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GODAYOL, Pilar; TARONNA, Annarita. Foreign Women Authors under Fascism and Francoism: Gender, Translation and Censorship. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2018. 225 p.

GODAYOL, Pilar; TARONNA, Annarita. Foreign Women Authors under Fascism and Francoism. : Gender, Translation and Censorship. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2018. 225 p.

Foreign women authors under Fascism and Francoism, publicado em 2018, é uma coletânea organizada e editada por Pilar Godayol, professora titular da Universitat de Vic - Universitat Central de Catalunya, Espanha, e Annarita Taronna, pesquisadora da Università degli Studi di Bari Aldo Moro, Itália. Ambas dedicam suas pesquisas aos estudos da tradução em diálogo com estudos de gênero. O livro está organizado em duas partes: a primeira delas, que conta com quatro capítulos, traz estudos de caso a respeito de obras de escritoras traduzidas na Itália sob o regime fascista que perdurou de 1922 a 1940. Já a segunda parte reúne cinco capítulos sobre obras de autoria de mulheres traduzidas sob a censura do regime franquista, de 1939 a 1975. Ambas as partes possuem um preâmbulo com um panorama contextual escrito pelas editoras.

A introdução do livro, escrita por Godayol e Taronna, conta com o relato da amizade de duas figuras fundamentais do mercado editorial europeu do começo do século XX: o piemontês Giulio Einaudi (1912-1999) e o catalão Carlos Barral (1928-1989). Ambos iniciaram seus trabalhos como editores bastante jovens: Einaudi, com apenas 21 anos, inaugurou a Giuli Einaudi Editore em 1933, em pleno regime fascista; e Barral, dezesseis anos mais novo que Einaudi, assumiu o comando da Editorial Seix Barral, fundada por sua família em 1911. Eles teriam se conhecido em 1959, na primeira viagem de Einaudi à Espanha, e sua amizade perduraria até a morte de Barral em 1989. Ambos compartilhavam de visões progressistas e, portanto, pró-democracia. Tendo já passado por um regime autoritário quando se conheceram, Einaudi foi um importante mentor para Barral em momentos sombrios. Juntos, criaram, em 1961, o Prix Formentor, ou Premio Formentador de las Letras, um prestigioso prêmio internacional para novos autores e autores já em circulação à época. Barral foi perseguido pelo regime franquista em 1962 sob acusações de ser um intelectual anti-regime. Einaudi, por sua vez, foi expulso de Barcelona e proibido de pisar em território espanhol, por ter sido taxado como um editor “marxista” (Godayol & Tarrona, 2018Godayol, Pilar e Taronna, Annarita. Foreign women authors under Fascism and Francoism: Gender, translation and censorship. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2018. 225 p.). Einaudi, no entanto, sempre procurou demonstrar bom ânimo e encorajamento a Barral apesar de todas as constrições de seu tempo. O trabalho e da amizade dos dois é um exemplo de resistência e combate ativo a esses regimes. Nas palavras de Godayol e Taronna:

Todos os regimes totalitários, sejam do passado ou do presente, erguem muros para impedir a entrada da Alteridade, da diferença e da modernidade. Einaudi e Barral lutaram contra esses muros, os quais, como nos lembra Todorov, “os seres humanos têm construído desde a antiguidade mais remota” (2010, 7). Esses dois editores representam os vários agentes culturais (editores, escritores, críticos, tradutores, revisores etc.), que não do exílio, mas de dentro, confrontaram o Checkpoint Charlie da censura sob as ditaduras de Benito Mussolini (1922-1940) e Francisco Franco (1939-1975). Ambos os regimes foram sistemas intervencionistas que feriram e amputaram a cultura escrita

(2018, p. 2-3, tradução nossa1 1 No texto-fonte: “All totalitarian regimes, past and present, erect walls to prevent Otherness, difference, modernity from entering. Einaudi and Barral fought against these walls, which as Tzventan Todorov reminds us ‘human beings have been building since the remotest antiquity’ (2010, 7). These two publishers exemplify the many cultural agents (publishers, writers, critics, translators, correctors, etc.), who, not from exile but from within, confronted the Checkpoint Charlie of the censorship under the dictatorships of Benito Mussolini (1922-1940) and Francisco Franco (1939-1975). Both regimes were interventionist systems that wounded and amputated written culture”. ).

