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Intermediação de Interesses Regionais no Brasil: O Impacto do Federalismo e da Descentralização

Resumos

Through the process of redemocratization, Brazil has become a highly decentralized nation. The results of this transformation are visible in the federal arena, where financial problems have been encountered and presidents have run into trouble forming coalitions that allow them to implement public policies. Within the realm of the states, however, decentralization has brought mixed results due to regional inequalities. The paper analyzes the rifts and tensions now affecting Brazil’s federative system. It is argued that Brazil’s experience with decentralization has contributed towards democratic consolidation and has forced the federal government to negotiate public policy implementation with state and local government. At the same time, this experience reveals the limits of decentralization in nations displaying marked regional differences.

federal government; member-state; Federalism; intergovernmental relations; decentralization


Avec la redémocratisation, le Brésil s’est transformé dans un pays fortement décentralisé. Les résultats de cette transformation sont évidents au niveau fédéral obligé de faire face à des problèmes financiers et à d’autres difficultés en vue de former des coalitions permettant aux présidents de mettre en place des politiques publiques. Pourtant, au niveau des États, les résultats de la décentralisation sont inégaux en fonction des disparités régionales. Cet article examine les clivages et tensions qui touchent actuellement le système fédératif brésilien. On avance l’argument selon lequel l’expérience brésilienne de décentralisaion contribue à la consolidation de la démocratie contraignant le gouvernement central à négocier avec les sphères régionales la mise en place de politiques publiques. Par ailleurs, cette expérience met à nu les limites de la décentralisation dans des pays marqués par des inégalités régionales importantes.

gouvernement fédéral; état-membre; fédéralisme; relations intergouvernementales; décentralisation


federal government; member-state; Federalism; intergovernmental relations; decentralization

gouvernement fédéral; état-membre; fédéralisme; relations intergouvernementales; décentralisation

Intermediação de Interesses Regionais no Brasil:

O Impacto do Federalismo e da Descentralização

Celina Souza

INTRODUÇÃO

Com a promulgação da Constituição de 1988 houve uma expressiva descentralização na distribuição dos recursos tributários e do poder político no Brasil (Souza, 1992; 1994). A Constituição resultou do compromisso com a institucionalização de valores democráticos, em que a descentralização assumiu papel relevante. No entanto, após a promulgação da Constituição, o papel do Estado como provedor de políticas econômicas e sociais tem passado por reformulações, ao mesmo tempo que se enfatiza a importância dos mecanismos de mercado. Completando esse ciclo de transformações, reformas econômicas, especialmente as voltadas para o controle da inflação, têm reduzido a ação do governo federal na provisão de infra-estrutura e de serviços públicos locais e regionais.

Na esfera federal, os resultados da descentralização são bastante visíveis: a União tem sido particularmente afetada por dificuldades financeiras e tem encontrado obstáculos, embora não intransponíveis, para a montagem e sustentação de coalizões parlamentares que lhe permitam governar. Na esfera subnacional, todavia, os resultados da descentralização apresentam alto grau de heterogeneidade devido às desigualdades regionais existentes no país.

O Brasil tem sido marcado, desde o início da sua história republicana, pela existência de profundas desigualdades regionais no interior da Federação. O relatório IPEA/PNUD (1996) aprofundou a discussão do tema com a descoberta da existência de três "Brasis": a) uma área constituída pelos sete estados mais ao sul do país que, juntamente com o Distrito Federal, apresenta elevado nível de desenvolvimento humano1 1 . Estão situados na primeira faixa os Estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Paraná, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, além do Distrito Federal; na segunda faixa os Estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Rondônia, Amazonas, Roraima e Amapá; no terceiro grupo estão os Estados do Pará, Acre, Sergipe, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Maranhão, Ceará, Piauí, Alagoas e Paraíba. ; b) uma faixa que se estende na direção noroeste, a partir de Minas Gerais, e que exibe índice de desenvolvimento humano médio; e c) uma área que reúne os estados do Nordeste, além do Pará e do Acre, que mostra níveis reduzidos de desenvolvimento humano. Esses resultados configuram uma nítida diferenciação regional, apontando para um novo desenho do mapa das regiões brasileiras, diverso do mapa geográfico que divide o Brasil em cinco regiões.

Este trabalho analisa os efeitos da descentralização sobre o federalismo e sobre a formulação e implementação de políticas públicas no Brasil, especialmente a relação entre o governo federal e os estados. Essas questões são focalizadas a partir da ótica da desigualdade regional, que introduz novas tensões no arranjo federativo desenhado pela Constituição de 1988 e pactuado no processo de democratização.

Argumenta-se que a experiência brasileira de descentralização tributária e política tem favorecido a consolidação da democracia e tornado o Brasil um país mais "federal" pela emergência de novos atores no cenário político e pela existência de vários centros de poder soberanos que competem entre si. Governadores dos estados economicamente mais fortes e prefeitos das capitais transformaram-se em um dos principais centros de poder, forçando o governo federal a negociar políticas públicas nacionais com as esferas subnacionais. Por outro lado, a experiência brasileira tem mostrado não só os limites da descentralização e do federalismo em países onde as disparidades regionais e sociais são muito profundas, mas também que a descentralização dificulta a redução das referidas desigualdades regionais pelo enfraquecimento político e financeiro do governo federal, o que coloca novos desafios e tensões para o enfrentamento de velhos problemas, como o das disparidades regionais.

Após a promulgação da Constituição de 1988 começaram a surgir estudos em que a questão do federalismo brasileiro é formulada em novas bases, em função da descentralização promovida pelo pacto constitucional. Em um primeiro momento, os estudos realizados sobre o tema da descentralização e do federalismo tendiam à adoção de duas visões, tal como mapeadas por Abrucio et alii (1993). Havia os que criticavam a atual descentralização de recursos e defendiam um reforço financeiro da União; havia também os que viam a descentralização como um avanço em face da tradição centralizadora e autoritária do federalismo brasileiro. Com o tempo, todavia, tais visões simplistas da descentralização e do federalismo vão sendo substituídas por estudos que buscam incorporar ao tema análises relacionadas com os aspectos tributários, regionais, socioeconômicos, políticos e fiscais.

