dell’occupazione, esercitavano già il traffico degli indiani; traffico altrettanto odioso quanto lucroso, che si andò man mano estendendo ed organizzando, sotto forma di quelle terribili bandeiras, così famose nelle cronache e negli annali brasiliani del secolo XVII” (Grossi, 1914, p. 110). .

Deve ser observado que Grossi, apesar de criticar em mais oportunidades a prática da escravidão (“aquela odiosa instituição”, Grossi, 1914Grossi, Vincenzo. Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo (1905). 2. ed. Edizione riveduta dall’Autore. Milano-Roma-Napoli: Dante Alighieri, 1914. Disponível em: https://bit.ly/3KZTEOR. Acesso em: 19 mar. 2023.
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, p. 121)3 3 “quell’odiosa istituzione”. não demonstra pelos africanos a mesma simpatia que tem pelos índios: “Infelizmente, porém, enquanto por um lado os escravos africanos concorriam para aumentar a riqueza pública com seu trabalho, pela outra contribuíam potentemente à perversão dos costumes com suas crenças supersticiosas e imorais, não menos que com seus instintos sanguinários e depravados”(Grossi, 1914Grossi, Vincenzo. Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo (1905). 2. ed. Edizione riveduta dall’Autore. Milano-Roma-Napoli: Dante Alighieri, 1914. Disponível em: https://bit.ly/3KZTEOR. Acesso em: 19 mar. 2023.
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, p. 119)4 4 “Disgraziatamente, però, mentre da una parte gli schiavi africani concorrevano ad aumentare la ricchezza pubblica col loro lavoro, dall’altra essi contribuivano potentemente a pervertire i costumi, colle loro superstiziose ed immorali credenze, non meno che coi loro istinti sanguinari e depravati” (Grossi, 1914, p. 119). .

Por que traduzir, hoje, parte do volume de Vincenzo Grossi? No âmbito do projeto dos três volumes de Traduzindo a Amazônia, de relevância não apenas cientifica, mas profunda e eticamente política, o texto do professor italiano não demonstra tão claramente, como em vários outros dos seus textos não diretamente relacionados com a Amazônia, a visão utilitarista e colonialista do Novo Mundo, principalmente sul-americano, patente em muitos outros artigos e livros de Grossi, cujos títulos, bastante explicativos, listei a seguir. Ainda assim, observamos em sua prosa o costumeiro olhar colonial europeu pelo qual o novo mundo, e principalmente o hemisfério sul, era apenas uma peça no jogo político-econômico do vindouro século XX, ainda que este viés utilitaríssimo esteja em alguns momentos amenizado por um interesse aparentemente genuíno pelos costumes e pelas geografia e história dos lugares visitados. Por outro lado, Grossi esforçou-se por analisar cuidadosamente boa parte da bibliografia então disponível, e em boa parte também estrangeira, sobre a Amazonia e o Brasil em geral, levando seu volume a constituir-se também como um interessante resumo dos conhecimentos e das opiniões da época sobre o Brasil e, principalmente, sobre a Amazonia, da qual, já naquela época, se intuía facilmente o potencial econômico e político.

Vincenzo Grossi, nascido em 1860 em Pollone, pequena cidade na provincia de Biella, no Piemonte, formado em letras e direito, foi etnógrafo e geógrafo. Docente da Università di Genova, trabalhou na organização da exposição ítalo-americana de Genova em 1892; por causa disso em 1891 viajou pela primeira vez à América do Sul, e novamente em 1897, que resultou no volume Nel paese delle Amazzoni; veio ao continente ainda em 1903, 1905 e 1907. Trabalhou ativamente em comissões e conselhos vinculados à promoção da emigração e ao desenvolvimento do comércio. Foi cônsul honorário do Brasil em Roma e delegado do Brasil no Istituto Internazionale di Agricultura, em Roma. Foi também membro de sociedades cientificas e comerciais paulistas e correspondente do Jornal do comércio do Rio de Janeiro. Morreu em Roma em 1913.

