Open-access Intermitências da Crítica sob o Imperativo Marxista das Lutas: Foucault e o Groupe d’Information sur les Prisons (GIP)*

Interrupting the critique of the Marxist struggle imperative: Foucault and Groupe d'Information sur les Prisons (GIP)

Intermittences de la Critique sous l'Imperatif Marxiste de Luttes: Foucault et le Groupe d'Information sur les Prisons (GIP)

Descaminos de la Crítica bajo el Imperativo Marxista de las Luchas: Foucault y el Groupe d'Information sur les Prisons (GIP)

RESUMO

O engajamento dos intelectuais franceses na década de 1970 marcou a emergência de novas modalidades de intervenção pública e uma redefinição das relações entre produção cultural e política. Associada a uma intensa interlocução com os grupos militantes da esquerda extraparlamentar, instituídos ou fortalecidos a partir dos protestos de 68, a mobilização das principais figuras do pensamento francês deflagrou um processo de incorporação das temáticas do "gauchismo", o que significava estabelecer, ainda que por vias nem sempre evidentes, um profundo e tenso diálogo com Marx e os marxismos. Foi uma época de filiações cruzadas e ruidosas, de alianças estratégicas e de grande inventividade organizacional, reunidas e acumuladas nos dispositivos intelectuais de engajamento propostos por ativistas e notórios representantes da Filosofia e Ciências sociais, entre os quais, Michel Foucault e o Groupe d'Information sur les Prisons (GIP). A história do encontro entre Foucault e a questão prisional condensa os principais vetores políticos que deram fisionomia à conjuntura social dos anos 1970, manifestando as contradições de uma teoria fortemente impactada pela experiência militante. O "efeito GIP" sobre Foucault demarca, ao mesmo tempo, o horizonte e os limites de sua crítica e do legado intelectual de sua obra. Com o auxílio de registros documentais do arquivo de Foucault, depositado no Institut Mémoires de l'Édition Contemporaine (IMEC), e do acervo sobre os grupos militantes de 68, localizado na Bibliothèque de Documentation Internationale Contemporaine (BDIC), este texto propõe problematizar essa história.

Michel Foucault; maio de 68; engajamento; estratégia; intelectuais; prisão

ABSTRACT

The engagement of French intellectuals in the 1970s marked the emergence of new forms of public intervention and a redefinition of the relations between cultural and political production. Associated with an intense dialogue with the militant groups of the extra-parliamentary left, instituted or strengthened after the protests of 1968, the mobilization of the main figures of French thought triggered the incorporation of themes such as "gauchisme", which meant to establish, although by means not always evident, a deep and tense dialogue with Marx and Marxisms. It was a time of crossed and troublesome affiliations, of strategic alliances and of great organizational inventiveness, gathered and accumulated in the intellectual devices of engagement proposed by activists and prominent figures in the fields of Philosophy and the Social Sciences, among them Michel Foucault and the Groupe d'Information sour les Prisons (GIP). The case of Foucault's engagement with the theme of imprisonment condenses the main political vectors of the 1970s social conjuncture, manifesting the contradictions of a theory strongly impacted by the militant experience. The "GIP effect" on Foucault marks at the same time the horizon and limits of his criticism and the intellectual legacy of his work. The current article analysis this historical context with the aid of documents from Foucault's archive, deposited at the Institut Mémoires de l'Édition Contemporaine (IMEC), and the collection on militant groups of 68 of the Bibliothèque de Documentation Internationale Contemporaine (BDIC)

Michel Foucault; May 1968; political engagement; intellectuals; prison

RÉSUMÉ

L'engagement des intellectuels français dans les années 1970 a marqué l'émergence de nouvelles formes d'intervention publique et une redéfinition des relations entre production culturelle et politique. Associée à le dialogue intense avec les groupes militants de la gauche extraparlementaire institués ou renforcés après les manifestations de 1968, la mobilisation des principales figures de la pensée française a déclenché un processus d'incorporation des thèmes du "gauchismo", destiné à par des moyens pas toujours évidents, un dialogue profond et tendu avec Marx et les marxismes. C'était une période de croisements et d'affiliations bruyantes, d'alliances stratégiques et d'une grande inventivité organisationnelle, rassemblées et accumulées dans les dispositifs intellectuels d'engagement proposés par des activistes et des représentants notoires de la philosophie et des sciences sociales, parmi lesquels Michel Foucault et le Groupe d'Information sur les Prisons (GIP). L'histoire de la rencontre entre Foucault et la question pénitentiaire condense les principaux vecteurs politiques qui ont donné une physionomie à la conjoncture sociale des années 1970, manifestant les contradictions d'une théorie fortement marquée par l'expérience militante. L'effet "GIP" sur Foucault marque à la fois l'horizon et les limites de sa critique et l'héritage intellectuel de son travail. À l'aide des registres documentaires des archives Foucault, déposées à l'Institut Mémoires de l'Édition Contemporaine (IMEC), et de la collection sur les groupes militants de 68, située à la Bibliothèque de Documentation Internationale Contemporaine (BDIC), ce texte propose de problématiser cette histoire,

Michel Foucault; mai 68; engagement; stratégie; intellectuels; arrestation

RESUMEN

El involucramiento de los intelectuales franceses en la década de 1970 ha marcado la emergencia de nuevas modalidades de intervención pública y una redefinición de las relaciones entre producción cultural y política. La movilización de las principales figuras del pensamiento francés estuvo asociada a una intensa interlocución con los grupos militantes de la izquierda extraparlamentaria, instituidos o fortalecidos a partir de las protestas del 1968. Dicha movilización intelectual disparó un proceso de incorporación de las temáticas del gauchismo, lo que, a su vez, significaba establecer (por vías no siempre evidentes) un profundo y in-tenso diálogo con Marx y con los marxismos. Ha sido un tiempo cruzadas y ruidosas filiaciones, de alianzas estratégicas y de gran creatividad organizativa, reunidas y acumuladas en los dispositivos intelectuales de compromiso propuestos por activistas y notorios representantes de la Filosofía y las Ciencias Sociales, entre ellos, Michel Foucault y el Groupe d'Information de las Directrices (GIP). La historia del encuentro entre Foucault y la cuestión de la cárcel, condensa a los principales vectores políticos que dieron fisonomía a la coyuntura social de los años 1970, manifestando las contradicciones de una teoría fuertemente impactada por la experiencia militante. El 'efecto GIP' sobre Foucault enmarca también el horizonte y los límites de su crítica y de su herencia intelectual. Con el auxilio de registros documentales del archivo de Foucault y del acervo sobre los grupos militantes de 1968, este texto problematiza dicha historia.