Ambos os regimes impuseram barreiras de censura para controlar toda e qualquer literatura que fosse considerada “subversiva” para as ideologias da época. Por meio de leitores apoiadores do governo, em ambos os regimes havia o controle de circulação de publicações e traduções. Incluem-se aí, é claro, quaisquer obras que de algum modo pusessem à prova os valores cristãos tradicionais que relegavam à mulher o seu quase que único e exclusivo papel social: ser mãe. O governo italiano, por exemplo, criou instituições especificamente “femininas” voltadas à melhoria da “raça italiana” e à “defesa da maternidade e infância” (Godayol e Taronna, 2018Godayol, Pilar e Taronna, Annarita. Foreign women authors under Fascism and Francoism: Gender, translation and censorship. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2018. 225 p., p. 4). Nesse sentido, o propósito de Foreign women authors é examinar alguns estudos de caso que constituem algumas das “micro-histórias” de ambos os regimes, atentando-se a questões de produção, recepção, contexto e dos agentes envolvidos nas traduções de obras escritas por mulheres.

A primeira parte do livro, composto por estudos de caso de traduções feitas na Itália fascista, abre com um pequeno panorama histórico de Annarita Taronna, “Notes on the Fascist censorship” (“Notas sobre a censura fascista”, tradução nossa). Taronna conta-nos que, num primeiro momento, romances escritos por escritoras americanas, britânicas e alemãs fizeram enorme sucesso, trazendo ao país um “novo conceito de feminilidade”, cujas premissas eram a independência e emancipação da mulher. Não tardou e esses livros passaram a ser vistos como uma ameaça ao regime e só poderiam ser publicados se sofressem algumas modificações. Seus tradutores eram instruídos, portanto, a alterar excertos que possuíssem menções a suicídios, abortos, cultura judaica e qualquer outro tipo de ofensa à moralidade fascista de devoção ao Estado.

O capítulo um, de Valerio Ferme, busca responder por que algumas das obras de escritoras americanas, mais progressistas, passaram pela censura do regime fascista. Ferme relata que na Itália do final do século XIX a literatura estrangeira e, portanto, traduzida, tinha como função suplementar o fluxo contínuo e bem estabelecido de autores nacionais. Apesar de a Itália, já no século XIX, possuir um número relativamente expressivo de mulheres escritoras, suas produções circulavam majoritariamente em publicações secundárias e mais populares, como os folhetins. As traduções que circulavam na Itália eram de países europeus, visto que a literatura estadunidense era ainda considerada minoritária. Foram os anos 1920 e 1930 que deram maior visibilidade aos EUA na Itália. Com a nova pujança econômica dos EUA e os múltiplos empréstimos concedidos a países europeus, em especial à Itália, o país passou a exportar como nunca suas produções culturais. A título de exemplo, o mercado cinematográfico italiano, até os anos 1920, o maior e mais importante do mundo, foi inundado por produtoras norte-americanas a convite de Mussolini sob a guisa da criação de um cinema nacionalista. O maravilhamento dos italianos pelas novas e “mitológicas” paisagens norte-americanas nas telas italianas abriu as portas também para os escritores americanos. Além disso, acordos estabelecidos no final do século XIX em Bern e Paris tornaram a publicação de traduções mais favorável do que a publicação de autores nacionais no país.