De uma forma geral, trabalhou acompanhando questões diplomáticas e políticas no mundo inteiro, concentrando, porém, sua atuação na relação da Itália com a América do Sul e especificamente com o Brasil. Entendia e defendia que o Brasil tivesse uma relação comercial privilegiada com a Itália, com a curiosa alegação de que a Itália estava perdendo força de trabalho por causa da emigração e que por isso precisaria ser de alguma forma “indenizada” através de tratados comerciais mais favoráveis:

[…] deve também ser considerada uma questão de equidade internacional. Explicando: seja o que for que tenha sido dito ou escrito sobre as causas e os efeitos da emigração com relação ao país de origem, é certo que este deslocamento de energia redunda a toda vantagem do pais de imigração. Do momento, então, que as que emigram são forças essencialmente perdidas para a pátria-mãe, não é justo que ela pelo menos goze da compensação indireta que lhe pode advir do aumento de seus negócios com aquele determinado país?

(Grossi apud Ratto, 1914Ratto, Mario. “La vita e le opere di Vincenzo Grossi”. In: Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo (1905). 2. ed. Edizione riveduta dall’Autore. Milano-Roma-Napoli: Dante Alighieri, 1914. p. 11-37., p. 21)5 5 “[…] c’è anche una questione di equità internazionale da considerare. Mi spiego: checché si sia detto o scritto sulle cause e sugli effetti della emigrazione rispetto alla madre patria, certo è però che questo spostamento di energia ridonda a tutto vantaggio del paese d’immigrazione. Dal momento, dunque, che quelle che emigrano sono forze essenzialmente perdute per la madre patria, non è giusto che questa abbia almeno a godere del compenso indiretto che le può venire dall’aumento dei suoi traffici con quel determinato paese?” (Grossi, apud Ratto, 1914, p. 21). .

Grossi deixou 110 publicações, entre livros e ensaios, das quais 30 relativas ao Brasil. Dentre estas, além de Nel paese delle Amazzoni aqui parcialmente traduzido e o citado Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della Emigrazione Italiana nello Stato di S. Paulo, encontramos ensaios sobre a hidrografia do estado de Sao Paulo, a situação politica do Rio Grande do Sul e, obviamente, muita atenção à questão da imigração e dos imigrantes italianos no Brasil. Questāo que aparentemente não era tāo pacifica, se o L’esplorazione commerciale e l’esploratore - Viaggi e geografia commerciale, Bollettino della Società d’esplorazione commerciale in Africa (e nāo só na Africa) de 1898, em Milāo, na seçāo sobre os “Stati Uniti del Brasile”, relata “incidentes” aparentemente bem conhecidos à época: “lá estão mais vivas, ásperas, por vezes injustas e transcendem à violência as resistências, os preconceitos e a hostilidade do nativismo inculto, intolerante da invasāo e da relativa fortuna das massas estrangeiras que sobrevieram” (Pini, 1898Pini, Edoardo. La sezione “Italiani all’estero”: gli Stati Uniti del Brasile. L’Esplorazione Commerciale e l’Esploratore. Giornale di viaggi di geografia commerciale. Organo ufficiale della Società di esplorazione commerciale in Africa. Vol. XIII, 1898. p. 329-349., p. 329: não posso não lembrar dos versos barrocos de Gregório de Matos, “Senhora Dona Bahia, / nobre, e opulenta cidade, / madrasta dos Naturais, / e dos Estrangeiros madre”, Matos 2011Matos, Gregório de. Poemas escolhidos. Seleção e prefácio de J. M. Wisnik. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 32)6 6 “sono là più vive, aspre, talora ingiuste e trascendenti alla violenza le resistenze, i pregiudizi ed ostilità del nativismo incolto, intollerante dell’invasione e della relativa fortuna delle masse straniere sopravvenute”. , resistências apesar das quais, nas palavras do então cônsul italiano no Brasil, Pasquale Corte,

Meio milhāo de proletários italianos foram convertidos em proprietários, e tantos artistas, profissionais, lavradores, armadores, capitāes, comerciantes e industriais nossos fizeram sua fortuna;[…] [com] a expressão sincera de uma testemunha ocular, que presenciou a feliz transformaçāo, em poucos anos, de miseráveis camponeses do Vêneto, acometidos pela pelagra e pelo bócio, em proprietários abastados

(Corte apud Pini, 1898Pini, Edoardo. La sezione “Italiani all’estero”: gli Stati Uniti del Brasile. L’Esplorazione Commerciale e l’Esploratore. Giornale di viaggi di geografia commerciale. Organo ufficiale della Società di esplorazione commerciale in Africa. Vol. XIII, 1898. p. 329-349., p. 329-330)7 7 “mezzo milione di proletari italiani furono convertiti in proprietari, e tanti artisti, professionisti, lavoranti, armatori, capitani, commercianti ed industriali nostri fecero la loro fortuna; […]; [con] l’espressione sincera di un testimonio oculare, che aveva presenziato la felice trasformazione, in pochi anni, di miseri contadini del Veneto, affetti dalla pellagra e dal gozzo, in agiati proprietari” (Corte apud Pini, 1898, p. 329-330). .