Mais recentemente, a produção técnica e acadêmica sobre a descentralização tomou impulso, tendo caminhado em três direções. A primeira busca construir uma base conceitual para além das tradicionais abordagens jurídicas e/ou administrativas, de que são exemplos os trabalhos de Fiori (1995) e Souza (1997). A segunda vertente situa-se no campo das pesquisas empíricas voltadas para a avaliação das conseqüências da descentralização nas esferas nacional e subnacional, em que ressaltam as pesquisas desenvolvidas pelo NEPP/Unicamp, pelo IPEA e pela Fundap, esta última coordenando um projeto de abrangência nacional e internacional que cobre vários aspectos da descentralização e do federalismo. A terceira vertente, às vezes complementar às duas primeiras, busca problematizar a questão, bem como mostrar os efeitos desiguais do processo. São seus representantes os trabalhos de Afonso e Lobo (1996); Bremaeker (1994); IPEA/IBAM (1994); Melo (1996); e Souza (1996a; 1996b). O ponto comum dessas três vertentes está no tratamento da descentralização como parte da discussão sobre o federalismo. Alguns desses estudos também expandem a abordagem, relacionando a descentralização com a consolidação da democracia, com a chamada reforma do Estado e com o fenômeno da globalização.

Este artigo apresenta em primeiro lugar uma revisão sucinta da literatura internacional, principalmente aquela anglo-saxônica, sobre o federalismo. Em seguida, são descritos os principais indicadores econômicos e sociais dos estados e das regiões brasileiras, com o objetivo de evidenciar o grau das desigualdades regionais. Na seção seguinte, é feita uma discussão sobre o impacto da descentralização política e tributária sobre a Federação e sobre o governo federal. Em seguida, discute-se como os estados têm utilizado sua força política para negociar seus impasses financeiros.

FEDERALISMO: BREVE QUADRO TEÓRICO 2 2 . Parte desta seção está publicada em Souza (1996a).

Em países federais é de fundamental importância discutir a questão das políticas públicas tomando como base os postulados teóricos que conformam o federalismo e a descentralização. Sistemas políticos federais baseiam-se em teorias políticas e sociais do federalismo. A existência de um sistema federal implica cooperação política e financeira entre o governo federal e as demais esferas da Federação. Esta é a razão pela qual o grau de descentralização entre unidades governamentais é de importância crucial para o entendimento de como um dado sistema federal funciona na prática. Por isso, a ciência política e a administração pública passaram a dedicar atenção não apenas às teorias do federalismo e à aplicação dos princípios federativos nas Constituições e na legislação, mas também à maneira pela qual os diferentes sistemas federais são operacionalizados.

Apesar de o federalismo estar em geral acompanhado da descentralização, isto é, de substancial autonomia entre os membros da Federação, a descentralização não é uma condição necessária nem suficiente para o federalismo, como discutido por Lijphart (1984).

O federalismo, lato sensu, refere-se aos laços constitutivos de um povo e de suas instituições, construídos através de consentimento mútuo e voltados para objetivos específicos, sem, contudo, significar a perda de identidades individuais (Harman, 1992:337). O conceito de federalismo tem sido exaustivamente discutido na literatura, bem como existe acirrada disputa sobre as suas principais características3 3 . Stewart (1984) mapeou a existência de 497 representações do federalismo, tanto literais quanto figurativas. No território da ciência política, os trabalhos mais divulgados são os desenvolvidos nos EUA, tais como os de Elazar (1984) e Duchacek (1987). . Nesse terreno de disputas conceituais, optou-se por tomar como referência a visão de Burgess (1993a:8), na qual o federalismo é tratado como um conceito de valor, como a recomendação e a promoção de apoio à Federação. Partindo-se dessa visão, pode-se concluir que a lógica das Federações é o federalismo, que é a percepção ideológica do que deve acontecer após a federalização. Mais do que uma distinção semântica, a necessidade de distinguir Federação de federalismo é importante devido a dois fatores. O primeiro é a emergência de formas federativas em países e em instituições que não são uma Federação, sendo a Bélgica e a Comunidade Européia os exemplos mais citados; o segundo é a existência de grande variedade na prática dos princípios federais dentro de cada Federação.

Para os propósitos deste trabalho, a dimensão adotada é a do federalismo como ideologia política, tal como desenvolvido por Burgess. Essa visão preenche uma importante lacuna na literatura sobre federalismo, mais usualmente preocupada com a viabilidade dos arranjos territoriais e governamentais, ou então excessivamente formalista. Burgess (1993b:104) definiu a ideologia política do federalismo como valores, atitudes, crenças e interesses que se articulam no sentido de fazer com que ações sejam apoiadas em propósitos e compromissos. A importância de se incorporar na discussão sobre federalismo a abordagem da ideologia política deve-se ao fato de que mudanças e práticas diversas dentro de cada Federação têm-se constituído no aspecto mais difícil para explicar e compreender o funcionamento dos sistemas políticos federais, para além de seus aspectos meramente formais e legais.

A contribuição de Burgess ao debate sobre federalismo abre caminho para a investigação das motivações que embasam a existência de cada Federação em particular. Cada federalismo, e também cada Federação, incorpora um número variado de atributos econômicos, políticos e socioculturais que se inter-relacionam para produzirem padrões complexos de interesses e identidades. Assim, cada federalismo é guiado por um leitmotiv, que também pode expressar-se de diferentes formas de acordo com as peculiaridades de cada tempo histórico. O federalismo norte-americano foi, e continua sendo, dominado pela busca de mecanismos de "pesos e contrapesos" em relação ao exercício do poder (os checks-and-balances). No Canadá, Índia, Paquistão, Malásia, Nigéria e Suíça a razão de ser do federalismo tem sido a preservação de minorias lingüísticas, étnicas e religiosas, conforme discutido por Gagnon (1993). Na Alemanha, o impulso federativo voltou-se, primeiro, para a construção e depois para a consolidação de instituições capazes de evitar as duas derrotas da democracia naquele país, a primeira em 1933 e a segunda pela ditadura nazista (Sontheimer, 1988). O federalismo da Austrália tem sido creditado às vantagens comerciais advindas de um mercado unificado (Else-Mitchell, 1983) e/ou à necessidade de contrabalançar, via os estados, as tendências centralistas do governo federal (Rydon, 1993). Para os argentinos, como sugerido por Shapira (1992), o federalismo legitima a luta das províncias contra o excessivo poder da capital. Argumenta-se, neste trabalho, que a razão de ser do federalismo brasileiro sempre foi, e continua sendo, uma forma de acomodação das demandas de elites com objetivos conflitantes, bem como um meio para amortecer as enormes disparidades regionais.

