Resumo
The relationship between representative democracy and participatory and deliberative experiences is not trivial. Those who endorse the discourse of a crisis in political representation sometimes defend participatory and deliberative modalities of democracy as a way of denying the legitimacy of the Legislative Branch, questioning the latter's real capacity to express the people's sovereign will. Still, the emergence of new democratic spaces, as well as new actors involved in the management of the public good, can be seen as a way of strengthening political representation, and not as a sign of weakening in its institutions. The current article defends this argument, seeking to demonstrate that the Brazilian national conferences on public policy have actually provided impetus to the National Congress, thereby strengthening representative democracy in Brazil through a participatory and deliberative practice.
national conferences; national congress; democracy; participation; representation; public policies
national conferences; national congress; democracy; participation; representation; public policies
Participação como representação: o impacto das conferências nacionais de políticas públicas no Congresso Nacional* * Os autores agradecem aos pareceristas de DADOS pelos valiosos comentários e sugestões que propiciaram o enriquecimento deste artigo. Este trabalho sintetiza alguns dos principais resultados da pesquisa Entre Representação e Participação: as conferências nacionais e o experimentalismo democrático brasileiro, realizada no antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), atualmente Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ), com apoio da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no âmbito do Projeto Pensando o Direito. Além dos autores deste trabalho, a equipe da pesquisa, coordenada por Thamy Pogrebinschi, foi composta por Felipe Dutra Asensi, Luis Felipe Guedes da Graça, Mariana Borges Martins da Silva e Natalia Regina Avila Maciel - todos excelentes assistentes de pesquisa, aos quais os autores registram aqui o seu agradecimento.
Participation as representation: the impact of national public policy conferences on the brazilian National Congress
Thamy PogrebinschiI; Fabiano SantosII
IInstituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil (e-mail: thamy@iesp.uerj.br)
IIInstituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil (e-mail: fsantos@iesp.uerj.br)
ABSTRACT
The relationship between representative democracy and participatory and deliberative experiences is not trivial. Those who endorse the discourse of a crisis in political representation sometimes defend participatory and deliberative modalities of democracy as a way of denying the legitimacy of the Legislative Branch, questioning the latter's real capacity to express the people's sovereign will. Still, the emergence of new democratic spaces, as well as new actors involved in the management of the public good, can be seen as a way of strengthening political representation, and not as a sign of weakening in its institutions. The current article defends this argument, seeking to demonstrate that the Brazilian national conferences on public policy have actually provided impetus to the National Congress, thereby strengthening representative democracy in Brazil through a participatory and deliberative practice.
Key words: national conferences; national congress; democracy; participation; representation; public policies
Há um velho discurso que jamais sai de cena, talvez por encontrar sempre vozes dispostas a defendê-lo, que insiste em alardear a crise da representação política. Esse discurso é possivelmente tão antigo quanto a própria representação política, uma vez que os princípios que norteiam o governo representativo traduzem-se em dispositivos institucionais que permanecem inalterados desde o século XVIII (Manin, 1995; Urbinati, 2006). No entanto, se a estrutura dos governos representativos não foi substancialmente modificada desde a sua criação, talvez não sejam procedentes as suposições de que a mesma encontre-se agora em crise.
Os sinais do que alguns chamam de crise, portanto, podem simplesmente indicar uma mudança na forma pela qual a representação política se manifesta. No atual momento histórico, estamos certamente diante de uma destas mudanças. Nos últimos anos, assiste-se progressivamente ao surgimento de modelos participativos (Pateman, 1970; Mansbridge, 1980; Barber, 1984; Fung e Wright, 2003; Fung, 2004; Avritzer, 2007 e 2009) e deliberativos (Cohen, 1989; Fishkin, 1991; Habermas, 1992; Gutmann, 1996; Bohman, 1996; Dryzek, 2000) de democracia, propostos muitas vezes como alternativas capazes de sanar os supostos vícios do governo representativo e de suas instituições.
O engajamento suscitado pelas propostas participativas e deliberativas de democracia pode ser observado como uma tendência dentro da academia, através da adesão massiva dos estudiosos da teoria democrática, mas também fora dela, através da adesão concreta de governos às novas práticas participativas e experiências deliberativas. O Brasil desde sempre acompanhou esta tendência, em particular desde 1989, quando o orçamento participativo foi implementado pela primeira vez, em Porto Alegre, e o país tornou-se estudo de caso necessário sobre o assunto e a experiência foi replicada país adentro e mundo afora (Baiocchi, 2003; Fung e Wright, 2003; Sintomer, Rõcke e Herzog, 2010).
Desde então, diversas práticas participativas, impulsionadas pela Constituição de 1988 e pelos governos democráticos que se seguiram a ela - notadamente o governo Lula -, têm sido institucionalizadas de forma crescente no país (Avritzer, 2009; Dagnino e Tatagiba, 2007; Gurza Lavalle et alii, 2006). Tais práticas vão desde as já mais tradicionais, como o referendo e o plebiscito, até as menos conhecidas, como as conferências nacionais de políticas públicas, passando pela reestruturação e ampliação de experiências pré-existentes, como os conselhos nacionais de políticas, os conselhos gestores locais e as audiências públicas, sem prescindir da valorização de práticas menos afamadas, como as ouvidorias e as mesas de negociação e de diálogo.
Ao olhar-se para essas novas práticas democráticas, nota-se logo seu intuito comum de ampliar a participação dos cidadãos para além do exercício do direito de sufrágio. O principal pressuposto a nortear tais experiências, portanto, é o de permitir que os cidadãos envolvam-se de forma mais direta na gestão da coisa pública, em particular na formulação, execução e controle de políticas públicas. O efeito esperado com tais práticas, por sua vez, é o de permitir que o exercício da democracia não se esgote nas eleições, propiciando que os cidadãos manifestem suas preferências de uma forma não mediada por partidos e políticos profissionais e por meios outros que não o voto.
Isso tudo é verdadeiro. Mas há outras verdades que requerem ser explicitadas. Se as novas práticas democráticas ampliam a participação direta dos cidadãos, isso não significa que as instituições políticas tradicionais tenham se tornado menos aptas a representá-los. As práticas participativas fortalecem a democracia ao ampliar o papel dos cidadãos na mesma. Mas isso não se dá em detrimento da representação política e de suas instituições. Ao fortalecimento das formas participativas e deliberativas de democracia não corresponde, portanto, o enfraquecimento do governo representativo.
A relação entre, de um lado, a democracia representativa e, de outro, as experiências participativas e deliberativas não é, portanto, trivial. Sua elucidação é necessária a fim de evitar seja o oportunismo acadêmico, que tanto mal faz às ideias, seja o oportunismo político, que tanto dano causa às instituições. Aqueles que endossam o discurso da crise da representação política eventualmente engajam-se na defesa das modalidades participativas e deliberativas de democracia como meio de deslegitimar o Poder Legislativo, colocando em questão a sua real capacidade de expressar a soberania popular. Contudo, o surgimento de novos espaços democráticos, assim como de novos atores envolvidos na gestão da coisa pública, pode, por outro lado, ser encarado como forma de fortalecimento da representação política, e não como um sinal de enfraquecimento das suas instituições. Este é certamente o caso das conferências nacionais de políticas públicas, conforme argumentaremos neste artigo.
AS CONFERÊNCIAS NACIONAIS DE POLÍTICAS PÚBLICAS
As conferências nacionais consistem em instâncias de deliberação e participação destinadas a prover diretrizes para a formulação de políticas públicas em âmbito federal. São convocadas pelo Poder Executivo através de seus ministérios e secretarias, organizadas tematicamente, e contam, em regra, com a participação paritária de representantes do governo e da sociedade civil. As conferências nacionais são usualmente precedidas por etapas municipais, estaduais ou regionais, e os resultados agregados das deliberações ocorridas nestes momentos são objeto de deliberação na conferência nacional, da qual participam delegados das etapas anteriores e da qual resulta um documento final contendo diretrizes para a formulação de políticas públicas na área objeto da conferência.
Com a sua primeira edição datada de 1941, as conferências nacionais não constituem experiência nova na história política brasileira, muito embora tenham adquirido contornos participativos e deliberativos mais nítidos a partir de 1988 e se tornado significativamente mais amplas, abrangentes, inclusivas e frequentes a partir de 2003, com o início do governo Lula.
Tornam-se mais amplas as conferências nacionais por envolverem número cada vez maior de pessoas, seja participando diretamente como delegados na etapa nacional, seja indiretamente nas etapas estaduais, municipais ou regionais que a precedem, seja paralelamente nas chamadas conferências livres, seja virtualmente nas chamadas conferências virtuais. Tornam-se mais abrangentes por englobarem um número cada vez maior de temas, deixando de ser prática restrita à área da saúde, de onde se originou o processo conferenciai ainda na década de 1940, e às áreas de direitos humanos e assistência social, que vêm se institucionalizando progressivamente a partir da metade da década de 1990, para cobrir vasta pluralidade de novas áreas de políticas públicas. Passam estas a ser deliberadas por meio de mais de trinta áreas, separadas pelas peculiaridades de todos e unidas pela transversalidade de alguns. Tornam-se mais inclusivas, como consequência do aumento de sua amplitude e abrangência, por reunirem um conjunto cada vez mais diverso e heterogêneo de grupos sociais, sobretudo aqueles representativos da sociedade civil, distribuídos entre ONGs, movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores, entidades empresariais e outras entidades, profissionais ou não. Tornam-se, por fim, mais frequentes as conferências nacionais por trazerem muitas vezes entre as suas diretrizes a demanda pela sua reprodução periódica, a qual encontra respaldo em políticas dos ministérios, secretarias, conselhos nacionais ou grupos de trabalho envolvidos na sua convocação e organização e, em alguns casos, na própria legislação, que assegura a periodicidade de algumas delas.
É também a partir de 2003, com o início do governo Lula, que se pode dizer que as conferências nacionais, inobstante o seu caráter consultivo e não vinculante, assumem feição propriamente participativa, deliberativa, normativa e representativa.