Certamente o interesse de Vincenzo Grossi pela América do Sul, como pelos outros países que visitou e estudou - em que pese sua formação acadêmica e seu oficio de docente - era guiado de forma quase que exclusiva pelo objetivo de facilitar e incentivar a emigração italiana, por um lado, garantindo as melhores condições possíveis para os emigrantes presentes e futuros nos novos países, entre os quais é citada várias vezes a Argentina mas é principalmente o Brasil que ocupa uma posição proeminente por tamanho, fartura de terras férteis e acolhida generosa (mesmo com os alegados problemas citados acima) dos imigrantes europeus e em geral brancos. Além disso, Grossi tinha o objetivo de promover a expansão do comércio italiano naqueles territórios, entre outros, que acolheram os emigrantes. Assim, seus estudos de hidrogeologia, topografia, agricultura, geologia, entre outros, são finalizados às disciplinas de geografia comercial, e, ainda mais explicitamente, geografia colonial, ambas lecionadas por ele. “E para guiar nossos emigrantes e nossos comerciantes à conquista de novos mercados e trabalho e de venda, Grossi ensinava como fosse necessário ter um amplo conhecimento da terra e seus recursos com relação à Itália e à concorrência internacional” (Cianetti apud Ratto, 1914Ratto, Mario. “La vita e le opere di Vincenzo Grossi”. In: Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo (1905). 2. ed. Edizione riveduta dall’Autore. Milano-Roma-Napoli: Dante Alighieri, 1914. p. 11-37., p. 118)8 8 “E per guidare i nostri emigranti e i nostri commercianti alla conquista di nuovi mercati di lavoro e di smercio, insegnava il Grossi come facesse d’uopo possedere una larga conoscenza della terra e delle sue risorse in rapporto all’Italia e alla concorrenza internazionale” (Cianetti apud Ratto, 1914, p. 118). .

Observemos então alguns títulos de seus trabalhos, entre artigos e livros:

L’idrografia dello Stato brasiliano di S. Paulo, e l’esplorazione dei fiumi Itapetininga e Paranapanema. Torino, 1892; Gl’interessi italiani e la rivoluzione nello Stato brasiliano di Rio Grande del Sud. Milano, 1893; Note e appunti sulla Geografia medica dell’America. Climatologia, Geologia e Idrologia medica dello Stato brasiliano di Minas-Geraes. Torino, 1893; Contribuzioni allo studio della Emigrazione italiana al Brasile. Torino, 1894; Emigrazione e Commercio: per la conclusione di un Trattato di amicizia, commercio e navigazione fra l’Italia e il Brasile. Roma, 1894; Per un migliore indirizzo ed una più efficace tutela dell’Emigrazione italiana all’estero, specialmente al Brasile. Roma, 1894; Geografia medica e Colonie: la questione dell’acclimatazione degli Europei nel Nord del Brasile. Roma, 1894; La geografìa economica dell’America del Sud e il commercio italiano. Roma, 1895; L’America del Sud e il Commercio italiano. Roma, 1895; Sui progressi degli studi intorno alla Geologia e Mineralogia del Brasile. Roma, 1895; Le miniere del Brasile. Roma, 1895; Geografìa medica e Colonie. - 1. L’America del Sud dal punto di vista dell’Emigrazione europea. Roma, 1895; L’emigrazione italiana in America, specialmente al Brasile. Roma, 1895; Gl’Italiani a S. Paulo. Roma, 1896; Alla conquista di nuovi sbocchi commerciali: l’Amazzonia e gli interessi italiani nel Nord del Brasile. Milano, 1897; Per la protezione degli emigranti italiani all’estero. Roma, 1899; La crisi del caffè e l’emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo. Roma, 1902; La Geografia medica dell’America del Sud e l’acclimatazione dei coloni europei. Roma, 1902; Appunti sulla geografia fisica del Brasile. Roma, 1902; La Geografia economica del Brasile e il Commercio italiano. Roma, 1902; Un programma di politica coloniale: Per una «più grande Italia». Roma, 1902; Politica dell’emigrazione e delle colonie. Roma, 1903; Tedeschi e Italiani nel Brasile meridionale. Città di Castello, 1904; Storia della colonizzazione europea al Brasile e dell’emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo. Roma, 1905; La crisi del caffè e i progetti per la fissazione del cambio al Brasile. Roma,1906; La «Hevea Brasiliensis» e le altre piante a caucciù. Roma, 1907; Il caffè del Brasile nel commercio internazionale, con speciale riguardo agli interessi italiani. Roma, 1907.