Ferme parte então para a análise da recepção de algumas obras específicas, especialmente aquelas cujas versões traduzidas para o italiano reforçavam modelos femininos consoantes àqueles pregados pelo regime. Uncle Tom’s Cabin, de Harriet Beecher Stowe, por exemplo, funcionou como uma luva para fazer propaganda contrária ao mito norte-americano de liberdade. Por um lado, o tratamento desumano dado aos escravos servia de metáfora para a política anti-imigratória vigente nos EUA na década de vinte, que atingiu especialmente italianos imigrantes em tentativa de escapar do regime fascista. Por outro lado, argumenta Ferme, o romance cria a ideia de que os escravos africanos eram econômica e culturalmente dependentes de seus senhores, o que fomentava o discurso de missão colonizadora da Itália na África, importante para um novo “Império Romano”. Outro caso importante citado por Ferme é Little Women, de Louisa May Alcott, ideal para convocar as mulheres de volta ao trabalho doméstico pós-fim da Primeira Guerra Mundial. A primeira guerra havia trazido certa emancipação às mulheres porque, com a ausência dos homens, elas tornaram-se as principais provedoras da casa. Ambos Little Women e Uncle Tom’s Cabin eram vendidos como literatura infantojuvenil, o que garantia que esses estereótipos femininos fossem transmitidos intergeracionalmente. Ferme analisa ainda o caso de livros como The Age of Innocence, de Edith Warton, Gentlemen Prefer Blondes, de Anita Loos, e Star-Dust, de Fannie Hurst, vendidos em edições mais caras voltadas a um público feminino de classe social mais elevada. Ao mesmo tempo que mostram mulheres fortes, elas estão todas atreladas a papéis tradicionalmente domésticos e ajudaram a perpetuar a importância de instituições como o casamento e a maternidade dentro dos parâmetros do regime. Apesar de Ferme não apresentar informações mais detalhadas a respeito dos agentes dessas traduções nem trazer exemplos mais específicos de como essas questões são retratadas textualmente, o capítulo proporciona uma reflexão importante sobre o uso doutrinador da literatura importada para a repercussão de certos ideais, como aqueles fomentados pelo regime fascista de Mussolini.

O segundo capítulo, de Eleonora Federice, aborda o fenômeno do surgimento e da popularidade da literatura de detetive na Itália dos anos 1930. A análise foca no caso de Murder on the Orient Express, de Agatha Christie, traduzido por Alfredo Pitta como Orient Express, como parte da série I Libri Gialli, publicada pela Mondadori. Essa tradução, publicada de acordo com a cartilha fascista da época, não tolerava a presença de temas moralmente ofensivos como menções a sexo, adultério, aborto e suicídio. A tradução foi a única do romance até 1987, quando Lidia Zazo publicou uma nova tradução pela Biblioteca Repubblica. Isso significa que de 1935 a 1987 a única edição conhecida pelos italianos era aquela repleta de cortes e omissões de Pitta. O capítulo de Federice é bem fundamentado em evidências textuais e exemplos de passagens que foram completamente cortadas (a começar pelo título — a menção a um “assassinato” já é omitida aí) ou que alteraram, por exemplo, a nacionalidade de certos personagens (por exemplo, em referências à máfia italiana nos EUA e, por vezes, esses personagens se tornavam ora brasileiros, ora irlandeses) e o registro linguístico. A linguagem coloquial, assim como suas marcas orais e de variação por conta de sotaques dos personagens, foi completamente apagada e substituída por um italiano padrão e “elegante”. Segundo Federice, isso fazia parte também de uma visão bastante característica sobre a tradução naquele período, como “um meio para expandir o processo de padronização da língua italiana”2 2 No texto-fonte: “Translation was meant to follow a specific idea of stylistic elegance and was a means to widen the process of standardization of the Italian language”. . Federice conclui então que, mais do que uma tradução “oblíqua”, a tradução de Pitta “mutilou” o romance de Christie, adequando-o a uma visão ideológica muito específica.

O capítulo três, de Vanessa Leonardi, aborda as traduções da série dinamarquesa Bibi, de Karin Michaëlis, publicada originalmente entre 1927 e 1939. A série, composta por seis livros infantis, trata da personagem-título Bibi, uma menina moleca e desinibida que gosta de fugir de casa para se aventurar pela Dinamarca. A série destoa radicalmente do modelo de feminilidade prescrito por Mussolini e, para circular na Itália dos anos 1930, passou por diversas omissões, cortes e outras modificações. A própria Michaëlis havia sido perseguida na Dinamarca durante a invasão nazista por opor-se abertamente ao regime e às ondas nacionalistas que assombravam a Europa naquele período. Assumidamente voltada às causas de direitos das mulheres, Michaëlis teve suas obras censuradas em diversos locais. O que motivou o estudo de Leonardi foi uma leitura do posfácio de Eva Kampmann, tradutora de Bibi das novas traduções realizadas em 2005 diretamente do dinamarquês, em que a tradutora conta da sua surpresa ao ler a primeira tradução italiana de Bibi de 1931 com cortes e adições muito semelhantes às da edição alemã de 1929, feita sob o crivo da censura nazista. O artigo apresenta uma discussão histórica sobre a censura inicialmente tácita na Itália fascista dos anos 1920-30 até a sua oficialização em 1938. A cuidadosa análise comparativa de Leonardi entre a versão alemã e italiana dos anos 1930 e a versão italiana de 2005 revela as adições, adaptações, cortes e omissões feitas nas traduções feitas sob os regimes nazista e fascista. A análise minuciosa de Leonardi constitui-se um texto importante para estudiosos da literatura produzida tanto no contexto da Itália fascista quanto da Alemanha nazista, e revela importantes alianças políticas dos governos no período, em especial, a de Mussolini com a Igreja Católica. Além disso, celebra o resgate da obra Bibi em 2005, pela retradução, em contexto completamente distinto, feito por Kampmann.