Michel Foucault; mayo de 1968; involucramiento; estrategia; intelectuales; cárcel

Eu sou um desses intelectuais “teóricos” que fascinam erroneamente os “militantes” dóceis demais e os “trabalhadores sociais” muito ingênuos – e que as revistas de fim de semana, nesses dias, tanto denunciam? Talvez. Mas veja você, eu empreendi e concluí, depois da experiência do GIP, meu livro sobre as prisões. E o que me entristece não é que você tenha a estranha ideia de deduzir de meu livro, que receio que você tenha compreendido mal, minha venenosa influência sobre o GIP; é que você não tenha tido a simples ideia de que esse livro deve muito ao GIP e que se o livro continha duas ou três ideias justas, é de lá que ele as teria tomado. (Foucault, 2001n:915-916)1

O EFEITO GIP

As qualidades que fazem da militância de Foucault um objeto de inegável interesse teórico foram atravessadas e, em boa medida, determinadas por sua interlocução com os grupos da esquerda extraparlamentar iniciada no final dos anos 1960. A significação da militância foucaultiana a partir dos debates motivados pela movimentação social da década seguinte já foi razoavelmente analisada pelos comentadores. Como tem sido a tendência geral, cristalizada e reposta ainda hoje, as atividades políticas de Foucault são frequentemente submetidas a uma matriz dual, que contrapõe o que seria um modelo clássico de intervenção pública, calcado na imagem de uma universalidade crítica sob a figura do intelectual engajado, ao modelo das lutas concretas, de reivindicações específicas e sem, portanto, locutor político capaz de unificá-las2. Essa dualidade carrega em si mesma os principais elementos de uma recorrente cartografia do pensamento foucaultiano. Seus atuais desdobramentos revelam as restrições impostas aos estudos detidos na relação entre a militância de Foucault e seus livros, na repercussão do cenário político da década de 1970 sobre o desenvolvimento de seus cursos, na transformação e deslocamentos dos temas e dos conjuntos históricos sobre os quais o trabalho genealógico projetaria seus problemas. A veemente crítica de Foucault à ortodoxia marxista, manifestada em inúmeras ocasiões, continua a estimular a ideia, enraizada e acentuada a partir da segunda metade dos anos 1970, de que haveria entre ele, Marx e o marxismo uma relação inconciliável, conflitiva e de permanente recusa. Levada ao extremo, ela tem sido eficaz em bloquear a investigação de um dos aspectos mais instigantes e reveladores de sua militância, a descoberta da “produtividade do poder” (Laval, 2015a) e da duplicidade da temporalidade histórica entre o “arquivo” e o “devir” (Deleuze, 2003a:322-323), ambas ao estilo de uma espécie de regionalização da totalidade do poder, antípoda do que viria a caracterizar o pensamento foucaultiano, justamente a impossibilidade de unificação das relações de dominação e, consequentemente, de uma teoria geral a respeito. É nesse sentido que as atividades de militância de Foucault instituíram as condições para a conceitualização do estatuto de uma luta sempre definida pela contingência, pela implicação subjetiva da ação e, sobretudo, pelos seus objetivos estratégicos.

Antes de apresentar os delineamentos do que seria sua perspectiva genealógica do poder, Foucault participaria da fundação, em 1970, do Groupe d’information sur les prisons (GIP), empreendimento breve, mas mediante o qual aquela descoberta ganharia realidade prática e existencial, cuja presença pode ser verificada ao longo dos seus livros e cursos, tanto os que estavam por vir, como também os já concluídos, devidamente reposicionados conforme o jogo das táticas priorizadas em cada momento. É certo que Foucault havia fornecido os elementos analíticos para que esse tipo de reposicionamento passasse a funcionar no interior de sua própria obra. Todavia, seus primeiros efeitos somente puderam ser engendrados de acordo com uma funcionalidade teórica e circunscritos no plano de uma “discursividade” propriamente dita (Foucault, 2001m) a partir da codificação do extenso material formado por suas entrevistas, declarações e conferências, reunido e publicado como seus “ditos” e “escritos”, em 19943. De fato, os efeitos foram inicialmente políticos e apenas em um segundo momento, teóricos. Desde seus primeiros enunciados, a contraposição entre o “intelectual universal” e o “intelectual específico” serviu de base para a disseminação de inúmeras noções e categorias forjadas pela militância de Foucault, cujas consequências mais imediatas puderam ser observadas com o surgimento de diversos coletivos orientados pelas mais diferentes bandeiras e claramente inspirados no GIP que, senão era propriamente uma organização foucaultiana, foi, sem dúvida, aquela que melhor refletiu os princípios do que poderia ser compreendido como uma concepção estratégica de sua teoria. É aqui que seu valor de forquilha transparece, articulando e dividindo os comentadores e as interpretações acumuladas em mais de quarenta anos. De um lado, a linha majoritária, que entende e analisa o ativismo de Foucault a partir de sua obra (Zamora, 2014; Lagasnerie, 2012; Hoffman, 2007, 2012, 2014; Terrel, 2010; Beaulieu, 2010; Hardt, 2010; Revel, 2010; Paras, 2006; Christofferson, 2004; Deleuze, 2003a; Mauger, 2000; Ewald, 2000). Afinidades conceituais passam a definir as prerrogativas da militância foucaultiana, identificando suas intuições em comparação aos conceitos posteriormente trabalhados nos livros e cursos do Collège de France. Ainda que exista desvio e deslocamento, a intuição extraída do confronto real ocupará silenciosamente o núcleo dos problemas e a forma metodológica da genealogia. Foi assim que Vigiar e punir teria incorporado a face engenhosa da luta, forjada no corpo a corpo contra o “intolerável” das prisões, sob a textualidade da análise histórica das conformações seculares da disciplina, sintetizada pelo panóptico benthamiano. De outro lado, o GIP tem sido tomado em investigações mais recentes por meio da consideração de sua autonomia, que, embora teorizável e associada ao pensamento foucaultiano, mantém-se em reserva junto a uma racionalidade variável e regional da luta (Karlsen e Villadsen, 2014; Dilts e Zurn, 2016; Artières e Potte-Bonneville, 2012; Welch, 2011; Wolin 2010; Zitouni, 2007; Sale, 2004; Alford, 2000; Monod, 1997; Perrot, 1986).