Peço desculpa por esta longa lista de títulos (retirada de Ratto, 1914Ratto, Mario. “La vita e le opere di Vincenzo Grossi”. In: Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo (1905). 2. ed. Edizione riveduta dall’Autore. Milano-Roma-Napoli: Dante Alighieri, 1914. p. 11-37., p. 27-37), na qual não distingui entre livros e artigos e selecionei apenas os textos relativos ao Brasil e à imigração do ponto de vista citado acima, promover a emigração italiana em geral e os interesses comerciais do país especificamente no Brasil, excluindo, portanto, textos sobre o folclore brasileiro ou notas de viagem sobre o Rio de Janeiro. Aqui podemos ver claramente que o interesse de Grossi, lembrando nisso os antigos viajantes europeus dos séculos XVI e XVII, era na descrição das riquezas naturais brasileiras, nas condições sanitárias locais (visando a uma melhor aclimatização dos emigrantes) e nas possibilidades comerciais de acordos entre os dois países. Enfim, um olhar nitidamente colonialista, visando única e firmemente os interesses italianos de escoar população excedente e por várias razoes indesejável, por um lado, e aproveitar as promissoras condições econômicas da América Meridional, especificamente do Brasil, para acordos comerciais especialmente vantajosos, graças inclusive à disponibilidade política do Brasil, por sua vez desejoso, como vimos, de receber imigrantes europeus em contraposição aos seus cidadãos negros. Neste sentido, no Brasil e na Argentina a Itália atuava uma política colonialista diferente, mas não menos perniciosa, buscando expandir seus negócios através da exploração da própria mão de obra emigrada e preterindo a mão de obra local. Cito da introdução de Grossi à Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo:

[deseja-se] 3° chamar a atenção do Governo e do Parlamento sobre um País que, além de já hospedar um número relevante de Italianos, poderia - através de uma sabia, inteligente previdente política, qual eu sempre apoiei no Conselho da Emigração - tornar-se a principal e mais importante vazão da nossa produção agrícola e industrial na América do Sul.

(Grossi, 1914Grossi, Vincenzo. Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo (1905). 2. ed. Edizione riveduta dall’Autore. Milano-Roma-Napoli: Dante Alighieri, 1914. Disponível em: https://bit.ly/3KZTEOR. Acesso em: 19 mar. 2023.
https://bit.ly/3KZTEOR...
, p. 5)9 9 “[si desidera] 3° richiamare l’attenzione del Governo e del Parlamento sopra un Paese che, oltre ad ospitare di già un rilevante numero d’Italiani, potrebbe - mediante una savia, oculata previdente politica, quale ho sempre sostenuta in seno al Consiglio dell’Emigrazione - diventare il principale e più importante sbocco della nostra produzione agricola e industriale nell’America del Sud” (Grossi, 1914, p. 5). .