REGIÕES E ESTADOS BRASILEIROS: ALGUMAS CARACTERÍSTICAS

O Brasil é um país marcado por enormes disparidades inter e intra-regionais. Apesar da ocorrência de certa desconcentração espacial iniciada na metade dos anos 70, o gap entre estados e regiões ainda é grande. Do ponto de vista político-geográfico, o Brasil tem 26 estados, mais o Distrito Federal, e está dividido em cinco regiões. O Estado de São Paulo, no Sudeste, é o centro da economia brasileira. Em 1985, o Sudeste concentrava 70% da produção industrial do Brasil e 58% do PIB, estando 34% deste localizado em São Paulo. Em 1970, a participação de São Paulo no PIB nacional era de 39%. Apesar da desconcentração econômica processada a partir de 1975, a distância entre São Paulo e os demais estados e regiões ainda é grande. Assim, o Sudeste brasileiro, que representa 10,8% do território do país, concentra hoje 42,6% da população brasileira, mas representa 59% do produto interno e 66% do produto industrial nacional. Em contraste, no Nordeste, onde vivem 28,9% da população, gera-se 13,6% do produto interno total e 12% do produto industrial4 4 . Dados extraídos de Guimarães Neto (1995). .

Em relação aos indicadores sociais, a renda por habitante do Sudeste é quase três vezes maior do que a do Nordeste. Diferenças marcantes são encontradas em todos os demais indicadores. Trabalho do IPEA (1993) mostra que, em 1990, a população indigente do Nordeste, ou seja, aquela que poderia, no máximo, ter acesso a uma cesta básica de alimentos que garantisse o consumo considerado satisfatório por organismos internacionais, correspondia a 40,9% da população total. No Sudeste, tal participação era de 12,4%; no Sul, 18,1%; no Centro-Oeste, 16,1%; e no total do país, 21,9%. A esperança de vida no Nordeste era de 58,8 anos em 1990, enquanto a do país era de 64,9. A renda per capita no Nordeste era de US$ 918, bem menor do que a média do país, de US$ 2.241 (Albuquerque, 1993).

No que se refere aos estados, em 1990 a participação das economias estaduais mais desenvolvidas no PIB brasileiro era a seguinte: São Paulo, 35%; Rio de Janeiro, 11%; Minas Gerais, 9,5%; Rio Grande do Sul, 7,8%; Paraná, 7,7%; Bahia 5%. A participação de São Paulo e do Rio de Janeiro decresceu em uma década, Minas Gerais e Rio Grande do Sul tiveram suas participações estabilizadas e o Paraná e a Bahia aumentaram suas participações em 1% cada (CEI, 1992). No entanto, o PIB per capita mostra uma hierarquia diferente entre os estados. O mais alto índice é encontrado no Distrito Federal (US$ 4.498), seguido de São Paulo (US$ 3.993), Rio de Janeiro (US$ 3.352), Rio Grande do Sul (US$ 2.738), Santa Catarina (US$ 2.344) e Paraná (US$ 2.037). Minas Gerais passa para o sétimo lugar com US$ 1.850, e a Bahia para o décimo com US$ 1.226 (Albuquerque, 1993).

Todavia, essas disparidades socioeconômicas têm uma compensação política: as regiões e os estados menos desenvolvidos possuem maior representação proporcional na Câmara dos Deputados vis-à-vis as regiões Sul e Sudeste. A maior diferença é encontrada entre o Norte e o Sudeste. O Sudeste, com 46% do eleitorado, ocupa 33,6% das cadeiras na Câmara, enquanto o Norte, com 4,8% dos eleitores, elege 11,3% dos deputados federais. A fórmula de preenchimento das cadeiras foi introduzida em 1932 pelo Código Eleitoral e mantida desde então como forma de compensar os demais estados e regiões da hegemonia do Sudeste, principalmente de São Paulo e Minas Gerais. No entanto, outro fator pode ser acrescentado: a sobre-representação das unidades menores da Federação força o sistema político, o governo federal e o Congresso a incorporarem, na agenda política, os problemas advindos das desigualdades regionais.

Outra forma de contrabalançar as disparidades regionais tem sido a adoção, desde 1946, de um sistema tributário voltado para um melhor equilíbrio horizontal e vertical das receitas públicas, através da distribuição da receita nacional das regiões mais desenvolvidas para as menos desenvolvidas5 5 . Sistema tributário diz respeito à receita pública constituída principalmente por impostos e contribuições, enquanto sistema fiscal abrange não só a receita como também a despesa pública. . Essa fórmula foi consideravelmente expandida pela Constituição de 1988. Assim, a região Centro-Sul do país gera em torno de 80% do PIB nacional e da receita tributária, mas fica apenas com 60% do gasto (Afonso e Lobo, 1996). Devido ao sistema de equilíbrio horizontal do sistema fiscal, que transfere recursos das regiões mais desenvolvidas para as menos desenvolvidas através dos fundos de participação, ou seja, o Fundo de Participação dos Estados ¾ FPE e o Fundo de Participação dos Municípios ¾ FPM, o sistema tributário brasileiro é altamente interdependente, o que faz com que todas as vezes que a economia de estados mais ricos desacelere, os efeitos sejam logo sentidos nos estados mais pobres. Por outro lado, as regiões mais desenvolvidas são as principais beneficiárias dos incentivos fiscais: 10% dos mesmos vão para a região Nordeste, 38% para a Amazônia e 51% para as regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste (Braudel Papers, 1993)6 6 . Incentivos, subsídios e renúncia fiscal são recursos públicos concedidos a empresas, setores, classes e regiões. Esses recursos se destinam, em geral, ao estímulo ao crescimento de regiões e setores econômicos menos desenvolvidos e à compensação pelo pagamento de serviços que deveriam ser prestados pelo setor público, tais como saúde e educação. Enquanto no sistema de incentivos fiscais os recursos teoricamente retornam ao Tesouro, o mesmo não acontece com os subsídios e a renúncia fiscal. Esses benefícios assumem várias formas, dentre elas a concessão de empréstimos a juros subsidiados através de organismos federais tipo Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES. Devido ao fato de as regiões mais desenvolvidas concentrarem a maior parte da atividade econômica, assim como as maiores estatais federais, as empresas nelas sediadas são as que mais se apropriam desses benefícios. Além do mais, os estados mais desenvolvidos são também os que detêm as maiores dívidas, que estão agora sendo federalizadas. .