Principalmente neste último tipo de apreciação, uma corrente plural de estudos vem gradativamente convertendo, à luz de Foucault, o texto de Marx em teoria estratégica (Balibar, 1989; Negri, 2015; Revel, 2010; Lemke, 2004; Garo, 2011; Legrand, 2004; Jessop, 2004; Bidet, 2014; Macherey, 2014; Karlsen e Villadsen, 2014; Dardot e Laval, 2012), aproximando-se, assim, da esfera epistemológica da genealogia, cujo programa de pesquisa foi apresentado no curso de 1976 sob a inversão do teorema de Clausewitz: “a política é continuação da guerra por outros meios” (Foucault, 1999:22). A relação de Foucault com a teoria de Marx seria muito mais do que reativa e polarizada4, como defende a interpretação canônica que tem logrado hegemonia desde o início da especialização do campo foucaultiano de estudos; ela seria, antes de tudo, responsável por uma nervura exposta de problemas nos planos integrados da pesquisa e ação militante, ou seja, naquilo que Foucault mesmo definiu como sendo a dimensão da genealogia, a “constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas lutas atuais” (Idem:13). Embora de modo menos imediato e evidente do que faz acreditar alguns comentadores, o programa genealógico certamente manteve estreita ligação com o universo de questões vivenciadas no GIP, em alguns aspectos centrais para a compreensão dos desdobramentos que viria tomar o pensamento foucaultiano a partir da segunda metade dos anos 19705. A esse respeito, seria possível afirmar que a experiência gipeana portaria dois eixos fundamentais da genealogia. O primeiro diria respeito à guerra como “grade de inteligibilidade” de uma “analítica do poder”. O GIP teria integralmente se orientado a decifrar os mecanismos concretos de sujeição através do confronto direto, pela extração da luta de dentro das prisões e a partir da fala dos detentos. Mas não para que dessa luta a verdade do discurso pudesse, enfim, tornar-se pública e transparente. Tal qual a investigação genealógica do “saber histórico”, o quadro referencial das ações do GIP era estratégico, despojado de neutralidade e compreensível apenas à luz do combate (Hoffman, 2007). O segundo eixo lhe seria, nesses termos, contínuo, por relacionar o “discurso histórico-político”, originário das guerras religiosas inglesas do século XVI, aos “contra-discursos” dos presos contemporâneos (Karlsen e Villadsen, 2014). A postulação de um estatuto beligerante constitui uma mudança significativa, no entanto. Recém-descoberto por Foucault, o mesmo arquivo sobre as “vidas infames” (Foucault, 2001e) dos séculos XVII e XVIII sofre uma bifurcação reveladora, expondo os impasses aos quais a investigação genealógica estava submetida no seu início. Colocada ao lado de uma inspeção quase literária dos documentos (Foucault, 1977:XI e XIV), a genealogia apenas seria liberada de suas amarras estilísticas com o advento do GIP e seus efeitos sobre a produção foucaultiana, o que, entretanto, não autoriza qualquer vinculação causal entre acontecimentos biográficos, aí incluindo a militância de Foucault, e o conteúdo dos seus trabalhos6. Ambos os vetores poderiam ser definidos a partir do reconhecimento da “guerra como fundamento das relações sociais” (Foucault, 1999:56). São eles que contextualizam a ascendência marxiana sobre Foucault, a interlocução mantida com os grupos da esquerda extraparlamentar e, sobretudo, a figuração de uma instância axiomática do poder7, realidade material e histórica das relações de força, todavia apenas apreendida indiretamente através da luta concreta visada por uma determinada racionalidade estratégica (Ota, 2016a). Daí a hipótese do GIP ter sido, para Foucault, o dispositivo tanto de descoberta, quanto de afastamento dessa instância. Talvez essa ambiguidade explique sua concepção “nominalista” de poder (Foucault, 1985:89) e o acento filosoficamente pragmático dado à investigação genealógica, que não sem motivo traduziria aquela axiomática por uma versão engajada e de etificação da teoria, a “ontologia do presente”, mencionada pela primeira vez em Vigiar e punir.

Entre o GIP e a grande análise sobre a sociedade disciplinar, Marx e sua atualidade. Foi preciso ultrapassá-los antes de Foucault promover um novo circuito estratégico, também dissociado daquela figuração do poder gradativamente negada e ocultada. A recusa em aprofundar e mesmo de aceitar a existência dos processos de totalização do poder identificaria a fisionomia foucaultiana em seu retrato mais conhecido. Contudo, a despeito de seu ideal de intelectual como “destruidor de evidências e universalidades” (Foucault, 2001l:268), Foucault manteria, sob sua guarda, o conteúdo sedicioso dos valores revolucionários que, deseje-se ou não, marcaram a história do marxismo. Mas assim ele o fez a partir da reiteração de um argumento radicalmente vitalista: somente podem defender a revolução aqueles que “aceitam arriscar a vida para fazê-la.” (Idem:269). Dessa feita, a universalidade marxista é invadida pela indeterminação de uma decisão singular, tomada individualmente e instaurada por um ato elevado às últimas consequências8. Essa imagem acompanhará a crítica foucaultiana e seu conteúdo trágico lhe será cada vez mais pertinente com o avanço das formas depuradas de seu engajamento politicamente concentrado na cena do combate, da guerra. Eis, aqui, com toda clareza, o lugar destinado ao GIP, a carga ideativa que Foucault lhe conferiu e que, mesmo com sua dissolução, permaneceria a vicejar o caráter corrosivo de seu discurso. Paradoxalmente, isso significaria dar continuidade a Marx naquilo que teria definido a verdade de seu pensamento, a teoria histórica das lutas (Ibidem:268). Tratava-se, afinal, de compreender os mecanismos que municiam e objetivam os combates e seus protagonistas, a lógica que se incorpora às táticas, a razão estratégica das guerras. A favor de Marx, contra o marxismo e o primado econômico da produção, a “produtividade do poder” e sua multiplicidade histórica (Laval, 2015a). Exteriores e apenas posteriormente transplantados ao capitalismo: a materialidade das tecnologias políticas das instituições de sequestro que serviram para a fixação e controle da plebe junto aos aparelhos burgueses de produção; o excedente de poder, seja como condição correlativa (Foucault, 2013:235-236), seja como cristalização sobredeterminada do excedente de valor (Foucault, 2014:259).