No capítulo quatro, Annarita Taronna examina o importante papel de tradutoras, editores e agentes literários durante o regime fascista, em seus diferentes períodos de censura. De modo complementar aos capítulos anteriores, Taronna identifica três períodos fundamentais: o primeiro, de 1928 a 1934, em que a tradução é vista como uma ameaça ao mercado literário; o segundo, de 1935 a 1937, em que a tradução é vista como uma arma ideológica para a expansão cultural e ideológica do regime; e o terceiro, de 1938 a 1943, mais radical, em que a tradução é vista como uma presença poluente, que precisava ser expurgada. Em janelas de pequenas aberturas, revelam-se os movimentos de resistência de tradutoras e editoras, ressoando com o capítulo de abertura do livro, e a patronos literários, como Gian Daulì, entusiastas de novas produções literárias. Taronna debruça-se sobre cartas, artigos e ensaios escritos por esses agentes “silenciosos” para compreender como as três escritoras queer puderam circular pela Itália nos anos 1930 em traduções feitas por entusiastas dessas obras. Taronna argumenta ainda que, justamente por serem sutis quanto à representação de relações homoeróticas entre mulheres, obras como Orlando (Virginia Woolf), The Well of Loneliness (Radclyffe Hall) e All Passion Spent (Vita Sackville-West) criaram “espaços narrativos de resistência” (Taronna, 2018, p. 85).3 3 No texto-fonte: “Given this framework, the translations of Hall’s, Sackville-West’s, and Woolf’s works explore how they challenged and subverted Fascist censorship by creating narrative spaces of resistance in which further aesthetic meaning and knowledge could be produced”. A abertura identitária promovida por essas obras foi o que propiciou a sua circulação, o que jamais teria acontecido caso tivesse sido rotuladas como “gays” ou “lésbicas”, por exemplo.

A segunda parte do livro explora os casos de censura durante o regime franquista na Espanha (1939-1975), e é dividida em cinco capítulos mais uma introdução, escrita por Pilar Godayol, que explica o processo pelo qual passavam todas as obras a serem (ou não) publicadas e os motivos, sempre imprevisíveis, que levavam uma publicação a ser rejeitada ou aceita pelos censores. Godayol diz que os critérios para a censura nunca foram sistematizados, mas dois princípios gerais deveriam ser obedecidos: a conformidade com a ideologia franquista e com os princípios morais da Igreja Católica, que colaborou ativamente com a censura, cedendo, inclusive, membros de sua congregação para atuar como censores.

O primeiro capítulo da segunda parte, ou capítulo cinco do livro, de autoria de Montserrat Bacardí, trata da censura de línguas minoritárias da Espanha, mais especificamente o catalão, língua que foi obliterada em contextos culturais, artísticos e até no uso cotidiano, em uma campanha para que a Espanha se tornasse, como disseminado na campanha oficial do novo regime, “uma só”, ou o que Bacardí chama de “genocídio cultural”. Na lógica ditatorial, se as culturas periféricas deveriam ser eliminadas, também deveriam ser as traduções feitas para as línguas periféricas. A tradução, no entanto, despertava sentimentos ambíguos: por um lado, se a cultura e língua espanhola eram autossuficientes e a identidade nacional deveria ser construída sem influências externas, era possível prescindir dela; por outro, tratava-se de atividade cultural importante para movimentar uma economia devastada no período pós-guerra.