Não sendo uma potência colonial, apesar das (não suficientemente) malogradas tentativas africanas, evidentemente, na visão de Grossi, a Itália conseguiria boas condições comerciais e lucros altos pelo tamanho do contingente populacional exportado. População esta à qual a Italia não garantia condições de vida, menos ainda vida digna: lembremos os citados “miseráveis camponeses do Vêneto, acometidos pela pelagra e pelo bócio”, para não falar dos habitantes do sul da Itália, além do mais tratados pelo exército de Sabóia como terra colonizada - ver La Regina, 2011La Regina, Silvia. “Memórias do Coronel Pietro Fumel: um Garibaldino na Calábria>”. In: Constantino, N. S. De & Fayv, C. M. (Org.). Garibaldi, História e Literatura: Perspectivas Internacionais. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011. p. 315-324. e principalmente Gramsci na Questione meridionale (escrito em 1926) citando por sua vez um artigo de 1920 da revista Ordine Nuovo de Turim, por ele fundada: “A burguesia setentrional subjugou a Itália meridional e as ilhas e os tornou colônias a serem exploradas” (Gramsci, 1995Gramsci, Antonio. La questione meridionale. Roma: Editori Riuniti, 1995., p. 4)10 10 “La borghesia settentrionale ha soggiogato l’Italia meridionale e le isole e le ha ridotte a colonie di sfruttamento” (Gramsci, 1995, p. 4). . A questão do brigantaggio conhecidamente teve relevância fundamental na expulsāo maciça de grandes contingentes da população meridional para as Américas e notadamente o Brasil: principalmente os primeiros anos depois da unificação italiana, pelo menos até 1865, foram de grande convulsão social e enorme repressão no sul do país: “Em 1863, o Parlamento aprovou uma lei que institui, nas províncias declaradas em estado de ‘brigantaggio’, um verdadeiro regime de guerra: tribunais militares para julgar os rebeldes e fuzilamento imediato para quem opusesse resistência com as armas”11 11 “Nel 1863 il Parlamento approvò una legge che istituiva, nelle province dichiarate in stato di ‘brigantaggio’, un vero e proprio regime di guerra: tribunali militari per giudicare i ribelli e fucilazione immediata per chi avesse opposto resistenza con le armi” (Sabbatucci & Vidotto, 2018, p. 250). (Sabbatucci & Vidotto, 2018Sabbatucci, Giovanni & Vidotto, Vittorio. Storia contemporanea. L’Ottocento. Bari: Laterza, 2018., p.250; sobre o brigantaggio, ver também o clássico texto de Molfese, 1972Molfese, Franco. Storia del brigantaggio dopo l’Unità. 2. ed. Milão: Feltrinelli, 1972.). A esta população, porém, tanto do Vêneto como do antigo reino borbônico, o Brasil doava terras e meios de sobrevivência, sem dúvida visando o branqueamento, direta consequência das nefastas teorias de Nina Rodrigues, entre outros, e pelo qual, nas palavras de Joao Batista de Lacerda em 1911, “[…nesse] processo de redução étnica é lógico esperar que no curso de mais um século os métis tenham desaparecido no Brasil. Isso coincidirá com a extinção paralela da raça negra em nosso meio”, conclui com visível satisfação Lacerda (apud Skidmore, 1976Skidmore, Thomas. Preto no branco. Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Tradução de Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976., p. 83). Aqui, no momento em que escrevo, fica impossível não lembrar o infame debate sobre a sostituzione etnica que agita o abril de 2023 da política italiana (cf., entre muitos, De Luca, 2023De Luca, Davide Maria. Sostituzione etnica: un filo nero da Freda a Salvini. Domani, 19 abr. 2023. Disponível em: https://www.editorialedomani.it/politica/italia/il-complotto-amato-dalla-destra-un-filo-nero-da-freda-a-salvini-wtw303he. Acesso em: 23 abr. 2023.
https://www.editorialedomani.it/politica...
, s.p.). Voltando ao assunto anterior (ligado muito fortemente àquele que acabo de citar), é interessante observar como as ideias relativas ao branqueamento vigorassem até nos pensadores que consideravam repreensível a política racial norte-americana, como é o caso de Caio de Meneses, que, em 1914, comemora a felicidade de o Brasil não ter, como os estadunidenses, um “preconceito de cor, de modo que o próprio negro tende a se dissolver no turbilhão inexorável da raça branca” (apud Skidmore, 1976Skidmore, Thomas. Preto no branco. Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Tradução de Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976., p. 148-149).