O PENSAMENTO ESTRATÉGICO DAS LUTAS

Desde a sua fundação, o GIP foi um espaço de encontro e interação de tendências políticas e de gerações bem diferentes. Sua identidade foi a todo instante defendida como estritamente estratégica, o que significava dizer que sua existência se justificava apenas em função dos objetivos estabelecidos pela prática do confronto contra as instituições judiciárias e policiais do Estado francês9. Entre seus membros e mais ativos participantes, constavam desde adeptos do catolicismo social, reunidos ao redor da revista Esprit, naquele tempo sob a direção de Jean-Marie Domenach, até jovens maoístas da Gauche Prolétarienne. A despeito da habitual e conhecida distância que mantinha, marcante já nesses tempos, em relação aos discursos e dogmas do campo marxista, foi com o grupo maoísta que Foucault estabeleceu sua mais intensa e importante interlocução política, ainda que indireta e não nomeada em seus trabalhos (Wolin, 2010; Macey, 1993; Eribon, 1990; Miller, 1993; Kiéfer, 2006; Artières e Porte-Bonneville, 2012). Isto porque o “momento maoísta” não fornecia, para Foucault, a orientação, mas, antes de tudo, a ocasião para que a dimensão estratégica das lutas pudesse ser pensada e instrumentalizada (Karlsen e Villadsen, 2014). Por isso o GIP tenha efetivado a realidade prática de um pensamento estratégico muito mais do que foram capazes de fazê-lo as investigações da genealogia foucaultiana. A leitura que se detém apenas na influência do GIP sobre a obra de Foucault inverte e, curiosamente, reabilita a “função autor” (Foucault, 2001m), justamente no registro de uma atuação coletiva e politicamente heterogênea. A localização a posteriori dos traços gipeanos nada mais faz do que reinterpretar a ação coletiva a partir da produção foucaultiana e, em especial, através das oscilações de sua recepção. A inventividade inscrita no pensamento estratégico do GIP deixa de ser apreciada em sua autonomia, transitando para um modelo autorizado de certificação e ressignificação, muito próximo das conclusões da sociologia de Pierre Bourdieu a respeito das disputas culturais e da lógica concorrencial pelos bens simbólicos que as preside em um determinado campo social (Bourdieu, 1998).

Nessa derivação autoral, elementos contextuais são alçados à condição de prerrogativas do GIP, a exemplo da decisão de constituir o discurso do detento como substrato enunciativo das denúncias e da veiculação da experiência invisível das prisões. Ora, não havia sido a primeira vez que essa fala ocupava tal lugar e exercia essa função. A mesma Esprit que apoiou as atividades gipeanas do início ao fim organizou, em 1955, um extenso e minucioso dossiê sobre as vivências e condições carcerárias na França, número dedicado ao “mundo das prisões”, no qual “o prisioneiro toma a fala” (Esprit, 1955:497). O conjunto dos depoimentos revela inúmeras semelhanças com aqueles colhidos pelo GIP e isso não em razão meramente da natureza testemunhal dos textos publicados. A afinidade entre eles pode ser definida como de estratégia. Tanto quanto faria depois o GIP, Esprit incitara um “dispositivo redacional” mediante o qual o “ponto de vista dos detentos” foi pela primeira vez captado e contraposto, a partir de sua esfera existencial, aos “experts” do comportamento e da boa dinâmica das instituições (Zitouni, 2007). E mesmo entre esses portadores oficiais dos saberes prisionais se notou, em alguns casos, a recusa em assumir o lugar da fala do detento e o reconhecimento da particularidade posicional dos enunciados revestidos de neutralidade científica, fato pelo qual, lido hoje, seria possível concluir que Esprit antecipara em quinze anos a formulação foucaultiana sobre o “intelectual específico”10. Em outras palavras, a substituição da dicção intelectual sob a representação dos interesses gerais pela enunciação de uma experiência particular definiria tanto as orientações do GIP, quanto as do dossiê. Entre elas, a mesma preocupação em descrever a materialidade institucional do funcionamento e controle diuturnos, a exposição da engrenagem dos conhecimentos e seus agentes oficiais. No discurso do detento, a correspondência entre os sujeitos do enunciado e da enunciação não implicaria a reprodução do jugo ou um empuxo subjetivo à verdade (Foucault, 2001f:1106), como Foucault compreenderia anos mais tarde o principal efeito do dispositivo biopolítico da sexualidade (Foucault, 1985:61). A figura do “intelectual específico” foi muito mais um reforço a essa modalidade de estruturação discursiva do que uma entidade imaginada isoladamente como alternativa à longa tradição política subjacente à aparição pública do intelectual nos debates e controvérsias sobre os destinos da República. No GIP e em Esprit, assim a dimensão da “produtividade do poder” foi colocada em questão através de uma mesma expressividade tática, apesar de suas conjunturas políticas muito distintas. Contudo, apenas o GIP manteve hipótese e tangência em relação aos mecanismos de poder próprios a um regime normativo ainda desconhecido, que planificaria a temporalidade histórica ao modo pragmaticamente ontológico e espacial (Revel, 2010). Essa hipótese não mereceu formulação própria e nem ganhou desdobramentos significativos na teoria de Foucault. Coerente com a forma de ação do grupo, ela resulta do a posteriori de uma heterogeneidade política que se efetivou pela alienação de sua força veritativa, deslocando a legitimidade e os critérios de validação discursiva para a alçada de um outro sujeito, que lhe era estranho e inassimilável, o detento prisional. Por isso, no GIP, a interpretação dos discursos seria severamente inibida pela anulação de qualquer presunção vanguardista. A objetividade do testemunho ganhava visibilidade social pela conversão do relato pessoal em função performativa de uma experiência coletiva; letra de um dizer e não indícios da verdade emanada pelo sujeito12.

As condições para a emergência da questão prisional no início dos anos 1970 possuíam uma memória recente, relacionadas que estavam diretamente com a repressão a que foram submetidos os partidários da independência das ex-colônias francesas, sobretudo durante a guerra da Argélia (Kiéfer, 2006). A permanência da estrutura repressiva nas prisões, mesmo com o término das lutas anticoloniais, tornou-se um foco de dominação segmentada, com forte viés racial. Ao lado dos condenados selecionados pelas tradicionais formas de controle das classes populares, imigrantes e ex-militantes constituíam o alvo preferencial do sistema penitenciário e de justiça. A invisibilidade da repressão nas prisões era, portanto, reflexo de uma estratificação classista e com evidentes rudimentos da administração colonial. Em função dessa pertinência racial-classista, as prisões não foram objeto de comoção pública e tampouco conseguiram transpor as fronteiras da denúncia movida pelo ativismo humanitário, como aquele que havia animado o dossiê de Esprit. Apenas a convergência de fatores muito específicos, que deram identidade ao ciclo permanente de contestações a partir de 1968, tornou possível a politização da prisão. Nesse sentido, o evento que se encontra na origem do GIP condensa os elementos mais significativos dessa politização. O recrudescimento da perseguição governamental aos grupos da esquerda extraparlamentar, com a aprovação da lei “anti-casseurs”12, promulgada em 8 de junho de 1970, redundou no banimento de alguns deles, entre os quais, a Gauche Prolétarienne, e a detenção de seus líderes, acusados de “injúria e difamação para com a polícia e provocação de crimes contra a segurança do Estado” (Groupe d’Information sur les Prisons, 2003b:27). Rapidamente, alguns dos mais prestigiados intelectuais franceses vieram a público manifestar seu repúdio e demonstrar apoio aos maoístas presos. Os mais ativos tomaram para si a tarefa de organizar ações sistemáticas de defesa jurídica dos militantes ameaçados e de pressão política por meio da imprensa. No cerne das táticas toadas nesse momento, a reivindicação de que as autoridades reconhecessem o estatuto político dos detentos maoístas, que haviam, para tanto, iniciado uma greve de fome:

Reivindicamos o reconhecimento efetivo de nossa qualidade de presos políticos. Não reivindicamos, para tanto, privilégios em relação aos presos ditos “do direito comum”: aos nossos olhos, eles são vítimas de um sistema social que, depois de tê-los produzido, se recusa a reeducá-los e se contenta em aviltá-los e rejeitá-los. Nós queremos muito mais, que nosso combate, denunciando o escandaloso regime atual das prisões, sirva a todos os presos.