Pode-se concluir, portanto, que o federalismo brasileiro e as relações entre o governo federal e os estados não diferem muito das características socioeconômicas do país: eles são marcados por enormes diferenças e por um alto grau de complexidade. A Federação apresenta grande participação das esferas subnacionais na receita pública nacional, assim como na despesa, sem grande interferência do governo federal. Por outro lado, o país paga também um custo relativamente alto para manter a unidade nacional e registra um sistema federativo, de relações intergovernamentais e de formulação e implementação de políticas públicas, complexo e ainda desarticulado.

O IMPACTO DA DESCENTRALIZAÇÃO SOBRE O FEDERALISMO E O GOVERNO FEDERAL

O sistema tributário brasileiro passou por várias mudanças nas últimas décadas, todas voltadas para o alcance de objetivos políticos e econômicos. Após a reforma fiscal de 1966, quando a centralização foi o principal objetivo e resultado, o regime militar passou a adotar medidas mais flexíveis, voltadas principalmente para o aumento das receitas municipais. Contudo, a mudança de maior alcance surgiu com a Constituição de 1988, que mudou profundamente o federalismo brasileiro, principalmente nos seus aspectos fiscal e político.

A descentralização foi a principal característica do sistema tributário adotado em 1988, não apenas no que se refere ao aumento das transferências federais para as esferas subnacionais, mas também em relação à capacidade de despesa. Nesse sentido, a atual Constituição colocou os governos subnacionais brasileiros muito próximos da média dos países industrializados federativos, como mostra a Tabela 1 7 7 . Os governos subnacionais brasileiros têm ainda ampla liberdade na aplicação dos recursos transferidos, sendo a única vinculação constitucionalmente exigida o percentual de 25% da receita que deve ser despendido em educação. Essa característica distingue o Brasil de outros países federais como, por exemplo, os EUA, onde tem havido uma tendência no governo federal de transferir encargos sem a necessária contrapartida dos recursos, gerando uma pressão dos estados e municípios contra o que ficou conhecido como unfunded mandates. . Dentre os países em desenvolvimento, o Brasil apresenta o mais descentralizado sistema tributário. No México, 80% da despesa pública é controlada pelo governo federal (Shah, 1991). Na Índia, Indonésia e África do Sul, o governo federal domina a Federação, retendo 70% da despesa (Boadway et alii, 1994). Na Rússia, 60% do total das receitas arrecadadas em 1992 permanecia com o governo federal (Wallich, 1992).

Tabela 1
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Despesa Total por Esfera de Governo em Países Federais Selecionados (%)

Fontes: Levin (1991:12); Abrasf (1992:9).

O aumento da capacidade de despesa das esferas subnacionais decorreu, obviamente, do aumento dos recursos tributários. Entre 1970 e 1985 o governo federal permanecia com uma porcentagem média de 48,5% da receita pública, mas a Constituição inverteu esse percentual, como mostra a Tabela 2.

Tabela 2
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Distribuição dos Recursos Públicos (%) 1985-1993

Fonte: Rezende (1990:161).

(*) 1993 foi o ano em que a reforma de 1988 foi integralmente implantada.

Apesar do aumento dos recursos subnacionais a expensas do governo federal, o impacto dessas mudanças quando comparado com o PIB não foi muito significativo: entre 1% e 2%, o que quer dizer que o governo federal perderia cerca de 8% dos seus recursos caso a distribuição anterior tivesse sido mantida (Afonso, 1994). Por outro lado, se os recursos federais declinaram, as contribuições aumentaram de 1,5% do PIB em 1980 para 4,7% em 19918 8 . O sistema tributário brasileiro faz uma separação entre impostos e contribuições. O imposto tem que obedecer ao princípio constitucional que requer que mudanças só ocorram no exercício fiscal subseqüente, além de requererem emenda constitucional. Já as contribuições podem ser alteradas por lei ordinária, que entra em vigor noventa dias após sua promulgação. Os recursos das contribuições são vinculados a despesas específicas, tais como ao financiamento do sistema de previdência social, salário-desemprego, educação, saúde e programas de assistência social e não são, em geral, sujeitos à partilha com as esferas subnacionais. .

O sistema tributário brasileiro apresenta algumas complexidades. Uma delas está relacionada com a constante mudança dos impostos e com os freqüentes aumentos nas alíquotas das contribuições. A legislação sobre o imposto de renda, por exemplo, passou por uma média de quinze mudanças por ano entre 1988 e 1992. Em 1995, o Congresso aprovou uma lei que aumentava a alíquota do imposto de renda das empresas capaz de gerar US$ 2 bilhões, a fim de suprir as necessidades de caixa do governo federal. Impostos estaduais e municipais aprovados em 1988 foram abolidos em 1996. O Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira ¾ IPMF, que incide sobre o cheque, foi criado em 1993, extinto em 1994 e recriado em 1997 sob a forma de contribuição e com a nova sigla de CPMF. Em 1996, por intermédio da Medida Provisória nº 1.516, o governo federal elevou a contribuição social sobre o lucro das empresas, em especial as financeiras. Essa característica do sistema tributário coloca o Brasil na contramão do paradigma fiscal defendido pelo chamado receituário neoliberal, que requer estabilidade nas regras do jogo fiscal. Todas essas transformações têm o objetivo de equacionar, muitas vezes apenas temporariamente, os problemas de caixa do governo federal. Essas constantes mudanças também transformaram o Judiciário brasileiro em ator central nas questões tributárias devido à complexidade e à ambigüidade da legislação e aos seus freqüentes questionamentos por parte dos contribuintes9 9 . A ambigüidade e a complexidade do sistema tributário têm levado o Judiciário a interpretar a legislação mais contra o governo e a favor do contribuinte. Estima-se que o governo federal perdeu, até 1993, cerca de US$ 3 bilhões devido a decisões judiciais desfavoráveis. Apenas em 1993 havia na justiça 350 mil ações contra o Tesouro Federal, questionando o pagamento de US$ 6 bilhões ( Gazeta Mercantil, 9/10/1993). .