Novamente sobre Grossi e a Itália, é importante lembrar que, a partir da penúltima década do XIX século, o país começou sua política de expansão colonial (cronologicamente, na África, Eritreia, Líbia, Somália e Etiópia) que também correspondia, para além do desejo de inserção política do jovem país no rol das “potências coloniais”, a claros objetivos comerciais de exploração dos territórios conquistados e à vontade de estabelecer colônias onde o indesejado excesso de população pudesse ser escoado. Neste sentido podemos observar outros e numerosos escritos de Grossi, dedicados ao Madagascar, à Eritreia, ao Transvaal, à “nuova Cartagine” e enfim à África em geral, numa perspectiva nitidamente colonialista e de exploração comercial (cf. Ratto, 1914Ratto, Mario. “La vita e le opere di Vincenzo Grossi”. In: Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo (1905). 2. ed. Edizione riveduta dall’Autore. Milano-Roma-Napoli: Dante Alighieri, 1914. p. 11-37.. p. 27-37).

Os outros estudos de Grossi vão da Coreia ao Egito, do Polo Norte ao México, do Madagascar ao Peru, com uma notável variedade de interesses e locais estudados, por vezes aparentemente com meros interesses antropológicos e etnológicos.

Finalmente, Nel Paese delle Amazzoni, publicado em Roma em 1897, é um pequeno volume de 137 páginas de texto, com um mapa e algumas pequenas ilustrações, e dividido em três partes; desde a primeira parte o livro explicita o foco e o ponto de vista adotados:

  1. Gli Stati di Pará e Amazonas, dal punto di vista della Navigazione e del Commercio italiani

  2. Le foreste vergini dell’Amazzonia

  3. Miti e canzoni degl’Indigeni del Brasile

De qualquer forma, o texto manifesta um sincero interesse humano pelos lugares e seus habitantes, a curiosidade intelectual do acadêmico viajante e um conhecimento baseado na experiencia autóptica e também numa bibliografia extensa e variada, elucidada também nas notas, numerosas e detalhadas, denotando o caráter intencionalmente cientifico da publicação. Inicialmente escolhi para esta publicação a terceira parte, na qual Grossi examina, com base em Santa-Anna Nery (1889)Nery, Frederico José de Santa-Anna. Folk-lore brésilien. Paris: Didier, 1889. e Couto de Magalhães (1867)Magalhães, José Vieira Couto de. O Selvagem II. Origens, costumes, região selvagem. Methodo a empregar para amansal-os por intermedio das colônias militares e do interprete militar. Trabalho preparatorio para aproveitamento do selvagem e do solo por elle ocupado no Brasil. Rio de Janeiro: Typographia da reforma, 1876. p. 140-141. Disponível em: https://bit.ly/3m7aL7P. Acesso em: 24 mar. 2023.
https://bit.ly/3m7aL7P...
, mas também em Saint Hilaire (1830)Saint-Hilaire, Auguste de. Voyage dans les provinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes, vol. II. Paris: Grimbert et Dorez, 1830. e outros, mitos e canções não unicamente amazônicos, mas do Brasil em geral. Neste sentido, posteriormente decidi incluir também um trecho da parte 1 sobre a geografia política da região, mais especificamente dedicado à região amazônica do ponto de vista antrópico (e, novamente, comercial). Aqui Grossi analisa rápida e um tanto superficialmente a composição étnica da grande região, para depois fazer uma curta história e apresentação de suas cidades. Aqui, por brevidade, inclui apenas o começo e os trechos dedicados a Manaus e Belém do Pará.

Voltando à terceira parte, é muito interessante o apanhado geral do feito através da leitura de autores estrangeiros e brasileiros, num esforço de síntese que representa o ponto de vista estrangeiro mediado, muitas vezes, pelo olhar local (ainda que um “local” quase sempre “estrangeiro” em sua formação e visão eurocêntrica, passada através das lentes da colonialidade do saber, para usar a expressão de Aníbal QuijanoQuijano, Anibal. “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina>”. In: Lander, E. (Org.). Colonialidade do saber, eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 117-142.), num jogo de espelhos e refrações que se concretiza no ato de traduzir para o português a tradução italiana, por exemplo, de textos franceses (ou reproduzir o texto francês, mas com um olho à sua tradução italiana) ou voltar diretamente ao texto em português vertido por Grossi para o italiano.

A prosa de Grossi, clara e com um certo refinamento literário, não oferece problemas de compreensão nem de tradução. Decidi deixar, na maioria dos casos, a grafia dos lugares e em geral daquilo que se refere ao Brasil assim como Grossi a escreveu, já que normalmente não prejudica a compreensão do texto. Acrescentei às de Grossi algumas poucas notas, quando as reputei necessárias, e, que tenha traduzido do italiano ou reproduzido os textos em português citados por ele, assim como os franceses ou em outros idiomas, sempre assinalei claramente em nota a minha opção, transcrevendo, onde necessário, o texto de partida.