Pleiteando esse reconhecimento de nossa qualidade de presos políticos, não fazemos senão exigir a manutenção de uma tradição arrancada pelas lutas e sacrifícios do passado.

É obrigatório constatar, de fato, que o regime atual não cessou de reduzir os direitos reconhecidos por essa tradição, sob o pretexto de não querer reconhecer a própria existência dos detentos políticos nas prisões do Estado. Exemplos dessa regressão poderiam ser multiplicados à vontade. Lembremos que, por exemplo, em maio de 1920, militantes revolucionários encarcerados por complô contra a segurança do Estado receberam, na primeira semana de seu encarceramento, dezoito visitas de amigos políticos.

Nós exigimos:

  1. Que todos aqueles que, na região parisiense e na província, estão ou serão encarcerados por atos cujos motivos são políticos, tenham reconhecido sua qualidade de presos políticos e que possam, assim, obter imediatamente e sem demora o benefício de estatuto especial que lhes refutam atualmente. Em particular, exigimos que essa medida seja aplicada a Michel Julien, preso há mais de 3 meses, isolamento completo, no centro de detenção provisória de Santé, por ter escrito um slogan político no muro;

  2. Que seja colocado fim ao isolamento de todos os presos políticos, e que eles possam se comunicar entre eles. Para tanto, que sejam imediatamente transferidos aqueles que estão atualmente isolados, como Alain Geismar em Fresnes.

  3. Que sejam abertos, sem adiamento, os locais comuns onde todos os presos políticos possam se reunir, locais comuns que foram, em um tempo ainda recente, abertos a todos os presos políticos provisórios.

  4. Que seja melhorado o sistema de visitas, no que concerne ao número de visitantes autorizados, à duração das visitas, às condições nas quais elas ocorrem.

  5. Que sejam melhoradas as condições gerais da detenção e que terminem imediatamente as humilhações.

Em nenhum caso, uma iniciativa nessa direção significa uma aceitação do princípio mesmo de nossa detenção. Afirmamos que continuamos e continuaremos a lutar no campo do povo, contra esse regime que se reclama da participação e pratica a repressão e a opressão.

Escrito nas prisões da França 1 de setembro de 197013

Com o cárcere dos líderes maoístas, deu-se uma ampla exposição da realidade degradante das prisões, revelando o seu até então oculto sentido de classe. Em pouco tempo, a tática assumiria nova direção na segunda greve de fome, em janeiro de 1971, cuja repercussão marcou definitivamente a crise do sistema penitenciário e a politização das prisões, doravante front incontornável dos debates após sua ausência nos protestos e em toda movimentação de 68:

Declaração dos presos políticos:

“Há na França 30.000 presos. 10.000 pessoas passam a cada ano nas prisões.”

Para a justiça burguesa são bandidos...

Para nós, que estamos aqui por termos levado a cabo combates pela liberdade do povo, nós o vemos todos os dias, eles são, em sua grande maioria, jovens, trabalhadores imigrados, vítimas desse sistema podre.

Os assassinos, os bandidos são os patrões, os exploradores e seus asseclas.

NÓS, MILITANTES REVOLUCIONÁRIOS PRESOS PELA BURGUESIA, DENUNCIAMOS O SISTEMA PENITENCIÁRIO.

(...)

Nós, presos políticos, sabemos que não se pode reconstruir o sistema penitenciário nessa sociedade apodrecida.

Nós somos solidários a todos aqueles submetidos ao sistema penitenciário odioso; mas o combate que levamos a cabo na prisão é um combate político contra a burguesia no poder.

Esta última gostaria de reduzir os atos revolucionários a delitos de “direito comum”. É por isso que começamos hoje uma greve de fome para exigir o reconhecimento do caráter político de nossos atos.

Nós somos solidários aos camaradas (três trabalhadores de Vittel) totalmente isolados.

Na prisão, a escolha das formas de lutas é limitada. A greve de fome é uma arma que permite romper o isolamento e de lutar juntos para obter a vitória. Assim podemos continuar nosso combate político no interior e ligá-lo às lutas do exterior.14

Ao envolver a denúncia das condições prisionais, o segundo momento da tática maoísta, apesar de ainda submetido à reivindicação do reconhecimento do estatuto político das detenções, anunciava, a poucos dias de sua criação, a orientação prática do GIP. A divisão entre dois tipos de presos seria definitivamente suprimida, em benefício de uma unificação das lutas. Nesse aspecto, a greve de fome como tática não deixava de ser esclarecedora dos limites do discurso maoísta e sua potencialidade, cuja eficácia dependeria da construção estratégica de uma relação de poder que teria os corpos como alvo central. Ao se constituir como uma ameaça ao próprio corpo minuciosamente subjugado, a greve de fome inverteria o sentido dos mecanismos penitenciários de controle e repressão. A última declaração dos “presos políticos” antes do surgimento do GIP convocava os detentos do “direito comum” a entrarem na luta contra a burguesia e seus poderes, a canalizar sua “cólera” para que o “regime aviltante” das prisões, as “condições escandalosas de detenção” se tornassem de conhecimento do restante da sociedade:

Hoje, graças à greve de fome, todos esses escândalos vão explodir. De agora em diante, os presos não estão mais sós. No exterior, um amplo apoio se organiza (Secours Rouge15, em particular), decidido a derrubar o muro do silêncio e a fazer escutar em todo lugar a voz de sua revolta.

Direitos comuns, aproveitem esse movimento para entrar na luta. Democratas, intelectuais estão mobilizados. Ajudem-nos nessa campanha de denúncia nos enviando relatos detalhados da detenção (com lugar, datas, nome da prisão). Uma comissão de enquete sobre as prisões se constitui. Enviem-nos todas as informações para:

M. FOUCAULT 285 rue Vaugirard, Paris XVo.

Pelo seu combate, os presos políticos oferecem seu apoio aos detentos do direito comum.