Quando a Constituição foi promulgada, em outubro de 1988, os problemas financeiros e tributários do Brasil estavam mais agudos do que no início da década. A falência dos planos de estabilização econômica implantados em 1986 e 1987 foi seguida de uma redução nas receitas públicas. Ademais, a parcela da receita líquida diminuiu quando comparada com o PIB. Essas tendências tornaram mais conflitantes as tensões distributivas entre as esferas de governo, já que havia menos recursos para negociação. A diminuição da receita bruta de 25% do PIB, entre 1970-1983, para 20%, em 1989, foi causada pela inflação, subsídios, incentivos e recessão. Desde 1991, a receita bruta tem aumentado, mas manteve-se estável, em torno de 23% do PIB, até recentemente, quando passou a representar 30%, número considerado alto para países em desenvolvimento.

O sistema fiscal brasileiro também tem sido afetado pelos seguintes aspectos: a) inflação alta, pelo menos até a implantação, em 1994, do Plano Real; b) evasão fiscal, estimada em 1993, por uma Comissão Parlamentar de Inquérito ¾ CPI do Congresso, em US$ 82 bilhões; c) alguns anos de recessão ou de crescimento econômico medíocre; d) subsídios e renúncia fiscal à classe média, às regiões e às empresas, estimados, em 1996, em 3,2% do PIB, o que representa um aumento de 196% em relação ao montante outorgado em 1995, os quais, uma vez concedidos, não conseguem ser retirados quando as condições justificadoras da concessão deixam de existir.

Apesar do aumento nas transferências constitucionais para estados e municípios, outras são feitas, assumindo a forma de transferências negociadas, também chamadas de convênios. Trata-se de uma prática comum na maioria dos países. Elas são destinadas a áreas menos desenvolvidas ou a áreas afetadas por eventos inesperados; elas podem ser destinadas ao encorajamento das instâncias subnacionais para adotarem determinadas políticas ou implementarem certos serviços considerados prioridade nacional, como é o caso do Brasil com as transferências para o sistema de saúde; ou elas podem ser usadas para a construção de coalizões que permitam ao governo governar. No Brasil, seu uso serve a todos esses propósitos, mas o debate sobre o tema tem mostrado que, na prática, as transferências negociadas estão sofrendo várias distorções, tais como a canalização de recursos para regiões mais desenvolvidas. Elas também estavam no centro dos escândalos sobre corrupção que envolveram o Congresso e a indústria da construção civil em 1993, sendo objeto de uma CPI e da renúncia de diversos parlamentares.

Apesar dessa aparente fragilidade fiscal em face dos estados e municípios, o governo federal não tem sido um ator passivo. Ele tem atuado em várias frentes para viabilizar tanto sua capacidade governativa como suas necessidades de receita. Uma das formas tem sido o constante aumento de arrecadação das contribuições que, conforme referido acima, não são partilhadas com as esferas subnacionais. Pinto (1996), citando trabalho de Raul Velloso, afirma que a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social ¾ Cofins cresceu 173% acima da inflação entre 1992 e 1995 e a Contribuição Social dos Empregadores para a Seguridade Social Incidente sobre o Lucro Líquido ¾ CSLL 66%, enquanto o Imposto de Renda subiu 36% e o Imposto sobre Produtos Industrializados ¾ IPI 4%, os dois últimos impostos sujeitos à partilha com as esferas subnacionais.

A FORÇA DOS ESTADOS NA FEDERAÇÃO BRASILEIRA

Os estados no Brasil sempre tiveram considerável poder político, embora nem sempre correspondentes recursos financeiros. O poder dos estados foi considerado pelas duas experiências ditatoriais do Brasil como entrave aos seus objetivos, já que ambas tentaram quebrar a força política dos mesmos via a centralização de recursos e a proibição de eleições populares para seus governadores. Com a democratização, todavia, não foi mais possível represar o poder dos governadores, principalmente dos que governam os estados economicamente mais fortes. Além do mais, a influência dos governadores sobre as bancadas dos seus estados no Congresso Nacional pode, na maioria das vezes, ser maior do que a dos partidos políticos aos quais eles pertencem.

O poder dos governadores manifesta-se de diversas formas, sendo a principal o veto a medidas do governo federal que não sejam previamente negociadas com os mesmos10 10 . Para maiores detalhes sobre o poder dos governadores a partir da democratização, ver Abrucio (1994). . O poder de veto dos governadores é aqui utilizado a partir do conceito elaborado por Tsebelis (1993), que parte da idéia de "pesos e contrapesos" extraída da Constituição norte-americana. De acordo com Tsebelis, o poder de veto expressa-se quando atores individuais ou coletivos participam da tomada de decisões de políticas.

As negociações entre os governadores e o governo federal passam por três caminhos: a) indicação de dirigentes para a burocracia federal e para a diretoria de empresas estatais; b) aporte adicional de recursos para os estados, via orçamento federal, concessão de incentivos, subsídios e empréstimos a juros subsidiados por instituições financeiras controladas pelo governo federal e aval a empréstimos de organismos internacionais; c) renegociação das dívidas dos estados com o governo federal, com os bancos comerciais estaduais de propriedade dos estados, com instituições internacionais e com o sistema financeiro controlado pelo governo federal. O último item tem sido o de mais difícil solução e o que mais tem afetado o sistema federativo e o desempenho das contas públicas.

A dívida dos estados alcançava, em novembro de 1996, cerca de US$ 100 bilhões, sendo que em torno de US$ 40 bilhões eram de dívida mobiliária, ou seja, formada por títulos de curto prazo a juros altos. Quatro estados, os mais dinâmicos economicamente, são responsáveis por 89,7% do total das dívidas estaduais, sendo três deles dirigidos por governadores do partido do presidente da República (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) e um, Rio Grande do Sul, pelo PMDB, partido da coligação do governo federal. Ademais, são estados com grandes bancadas no Congresso, capazes de viabilizar a aprovação de projetos de interesse do Executivo federal. Apenas três estados, Ceará, Bahia e Paraná, têm, até agora, fugido ao padrão nacional de alto endividamento estadual. As razões dessa situação precisam ser melhor investigadas, mas elas não devem ser encontradas em motivos socioeconômicos, dada a distância do Paraná dos dois outros estados do Nordeste. Um aspecto que a Bahia e o Ceará apresentam em comum é o fato de que ambos têm conservado, na última década, o mesmo grupo político no poder. Já o Paraná tem tido uma tradição política assentada em valores tecnocráticos, o que talvez signifique menor espaço para a politização das finanças do estado.