Participativa, uma vez que as conferências, inteiramente abertas à participação social nas etapas municipais, passam sistematicamente a obedecer um formato que prevê composição bipartite (na qual, em geral, a sociedade civil conta com 60% dos delegados e o governo com 40%) ou tripartite (nos casos em que os trabalhadores compõem uma terceira categoria de delegação), e conquistam progressivamente a adesão massiva das entidades da sociedade civil concernidas com as políticas debatidas nas conferências.
Deliberativa, no sentido de serem as conferências nacionais orientadas à formação de consensos derivados de processos intercomunicativos de formação da opinião e da vontade ocorridos na esfera pública, envolvendo representantes da sociedade civil e do governo em um processo de justificação pública de argumentos que se espera racionalmente motivados. Além disso, as conferências passam a prever um determinado procedimento deliberativo (que segue não apenas um fluxo de deliberações que começam no plano local e passam pelo estadual antes de atingir o nacional, mas também internamente envolvendo etapas deliberativas que envolvem grupos de trabalho, painéis, plenárias e outras instâncias) que converge na aprovação do documento final contendo as diretrizes para as políticas públicas.
Assumem também as conferências nacionais, portanto, feição normativa, uma vez que suas deliberações passam a culminar conclusivamente na elaboração de um documento final, debatido, votado e aprovado mediante diferentes estratégias e métodos de agregação de preferências e, com isso, geram expectativas não apenas cognitivas, porém também normativas naqueles envolvidos no processo e naqueles que, a despeito de sua não-participação direta, são afetados indiretamente por suas eventuais consequências.
Vários aspectos reforçam ainda a feição propriamente representativa inerente às conferências nacionais enquanto instâncias de participação e deliberação: o formato participativo de composição e organização das conferências nacionais, a dimensão deliberativa de seus grupos de trabalho, painéis e plenárias finais, e o caráter normativo dos relatórios finais que condensam as resoluções, diretrizes e moções debatidas e aprovadas por maioria após o cumprimento de um conjunto de regras estruturadas na forma de um procedimento que busca garantir a legitimidade de seu resultado, independentemente de seu conteúdo. Seja por delegação presumida do Poder Executivo, que as convoca, seja por delegação consequente ao Poder Legislativo, que as recepciona, conforme a pesquisa que serve de base a este artigo demonstra empiricamente, as conferências nacionais certamente engrossam o conjunto de práticas de pluralização da representação (Gurza Lavalle et alii, 2006a), compondo a chamada "nova ecologia da representação", e consubstanciando uma modalidade de "representação informal" (Castiglione e Warren, 2006), ou ainda de "representação giroscópica" ou "representação sub-rogativa" (Mansbridge, 2003).
Mais do que práticas de uma suposta "representação informal" que, na qualidade de instâncias participativas e deliberativas, engendram e reproduzem a lógica representativa, interessa a este artigo encarar as conferências nacionais de políticas públicas como experiências propriamente participativas e deliberativas que, entretanto, fortalecem a representação política formal e reforçam as funções e atividades das instituições políticas tradicionais. Apesar de se constituírem em espaços de representação extraparlamentar, as conferências nacionais fortalecem a representação parlamentar ao multiplicarem as formas de vocalização e agregação dos interesses presentes na sociedade. Neste sentido, as conferências propiciam uma nova forma de expressão dos elementos participativos e deliberativos que constituem desde sempre o conceito e a prática da representação política, como atestam a gênese daquele e a história desta.
A participação sempre foi um elemento presente na gramática da representação, seja através da universalização do sufrágio, seja através da proporcionalidade dos sistemas eleitorais, seja através do caráter de massa dos partidos políticos, seja, enfim, através da atividade dos lobbies e dos grupos de interesse. A deliberação também, por sua vez, desde sempre compôs o repertório da representação política, seja nos processos de formação da opinião pública que caracterizam as campanhas políticas e a mobilização partidária que precedem às eleições, seja nos processos de identificação e estabilização de preferências que são deflagrados pelos sistemas de votação no momento das eleições, seja, por fim, nos processos parlamentares propriamente deliberativos, tanto no âmbito mais restrito das comissões, como no contexto mais amplo do plenário, que sucedem às eleições. Daí que, não apresentando nenhum conteúdo semântico novo, senão apenas uma forma diversa de concretizá-lo, a participação e a deliberação podem ser tomadas como elementos constitutivos da representação política.
Não sendo a propalada crise da representação política nada mais do que outra de suas metamorfoses assistidas pela história, as práticas de participação e deliberação que têm se desenvolvido no seio da sociedade civil de forma expressiva nas últimas duas décadas consistem senão em expressões de uma mudança na natureza da democracia representativa, em que seu grau de legitimidade aumenta mediante o seu aprofundamento, e suas instituições se fortalecem através de seu redesenho.
As conferências nacionais de políticas públicas consistem em prática participativa cercada de peculiaridades que reforçam a sua compreensão enquanto instâncias de fortalecimento da representação política exercida nas instituições formais do Estado. Em primeiro lugar, são convocadas, organizadas e realizadas pelo Poder Executivo. Em segundo lugar, são organizadas pelo Poder Executivo em parceria com a sociedade civil, ativada, no nível federal, nos diferentes conselhos de políticas e grupos de trabalho constituídos nos ministérios e, no nível local, em suas bases.. Em terceiro lugar, são convocadas pelo Executivo com a manifesta intenção de prover diretrizes para a formulação de políticas públicas, tendo como especial foco a elaboração ou revisão de planos nacionais de políticas para as mais diversas áreas, setores e grupos da sociedade civil. Em quarto lugar, consistem em experiências de participação de âmbito e alcance nacional, o que assegura a universalidade na definição das políticas ali deliberadas e a reconfiguração da proporcionalidade dos eventuais interesses partidários ali representados.
Por mais que a realização das conferências e a concretização de seus resultados não sejam, com poucas exceções, respaldadas por leis e dependam, portanto, da vontade política dos governos federais, as mesmas já se encontram sobremaneira institucionalizadas de forma a dispor de alguma autonomia no seio do próprio Estado. Por terem se institucionalizado como parte do processo de formulação e monitoramento de políticas públicas do Poder Executivo - e, portanto, como parte de sua estrutura -, as conferências nacionais geram consequências que impactam na formação da agenda do Poder Legislativo, que pode usá-las seja como bases inf ormacionais, seja como mecanismos de legitimação via participação, seja como insumos deliberativos próprios de sua atividade representativa.
As conferências nacionais são, assim, certamente um exemplo de "instituição participativa" (Avritzer, 2009), ao lado de outras práticas participativas e experiências deliberativas que vêm se institucionalizando no Brasil, do orçamento participativo, no nível local, aos conselhos de políticas, no plano nacional. Porém, mais do que isso, este artigo quer mostrar que as conferências nacionais são instituições representativas - não simplesmente por engendrarem internamente a lógica representativa (por meio da eleição de delegados e votação por maioria, entre outros) e sustentarem alguma modalidade "informal" de representação; porém, de forma mais sofisticada, por comporem uma mais complexa estrutura de representação política no âmbito dos Poderes do Estado, que conta com a participação e a deliberação da sociedade civil de forma mais direta e menos mediada pelos tradicionais mecanismos de controle, como o voto, e de vocalização das preferências por ele expressas, como os partidos.
A despeito das dúvidas que possa suscitar a presunção de uma eventual formação de consenso no seio da sociedade civil, o grau de autonomia desta quando opera no âmbito do Estado, as disputas hegemônicas em tornos dos diferentes projetos políticos e movimentos sociais que a caracterizam, entre outros fatores, o fato é que as conferências nacionais de políticas públicas consistem em mediações democráticas muito eficazes e, portanto, muito apropriadas a adensar nosso modelo de democracia pela redefinição das relações entre sociedade civil e Estado. O Brasil faz na prática o que os estudiosos internacionais da democracia e dos processos democráticos de formulação de políticas públicas esforçam-se por fazer criando modelos teóricos e produzindo simulações hipotéticas: aprofundar o grau de participação e deliberação das decisões políticas por meio de uma aproximação entre o Estado e a sociedade civil.
Tal aproximação se verifica não apenas quando o Estado traz a sociedade civil para dentro de si, tomando as conferências nacionais como um elemento participativo, mas também quando se mostra receptivo às suas demandas, convertendo-as, em alguma medida, em proposições legislativas, concebendo as conferências nacionais como um componente deliberativo da representação política. A dinâmica entre participação/deliberação e representação, e entre sociedade civil e Estado, revela, através das conferências nacionais, novas formas de mediação política que apresentam forte potencial de aprofundar a democracia no Brasil.
A participação e a deliberação, contudo, vêm sendo, infelizmente, progressivamente tomadas como elementos caracterizadores de modelos de democracia supostamente substituíveis ao governo representativo, tal como este é conhecido e definido pelos arranjos institucionais que se consolidaram e reproduziram-se desde o século XVIII. Tão grave quanto isso, a participação e a deliberação são muitas vezes consideradas ameaças às instituições da representação política. A intenção deste artigo é mostrar que, ao contrário, práticas participativas e deliberativas podem fortalecer as instituições políticas representativas. E que isso ocorre no Brasil através de saudável dinâmica institucional observável entre as conferências nacionais e o Congresso Nacional.
Há muito se afirma que a representação política encontra-se em crise e que o Poder Legislativo tornou-se incapaz de expressar a tão almejada e idealizada vontade geral que, de acordo com Rousseau, seria, afinal, por natureza irrepresentável. São vários os argumentos usados na defesa deste perigoso discurso: a diminuição progressiva da participação eleitoral, o aumento da apatia política, o descrédito nas (e das) instituições, a perda da capacidade dos partidos de mobilizar seu eleitorado, a perda do caráter representativo e do elemento ideológico dos partidos, o nocivo papel da mídia etc. É também intenção deste artigo questionar e desafiar tal linha de argumentação, mostrando que não apenas não há de se falar em crise (como resta já demonstrado por Manin, 1996), como também, mesmo se eventualmente a assumíssemos hipoteticamente, os mecanismos participativos e deliberativos apresentam-se como possível solução para ela.