Deve ser observado que, ao lado de um genuíno interesse não só pelos aspectos comerciais, presentes e principalmente futuros, dos lugares abordados, mas também pela natureza e pelos habitantes da região amazônica - tanto pela observação pessoal como através dos muitos textos lidos e cuidadosamente estudados - falta por completo qualquer observação relativa às habitantes locais, nomeadas indiretamente apenas quando tem alguma voz feminina (possivelmente, como nas cantigas d’amigo, fictícia) nos poemas citados (como às págs. 125 e 127) e numa referência à lenda das índias guerreiras, relatada por Torribio Medina (p. 12-13). Assim, as índias, da mesma forma como as outras moradoras residentes na Amazônia, inexistem quase por completo, o que pelo menos evita que, como nos antigos cronistas, lhe seja atribuída alguma qualidade diabólica e de bruxaria (cf., para o Brasil e as Américas como um todo, Federici, 2017Federici, Silvia. Calibã e a bruxa. Tradução do Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017., especialmente o cap. 5).

Finalmente, apesar das considerações expostas acima, e certamente pelo prazer dado pela leitura, não posso negar interesse por numerosos aspectos deste texto de Grossi e, em certos momentos, pelo seu autor, homem curioso e certamente incansável, ao qual me descobri atribuindo, num minúsculo e mental romance biográfico sem dúvida anacrônico, a indócil e frustrada vontade de viajar e conhecer povos e lugares sem as amarras da burocracia, dos comitês e dos interesses de exploração comercial, tal como se vislumbra longinquamente debaixo da superfície de alguns dos seus escritos.

Agradecimentos

Agradeço o amigo Sergio Romanelli, que gentilmente conseguiu em Bergamo a reprodução de uma página que estava ilegível no pdf que usei de Nel paese delle Amazzoni.