Presos, famílias de presos, o Secours Rouge apoia vocês.

Camaradas dos detentos políticos.

(Groupe d’Information sur les Prisons, 2003c:42)

Tempo da rebelião dos corpos. Foi esse o contexto de emergência do GIP, coletivo militante similar a outras iniciativas de apoio aos detentos, todavia com a diferença de ter compreendido, desde a sua criação, a necessidade de se estender, para além da repressão aos grupos da esquerda extraparlamentar, a questão da opressão existente nas prisões, o que, na verdade, significava romper com a tradicional visão do marxismo, que compreendia os chamados “presos do direito comum” como representantes do Lumpenproletariat, indivíduos desviantes, reacionários e, portanto, contrarrevolucionários. Com a tese de que as prisões configurariam um espaço político de embates e repressão permanentes, o GIP se colocava à frente de uma radicalização do movimento de contestação (Groupe d’Information sur les Prisons, 2003b:28). Para garantir que esse posicionamento gerasse consequências práticas, foi preciso introduzir um instrumento, inexistente no dossiê de Esprit, cuja adoção transformaria completamente a recepção e a significação estratégica da veiculação social da fala dos presos. Técnica largamente utilizada pelos grupos e instituições marxistas, inspirada na tradição das investigações sobre as condições de trabalho e vida da classe operária16, a “enquete” foi incorporada ao GIP já durante as discussões sobre sua criação e imediatamente levada a cabo pelas suas primeiras ações, em março de 1971. Conhecidas como enquêtes-intolerance, os levantamentos de informações junto aos detentos eram clandestinos e contavam com o apoio de familiares, profissionais das prisões, advogados, os maoístas da Gauche Prolétarienne e militantes de outras correntes “gauchistas”. Os questionários assumiam a função de garantir um tipo de circulação que, de acordo com os propósitos do grupo, constituiria o “único meio para unificar, em uma mesma luta, o interior e o exterior da prisão.” (Groupe d’Information sur les Prisons, 2003a:53). Circulação não apenas de informações, mas também dramatização da relação social até então invisível porque cristalizada nos corpos dos detentos e produzida pelos processos de subjetivação mantidos a partir da segregação institucional de uma classe de indivíduos.

O GIP não qualificou sociologicamente a classe alvejada pelas prisões e tampouco se propôs a formular análises a respeito; deteve-se em pontuar as sedimentações de poder nos mecanismos institucionais, demarcando as dinâmicas de equilíbrio entre as forças. Por isso o detento manifestava uma experiência de classe através das formas de controle de sua individualidade. O sistema de justiça confessava, assim, sua natureza e finalidade. Mas novamente o GIP não se debruçou sobre esses problemas em busca de explicações ou interpretações, limitando-se a lançar luz sobre a materialidade de uma “opressão política”, aquilo que se tornou “intolerável” para alguns que são frequentemente convocados a perpetrá-la, os “intelectuais, técnicos, juristas, médicos, jornalistas”, reação crítica a ser disseminada para o restante da população e condizente com a necessidade estratégica de que “essas revoltas isoladas se transformem em saber comum e em prática coordenada.” (Groupe d’Information sur les Prisons, 2003d:52). O GIP retoma e revitaliza uma prática histórica do marxismo, mas assim o faz para trazer à tona uma “intolerância nova, não mais como aquela gestada pelas lutas proletárias do século XIX. Certamente, a tese da unidade das lutas até a sua superação com a irrupção da revolução estava longe de desaparecer como ideário mobilizador dos engajamentos gipeanos, ainda que o coletivo jamais tenha se pronunciado, seja para negá-lo, seja para manifestar sua adesão relativa. Os valores e disposições clássicas do marxismo influenciariam lateralmente o GIP, ora como contraponto, ora como obstáculo, que poderiam dar margem tanto a impulsos, quanto a contenções:

Os tribunais, as prisões, os hospitais, os hospitais psiquiátricos, a medicina do trabalho, as universidades, os organismos de imprensa e de informação: através de todas estas instituições e sob diferentes máscaras, uma opressão se exerce, que é, em sua raiz, uma opressão política.

Esta opressão, a classe explorada soube sempre reconhecer; ela jamais cessou de resistir; mas ela foi obrigada fortemente a sofrê-la. Ora, eis que ela se torna intolerável a novos segmentos sociais – intelectuais, técnicos, juristas, médicos, jornalistas etc. Ela pretende sempre se exercer através deles, com sua ajuda ou sua cumplicidade, mas sem considerar de agora em diante seus interesses, nem sobretudo sua ideologia. Aqueles que são encarregados de distribuir a justiça, a saúde, o saber, a informação começam a provar o que eles mesmos fazem, a opressão de um poder político. Essa intolerância nova vem ao encontro dos combates e das lutas tocadas desde longo tempo pelo proletariado. E juntas essas duas intolerâncias reencontram os instrumentos que o proletariado, no século XIX, havia formado: em primeiro lugar, as enquetes sobre a condição operária realizadas pelos próprios operários. Assim se situam as enquetes-intolerância que empregamos agora.

  1. Essas enquetes não são destinadas a melhorar, a docilizar, a tornar mais suportável um poder opressivo. Elas são destinadas a atacá-lo onde ele se exerce sob um outro nome – aquele da justiça, da técnica, do saber, da objetividade. Cada uma deve então ser um ato político.

  2. Elas visam alvos precisos, instituições que têm um nome e lugar, gestores, responsáveis, dirigentes – que também fazem vítimas e suscitam revoltas, mesmo entre aqueles que delas se encarregam. Cada uma deve ser então o primeiro episódio de uma luta.

  3. Elas reúnem junto a esses alvos os diversos segmentos que a classe dirigente tem mantido separados pelo jogo das hierarquias sociais e dos interesses econômicos divergentes. Elas devem fazer tombar essas barreiras indispensáveis ao poder, reunindo os presos, advogados e magistrados; ou ainda, médicos, pacientes e funcionários dos hospitais. Cada uma deve, em cada ponto estrategicamente importante, constituir um front, e um front de ataque.

  4. Essas enquetes são feitas não do exterior por um grupo de técnicos: aqueles que as realizam [enquêteurs] são, aqui, as enquetes elas mesmas. A eles que compete tomar a palavra, fazer cair a divisão, formular o que é intolerável e não mais tolerá-lo. A eles que compete assumir a luta que impedirá a opressão de se exercer.