Se a Constituição de 1988 equacionou melhor as necessidades de recursos dos governos estaduais, por outro lado não foram ainda encontrados meios para equacionar o problema das suas dívidas. Isso transformou a relação entre os estados e a União em uma disputa pouco frutífera, voltada para a negociação do pagamento das dívidas estaduais, principalmente dos mais poderosos economicamente. Essa situação começou a ser enfrentada no início do governo Collor, mas encontra-se sem solução mais estrutural até o presente momento. Ela também explica por que os estados brasileiros estiveram no centro dos mais importantes constrangimentos políticos de 1997, através, principalmente, dos escândalos dos precatórios e das crises das Polícias Militares que ocorreram em diversos estados da Federação. Além do mais, soluções de mais longo prazo podem estar sendo obstaculizadas pela necessidade de concessão de benefícios fiscais para atrair investimentos do setor privado, especialmente estrangeiro, gerando o que ficou conhecido como "guerra fiscal".

Estados e municípios são responsáveis, hoje, por 51,5% do déficit público, em uma dívida pública que representa 31,5% do PIB, de acordo com dados do Banco Central. Da dívida interna federal, estimada em junho de 1996 em US$ 154,3 bilhões, o principal item, US$ 33,6 bilhões, é representado pelo pagamento de juros, cujo aumento, adotado desde 1995, tem sido a política usada para sustentar o Plano Real. O segundo item, no valor de US$ 29,1 bilhões, destinou-se ao socorro aos estados e aos bancos comerciais por eles controlados (Folha de S. Paulo, 25/8/1996).

A relação dos estados com seus bancos estaduais funciona da seguinte forma: como resultado da reforma tributária de 1966, os estados foram autorizados a contrair empréstimos junto a seus bancos comerciais, dos quais são os acionistas majoritários1111. Para maiores detalhes sobre a relação dos estados com seus bancos, ver Souza (1994). ABSTRACTThe Intermediation of Regional Interests in Brazil: The Impact of Federalism and Decentralization . A partir de então, os estados usaram seus bancos como uma das principais fontes de recursos, em geral tomando empréstimos que não eram pagos e, mais do que isso, recorrendo a recursos que os próprios bancos não tinham, o que obrigava o Banco Central a cobrir o déficit, lançando mais moeda no mercado, o que significava mais inflação e aumento exponencial das dívidas estaduais. Essa situação fez com que os estados passassem a dever a seus bancos estaduais US$ 22,8 bilhões, dos quais US$ 18 bilhões pertenciam ao Estado de São Paulo.

Como resultado dessa situação de insolvência, o governo federal passou a sofrer constantes pressões para a suspensão do pagamento das dívidas estaduais, forçando-o a aprovar, em agosto de 1996, um programa de ajuste. O programa prevê, dentre outras medidas, a privatização dos bancos estaduais com financiamento de 100% ou de 50% do custo do saneamento financeiro do banco, caso o estado decida permanecer com o controle acionário. Os recursos obtidos com a privatização serão usados para pagar empréstimos feitos junto ao governo federal. Também as receitas do estado e sua quota no Fundo de Participação dos Estados ¾ FPE serão tomadas como garantia do pagamento, mas tal esquema já foi tentado outras vezes, sem sucesso. A ajuda aos estados e a seus bancos tem sido estimada que custará ao contribuinte em torno de US$ 12 bilhões (Folha de S. Paulo, 8/8/1996).

Paradoxalmente, os estados brasileiros são relativamente capitalizados quando comparados com seus congêneres dos países federais, mais particularmente com aqueles em desenvolvimento. Ademais, o Brasil é caso único de possuir um imposto de valor adicionado de competência dos estados, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços ¾ ICMS, imposto que mais arrecada no país. Após a Constituição de 1988, a base do ICMS foi expandida, incorporando vários impostos antes de competência federal. O ICMS vem registrando aumentos de arrecadação acima da inflação.

Os governadores alegam, como justificativa da inadimplência, os altos juros atualmente em vigor no Brasil, que criam, segundo um deles, Antônio Brito, do Rio Grande do Sul, uma "bomba atômica impagável" (Folha de S. Paulo, 12/8/1996). Em outros momentos, todavia, quando a política de juros altos ainda não estava vigorando, a situação de insolvência dos estados não era diferente da atual, conforme analisado em Souza (1996b). Isso significa que o endividamento dos estados resulta mais do não equacionamento das dívidas anteriores e da política federal de juros altos. O equacionamento dessas dívidas tem passado pela crescente força política dos governadores, forçando o governo federal a adiar a busca de soluções mais definitivas, já que os governadores se transformaram em um dos principais atores nas coalizões de sustentação do Executivo federal.

Apesar disso, a União tem mostrado disposição para renegociar, mais uma vez, a dívida dos estados, inclusive federalizando parte dela, o que significa que o governo federal assumiria a dívida contraída pelos estados junto aos bancos privados, passando os estados a dever à União. O pagamento seria feito a juros subsidiados e em até trinta anos. Em troca, os estados estão sendo compelidos a privatizar as estatais estaduais, especialmente as de telecomunicações e energia, e a adotarem um programa de ajuste fiscal voltado para a redução da folha. Como mostra a Tabela 3, dezessete acordos já foram firmados e dois, os de São Paulo e Minas Gerais, são de grande importância fiscal dado o volume de recursos envolvidos. Dois outros grandes devedores, o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul, cujas dívidas estavam estimadas, no primeiro trimestre de 1997, em R$ 11,6 bilhões e R$ 6,6 bilhões, respectivamente, ainda não chegaram a um acordo com o governo federal. O mesmo ocorre com os estados de Alagoas e Acre. Amapá, Tocantins e o Distrito Federal optaram por não aderirem ao programa federal de ajuste fiscal.

Tabela 3
la 3

Renegociações das Dívidas Estaduais ¾ Posição em abril de 1998

Fonte: Extraída de Folha de S. Paulo, 2/4/1998.

A Tabela 4 mostra um quadro diferente, mas não menos preocupante. Trata-se da relação entre a dívida fundada total e o PIB. Tomando-se esse indicador, os estados das regiões menos desenvolvidas encontram-se em situação fiscal bastante desconfortável, apesar de uma considerável melhora registrada em 1994. Desagregando os dados por estados, Piauí, Paraíba, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais são os que apresentam as maiores taxas de comprometimento do PIB com a dívida fundada total, variando de 55,5% a 23%.

Tabela 4
la 4

Relação entre Dívida Fundada Total e PIB, por Região, 1985-1994 (%)

Fonte: IPEA/DIPES (1997).