Sem afastar-se de uma concepção pluralista de democracia, esse artigo assume que a estabilidade das instituições representativas aumenta na medida em que a vontade dos representados, medida pela expressão de suas preferências, vê-se refletida nas decisões do governo sobre políticas públicas. De onde a defesa de que a absorção pelo sistema político representativo, sob a forma de atividade legislativa, de decisões emanadas de inputs da sociedade civil viabiliza tal reflexo, contribuindo para a estabilização do processo democrático no Brasil. Mais especificamente, este artigo mostra que a recepção de diretrizes das conferências nacionais pelo Congresso Nacional possibilita a incorporação dos atores que são objeto de políticas governamentais ao processo decisório em torno de sua definição. Neste sentido, ter-se-ia um enfrentamento simultâneo dos dilemas informacionais e de reconhecimento, característicos da democracia contemporânea.
Tendo em vista esse conjunto de questões, a discussão apresentada nas próximas páginas propõe uma análise do impacto das diretrizes resultantes das conferências nacionais de políticas públicas na atividade legislativa do Congresso Nacional durante o período compreendido entre 1988 e 2009. Os argumentos apresentados baseiam-se em pesquisa que resultou na construção de um banco de dados composto por 1.953 diretrizes advindas das conferências nacionais e 3.750 proposições legislativas que receberam trâmite no Congresso Nacional. Cruzando-se dados sobre as demandas deliberadas pela sociedade civil em 80 conferências nacionais realizadas durante este período com dados relativos às proposições legislativas em trâmite no Congresso Nacional em 2009 e no ano subsequente à realização de cada uma das conferências nacionais, observa-se que estas podem ser compreendidas como prática participativa que fortalece a democracia representativa no Brasil e que ademais impulsiona a atividade legislativa do Congresso Nacional. Antes de passarmos à descrição dos dados, é relevante explorar algumas ilações teóricas possíveis da relação entre práticas políticas como as das conferências e o que conhecemos a respeito do processo legislativo no Brasil.
Impactos Informacionais das Conferências Nacionais sobre a Atividade Legislativa
Uma primeira linha de discussão faz referência à literatura teórica sobre tomada de decisão sob condição de incerteza, mais comumente chamada de perspectiva informacional sobre o processo legislativo1 1 . A aplicação clássica dos modelos informacionais ao Congresso é de Keith Krehbiel (1990). . Esta linha de análise surge com o modelo denominado cheap talk (comunicação sem custo) e alguns dos seus desdobramentos. Vincent Crawford e Joel Sobel (1982) definiram a estrutura básica daquele modelo, no qual um ator, no nosso caso o legislador, desinformado tem a opção de "ouvir" a recomendação de um especialista cujos valores e interesses não necessariamente coincidem com os do nosso ator inicial. Um dos avanços importantes do modelo é seu achado segundo o qual, embora o processo de consulta ao especialista possa gerar benefícios mútuos, a comunicação nele embutida não leva ao resultado coletivamente desejado, e isto por dois motivos: a) não sendo seus interesses e valores coincidentes com os do legislador, o especialista é capaz de se comprometer a não manipular a sua informação; b) seguindo a mesma lógica, o legislador também é incapaz de se comprometer com uma decisão mais favorável ao especialista, em troca de melhor informação. Por conseguinte, a questão a ser respondida é: quanta informação realmente confiável a respeito de políticas públicas específicas pode ser compartilhada pelo especialista? Na perspectiva informacional (Crawford e Sobel, 1982), o especialista compartilha toda a sua informação com o ator decisório somente no caso excepcional de possuírem os mesmos interesses e valores, sendo a quantidade de informação compartilhada uma função negativa do aumento da divergência, até o limite em que nenhuma informação é compartilhada.
Uma consulta à literatura que vem examinando as relações Executivo-Legislativo no Brasil indica que, em diversas situações, é perfeitamente possível considerarmos o presidente da República como o especialista do modelo cheap talk, já que recomenda as políticas fundamentais da agenda pública ao Congresso, sendo este último nosso ator decisório2 2 . Para um bom survey desta literatura, ver Leonardo Santos (2008). . E comum também em várias análises sobre o caso brasileiro a constatação de ser o Executivo muito bem informado sobre as políticas que deseja aprovar, mas que o Legislativo depende de um sistema de comissão ainda pouco desenvolvido tendo em vista obter informação adicional a respeito de tais iniciativas. Em outras palavras, o processo de obtenção de informação é altamente custoso na perspectiva do legislador.
Vale a pena então explorar os impactos informacionais sobre a atividade legislativa no Brasil da utilização de conferências nacionais como origem de proposições legais. Nosso argumento de fundo é que processos participativos e deliberativos podem ajudar a resolver dilemas apontados na literatura como sendo próprios de nosso modelo de representação, o assim chamado Presidencialismo de Coalizão. Tais dilemas derivam de um sistema de tomada de decisão baseado em um ator relativamente mal informado, o legislador, que utiliza como fonte de informação um agente cujos interesses podem eventualmente divergir do dele. O sintoma mais evidente seria, seguindo o raciocínio, a emergência de um Legislativo que trabalha a reboque do Executivo, desprovido da capacidade de iniciar agendas endógenas de políticas de alcance nacional, um Congresso em suma disposto a abrir mão de suas inclinações programáticas face à superioridade estrutural da Presidência da República.
Nosso ponto de partida consiste de dois pressupostos acerca do ator decisório do Legislativo, o legislador individual. O primeiro pressuposto é o de que se trata de um ator que depende do voto para se manter ou avançar em sua carreira política, o que implica necessariamente manter ou ampliar seu apoio eleitoral. Em uma democracia representativa, os decisores são incentivados deliberar sobre, apoiar ou rejeitar políticas públicas capazes, segundo sua percepção, de gerar os votos necessários para alcançar aquele objetivo. O segundo pressuposto é o de que o legislador é desinformado a respeito das consequências da maioria das matérias que sobre as quais é necessário deliberar e precisa votar. Além disso, devido à natureza coletiva das decisões congressuais, e na ausência de incentivos tangíveis e claros, sua tendência é a de não despender tempo e esforço na busca por informação para reduzir o grau de desinformação.
O Legislativo ou, mais precisamente, o ator decisório do legislativo, nosso legislador, precisa escolher uma política pública p de um espaço unidimensional. A cada política p está associado um resultado x, também esse definido em um espaço unidimensional. A relação entre políticas e seus resultados é definida como x = p + co, onde o parâmetro co representa fatores exógenos à decisão legislativa3 3 . O pressuposto mais usual, e com o qual trabalhamos, é que cu é a realização de uma variável aleatória uniformemente distribuída com suporte em [0,1]. Para uma discussão das implicações desse pressuposto, ver Jonathan Bendor e Adam Meirowitz (2004). . A título de ilustração, considere uma política de cota cujo objetivo é beneficiar o ingresso de determinado grupo de pessoas, dotadas de características étnicas ou de gênero, etc... no mercado de trabalho x. Nesse caso, p representa os ingressantes no mercado que o fazem por conta da política (e, portanto, passível de fixação por lei) e co representa a parte que ingressa por conta de circunstâncias privadas. Dada a expectativa a respeito de quão determinantes são as circunstâncias privadas, o problema do legislador é escolher o nível ótimo de cota (p*) de forma a obter um patamar de igualdade no mercado de trabalho, patamar considerado o mínimo aceitável.
O legislador, ou como a literatura costuma designar, o mediano do plenário, pode adquirir informação sobre co e, assim, reduzir a sua incerteza e a correspondente perda informacional, "consultando" um ou mais agentes informados4 4 . Para a aplicação de modelos informacionais para o entendimento de etapas fundamentais do processo legislativo no Brasil, ver Santos e Almeida (2006) e Almeida e Santos (2009). . Para fins de exposição de nosso argumento, consideramos que existem dois agentes a serem consultados: o Executivo e uma conferência nacional de políticas públicas. Pressupomos que ambos são perfeitamente informados sobre co. Isto é, o Executivo, assim como proposições oriundas de conferências nacionais, compartilha informação privada ao propor uma política pública ao Legislativo. Ademais, consideramos que a diferença de origem leva à distinção significativa quanto ao processo legislativo em um e outro caso, posto que embute implicações igualmente distintas no que concerne à base inf ormacional da decisão do mediano do plenário.
Os incentivos para que o Executivo e uma conferência nacional compartilhem decorrem da possibilidade de ser o ator decisório, o legislador, influenciado no sentido de reduzir suas deficiências informacionais e assim produzir uma política pública compatível com os interesses e valores daqueles. Pelo processo legislativo ordinário, uma política, como a de cotas, é proposta através de um projeto de lei (doravante, PL), que precisa, antes de se tornar efetiva alteração no status quo legal, receber a sanção do plenário. Na argumentação aqui desenvolvida, entre as atribuições centrais das conferências nacionais encontra-se a de coletar informações sobre as consequências da política proposta e, à luz de tais informações, fazer uma recomendação ao plenário. Essas atribuições fazem das conferências um poderoso agente informacional do Congresso. Senão vejamos.
A partir do conhecimento das inclinações, interesses e valores dos agentes que participam de uma conferência, o ator decisório forma uma expectativa a respeito da quantidade de informação a ser produzida no processo deliberativo. Interessa-nos, especificamente, identificar as condições sob as quais a conferência é mais ou menos eficiente no sentido de produzir informação acerca de uma política de sua iniciativa ou de iniciativa do Executivo. A oportunidade para a conferência influir na decisão do legislador cresce na mesma medida em que este é desinformado sobre o tema objeto de deliberação, desinformação que é tanto menor, quanto maior for a disposição do Executivo em compartilhar informação.