(Groupe d’Information sur les Prisons, 2013d:17. Grifos no original)

A influência residual da imagem comunista adensava a compreensão da luta como espaço do “ato político”, mas, ao mesmo tempo, servia como tela de projeção de sua própria pulverização. A instrumentação estratégica da circulação pública da informação sobre as prisões preocupava-se com a eficácia da incitação subjetiva e não com a tomada de consciência; as “enquetes” não seriam tocadas para se “acumular conhecimentos”, e sim para aumentar a “intolerância e fazer dela uma intolerância ativa” (Groupe d’Information sur les Prisons, 2003d:52). Passagem da luta proletária para o mosaico de vários fronts, todavia ainda sob uma compreensão linear e com os resquícios do etapismo fixado nas mentes militantes pela ruminação marxista de longa data: primeiro a luta nas prisões, depois outras. Contudo, quais e com qual horizonte de emancipação? Novamente, o GIP não dará qualquer resposta ou explicação, sequer traçará a continuidade possível entre os combates; permanecerá na frequência da conjuntura política imediata; recusará o “reformismo” e silenciará a respeito de propostas e programas, afirmando a enquete como “arma eficaz contra a administração penitenciária”. (Groupe d’Information sur les Prisons, 2003a:53). Diferente do que fará Foucault, essa contundente negativa não será objeto de discurso. A economia da visibilidade impunha uma retidão calculada da fala dos militantes. Grandes nomes como Sartre eram convocados a emitir declarações à imprensa ou a distribuir panfletos na rua segundo o valor cênico de uma dramatização que dava papel ao engajamento dos intelectuais (Kagan, 2004). Eficaz técnica performativa. O “exterior” assim se solidarizava com o “interior” das prisões, a luta corporal dos detentos e sua existência indócil, sem personagens e roteiros. A submissão dos militantes do GIP à autolimitação do discurso era dedicada e consensual; o traço anti-intelectualista evidente e consentido. Havia nesse modo de funcionamento uma espécie de maoísmo vazio e emudecido, espoliado de sua fraseologia, mas investido da mesma verdade mobilizadora e integralmente refratária às abstrações do pensamento ilustrado. Outros coletivos militantes e dispositivos de engajamento já haviam assimilado e selecionado algumas qualidades da conduta maoísta, adotadas conforme os respectivos imperativos estratégicos17. Entretanto, nenhum foi tão longe quanto o GIP em depurá-lo a ponto de transformá-lo em uma mera realidade instrumental, de aplicação transitiva e estrategicamente formal. Daí a possibilidade da defesa do discurso no outro, da projeção pública da objetividade da opressão a partir de uma formulação despojada de conteúdo porque definida pela reação que era capaz de gerar, o “intolerável”. Antes de mais nada, o GIP configuraria uma racionalidade estratégica da incitação desse tipo de reação, inclusive entre os profissionais responsáveis pelas rotinas institucionais e seus mecanismos de controle opressivo. Desfiliada de suas determinações de classe e de suas origens proletárias, a luta pode ser postulada, agora, como um princípio geral, mas sempre sob a condição de discriminá-la segundo as exigências concretas da conjuntura política:

O primeiro alvo são as prisões. Por quê?

Desde maio de 68, o aparelho judiciário – instrumento relativamente silencioso e dócil até este momento – foi “sobreutilizado”: para reprimir os trabalhadores franceses e imigrados, para reprimir os estudantes, para reprimir os comerciantes e camponeses. Caminhões da C.R.S. [Compagnies Républicaines de Sécurité], incursões na rua, cassetetes e lacrimogêneos, vigias, abusos policiais, flagrantes delitos, detenções preventivas, julgamentos pela aparência [jugements à la tête] (isto é, pela classe, pela opinião política e pela cor da pele) dos clientes, tudo isso tornou a justiça de classe intolerável. Mas ela começa a não mais se apoiar sobre as instituições e os homens que ela própria escolheu. Muitos advogados, muitos juízes e empregados penitenciários não toleram mais o ofício que lhes fazem exercer. Há mais ainda; o poder de Estado não suporta mais seus próprios juízes: ele os declara frouxos.

(Groupe d’Information sur les Prisons, 2013b:18-19. Grifos do original)

O discurso gipeano sempre esteve adstrito aos limites determinados por sua esfera prática. Em razão da intensidade das polêmicas e da repressão governamental sobre a esquerda extraparlamentar, o contexto para o qual o GIP voltava suas táticas lhe impunha a necessidade da utilização calculada dos seus comunicados e declarações, da circulação de seu discurso. Ele manteve-se sob uma rígida restrição mesmo em meio à grande visibilidade alcançada por suas ações. Restrição, vale dizer, não do volume dos enunciados, mas dos efeitos de retorno sobre a enunciação militante. Daí o caráter autofágico de sua “espiritualidade política” (Foucault, 2001a:694), modalidade sacrificial em favor de outra classe social ou fração marginalizada politicamente, destino místico assumido pelo maoísmo francês, todavia realizado por um coletivo ideologicamente sem nenhuma identidade construída ou referida a qualquer uma das correntes do marxismo. A radicalidade envolvida nos propósitos manifestos e conscientes do GIP não poderia concorrer com suas consequências latentes e cuja reflexividade daria a marca de sua eficácia organizacional. A triagem foucaultiana dessa potência política tendeu inicialmente a transferi-la para o conteúdo de suas pesquisas e cursos. Entretanto, essa forma de assimilação foi gradativamente substituída por outra, mais fortemente mediada pela discursividade teórica, ela mesma credora do impulso da experiência militante. O sentido contraditório e, em muitos casos, contraproducente da posterior posição de Foucault em relação aos principais problemas levantados pelo GIP não deixa de ser revelador daquilo que estaria inscrito no chão de sua recusa em propor sugestões para a reforma do sistema prisional (Monod, 1997:77). A alegação de que participar da reforma implicaria concordar com os mecanismos que engendram cotidianamente a opressão sobre os detentos apontava, sem dúvida, para o horizonte da superação da “forma-prisão” (Foucault, 2014). Não teria sido justamente esse o paradoxo inaugurado pelo tipo de militância praticada no GIP? Foucault não tardaria a perceber a natureza ambígua dos efeitos da crítica gipeana sobre o seu pensamento. Seu julgamento vacilante entre a retificação e a reafirmação de suas premissas estratégicas passadas definirá, a partir de então, o estilo de seu trabalho e o tom de suas posições políticas.