Apesar do alto endividamento e dos escassos recursos para investimentos, dados coletados e analisados por Afonso (1994) mostram que, de forma lenta e inconstante, os estados estão substituindo o governo federal em algumas funções, enquanto em outras, como é o caso da habitação, estão sem nenhum apoio financeiro governamental devido à política de controle fiscal do governo federal. Essa transferência de responsabilidades, embora descoordenada e vagarosa, contradiz a visão muito divulgada de que parte dos problemas experimentados pelo governo federal está na falta de transferência de responsabilidades para a esfera subnacional. Tal transferência, no entanto, não mudou significativamente as políticas públicas no plano estadual e também está sujeita a distorções, as quais devem encontrar sua explicação mais no fato de que a decisão de descentralizar foi tomada no Brasil sem um consenso social em torno do que deveria ser alcançado. Além do mais, as relações intergovernamentais tornaram-se muito politizadas, na medida em que as regras do sistema fiscal, incluindo a distribuição de recursos entre unidades federativas, passaram a constituir um capítulo detalhado da Constituição de 1988, ou então essas regras estão submetidas à égide de leis ou pactos, constantemente refeitos entre o Executivo e o Congresso.

O governo federal tem reagido à pressão dos estados de forma ambígua. Os presidentes da República tentam responsabilizar os estados pelos problemas do setor público brasileiro, inclusive o déficit público. Por outro lado, e devido ao aumento do poder do Legislativo conferido pela Constituição, os presidentes precisam do apoio dos governadores para viabilizar a aprovação, no Congresso, de medidas de interesse do Executivo federal, em razão do poder que os governadores exercem sobre as bancadas estaduais. Dado que os presidentes vêm encontrando dificuldades, embora não insuperáveis, para garantir uma base parlamentar relativamente estável, eles precisam do apoio dos governadores no sentido de influenciar suas bancadas no Congresso. Em um sistema político frágil e fragmentado do ponto de vista partidário, agravado pelos excessos de um sistema eleitoral proporcional baseado em lista aberta, os governadores transformaram-se em um dos principais atores no sentido de assegurar ao governo federal capacidade para governar. Esse quadro mostra que o governo federal sozinho não tem base para superar os constrangimentos fiscais das finanças públicas brasileiras.

Sumariando, pode-se afirmar que o aumento das receitas estaduais ocorrido na última década teve, na maioria dos estados brasileiros, pouco efeito sobre os estados propriamente ditos, devido, principalmente, ao tamanho da dívida passada e à política de juros altos, controle da inflação e expansão da folha de pessoal. Apesar de seus constrangimentos financeiros, os estados aumentaram sua influência sobre o governo federal, assim como seu poder de veto, através da sua força política no Congresso e da sua participação no déficit público. A força dos governos subnacionais não significa que o Brasil retornou aos dias da República Velha, nos quais os interesses regionais de alguns poucos estados dominavam o país. Entre a República Velha e hoje o Brasil tornou-se uma economia industrial e uma sociedade urbana, junto com avanços nos sistemas político e eleitoral, que se tornaram mais democráticos e mais competitivos.

A correlação de forças introduzida a partir de 1988 não significa, todavia, que todos os estados desfrutam do mesmo grau de poder, mas sim que existem hoje vários centros de poder competitivos e desiguais que passaram a ter voz nas decisões e nos vetos sobre políticas nacionais. A existência de diversos centros de poder não quer dizer que as estratégias usadas pelos estados nas relações intergovernamentais sejam as mesmas. Entretanto, os estados criaram várias estruturas e processos extraconstitucionais e extraparlamentares nas suas relações intergovernamentais, os quais assumem formas diferenciadas. Na relação com o governo federal, essas estruturas e processos são desenvolvidos pelos estados mediante duas formas: a) pela influência dos governadores sobre as delegações no Congresso; e b) na indicação de aliados para os quadros governamentais, fortalecendo ainda mais seus cacifes nas coalizões governativas. Em diferentes graus, os estados aumentaram seu poder de barganha sobre o governo federal, fortalecendo, assim, a Federação.

CONCLUSÕES

Apesar de a descentralização fortalecer as possibilidades de consolidação democrática e o federalismo pela incorporação de vários centros de poder às cenas política e decisória, existem fatores econômicos e políticos que influenciam seus resultados. Um deles é a limitação da descentralização financeira em países onde as disparidades regionais e sociais são altas. Esse aspecto mostra que a descentralização não ocorre em um vazio político e econômico, mas que seus resultados são altamente influenciados pelo contexto preexistente.

Por outro lado, a descentralização força o sistema político a encaminhar, mesmo que precária e temporariamente, soluções para as clivagens regionais brasileiras. Apesar de o federalismo no Brasil ter experimentado vários formatos no decurso da nossa história republicana, ele permaneceu como um mecanismo de negociação política capaz de acomodar as diferenças regionais. Após 1988, vários centros de poder passaram a ter acesso ao processo decisório nacional. Em um ambiente democrático onde os partidos políticos são fracos, as lideranças regionais representadas pelos governadores passaram a ser uma das principais fontes de sustentação do governo federal.

O poder dos governadores não significa que o governo federal passou a ser um ator passivo. A taxa de sucesso do Executivo brasileiro em anos recentes, no que se refere à aprovação pelo Congresso de medidas do seu interesse, é bastante alta (ver Limongi e Figueiredo, 1996). Só para citar alguns exemplos, o Congresso tem sistematicamente aprovado todos os planos de estabilização econômica encaminhados pelo Executivo, inclusive alguns bastante esdrúxulos; tem aprovado várias medidas fiscais destinadas a minorar os problemas de caixa do Tesouro Nacional; e vem mudando artigos sensíveis da Constituição brasileira. Ao mesmo tempo, a força dos governadores tem criado padrões adicionais de relações intergovernamentais, nos quais estruturas e processos extraparlamentares e extraconstitucionais passam a ser tão importantes quanto estruturas e processos constitucionais e parlamentares.

A experiência brasileira corrobora a visão de que o federalismo como mecanismo de divisão territorial de poder é uma forma de acomodar conflitos em vez de promover harmonia. Confirma também a perspectiva desenvolvida no início deste trabalho de que o federalismo é mais uma ideologia, que se baseia em valores e interesses, do que apenas um compromisso baseado em arranjos jurídicos e territoriais. A nossa experiência também sustenta o ponto de vista de que as relações intergovernamentais em países federais tendem a ser mais baseadas em interesses conflituosos, que são, por sua vez, reflexo de outros conflitos políticos existentes na sociedade. A partir dessa constatação, deve-se considerar que conflitos são inerentes aos sistemas federais, especialmente em países como o Brasil, que optou por fazer a abertura política antes das reformas fiscal, econômica e administrativa. Nesse sentido, a experiência brasileira tem sido, até agora, única. Ao optar por esse caminho, a Federação se fortalece pela incorporação das demandas regionais à agenda política nacional, embora ele possa ser mais lento na busca de soluções mais definitivas para os problemas fiscais e administrativos do país.