A censura de traduções e republicações de obras para a língua catalã só encontrou meio de ser burlada através de publicações clandestinas, que refletiam, segundo Bacardí, a inevitável “pulsão de traduzir”. A autora comenta que as mulheres catalãs haviam percorrido um longo caminho para se emancipar e passar a fazer parte da vida pública e política. No período conhecido como renascença catalã, no final do século XIX, elas começaram a produzir literatura, mas foi só no século XX que passaram a se dedicar também à tradução. O regime franquista, no entanto, destruiu a “feminização” da tradução, que ainda dava seus primeiros passos, criando um vácuo de 30 anos de (auto)censura, exílio e silêncio. O artigo de Bacardí é contundente ao mostrar que, em regimes de exceção, sempre há tentativas de “unificar” um país através da exclusão e apagamento de culturas e populações minoritárias, como foi o caso da língua catalã e de suas escritoras e tradutoras.

O capítulo seis, de Fernando Larraz, começa com uma reflexão interessante sobre o que é a censura, descrevendo-a como uma leitura incomum, em que não há suspensão de nenhum tipo de julgamento e nem envolvimento com o universo do autor; em outras palavras, é uma leitura fracassada, que faz o oposto do que deveria fazer. O capítulo apresenta essa ponderação porque fala de duas coleções de livros, cujas autoras eram mulheres e estrangeiras, e que sofreram com a censura na Espanha franquista: a “Biblioteca Breve” e a “Biblioteca Formentor”. Desde a década de 1950, a editora espanhola Seix Barral buscava publicar livros que desafiavam os princípios do franquismo, tendo até mesmo se tornado conhecida dos censores por conta de suas inúmeras tentativas. Entre 1955 e 1959, a Barral publicou uma coletânea de livros chamada “Biblioteca Breve”, com traduções de autores do chamado nouveau roman – como Marguerite Duras, Maurice Blanchot, Nathalie Sarraute, entre outros –, o que representou uma pequena revolução na cultura espanhola. O grupo “Biblioteca Breve” realizou eventos literários voltados a expandir os horizontes dos escritores espanhóis, que tinham pouco acesso a obras estrangeiras e, portanto, a outros estilos de se fazer literatura, e foi em um desses eventos que surgiu a ideia de criar a “Biblioteca Formentor”, voltada à publicação de textos narrativos de autores espanhóis e de autores estrangeiros celebrados. A justificativa para censura de obras traduzidas pelo grupo Barral, na maioria dos casos, tinha a ver com a presença de temas ligados à emancipação feminina e de descrições eróticas, o que desafiava a moral católica e franquista. Temas como amor livre, adultério, masturbação feminina, contracepção, aborto e homossexualidade eram ocultados de livros ou estes eram completamente banidos. Temáticas feministas que apareciam em obras como Bonjour tristesse (1954), de Françoise Sagan, e The Group (1963), de Mary McCarthy, retratavam a transição de moças jovens à vida adulta, o que envolvia questionar os valores patriarcais seguidos por suas mães, representando, por sua vez, uma ameaça aos valores do regime franquista. O texto de Larraz mostra como as atividades do grupo Seix Barral foram cruciais para renovar as estruturas culturais de uma Espanha encerrada em si mesma, dominada pela paranoia com o estrangeiro, que poderia levar ideologias não-ortodoxas ao país.

O capítulo sete, de autoria de Carmen Camus, fala sobre a história das traduções, na Espanha, de Vindications of the Rights of Woman (1792), de Mary Wollstonecraft, obra fundadora do feminismo na Inglaterra. A primeira tradução de Vindication foi publicada na Espanha quando a censura ainda existia, mas estava em franca decadência. A editora Debate publicou uma coleção chamada “Tribuna Feminista”, que importou e traduziu o livro de Wollstonecraft, em 1977, com autorização dos censores. Ao todo, foram realizadas três traduções de Vindication para o espanhol ibérico, publicadas em sete edições. No entanto, ao realizar uma busca na plataforma Index translationum, Camus encontrou apenas três ocorrências: uma tradução de 1994, outra de 1998 e uma terceira de 2005. Na tradução de 1994 aparece como autora Mary Shelley (filha de Wollstonecraft) e a edição de 2005 não tem o nome da tradutora. Também não está presente a edição publicada em 1977. Analisando as edições de 1977 e de 1998, ambas publicadas pela mesma editora e realizadas pelas mesmas tradutoras, Camus mostra que as tradutoras fizeram uma série de supressões na versão de 1977, uma prática que era comum para lidar com a censura. As supressões incluíram corte de repetições consideradas excessivas que apareciam no texto original, omissão de referências que não eram acessíveis ao público espanhol e substituição de citações muito longas por notas de rodapé. As partes eliminadas correspondem, na edição de 1977, a 20,1% do texto, e incluem passagens sensíveis, com referências à virtude sexual, debates sobre moral e religião, referências críticas ao nacionalismo, entre outros temas que pudessem ser vistos como discordantes do que era pregado pelo regime franquista. O texto de Camus traz uma perspectiva interessante sobre a prática da autocensura, uma das diversas estratégias empregadas para se conseguir aprovação para publicar uma obra durante o regime franquista na Espanha. Também apresenta uma reflexão sobre como ainda não se pensava tão criticamente sobre a tradução na década de 1970, uma vez que, ao elencar as diferentes edições do livro de Wollstonecraft, edições publicadas em épocas diferentes, mas realizadas pela mesma editora e pela(s) mesma(s) tradutora(s), são consideradas a mesma obra.