Suponha que a desinformação do Legislativo em torno de nossa política de cotas, após atualizar e receber inputs do Executivo, seja significativa. Para simplificar a avaliação do incentivo das conferências para produzir informação, as classificamos em três tipos, de acordo com sua capacidade de agregar opiniões a respeito do tema, ou seu grau de pluralismo de visões: "opositora", "governista" e "plural". Uma conferência é "opositora" se os atores que dela participam possuem valores e interesses em oposição aos que se encontram embutidos na visão do Executivo; caso contrário, ela é "governista". Uma conferência "governista" não tem maiores incentivos para produzir informação adicional, fundamentalmente porque seus participantes sabem que o Executivo tem incentivo para coletar e divulgar a informação que lhes interessa, tornando pouco provável a descoberta de alguma informação além da eventualmente divulgada pelo Executivo. Uma conferência "opositora", pelos mesmos motivos, mas lidos em sentido contrário, se sente estimulada a produzir informação, contudo, apenas aquela que é complementar às visões contidas nas propostas do governo. Para o legislador, assim, uma conferência "opositora" é potencialmente informativa, pois tende a fornecer evidências para além daquelas que são geradas a partir da proposta do Executivo. Entretanto, proposições oriundas deste tipo de conferência tendem a ser vetadas pelo governo, exatamente porque as informações adicionais eventualmente produzidas em seu contexto deliberativo são frontalmente contrárias aos seus valores e opiniões concernentes à matéria. Para o Executivo e também para o legislador, a conferência ideal é a que chamamos de "plural" trata-se de conferência que, pela natureza de seus participantes, é capaz de produzir deliberações representativas das opiniões dos principais grupos e indivíduos afetados pela política. Suas decisões são, neste sentido, vetores que representam a tendência central das inclinações, interesses e valores que os cidadãos brasileiros cultivam em relação a uma determinada política.
A conclusão a que se pode chegar, se considerarmos correto o raciocínio desenvolvido nesta seção, é a de que conferências nacionais certamente possuem um papel informativo relevante na operação do Presidencialismo de Coalizão. Este papel é tão mais acentuado, quanto maior for o viés do Executivo vis-à-vis o legislador, em torno de uma política pública específica, e quanto maior for a pluralidade de visões embutida nas diretrizes oriundas daquelas. Em outras palavras, o processo legislativo ordinário, quando acionado pelas conferências, permite ao plenário tomar uma decisão melhor informada e, assim, reduzir perdas decorrentes da sua desinformação. E neste sentido que afirmamos que a democracia participativa e processos deliberativos não são contraditórios com a democracia representativa, mas são mecanismos de reforço do sistema político democrático em seu conjunto.
Tal característica da democracia participativa e dos processos deliberativos se torna ainda mais evidente se levarmos em consideração a questão da multidimensionalidade na política.
Conferências Nacionais e o Resgate da Multidimensionalidade na Política
As pessoas em qualquer democracia possuem identidades e preferências diversas, assim como varia a intensidade com que estas mesmas pessoas se envolvem quando da avaliação de temas que surgem na agenda política. Durante algum tempo importantes scholars percebiam na existência da tal diversidade a origem de paradoxos incontornáveis na operação de regimes representativos. O principal e mais famoso deles, o paradoxo de Arrow5 5 . Ver a obra seminal de Kenneth Arrow (1951). , serviu de base para o desenvolvimento de uma vasta literatura a indicar que, sob determinadas condições, não de todo desprovidas de realismo, os processos de decisão coletiva são inerentemente desprovidos de sentido. Melhor dizendo, em decisões a respeito de políticas a serem seguidas pela coletividade e que envolvem mais de duas alternativas, vários teoremas provam que qualquer resultado possível, incluindo-se os que se encontram a léguas de distância das preferências de todos os atores envolvidos6 6 . A referência obrigatória aqui é Richard McKelvey (1976). .
Ao mesmo tempo, contudo, alguns teóricos vieram mostrar que algumas restrições nas condições nas quais as decisões são tomadas impedem a emergência dos famosos ciclos paradoxais das decisões por maioria. A prova célebre deste resultado se encontra na obra de Duncan Black (1958)7 7 . O livro de 1958 na verdade é a divulgação em livro de vários artigos que o autor desenvolveu em anos anteriores. cujo teorema do eleitor mediano acabou por servir de base para grande parte da teorização sobre democracia representativa feita pelos seguidores do neoinstitucionalismo e da escolha racional. Numa formulação sintética, o teorema estabelece que em decisões coletivas com regra de maioria, e nas quais o formato das curvas é de pico único e o espaço de políticas é unidimensional, a alternativa vencedora é aquela que se encontra mais próxima do ponto ideal do eleitor mediano. Vários aspectos do teorema merecem averiguação mais cuidadosa, o que tem sido feito pela literatura com os devidos desdobramentos teóricos e empíricos8 8 . Para uma exposição didática da análise espacial, ver Melvin Hinich e Michael Munger (1997). A obra de referência com aplicação para o caso do bipartidarismo característico da política norte-americana é de Anthony Downs (1957). No caso multipartidário e formação de coalizões, ver Norman Schofield (1993). . Nosso objetivo agora é ressaltar o significado de trabalhar com a noção de que o espaço do conflito político seja unidimensional.
Três questões são de particular relevância neste contexto: O que significa trabalhar com o espaço político unidimensional e até que ponto é realista pensá-lo desta maneira? E factível pensar a operação do sistema político brasileiro, em especial, o processo decisório em torno de políticas públicas pressupondo o espaço de conflito como sendo unidimensional? Qual o impacto das conferências nacionais na dimensionalidade do espaço do conflito político no Brasil? O argumento que defendemos, de novo, caminha na direção de defender nossa tese geral de ser a democracia participativa e os processos deliberativos meios de reforçar a democracia representativa em seu conjunto. A nosso ver, as conferências nacionais são um meio eficiente de se resgatar a multidimensionalidade do conflito político.
a) O Significado e Valor Heurístico do Espaço Unidimensional
O que significa pensar o espaço político como unidimensional? Significa dizer que as preferências das pessoas relativamente aos temas que surgem para a tomada de decisão coletiva, em outros termos, seus pontos ideais a política, se encontram distribuídas ao longo de um continuum esquerda/direita9 9 . Para uma defesa da unidimensionalidade na política norte-americana, ver Keith Poole e Howard Rosenthal (1997). Para o caso das democracias multipartidárias europeias, ver Michael Gallagher, Peter Mair, e Michael Laver (1995). . Quanto mais extremada for a posição de um indivíduo a respeito do tema, a favor ou contra mais gasto, ou mais tributação em torno de uma atividade ou setor, por exemplo, mais seu ponto ideal será representado como sendo localizado em uma das extremidades do continuum. Mas até que ponto é realista imaginar que o conflito político em sociedades complexas, multifacetadas, pode ser subsumido pelo continuum esquerda/direita? Seria empiricamente válido analisar a operação da democracia contemporânea mantendo a ideia de espaço ideológico da disputa política?
O tema é controverso, contudo, diversas análises têm demonstrado o valor heurístico de assumir a competição político-partidária das democracias contemporâneas como sendo uma disputa entre dois grandes blocos, um deles colocado à esquerda do centro e outro à direita do centro político. Isto quer dizer que a pluralidade de issues que compõe necessariamente a agenda pública de uma nação que é democrática e razoavelmente complexa acaba sendo amalgamada pelo sistema de partidos ao longo do espaço ideológico esquerda/direita.
b) Espaço Unidimensional e o Presidencialismo de Coalizão
Como exemplo - e fazendo referência à segunda questão levantada acima - tomemos o caso do Presidencialismo de Coalizão brasileiro. Nosso sistema político é caracterizado pela separação de poderes e pelo multipartidarismo, que alguns críticos denominam de exacerbado. Independentemente da avaliação que se faça do pluralismo partidário no Brasil, o fato é que a cooperação entre Executivo e Legislativo, necessária para que o governo possa conduzir os negócios do Estado, depende da montagem de coalizões governistas, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. A prática de montagem de coalizões e o histórico das disputas presidenciais têm revelado que a disputa partidária no Brasil se dá entre dois grandes blocos, um à esquerda do espectro, com o PT como ator principal, e outro à direita do espectro, com PSDB e DEM como protagonistas10 10 . Para uma defesa da unidimensionalidade da disputa partidária no Brasil, especialmente em eleições presidenciais, ver Santos (2008). . Em uma palavra, no Brasil, a despeito da heterogeneidade social, a despeito da incrível e complexa teia de interesses, valores e opiniões que sobrecarregam a agenda pública, o conflito político acaba também se estruturando em torno de um espaço unidimensional.
c) Conferências Nacionais, Presidencialismo de Coalizão, Espaço Unidimensional
A questão que permanece e intriga - e aqui adentramos o terreno do terceiro e último tópico mencionado - consiste em pensar de que forma a multidimensionalidade dos interesses, de intensidades e de valores se faz representar no mundo político formal. Em interessante trabalho, Benjamin Bishin (2009) mostra como, na política contemporânea nos EUA, diversas decisões legislativas são tomadas ao arrepio das inclinações majoritárias do eleitorado, resultado que o autor considera consequência do peso de pequenos grupos, altamente mobilizados em torno de temas específicos. Tais temas, estranhos ao conflito unidimensional que divide historicamente democratas e republicanos, todavia, recebem o patrocínio de lobbies e atores altamente comprometidos com os mesmos, os quais acabam forçando sua entrada no Legislativo e alterações no status quo legal do país, alterações sistematicamente contrárias à opinião da maioria.
Em trabalho não tão recente quanto o de Bishin, Herbert Kitchelk (1994) estuda como dimensões alternativas à tradicional clivagem esquerda/ direita tem transformado o sistema partidário de diversos países europeus, tornando a escolha eleitoral e a montagem de coalizões algo muito mais complexo e indeterminado do que foi o caso durante todo o período do pós-guerra. Temos então, por um lado, o cenário norte-americano, no qual a multidimensionalidade da política repercute diretamente no Congresso e em suas decisões, o que, a crer em Bishin (2009), acaba por enviesar o sistema representativo em favor de minorias intensamente comprometidas; e, por outro, o contexto europeu no qual a maior dimensionalidade do espaço político tende a ser intermediada pelos partidos, tarefa que tem causado o afastamento dos eleitores dos mesmos, assim como o aumento exponencial na indeterminação na formação dos governos.
A respeito deste ponto específico, nosso argumento é o de que as conferências nacionais no Brasil acabam por representar um experimento institucional cuja função é justamente a de "furar" o cerco da unidimensionalidade do conflito partidário, conflito que encontra no Presidencialismo de Coalizão sua prática institucional precípua. Ora, um exame detido da montagem dos diferentes ministérios ao longo das duas presidências de Luiz Inácio Lula da Silva revela que representantes de diferentes grupos sociais têm feito parte da estrutura do Executivo. Estamos falando de grupos tão diversos quanto o movimento de mulheres, de negros, dos trabalhadores rurais, de empresários ligados ao agronegócio, de movimentos ambientalistas. Contudo, esta participação, na maioria das vezes com status ministerial, não tem redundado necessariamente na introdução de temas caros a tais grupos na agenda do Legislativo, muito menos sua encampação como elementos centrais da agenda do governo. A dinâmica do Presidencialismo de Coalizão leva o governo, no front congressual, a concentrar seus esforços em temas que são característicos das disputas unidimensionais, a disputa dos grandes blocos, como costumeiramente ocorre com a discussão do orçamento, do nível de impostos, da presença regulatória do Estado nos setores fundamentais da economia etc.