  • 1
    Para mais exemplos, veja as traduções e comentários às traduções de relatos de viagens sobre a Amazônia publicados anteriormente na Cadernos de Tradução nas edições especiais Traduzindo a Amazônia I (Guerini, Torres & Fernandes, 2021Guerini, Andréia; Torres, Marie Helene Catherine & Fernandes, José Guilherme. “Traduzindo a Amazônia I”. Cadernos de Tradução, 41(esp.1), 2021. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e84962
    https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e...
    ) e Traduzindo a Amazônia II (Guerini, Torres & Fernandes, 2022Guerini, Andréia; Torres, Marie Helene Catherine & Fernandes, José Guilherme. “Traduzindo a Amazônia II”. Cadernos de Tradução, 42(esp.1), 2022. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e91851
    https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e...
    ).
  • 2
    “[…] i coloni di S.Paulo […], fin dagli inizi dell’occupazione, esercitavano già il traffico degli indiani; traffico altrettanto odioso quanto lucroso, che si andò man mano estendendo ed organizzando, sotto forma di quelle terribili bandeiras, così famose nelle cronache e negli annali brasiliani del secolo XVII” (Grossi, 1914Grossi, Vincenzo. Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo (1905). 2. ed. Edizione riveduta dall’Autore. Milano-Roma-Napoli: Dante Alighieri, 1914. Disponível em: https://bit.ly/3KZTEOR. Acesso em: 19 mar. 2023.
    https://bit.ly/3KZTEOR...
    , p. 110).
  • 3
    “quell’odiosa istituzione”.
  • 4
    “Disgraziatamente, però, mentre da una parte gli schiavi africani concorrevano ad aumentare la ricchezza pubblica col loro lavoro, dall’altra essi contribuivano potentemente a pervertire i costumi, colle loro superstiziose ed immorali credenze, non meno che coi loro istinti sanguinari e depravati” (Grossi, 1914Grossi, Vincenzo. Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo (1905). 2. ed. Edizione riveduta dall’Autore. Milano-Roma-Napoli: Dante Alighieri, 1914. Disponível em: https://bit.ly/3KZTEOR. Acesso em: 19 mar. 2023.
    https://bit.ly/3KZTEOR...
    , p. 119).
  • 5
    “[…] c’è anche una questione di equità internazionale da considerare. Mi spiego: checché si sia detto o scritto sulle cause e sugli effetti della emigrazione rispetto alla madre patria, certo è però che questo spostamento di energia ridonda a tutto vantaggio del paese d’immigrazione. Dal momento, dunque, che quelle che emigrano sono forze essenzialmente perdute per la madre patria, non è giusto che questa abbia almeno a godere del compenso indiretto che le può venire dall’aumento dei suoi traffici con quel determinato paese?” (GrossiGrossi, Vincenzo. Nel paese delle Amazzoni. Roma: Unione Cooperativa Editrice, 1897. Disponível em: https://bit.ly/3GOUs6O. Acesso em: 18 ago. 2022.
    https://bit.ly/3GOUs6O...
    , apud Ratto, 1914Ratto, Mario. “La vita e le opere di Vincenzo Grossi”. In: Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo (1905). 2. ed. Edizione riveduta dall’Autore. Milano-Roma-Napoli: Dante Alighieri, 1914. p. 11-37., p. 21).
  • 6
    “sono là più vive, aspre, talora ingiuste e trascendenti alla violenza le resistenze, i pregiudizi ed ostilità del nativismo incolto, intollerante dell’invasione e della relativa fortuna delle masse straniere sopravvenute”.
  • 7
    “mezzo milione di proletari italiani furono convertiti in proprietari, e tanti artisti, professionisti, lavoranti, armatori, capitani, commercianti ed industriali nostri fecero la loro fortuna; […]; [con] l’espressione sincera di un testimonio oculare, che aveva presenziato la felice trasformazione, in pochi anni, di miseri contadini del Veneto, affetti dalla pellagra e dal gozzo, in agiati proprietari” (Corte apud Pini, 1898Pini, Edoardo. La sezione “Italiani all’estero”: gli Stati Uniti del Brasile. L’Esplorazione Commerciale e l’Esploratore. Giornale di viaggi di geografia commerciale. Organo ufficiale della Società di esplorazione commerciale in Africa. Vol. XIII, 1898. p. 329-349., p. 329-330).
  • 8
    “E per guidare i nostri emigranti e i nostri commercianti alla conquista di nuovi mercati di lavoro e di smercio, insegnava il Grossi come facesse d’uopo possedere una larga conoscenza della terra e delle sue risorse in rapporto all’Italia e alla concorrenza internazionale” (Cianetti apud Ratto, 1914Ratto, Mario. “La vita e le opere di Vincenzo Grossi”. In: Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo (1905). 2. ed. Edizione riveduta dall’Autore. Milano-Roma-Napoli: Dante Alighieri, 1914. p. 11-37., p. 118).
  • 9
    “[si desidera] 3° richiamare l’attenzione del Governo e del Parlamento sopra un Paese che, oltre ad ospitare di già un rilevante numero d’Italiani, potrebbe - mediante una savia, oculata previdente politica, quale ho sempre sostenuta in seno al Consiglio dell’Emigrazione - diventare il principale e più importante sbocco della nostra produzione agricola e industriale nell’America del Sud” (Grossi, 1914Grossi, Vincenzo. Storia della Colonizzazione Europea al Brasile e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo (1905). 2. ed. Edizione riveduta dall’Autore. Milano-Roma-Napoli: Dante Alighieri, 1914. Disponível em: https://bit.ly/3KZTEOR. Acesso em: 19 mar. 2023.
    https://bit.ly/3KZTEOR...
    , p. 5).
  • 10
    “La borghesia settentrionale ha soggiogato l’Italia meridionale e le isole e le ha ridotte a colonie di sfruttamento” (Gramsci, 1995Gramsci, Antonio. La questione meridionale. Roma: Editori Riuniti, 1995., p. 4).
  • 11
    “Nel 1863 il Parlamento approvò una legge che istituiva, nelle province dichiarate in stato di ‘brigantaggio’, un vero e proprio regime di guerra: tribunali militari per giudicare i ribelli e fucilazione immediata per chi avesse opposto resistenza con le armi” (Sabbatucci & Vidotto, 2018Sabbatucci, Giovanni & Vidotto, Vittorio. Storia contemporanea. L’Ottocento. Bari: Laterza, 2018., p. 250).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2023
  • Aceito
    02 Out 2023
  • Publicado
    Out 2023
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