O capítulo oito, de Pilar Godayol, explora o esforço de invisibilizar a escritora Simone de Beauvoir na Espanha franquista e consequente censura de cinco de suas obras. Segundo Godayol, a Guerra Civil Espanhola marcou o começo do engajamento político ativo de Beauvoir, que a fez ganhar inimizade do regime e da Igreja Católica. Com isso, a escritora e ensaísta foi relegada ao ostracismo, e muitas das traduções de suas obras que circularam no país antes do afrouxamento da censura eram edições latino-americanas, levadas à Espanha clandestinamente.A primeira tentativa de exportar uma obra de Beauvoir para a Espanha aconteceu em 1952, com Tous les hommes sont mortels, que fora publicado no mesmo ano na Argentina. A solicitação foi rejeitada porque o censor alegou que a obra continha ideias ateístas. Em 1956, novamente foi feita solicitação para publicar o livro na Espanha, e o censor, filósofo franciscano Miguel Oromí Inglés, aceitou. Godayol lembra, no entanto, que o governo franquista havia se empenhado para que Beauvoir fosse invisibilizada no país, portanto, a censura provavelmente só aceitou a publicação de seu livro porque a autora era conhecida por poucas pessoas. Em junho de 1955, foi feita a primeira tentativa de importar a tradução argentina de Le deuxième sexe para a Espanha, com uma tiragem de poucos exemplares, estratégia comum usada para driblar a censura, na época. A aplicação, no entanto, foi suspensa e o arquivo foi encerrado. Em 1965, buscou-se autorização para traduzir a obra para o catalão, que também foi negada. Já em 1967, nova tentativa foi feita, dessa vez bem-sucedida, com a aprovação do mesmo censor que havia aprovado Tous les hommes sont mortels.

O primeiro romance de Beauvoir, L’invitée, publicado em 1943, foi traduzido na Argentina em 1953. A tentativa de importação para a Espanha foi feita em 1956 e foi reprovada, pois o censor julgou que continha perversão sexual e linguagem imprópria. O livro só chegou à Espanha em 1972, no primeiro volume de uma coletânea de obras completas de Beauvoir. Em 1959, Beauvoir publicou, na revista norte-americana Esquire, um ensaio sobre a atriz Brigitte Bardot, com uma biografia da atriz e uma série de fotos provocativas. Em 1964, uma editora de Madri tentou conseguir autorização para publicar o ensaio, a ser incluído em uma coletânea de biografias de estrelas de cinema. Dado o conteúdo do ensaio, que refletia o imenso contraste entre a imagem da mulher europeia moderna e a mulher espanhola durante o regime franquista, a publicação não foi autorizada. Godayol mostra que a censura podia até publicar obras consideradas “subversivas”, se ela mesma pudesse subverter essas obras até o ponto em que elas deixassem de representar uma ameaça aos ideais do regime, mas era inflexível com autoras que ousassem desafia-lo, banindo suas obras e apagando sua existência das referências culturais do país.