Os temas de políticas públicas encarnados na presença de ministros representantes de movimentos sociais e grupos de interesse são, frequentemente, objeto de controvérsia no interior da própria coalizão governamental. O eventual patrocínio de tais políticas pelo governo na forma de elencá-las como fazendo parte de uma agenda de questões a serem deliberadas pelo Congresso traria como efeito não desejado o retorno dos problemas previstos nos teoremas da impossibilidade. Negociações intermináveis, de resultados indeterminados, bloqueio de pontos centrais da agenda, além de instabilidade no processo governativo em seu conjunto seriam resultados razoáveis de prever. O papel das conferências nacionais é justamente o de, mediante práticas participativas e deliberativas, estruturar o processo decisório em torno de temas fundamentais, mas que pela sua própria natureza não fazem parte do core da agenda do Executivo.
De que forma as conferências nacionais resolvem os paradoxos da decisão? Ao isolarem os temas em discussões específicas, as conferências reeditam a regra da irrelevância de alternativas independentes, uma das regras de ouro para se escapar dos ciclos de decisão majoritária11 11 . Para uma exposição sucinta das regras que um processo decisório deve seguir tendo em vista superar os ciclos, ver William Riker (1982). Para uma excelente crítica deste trabalho, especificamente sobre suas consequências antidemocráticas, e ao mesmo tempo relativizando a importância das regras no mundo real, ver Gerry Mackie (2003). . Tal regra impõe que cada issue seja tratado em seus próprios termos pelos agentes encarregados de decidir. A importância da regra consiste em diminuir a possibilidade de que os agentes negociem suas posições em determinado issue tendo em vista suas preferências com relação a issue distinto. Em assim sendo, o processo decisório é simplificado e as decisões majoritárias tendem a obedecer aos ditames do teorema do eleitor mediano.
Percebam que as conferências nacionais são organizadas em torno de temas muito bem definidos, as decisões que dela decorrem não são objeto de negociação, por exemplo, vis-à-vis decisões alcançadas em outros fóruns, sobre questões diversas. Percebam também que as conferências nacionais tratam de temas que, embora eventualmente endossados por membros dos ministérios, não fazem parte do pacote de políticas considerado prioritário pelo governo. Assim, as conferências, ao formularem diretrizes de políticas e comunicá-las à sociedade e ao Congresso, permitem que a multidimensionalidade da política retorne à cena, mas de maneira estruturada sem expor o Legislativo aos ciclos de decisão majoritária.
A eficiência da conferência nacional como mecanismo de resgate da multidimensionalidade dependerá de suas próprias características. Sua capacidade em se fazer ouvir no Legislativo, em outras palavras, é função de sua capacidade de garantir a independência das alternativas irrelevantes, assim como a sua capacidade de expressar, através de suas práticas participativas e deliberativas, a multiplicidade de visões sobre o tema. Este último fator nos leva de volta à discussão pretérita sobre o grau de pluralismo da conferência e o valor informacional de suas recomendações de políticas.
Em resumo, nosso argumento de fundo, como já dito, é que o reforço da democracia representativa, vindo das práticas participativas e deliberativas, ocorre no Brasil mediante a realização das conferências nacionais de políticas públicas. Como vimos, através de suas diretrizes, recomendações de políticas são feitas à sociedade, ao governo e ao Congresso Nacional. As seções seguintes apresentam as bases metodológicas da pesquisa e uma primeira averiguação de seus resultados.
DA TEORIA PARA A EMPIRIA: QUESTÕES METODOLÓGICAS
Seguindo metodologia a ser descrita adiante, procedeu-se a um levantamento dos dados relativos a todas as conferências nacionais realizadas no Brasil entre 1988 e 2009. Em primeiro lugar, fazia-se imperioso definir um critério para classificar as conferências nacionais que comporiam o universo da pesquisa. Para cumprir os fins da análise proposta, não se poderia considerar toda conferência nacional nomeada como tal. De acordo com dados da Secretaria Geral da Presidência da República - órgão do governo responsável pelo relacionamento e articulação com as entidades da sociedade civil e pela criação e implementação de instrumentos de consulta e participação popular de interesse do Poder Executivo, como é o caso das conferências e dos conselhos nacionais -, foram realizadas no Brasil, entre 1988 e 2009,92 conferências nacionais. Destas, são 80 as que satisfazem os critérios de classificação que nortearam a definição do universo da pesquisa neste artigo apresentada.
Adotamos como critério classificatório geral os indícios comprobatórios do caráter a) deliberativo; b) normativo e c) nacional da conferência. No que concerne ao caráter deliberativo, a análise do material das conferências buscou detectar a presença de atividades deliberativas (envolvendo troca de argumentos e busca de entendimento mútuo) voltadas para a finalidade de formulação de diretrizes para as políticas públicas. Assim, foram classificadas e integradas ao universo da pesquisa apenas aquelas conferências cuja programação previsse um período de deliberação (desdobrado ou não em grupos de trabalho, comissões, eixos temáticos, painéis ou outros formatos que envolvessem diálogo e priorização de propostas) e a realização de uma plenária final, na qual seus resultados convergissem por meio de votos ou outra forma de aprovação pelos participantes.
No que diz respeito ao caráter normativo, a análise do material originado das conferências buscou identificar aquele que seria o seu documento final, na forma de um relatório ou de um conjunto de resoluções em separado. Uma vez identificado este documento final, buscou-se checar se ele era apresentado - e poderia efetivamente ser considerado - como resultado das deliberações ocorridas nas várias instâncias e, em particular, se havia sido objeto de acordo aprovado em plenárias temáticas ou plenária final (ou equivalente) que congregasse todos os participantes (os delegados, representantes eleitos ou indicados) com direito a voto.
Em relação ao caráter nacional da conferência, a preocupação foi verificar se ela de fato atendia o escopo de servir de espaço para a geração de insumos voltados à formulação de políticas públicas para o país, de modo que se buscou verificar na análise do material coletado informações que indicassem que a conferência nacional havia sido precedida de etapas intermediárias, fossem elas as conferências municipais e estaduais, conferências regionais, conferências livres, ou ainda, em alguns casos, conferências virtuais. Buscou-se, assim, checar se o debate sobre as políticas partiu do plano local para o nacional, resultando na elaboração de um documento normativo que refletisse o caráter universal de demandas particulares.
No que tange à sistematização das diretrizes resultantes das conferências nacionais com vistas à montagem do banco de dados, houve também necessidade de definir uma metodologia de classificação, além de estabelecer alguns critérios a serem seguidos uniformemente durante o processo de coleta de dados nos documentos finais das conferências nacionais. Tendo em vista o objetivo precípuo de avaliar o impacto das proposições resultantes das conferências nacionais no processo legislativo, adotaram-se dois critérios gerais de corte, quais sejam:
(i) Foram descartadas diretrizes de cunho administrativo - isto é, aquelas que, a fim de serem satisfeitas, deveriam claramente ser objeto de medidas administrativas e não de intervenção legislativa;
(ii) Foram descartadas diretrizes que visassem reforçar ("implementar", "fortalecer", "garantir" etc.) legislação existente ou políticas públicas já em execução. Este critério afigurou-se importante para distinguir as novas diretrizes oriundas das conferências nacionais de demandas já canalizadas e eventualmente satisfeitas por outros meios ou em outros momentos.
Mantendo o foco nas diretrizes que indicassem e demandassem tratamento legislativo, portanto, priorizoaram-se, para efeitos de classificação na sistematização dos dados, as diretrizes que apresentassem as seguintes características:
(i) Diretrizes que sugerem explicitamente a elaboração de projetos de lei, emendas constitucionais, decretos ou outras espécies legislativas previstas no artigo 59 da Constituição Federal de 1988;
(ii) Diretrizes que demandam criação, discussão, revisão e modificação de legislação existente;
(iii) Diretrizes que demandam regulamentação de leis;
(iv) Diretrizes que demandam aprovação, apoio ou rejeição de projetos já em tramitação no Congresso Nacional;
(v) Diretrizes que demandam explicitamente a criação de políticas nacionais gerais ou específicas;
(vi) Diretrizes cuja forma e conteúdo demandam necessariamente a formulação de políticas públicas.
Uma vez identificadas, todas as 1937 diretrizes foram agrupadas e classificadas por subtemas. Estes últimos foram definidos de acordo com a recorrência de diretrizes com conteúdo que versassem sobre um mesmo objeto, objetos semelhantes, ou objetos relacionados. Estes subtemas também servem de referência para as consultas que podem ser feitas online na base de dados ISEGORIA (www.mj.gov.br/isegoria) 12 12 . O ISEGORIA, banco de dados sobre participação social e produção legislativa, é um dos produtos finais da pesquisa descrita neste artigo. Confiando que o valor do banco de dados transcende o seu uso para fins acadêmicos decidiu-se torná-lo público na rede mundial de computadores, o que foi possível com a criação de um sistema operacional próprio para o banco de dados nomeado ISEGORIA. Ao torná-lo acessível na internet, espera-se contribuir para a democratização do processo de formulação das políticas públicas no Brasil, dando a conhecer aos agentes do Estado as demandas legislativas da sociedade civil, e aos atores desta as proposições legislativas que as contemplaram (na forma de leis e emendas constitucionais) e que ainda podem vir a atendê-las (por se encontrarem traduzidas em projetos de lei e propostas de emendas à Constituição). .
Concluída a primeira etapa da pesquisa, deu-se início ao levantamento dos dados referentes às proposições legislativas em trâmite no Congresso Nacional relativas às diretrizes das conferências nacionais identificadas e sistematizadas no primeiro momento. Foram pesquisadas proposições legislativas apresentadas no Congresso desde 1988 até 2009 cujos temas fossem pertinentes a cada uma das diretrizes das conferências nacionais sistematizadas na primeira fase.