(Recebido para publicação em outubro de 1997)

(Versão definitiva em julho de 1998)

NOTAS:

Through the process of redemocratization, Brazil has become a highly decentralized nation. The results of this transformation are visible in the federal arena, where financial problems have been encountered and presidents have run into trouble forming coalitions that allow them to implement public policies. Within the realm of the states, however, decentralization has brought mixed results due to regional inequalities. The paper analyzes the rifts and tensions now affecting Brazil’s federative system. It is argued that Brazil’s experience with decentralization has contributed towards democratic consolidation and has forced the federal government to negotiate public policy implementation with state and local government. At the same time, this experience reveals the limits of decentralization in nations displaying marked regional differences.

Keywords: federal government; member-state; Federalism; intergovernmental relations; decentralization

RÉSUMÉ

Médiation d’Intérêts Régionaux au Brésil: L’Impact du Fédéralisme et de la Décentralisation

Avec la redémocratisation, le Brésil s’est transformé dans un pays fortement décentralisé. Les résultats de cette transformation sont évidents au niveau fédéral obligé de faire face à des problèmes financiers et à d’autres difficultés en vue de former des coalitions permettant aux présidents de mettre en place des politiques publiques. Pourtant, au niveau des États, les résultats de la décentralisation sont inégaux en fonction des disparités régionales. Cet article examine les clivages et tensions qui touchent actuellement le système fédératif brésilien. On avance l’argument selon lequel l’expérience brésilienne de décentralisaion contribue à la consolidation de la démocratie contraignant le gouvernement central à négocier avec les sphères régionales la mise en place de politiques publiques. Par ailleurs, cette expérience met à nu les limites de la décentralisation dans des pays marqués par des inégalités régionales importantes.

Mots-clé: gouvernement fédéral; état-membre; fédéralisme; relations intergouvernementales; décentralisation

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  • 1
    . Estão situados na primeira faixa os Estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Paraná, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, além do Distrito Federal; na segunda faixa os Estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Rondônia, Amazonas, Roraima e Amapá; no terceiro grupo estão os Estados do Pará, Acre, Sergipe, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Maranhão, Ceará, Piauí, Alagoas e Paraíba.
  • 2
    . Parte desta seção está publicada em Souza (1996a).
  • 3
    . Stewart (1984) mapeou a existência de 497 representações do federalismo, tanto literais quanto figurativas. No território da ciência política, os trabalhos mais divulgados são os desenvolvidos nos EUA, tais como os de Elazar (1984) e Duchacek (1987).
  • 4
    . Dados extraídos de Guimarães Neto (1995).
  • 5
    . Sistema tributário diz respeito à receita pública constituída principalmente por impostos e contribuições, enquanto sistema fiscal abrange não só a receita como também a despesa pública.
  • 6
    . Incentivos, subsídios e renúncia fiscal são recursos públicos concedidos a empresas, setores, classes e regiões. Esses recursos se destinam, em geral, ao estímulo ao crescimento de regiões e setores econômicos menos desenvolvidos e à compensação pelo pagamento de serviços que deveriam ser prestados pelo setor público, tais como saúde e educação. Enquanto no sistema de incentivos fiscais os recursos teoricamente retornam ao Tesouro, o mesmo não acontece com os subsídios e a renúncia fiscal. Esses benefícios assumem várias formas, dentre elas a concessão de empréstimos a juros subsidiados através de organismos federais tipo Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES. Devido ao fato de as regiões mais desenvolvidas concentrarem a maior parte da atividade econômica, assim como as maiores estatais federais, as empresas nelas sediadas são as que mais se apropriam desses benefícios. Além do mais, os estados mais desenvolvidos são também os que detêm as maiores dívidas, que estão agora sendo federalizadas.
  • 7
    . Os governos subnacionais brasileiros têm ainda ampla liberdade na aplicação dos recursos transferidos, sendo a única vinculação constitucionalmente exigida o percentual de 25% da receita que deve ser despendido em educação. Essa característica distingue o Brasil de outros países federais como, por exemplo, os EUA, onde tem havido uma tendência no governo federal de transferir encargos sem a necessária contrapartida dos recursos, gerando uma pressão dos estados e municípios contra o que ficou conhecido como
    unfunded mandates.
  • 8
    . O sistema tributário brasileiro faz uma separação entre impostos e contribuições. O imposto tem que obedecer ao princípio constitucional que requer que mudanças só ocorram no exercício fiscal subseqüente, além de requererem emenda constitucional. Já as contribuições podem ser alteradas por lei ordinária, que entra em vigor noventa dias após sua promulgação. Os recursos das contribuições são vinculados a despesas específicas, tais como ao financiamento do sistema de previdência social, salário-desemprego, educação, saúde e programas de assistência social e não são, em geral, sujeitos à partilha com as esferas subnacionais.
  • 9
    . A ambigüidade e a complexidade do sistema tributário têm levado o Judiciário a interpretar a legislação mais contra o governo e a favor do contribuinte. Estima-se que o governo federal perdeu, até 1993, cerca de US$ 3 bilhões devido a decisões judiciais desfavoráveis. Apenas em 1993 havia na justiça 350 mil ações contra o Tesouro Federal, questionando o pagamento de US$ 6 bilhões (
    Gazeta Mercantil, 9/10/1993).
  • 10
    . Para maiores detalhes sobre o poder dos governadores a partir da democratização, ver Abrucio (1994).
  • 11. Para maiores detalhes sobre a relação dos estados com seus bancos, ver Souza (1994).
    ABSTRACT
    The Intermediation of Regional Interests in Brazil: The Impact of Federalism and Decentralization
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Fev 1999
    • Data do Fascículo
      1998

    Histórico

    • Aceito
      Jul 1998
    • Recebido
      Out 1997
    Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) R. da Matriz, 82, Botafogo, 22260-100 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel. (55 21) 2266-8300, Fax: (55 21) 2266-8345 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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