O capítulo nove, de Cristina Gómez Castro, que encerra a segunda parte e o livro, fala da censura, ou melhor, da autocensura do clássico da escritora norte-americana Harper Lee, To Kill a Mockingbird. O livro foi publicado em 1960, em meio a uma atmosfera de efervescência política que precedia o movimento pelos direitos civis nos EUA. A obra foi vencedora do Pulitzer na categoria Ficção, em 1961, mas não deixou de sofrer com a censura. Nos EUA, havia preocupação com o uso da palavra nigger no texto de Lee, termo pejorativo que, argumentava-se, podia reforçar o racismo institucionalizado no país e prejudicar o processo integralista. A obra de Lee chegou à Espanha em 1961, através de uma tradução. A avaliação do censor diz que o livro conta a história das aventuras de uma garotinha e, portanto, não havia nada censurável na obra e ela podia ser publicada. De acordo com Castro, os comentários dos censores à obra incluíram, curiosamente, alterações para esclarecer alguns pontos do texto e sugestões de estilo, em vez de exigências para omitir partes do texto. A autora, no entanto, cita quatro aspectos que motivaram a autocensura na primeira tradução ibero-espanhola da obra de Lee: questões sexuais, políticas, uso de linguagem imprópria e religião. As questões sexuais incluíam as referências a estupro, que foram omitidas ou “amenizadas” na tradução. Referências políticas potencialmente ofensivas, como críticas a Hitler e ao exército republicano ou à defesa da democracia, foram preservadas no texto, e possivelmente não foram alvo da censura por conta da distância geográfica e temporal entre o texto de Lee e a Espanha de 1960. O uso de termos pejorativos, como nigger ou negro foi substituído por negro (em espanhol, uma palavra não pejorativa) ou nigro. Também palavras como hell, bastard ou damn foram suavizadas no texto. As personagens de To Kill a Mockingbird são protestantes e não frequentam a igreja, mas essas indicações foram preservadas no texto e não foram censuradas. O artigo de Castro mostra como a censura era uma prática arbitrária, que atacava mais ferrenhamente não apenas obras, mas escritores cujos ideais não estavam em conformidade com o regime franquista. Harper Lee, escritora reclusa do sul dos Estados Unidos, não representava uma ameaça ao regime de Franco, e sua obra só sofreu com a autocensura de seu tradutor.

Foreign women authors under Fascism and Francoism é uma coletânea de temática muito relevante para analisar os tempos atuais com a ascensão de movimentos de extrema direita no século XXI sob a luz dos movimentos totalitaristas do começo do século XX, como o fascismo e o franquismo. Do ponto de vista teórico e metodológico para os Estudos da Tradução e Estudos Feministas da Tradução, o livro apresenta estudos de caso com análises que transcendem as tradicionais questões textuais, que revelam o trabalho de editores, agentes literários e tradutores por meio de pesquisa documental. Um livro traduzido, como pondera Federici no capítulo dois, deveria ser lido e interpretado juntamente com o contexto no qual foi publicado, como um “ato de mediação influenciado pelos valores sociais e as ideias culturais de um determinado período” (Godayol & Taronna, 2018Godayol, Pilar e Taronna, Annarita. Foreign women authors under Fascism and Francoism: Gender, translation and censorship. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2018. 225 p., p. 45).4 4 No texto-fonte: “an act of mediation influenced by the social values and cultural ideas of that time.” Essa ponderação leva-nos a pensar também o estudo literário por meio de camadas interpretativas além daquelas do seu contexto de produção, mas também do contexto de produção da tradução.

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    No texto-fonte: “All totalitarian regimes, past and present, erect walls to prevent Otherness, difference, modernity from entering. Einaudi and Barral fought against these walls, which as Tzventan Todorov reminds us ‘human beings have been building since the remotest antiquity’ (2010, 7). These two publishers exemplify the many cultural agents (publishers, writers, critics, translators, correctors, etc.), who, not from exile but from within, confronted the Checkpoint Charlie of the censorship under the dictatorships of Benito Mussolini (1922-1940) and Francisco Franco (1939-1975). Both regimes were interventionist systems that wounded and amputated written culture”.
  • 2
    No texto-fonte: “Translation was meant to follow a specific idea of stylistic elegance and was a means to widen the process of standardization of the Italian language”.
  • 3
    No texto-fonte: “Given this framework, the translations of Hall’s, Sackville-West’s, and Woolf’s works explore how they challenged and subverted Fascist censorship by creating narrative spaces of resistance in which further aesthetic meaning and knowledge could be produced”.
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    No texto-fonte: “an act of mediation influenced by the social values and cultural ideas of that time.”

Referência

  • Godayol, Pilar e Taronna, Annarita. Foreign women authors under Fascism and Francoism: Gender, translation and censorship. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2018. 225 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2022
  • Aceito
    19 Out 2022
  • Publicado
    Nov 2022
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