Metodologicamente, o processo se deu da seguinte forma: pesquisou-se a base de dados do Congresso Nacional de forma a identificar todas as proposições legislativas em trâmite que possuíssem pertinência temática com as diretrizes das conferências classificadas na primeira etapa. Para tanto, destacou-se de cada uma dessas diretrizes seu núcleo temático central e agruparam-se aquelas que tratavam de temas semelhantes, sempre se respeitando a especificidade de cada qual. Disso resultaram listas de palavras-chave e/ou frases-chave que geraram argumentos de busca para a pesquisa legislativa.
Feita esta triagem preliminar, espécie de limpeza do material gerado pelo levantamento legislativo, passou-se efetivamente à classificação de acordo com o critério de pertinência temática. Foram então inseridas nas planilhas, que já continham as diretrizes das conferências, todas as proposições legislativas que possuíam pertinência temática com as mesmas - ou seja, que tratavam dos mesmos temas. Para o teste da pertinência temática usou-se apenas a ementa das proposições legislativas. Naquele momento, as proposições legislativas foram divididas e classificadas em duas categorias: "projetos de lei e propostas de emenda constitucional" e "leis e emendas constitucionais". Na categoria "leis e emendas constitucionais" incluem-se leis ordinárias, leis complementares, emendas à Constituição e decretos legislativos. Na categoria "projetos de lei e propostas de emendas constitucionais" incluem-se projetos de lei complementar, projetos de lei ordinária e propostas de emenda à Constituição. Aplicado, por conseguinte, o filtro da pertinência temática, o universo da pesquisa passou a contar com 2.808 projetos, divididos entre 2.629 projetos de leis ordinárias e complementares e 179 propostas de emendas à Constituição. Somados a estes se encontram as 312 leis ordinárias e complementares promulgadas, além de 9 emendas à Constituição.
A pesquisa qualitativa - ou que chamamos de "filtro humano" - consistiu no momento seguinte da pesquisa. Cada uma das 3.129 proposições legislativas foi lida e analisada em sua integralidade e coligida com as diretrizes das respectivas conferências. Desta triagem, sobreviveram apenas aquelas proposições que tratam exatamente de alguma das demandas apresentadas em cada uma das diretrizes das conferências. Foram excluídas as proposições que tratavam de tema semelhante, porém eventualmente com orientação diversa daquela dada pela conferência nacional. As proposições legislativas foram então classificadas por espécie legislativa e agrupadas em colunas respectivas de cada uma das planilhas. Proposições legislativas que se aplicam a mais de uma demanda de uma mesma conferência ou a demandas comuns de conferências diferentes foram registradas nas colunas específicas, porém contabilizadas apenas uma vez no total do universo da pesquisa. Aplicado, por conseguinte, o filtro qualitativo, o universo da pesquisa passou a contar com 612 projetos, divididos entre 566 projetos de leis ordinárias e complementares e 46 propostas de emendas à Constituição. Somados a estes se encontram as 51 leis ordinárias e complementares promulgadas, além de 1 emenda à Constituição.
Como etapa final, a fim de obter um controle mais rigoroso sobre os dados e aumentar a margem de segurança para a afirmação de que determinado texto legislativo decorreu das diretrizes das conferências, procedeu-se a um novo levantamento legislativo, desta vez identificando e classificando todas as proposições legislativas que receberam trâmite no Congresso Nacional no período de um ano (12 meses) imediatamente subsequente à realização de cada uma das 70 conferências nacionais para as quais foi realizada a pesquisa legislativa (ou seja, todas compreendidas entre 1988 e 2008). Nesta pesquisa foram incluídas também as proposições legislativas que no momento de realização da pesquisa (2009) eram consideradas 'inativas', isto é, trata-se de projetos de leis e propostas de emendas constitucionais que tramitaram (isto é, que foram introduzidos e/ou aprovados) durante o ano subsequente ao da realização de cada uma das conferências, porém deixaram de tramitar em algum momento posterior - seja por terem sido arquivados, seja por não terem sido reapresentados nas sessões legislativas subsequentes, seja por terem sido vencidos em votações, seja por terem sido substituídos e/ou fundidos com outros projetos de leis ou propostas de emenda constitucionais. Sobre este novo levantamento legislativo foram aplicados os dois filtros, o da pertinência temática e o qualitativo, obtendo-se, com cada qual, os seguintes resultados: pelo corte da pertinência temática, foram classificados 2.629 projetos de leis ordinárias e complementares e 179 projetos de emenda à Constituição, além de 312 leis ordinárias e complementares e 9 emendas constitucionais. Com o filtro qualitativo, foram classificados 566 projetos de leis ordinárias e complementares e 46 projetos de emenda à Constituição, além de 51 leis ordinárias e complementares e 1 emenda constitucional.
O uso do recorte de um ano como mecanismo de controle possibilita um retrato diferenciado do universo da pesquisa. Tem-se, na verdade, 70 fotografias, cada qual mostrando a atividade legislativa do Congresso Nacional espaço de um no ano subsequente a cada uma das conferências nacionais analisadas. Aqui estão incluídas centenas de proposições legislativas que se perderam ao longo do tempo (isto é, da data de um ano após a realização da conferência até junho de 2009 quando se iniciou o levantamento que compõe a base de dados da pesquisa) pelas diferentes razões aludidas anteriormente. Além disso, tem-se, com o banco de dados que serve de base ao ISEGORIA, uma grande fotografia do estado atual da atividade legislativa do Congresso Nacional no fim de 2009; ou seja, a classificação de todas as proposições legislativas associadas às diretrizes das conferências nacionais, com base nos dois critérios de corte (o filtro da pertinência temática e o filtro qualitativo), que se encontravam ativas, isto é, então em trâmite no Congresso. Com a aplicação dos cortes e dos filtros, o universo da pesquisa reduz-se e amplia-se ao mesmo tempo. São fotografias que se superpõem, mas todas revelam um Congresso Nacional significativamente receptivo e permeável às demandas que a sociedade civil apresenta nas conferências nacionais.
O Impacto das Diretrizes das Conferências Nacionais na Produção Legislativa do Congresso: Primeira Aproximação
O primeiro conjunto de evidências, constantes das Tabelas 1 e 2 abaixo, fornece uma ideia do tamanho relativo da produção legislativa "acionada" pelo mecanismo participativo e deliberativo das conferências nacionais ao longo do período abarcado pela pesquisa. A análise ocorre em duas etapas. Em primeiro lugar, descrevemos os valores das tabelas, referentes aos diversos tipos de proposições ainda em tramitação. Em segundo lugar, comparamos estes resultados com os que derivam de leitura mais rigorosa a respeito da relação entre as diretrizes das conferências nacionais e as decisões do Congresso, no que tange à iniciativa de projetos ou à aprovação de novos diplomas legais. Chamamos tal leitura mais rigorosa de "filtro", isto é, uma restrição sobre aquilo que aceitamos como decorrente das diretrizes. Com o filtro, não basta termos afinidade temática entre os documentos resultantes das conferências e os textos oriundos da produção legal, é preciso, ademais, que haja coincidência textual entre diretrizes, por um lado, e projetos, leis e emendas, por outro.
Passemos então à descrição dos resultados. A Tabela 1 revela que, em um universo total de 13.245 projetos de leis ordinárias e complementares, 2.629, ou seja, 19,8% possuem pertinência temática com as diretrizes oriundas das conferências nacionais. Além disso, das 369 PECs em tramitação na atual legislatura, nada menos do que 179 (48,5%), portanto, quase metade, inclui-se entre as proposições de alguma forma relacionadas às deliberações havidas nas conferências nacionais. No cômputo geral, 2.808 projetos enviados para tramitar no Legislativo (ou seja, 26% do total!) trataram de questões objeto de diretrizes de alguma conferência nacional. Se impusermos aos dados o que estamos chamando de "filtro", os valores caem de maneira significativa. Os números aparecem na Tabela 2. Foram 5.666 (4,3%) projetos iniciados e 46 (12,5%) PECs, perfazendo um total de 612 (4,5%) iniciativas dos legisladores que, com certeza, têm relação direta com as diretrizes constantes dos relatórios finais das conferências.
Difícil avaliar até que ponto tais cifras correspondem a algo significativo no conjunto mais amplo de proposições legislativas; não é, contudo, descabido dizer que estamos diante de fenômeno cujos contornos devem ser averiguados de maneira mais cuidadosa. Uma primeira questão diz respeito à eficácia de tais projetos no conjunto da produção de leis do Congresso. Até que ponto este tipo de projeto, isto é, inspirado em ou diretamente relacionado às diretrizes das conferências nacionais segue tramitando pelas diversas etapas percorridas por uma proposição legislativa, alcançando o plenário das duas Casas, obtendo a aprovação de maiorias e a sanção presidencial?
A Tabela 3 sugere uma primeira aproximação do problema. De 4.322 projetos ordinários e complementares que se tornaram lei do país, 312 (7,2 %) demonstraram alguma pertinência temática com resoluções de conferências. Das PECs, 9 (15,8%) aprovadas também fazem parte deste subconjunto. Na Tabela 4 temos números corrigidos segundo nosso filtro. Foram aprovadas 51 leis (1,2%) e 1 (1,8%) emenda constitucional a partir de iniciativas diretamente relacionadas com as diretrizes, totalizando 52 (1,2%) de diplomas legais derivados do mundo participativo.
Difícil medir a significância política dos resultados até agora apresentados, embora duas advertências devam ser feitas. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que no universo de leis aprovadas e sancionadas estão contidas proposições de iniciativa do Executivo, que compõem o grosso (em torno de 80%) da produção legal no Brasil. Assim sendo, se levarmos em consideração apenas a legislação cuja iniciativa decorreu da ação de deputado ou senador, estaremos diante de algo verdadeiramente avassalador, pois estamos falando de 51 leis aprovadas a partir de processos participativos e deliberativos. Em segundo lugar, cabe destacar o número considerável de PECs aprovadas com algum grau de correlação temática e a emenda constitucional efetivamente promulgada. Emendas constitucionais são, por natureza, proposições de dificílima tramitação e aprovação. As regras que regulam a passagem de tal tipo de proposta bem como o quorum exigido para sua aprovação a tornam espécime rara no panorama legislativo não só no Brasil, mas também em diversas outras partes do mundo democrático. Somente alto grau de consenso, ou oposição muito isolada, pode explicar a aprovação da matéria.
Uma segunda questão fundamental a merecer análise mais cuidadosa consiste nas áreas temáticas abarcadas pelas proposições legislativas sob exame. Sobre que tipo de problema teriam incidido os projetos iniciados, as leis e emendas aprovadas com pertinência temática com as diretrizes das conferências nacionais? O quadro, bem como os gráficos abaixo, contêm um primeiro conjunto de informações.
Antes de passarmos à descrição dos dados cabe uma nota de ordem técnica. Ao contrário do que ocorreu na análise anterior, desta feita fomos obrigados a cometer dupla contagem nos casos dos projetos e das leis, isto se devendo ao fato de caberem diversas proposições em mais de um grupo temático.
Começamos a análise com os valores relativos à pertinência temática entre diretrizes e atividade legislativa. As tabelas e gráficos abaixo mostram que as áreas de políticas públicas privilegiadas de proposição dos legisladores "inspirados" pelas diretrizes das conferências nacionais são: direitos humanos, saúde, meio ambiente e minorias. A incidência desproporcional de proposições na área de direitos humanos se deve ao fato de ser esta uma área dotada de grande transversalidade, contemplando vasta gama de assuntos passíveis ou alvos de propostas de regulamentação. O modo através do qual a informação é apresentada não permite, a nosso ver, nenhuma sugestão mais forte em termos de encaminhamento de análise. No que tange a temas como "saúde", "meio ambiente" e "minorias" vislumbramos pistas mais interessantes.
A área de saúde é o mais antigo objeto das conferências nacionais. Trata-se da mais institucionalizada e bem assentada rede de atuação da sociedade civil na formulação e efetivação de políticas públicas desde muito antes da promulgação da Constituição de 1988, conforme mencionado na primeira parte deste trabalho. Talvez seja este o principal fator a explicar a proeminência relativa desta área vis-à-vis o restante dos temas das conferências nacionais no que se refere à replicação no processo decisório no Legislativo.
Os grupos temáticos minorias e meio ambiente são relativamente mais novos e de enorme potencial de comunicação com as instituições representativas. Vale ressaltar que vários estudos têm mostrado que a produção endógena, isto é, de iniciativa intramuros, de leis no Congresso encontra-se direcionada para a área de direitos sociais, de minorias e ambiental. A constatação de serem estes grupos temáticos enfatizados pelas dinâmicas participativas e deliberativas da sociedade civil sugere linhas interessantes de investigação. É possível argumentar, por exemplo, que as manifestações participativas e deliberativas sejam para o legislador instâncias decisivas de informação sobre conflitos e questões merecedoras de regulamentação via legislação, algo que somente o Congresso pode fornecer.
Todavia, é forçoso reconhecer que do ponto de vista da eficácia das proposições a distribuição da produção por temas sofre alteração significativa. Se "direitos humanos" e "saúde" continuam a ter peso, "minorias" e "meio ambiente" perdem em relevância relativa para as áreas de "estado, economia e desenvolvimento", por um lado, e "educação, cultura, assistência social e esporte", por outro. Somente análise mais fina levando em consideração a iniciativa das proposições e seu conteúdo pode nos fornecer razões para tal inversão, de toda forma, a averiguação dos valores referentes à distribuição por temas quando se considera o filtro utilizado acima certamente ajuda a esclarecer a questão.
O potencial heurístico de nossos argumentos, ademais, fica mais evidente quando aplicamos o filtro qualitativo aos dados sobre os temas das diretrizes que foram acolhidas pelo Congresso. Vejam a Tabela 6 e os Gráficos 3 e 4 a seguir.
"Direitos humanos" permanecem como área proeminente, mas já vimos que isto resulta muito mais da transversalidade de temas encobertos pela rubrica do que de uma preferência genuína dos legisladores. No âmbito das proposições, o dado que interessa é o de que "saúde" perde posição relativa para "minorias", por um lado, e "educação, cul
"Direitos humanos" permanecem como área proeminente, mas já vimos que isto resulta muito mais da transversalidade de temas encobertos pela rubrica do que de uma preferência genuína dos legisladores. No âmbito das proposições, o dado que interessa é o de que "saúde" perde posição relativa para "minorias", por um lado, e "educação, cultura, assistência social e esporte", por outro. No que tange a leis e emendas, de novo, "direitos humanos", "estado, economia e desenvolvimento" e "educação, cultura, assistência social e esporte" são as áreas de maior concentração.
Por fim, uma terceira e última questão fundamental remete ao fator temporal. Até que ponto este fenômeno da pertinência temática entre diretrizes de conferências nacionais e produção legislativa é algo novo na política brasileira? Trata-se de algo específico a um governo ou evolui de maneira contínua desde a inauguração das conferências? Haveria alguma ênfase relativa por parte de partidos e coalizões predominantes no Legislativo no tratamento de temas tratados nas resoluções? Vejamos os quadros e figuras abaixo.
Antes de se passar à substância da discussão, é importante ter em mente que em ambas as tabelas tem-se uma fotografia da atividade legislativa inspirada pelas conferências nacionais. Cada coluna refere-se a tipos distintos destas atividades, que ocorrem paralelamente ao longo da legislatura, assim como aos períodos de governo analisados. Assim, o número de emendas ou leis aprovadas não indica que estas decorrem de projetos e PECs apresentados no mesmo período (e contados na mesma tabela). Em suma, a proposição destes projetos e destas PECs ocorreu no mesmo período de tempo em que aquela quantidade de leis e emendas foi aprovada - daí encontrarem-se entre os resultados, por exemplo, emendas constitucionais aprovadas num mesmo período no qual não houve proposição de PEC. A aprovação de uma PEC convergente com diretrizes de uma conferência que já tramitava antes da realização da mesma é indicador seja do comportamento responsivo do Congresso Nacional, seja do poder de agenda das conferências.
Os dados indicam claramente que o envolvimento do Legislativo com temas pertinentes às conferências nacionais somente se torna significativo a partir do primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Até então apenas 5 proposições, além de 2 novas leis revelaram alguma relação com as resoluções. De 1995 a 1998, 68 projetos tramitaram no Congresso, 39 leis aprovadas, além de uma emenda constitucional promulgada com aquelas características. No segundo mandato, o crescimento destes valores permanece bastante acentuado, 314,55 e 2, respectivamente, surgindo, pela primeira vez em todo período constitucional inaugurado em 1988, PECs (15) ainda sem tramitação encerrada.
Durante o exercício da Presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, todavia, ocorre uma verdadeira explosão na produção legislativa com pertinência temática às resoluções estabelecidas nas conferências nacionais. De 2003 a 2008, nada menos do que 2233 projetos tiveram tramitação iniciada nas duas Casas do Legislativo, se somamos as duas últimas linhas da Tabela 7, além de 163 PECs apresentadas, 216 leis aprovadas, e 6 emendas constitucionais promulgadas, seguido o mesmo procedimento de soma.
Se olharmos pelo lado do "filtro", o quadro ainda assim é bastante contundente. De Sarney a Itamar, simplesmente nenhuma proposição legislativa aparece vinculada às resoluções das conferências nacionais. Durante o primeiro FHC, as primeiras proposições relacionadas às conferências aparecem (22), assim como as leis aprovadas (7). De 1999 a 2002 (segundo FHC), as PECs passam a fazer parte da realidade política. A "era" Lula, entretanto, volta a sobressair - 485 projetos de 2003 a 2009,92 do Senado, 41 PECs, 37 leis e 1 emenda constitucional aprovada.
Várias questões emergem para análise a partir desta contagem inicial. Parece óbvio, em primeiro lugar, que os números relativos ao período que antecede a 1995, isto é, o início do primeiro mandato de Fernando Henrique, se explicam pelo simples fato, já visto em seção anterior, de as conferências nacionais serem raríssimas, praticamente restritas à área de saúde. Desta forma, é possível concluir que proposições congressuais pertinentes tematicamente às resoluções somente adquirem relevância no cômputo geral da produção legislativa a partir do momento em que a atividade participativa e deliberativa torna-se uma realidade no contexto da prática democrática brasileira.
A constatação é óbvia, mas encerra ilação não tão evidente sobre as relações entre as dimensões representativas e participativas da democracia, tal como estas se desenvolvem em nosso país. Ora, se nossa suposição de que a pertinência temática não é casual e é verdadeira, também o será a proposição segundo a qual no Brasil existe um reforço das instituições representativas a partir das práticas participativas e dos processos deliberativos.
E verdade, porém, que os dados sugerem mais do que a correlação temporal entre proposições pertinentes e incidência de conferências nacionais. Sugerem, ademais, haver uma afinidade entre o quadro político emergente com a vitória do PT nas eleições presidenciais e o crescimento da produção legislativa "acionada" pelas diretrizes das conferências. Os Gráficos 5 e 6 permitem, com dados apenas sobre pertinência temática, um olhar mais cuidadoso sobre a questão, já que comparam a evolução das leis e emendas, objeto de nosso interesse, com o total de leis apresentadas e aprovadas ao longo do período.
E importante dizer, inicialmente, que a comparação entre governos incidindo sobre iniciativas não é viável pelo fato de não sabermos ao certo o número de projetos tematicamente pertinentes às conferências que começaram sua tramitação durante os diversos períodos presidenciais. Temos acesso, assim, apenas aos projetos que, iniciados em qualquer momento desde 1988, ainda tramitam pelo Congresso. Tendo isso em mente, nos ativemos, nesta etapa de descrição dos dados, apenas à comparação de decisões efetivamente tomadas. Nota-se que, a partir do primeiro mandato de Fernando Henrique, ocorre uma mudança de patamar no que concerne à aprovação de legislação ordinária e complementar. Saber até que ponto isto explicaria o aumento nas proposições aprovadas dotadas de pertinência temática depende de análise estatística relativamente simples, mas que escapa ao objetivo do presente artigo.
O que interessa mais de perto é verificar que de fato existe uma diferença significativa no volume da atividade legislativa inspirada nas diretrizes das conferências nacionais do período FHC para o período Lula14 14 . Questão interessante surge no sentido de inquirir se os grupos sociais representados nas conferências nacionais seriam de fato autônomos ou se sua ação denotaria modos alternativos de atuação partidária na política nacional. Não postulamos de nenhum modo que as forças atuantes nas conferências seriam despidas de inclinações ideológicas ou preferências partidárias. De fato, diversos mecanismos da democracia representativa, tal como a conhecemos atualmente, sofreram transformações estimuladas pela ocupação pelos governos nacionais de partidos compromissados com mudanças institucionais. No Brasil, em particular, Avritzer (2009) já demonstrou que a variável partidária é importante para entender por que há graus diferenciados na adoção e institucionalização de práticas participativas em diversos municípios. O ponto do presente artigo, entretanto, não é o de identificar as raízes partidárias de alterações institucionais. Trata-se de mostrar como o sistema representativo pode absorver pressões, sugestões e postulações da sociedade civil, sem risco para a estabilidade institucional e com ganhos para o processo decisório em políticas públicas. Ademais, é preciso lembrar que os temas tratados pelas conferências e absorvidos pelo Congresso escapam à tradicional clivagem governo/oposição ou ao clássico continuum esquerda/direita, sendo, em geral, objeto de aprovação consensual. . Tal incremento é mais forte e aparente nos casos das leis ordinárias e complementares e nas emendas constitucionais promulgadas especificamente durante o primeiro mandato deste último. Parece, portanto, razoável afirmar que a partir de 2002, ocasião em que Lula é eleito e a coalizão dominante no Congresso tem o PT e demais partidos de esquerda como atores principais, não apenas as conferências nacionais tornam-se mais efetivas e presentes no cenário político. E razoável afirmar também que o reforço entre as dimensões representativas e participativas da democracia adquiriu mais substância.
O Impacto das Diretrizes das Conferências na Produção Legislativa do Congresso: Análise com Proximidade Temporal
Como afirmamos no início da análise dos dados, introduzimos um controle mais rigoroso sobre os mesmos. Na discussão feita acima, verificamos no conjunto de decisões do Congresso, seja no sentido de introduzir legislação, seja no de aprovar as que foram propostas, quais demonstraram guardar alguma relação com diretrizes das conferências nacionais realizadas durante o período definido na pesquisa. Objeção pertinente a este procedimento consiste em dizer que as relações encontradas entre textos de relatórios e documentos legislativos são em casos diversos aleatórias, pois estamos buscando correspondência entre decisões que eventualmente podem ter se dado em períodos muito afastados de tempo. Se este é o caso para um número significativo de casos contabilizados acima, então não sabemos ao certo até que ponto o Congresso agiu acionado pelas práticas participativas e processos deliberativos, ou decidiu agir por qualquer outro motivo. Sendo nosso objetivo demonstrar que, de fato, a democracia participativa e as práticas deliberativas têm tido um papel de reforço da democracia representativa em seu conjunto, então adotamos o procedimento de reconsiderar a análise acima agora restringindo as decisões legislativas apenas àquelas que foram tomadas num período máximo de um ano depois de ocorrida a conferência nacional.
A Tabela 9 abaixo nos fornece uma primeira visão do que ocorre após introduzir o novo controle sobre os dados. De novo, não podemos descartar a hipótese mais geral que deriva de nosso argumento teórico, vale dizer, 12,5% dos projetos de lei introduzidos no Congresso no período de um ano depois de concluída a conferência mostraram possuir pertinência temática com pelo menos uma de suas diversas resoluções. Este valor sobe para 15,7% das PECs, perfazendo um total de 232, 12,6% das iniciativas.
O que dizer, contudo, daquilo que efetivamente se tornou decisão do Congresso, isto é, que modificou o status quo legal do país? A Tabela 10 fornece a resposta de que precisamos.
Nada menos que 15 leis relacionadas às resoluções e diretrizes de conferências foram aprovadas e sancionadas em um período de um ano após sua realização e publicação de suas deliberações. Embora constituindo percentual baixo no conjunto de leis aprovadas neste mesmo período de 12 meses após ocorrida a conferência nacional, é preciso considerar que tal intervalo de tempo é extremamente curto em média para que uma proposição possa ser introduzida, receber tramitação, ir a plenário, entrar em pauta e ser votada. Vejam que não há emenda constitucional promulgada com estas características, exatamente pelo fato de ser politicamente inviável uma PEC enviada em um mês qualquer obter promulgação após 12 meses sem que tenha havido imenso esforço do Executivo.
O que dizer dos temas tratados? A Tabela 11 acima e os Gráficos 7 e 8 abaixo revelam que o tema "direitos humanos" continua sobressaindo, tanto nas proposições, quanto na expedição de diplomas legais, embora o panorama tenha se modificado quanto à posição relativa dos demais temas se o comparamos com o quadro observado desconsiderando a restrição temporal. Os temas "minorias" e "educação, cultura, assistência social e esporte" continuam predominantes quanto à iniciativa, mas percebe-se maior equilíbrio na distribuição das decisões finais. "Saúde", "minorias", "estado, economia e desenvolvimento" e "educação, cultura, assistência social e esporte" foram temas - cada qual de duas leis sancionadas no período de um ano após realizada uma determinada conferência.
Finalmente, trataremos da evolução das decisões congressuais inspiradas pelas deliberações das conferências ao longo dos diferentes governos do período constitucional de 1988. De novo, do ponto de vista das iniciativas há uma clara prevalência do fenômeno no governo Lula relativamente aos demais, embora o mesmo tenha adquirido alguma relevância apenas a partir do governo FHC. Até aqui nada de novo. Todavia, do ponto de vista da eficácia dos projetos, notamos que as diferenças observadas na análise anterior entre FHC e Lula perdem significância quando introduzimos a restrição temporal. O resultado nos parece natural principalmente se levamos em consideração que o exame do governo Lula não cobre todo o ciclo de seu segundo mandato uma vez que o levantamento de dados se encerrou em outubro de 2009. Ademais, é importante também lembrar que estamos falando de leis aprovadas no período de 12 meses após a realização de uma conferência. Em qualquer caso, a aprovação de leis em um ano é um evento raro, não sendo surpreendente encontrar pouquíssimos eventos tanto durante os dois mandatos de FHC, quanto do período Lula.
À GUISA DE CONCLUSÃO
A pesquisa apresentada neste artigo buscou comprovar que as conferências nacionais de políticas públicas impulsionam a atividade legislativa do Congresso Nacional, fortalecendo, assim, através de uma prática participativa e deliberativa, a democracia representativa no Brasil. Para além da demonstração empírica, algumas questões teóricas se afiguraram importantes diante dos dados. Estes, afinal, parecem contribuir para desconstruir o discurso de que a democracia representativa e suas instituições encontram-se em crise no Brasil, assim como o argumento de que a representação política é uma alternativa second best diante da impossibilidade fática de estabelecerem-se nas sociedades contemporâneas formas diretas de democracia que facultem a participação dos cidadãos sem a mediação de representantes eleitos.
Ademais, os dados apresentados permitem questionar a validade da premissa de que formas participativas e deliberativas de democracia seriam substituíveis à representação política tradicionalmente exercida no Poder Legislativo. Com isso, espera-se que esta pesquisa contribua para revalorizar o Poder Legislativo brasileiro, contribuindo para o aumento da confiança popular no Congresso Nacional, mostrando como o mesmo é receptivo e permeável às demandas expressas em práticas participativas dos cidadãos e em instâncias deliberativas da sociedade civil. Esperamos, assim, fortalecer as instituições políticas do país, mostrando que práticas participativas e experiências deliberativas devem ser institucionalizadas, passando a compor a estrutura dos poderes do Estado, sem depender da vontade política de governos que sejam menos ou mais favoráveis a elas.
No que tange especificamente aos impactos das conferências nacionais de políticas públicas sobre a atividade legislativa no Brasil, pode-se constatar que estamos diante de fenômeno novo e de enorme potencial no que concerne ao aprofundamento do exercício da democracia no país. Não apenas as conferências têm influenciado a iniciativa de proposições no Congresso Nacional, mas também o têm feito de maneira relativamente eficiente, uma vez que diversas proposições aprovadas, além de emendas constitucionais promulgadas, são tematicamente pertinentes a diretrizes extraídas das diversas conferências.
A pesquisa permite perceber que a participação social não deve ser compreendida como o oposto da representação política - ou seja, que não há antagonismo entre participação e representação - e, especificamente, que representação não implica não participação e vice-versa, isto é, que participação não implica não representação. Práticas participativas e deliberativas como as conferências nacionais reproduzem internamente uma lógica representativa semelhante àquela adotada no Poder Legislativo, porém seu diferencial reside a) menos no aspecto da suposta ausência de mediação eleitoral e partidária entre as preferências dos cidadãos e a ação dos representantes, e b) mais na qualidade das deliberações produzidas, na especialização dos temas debatidos e na possibilidade de alteração das preferências dos cidadãos ao longo do processo, na medida em que se encontram expostos a informações produzidas por setores da sociedade civil diretamente envolvidos com o tema objeto da prática participativa em questão, no caso as conferências nacionais.
Indo um pouco mais longe, pode-se rogar que o tipo de representação exercido nas práticas legislativas deve servir de insumo para fortalecer a dimensão deliberativa do processo legislativo do Congresso Nacional. A identificação da dimensão propriamente deliberativa das práticas participativas como as conferências nacionais permite delinear melhor os pontos de contato entre os chamados modelos participativos e deliberativos de democracia, e entre esses e a democracia representativa. A dimensão deliberativa é inerente às práticas participativas, e estas devem ser concebidas como inerentes às instituições representativas. A representação política deve conter dentro de si o que se chama de participação social, e esta deve necessariamente envolver experiências deliberativas. Em outras palavras, democracia representativa, participativa e deliberativa são modelos teóricos que devem ser conciliados na prática. E as conferências nacionais provam que isso é possível.
NOTAS
(Recebido para publicação em julho de 2010)
(Reapresentado em abril de 2011)
(Versão definitiva em agosto de 2011)
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Mar 2012 -
Data do Fascículo
Set 2011
Histórico
-
Aceito
Ago 2011 -
Revisado
Abr 2011 -
Recebido
Jul 2010