A HIPÓTESE DA TOTALIZAÇÃO DO PODER E A INTERMITÊNCIA FOUCAULTIANA

A correspondência entre a teoria e a política tem largamente animado novas interpretações sobre o trabalho de Foucault, em especial os estudos que priorizam a localização dos momentos em que a coincidência entre obra e biografia poderia ser apreendida18. Mais do que propor uma unidade coesa ou conflitiva entre elas, essas interpretações têm trazido à discussão elementos importantes a respeito do posicionamento e interlocução foucaultinos junto à conjuntura cultural e política dos anos 1970. A propósito de sua experiência militante mais significativa, Foucault havia admitido em diversas ocasiões a influência decisiva do GIP sobre sua concepção “microfísica” do poder. Seu ponto de vista até então teria sido marcado pela negatividade da “forma da exclusão”, tal qual a consagrada em a História da loucura, em que o poder fora reconhecido como um “mecanismo essencialmente jurídico” (Foucault, 2001j:228-229). A passagem para uma perspectiva positiva e produtiva de poder teria sido um efeito de sua militância. A partir da experiência gipeana, o programa genealógico ganharia referência política e atualidade estratégica, antes de se tornar peça fundamental de um extravagante pensamento que se deteve nos arquivos para construir uma crítica do “presente histórico”. Por isso o GIP funcionaria como um “empreendimento de problematização”, cautério de hábitos e certezas fossilizados nas instituições (Foucault, 2001d:1507-1508). Haveria ainda duas outras funções do coletivo em relação à direção posteriormente assumida pelos trabalhos de Foucault. Ele teria revelado os limites intelectuais da “imaginação política”, agindo nos interstícios e agenciando um espaço a ser ocupado diretamente pelos detentos. Nenhum intelectual ou teoria poderia servir de sucedâneo às práticas e ao processo real de contestação no que tange à criação de horizontes para a ação, o que significaria, consequentemente, a completa ineficácia da representação política. Foi com esse entendimento que a autodissolução do GIP pôde resultar da bem-sucedida organização dos presos, cada vez mais presentes nos debates sobre a reforma do modelo penitenciário, após uma persistente sequência de rebeliões e um relativo reconhecimento social de seu saber (Zitouni, 2007:292-295). Essa tripla atribuição revela claramente a significação dada por Foucault ao GIP, consolidando um quadro referencial aberto a aproximações com o conjunto de sua obra, proporcionando, assim, a ampliação da ressonância dessa experiência militante no desenvolvimento de seu programa de pesquisa: “O que eu procuro analisar são as práticas, a lógica imanente à prática, as estratégias que sustentam a lógica dessas práticas e, por consequência, a maneira pela qual indivíduos, livremente, em suas lutas, em seus afrontamentos, em seus projetos, se constituem como sujeitos de suas práticas ou recusam, ao contrário, as práticas que lhes são propostas” (Foucault, 2001d:1512).

Sob essa modalidade de declinação do discurso, opera-se uma convergência entre elementos contextuais da ação gipeana e formas teóricas foucaultianas. Daí a possibilidade de se estabelecer uma identidade substantiva entre luta e história, entre estratégia e genealogia. Nela, a consciência e os interesses perdem sua centralidade usual, dispersando a coerência entre meios e fins como critério definidor da racionalidade de uma ação: o “poder se constrói e funciona a partir de poderes, de multitudes de questões e de efeitos de poder” (Foucault, 2001j:232). Ao comentar certas teses e propostas de reforma penal então em debate, entre as quais a participação popular na produção judiciária e medidas de atenuação punitiva por meio da expansão da responsabilização civil (maior aplicação de multas e outros recursos não penais de restituição do dano), Foucault forneceria, em uma de suas últimas entrevistas, as coordenadas para a compreensão do que Deleuze havia identificado como o “atual” e o “devir”, categorias próprias à análise da “modulação” do poder (Deleuze, 2003b:322-323):

Eu acredito que um determinado número de efeitos próprios à prisão, como o de desinserção em uma vida corriqueira, desarticulação do meio familiar ou do grupo ao meio do qual se vive, o fato de não mais trabalhar (...), em resumo, tudo isso que é diretamente ligado ao aprisionamento arrisca-se de não se reencontrar no caso de um outro sistema generalizado de punição tal qual a multa, ao menos nessa escala e com essa gravidade. Mas é preciso dizer que um sistema de multas mostrará um dia ou outro seus inconvenientes e que será preciso que a sociedade, naquele momento, faça novamente um esforço para repensar esse sistema penal. Nada é jamais estável. Desde quando se trata, no interior de uma sociedade, de uma instituição de poder, tudo é perigoso. O poder não é nem bom, nem mal em si mesmo. Ele é qualquer coisa de arriscado. Exercendo o poder, não é o mal que se toca, mas uma matéria perigosa, isto é, cujo abuso é sempre possível e pode ter consequências negativas mais ou menos graves. (Foucault, 2001d:1512-1513)

É verdade que a instabilidade das relações de força, condição necessária para o advento do pensamento estratégico das lutas e seu “devir”, configuraria a dimensão histórica e o valor agonístico das práticas de dominação, da qual partiria toda a agenda do programa de investigação genealógica. Mas a extração gipeana do poder não se resumiu a esse teorema geral do pensamento foucaultiano. Ainda que breve e jamais teorizada, houve a produção de um saber, que não se sobrepôs ao dos detentos e nem assumiu inteiramente o ponto de vista teórico da “microfísica” do poder. Saber próprio, deslocado para fora da visibilidade social incitada a partir de uma problematização sobre o sistema penitenciário e de justiça; de pouca memória, a despeito dos documentos e arquivos sobre o grupo, e de engajamento evanescente, embora intenso. Em suma, saber puramente instrumental, cujo processo de subjetivação era o do esgotamento de suas fontes axiológicas e de transferência completa de sua eficácia organizacional para a intervenção sobre as zonas de sedimentação política nas instituições, o que fez com que outros grupos militantes fossem criados com o mesmo espírito estratégico, mas sem que nenhum deles pudesse reproduzir o mesmo impacto e qualidade performativa. Isto porque o GIP constituía uma simbiose entre uma representação imaginária dos estratos da alta intelectualidade francesa e a atividade militante inventada pelo “gauchismo” soixante-huitard, uma relação fusional entre o âmbito existencial da política e a esfera conceitual da crítica. Não se tratava, portanto, de um anti-intelectualismo impulsionado por uma entrega incondicional ao que seria a essência das classes populares. O elipse do intelectual nas declarações gipeanas exprimia uma exigência para que a fala dos detentos pudesse ganhar repercussão. As enquêtes-intolerance cumpririam a função de imantar a objetividade do cárcere no discurso que se formava à medida das reiterações dos fatos relatados. Por essa razão é que o saber dos detentos se manifestava pela descrição de situações anódinas e frívolas, mas agudas e humilhantes ao se acumularem dia após dia, mês após mês, ano após ano (Groupe d’Information sur les Prisons, 2013b:61-62). Os relatos coletados conformavam uma teoria política própria, enunciada violentamente da superfície de todas falas das prisões, avaliando e expondo “as paixões que governam os oradores” (Zitouni, 2007:303)19.

A impostação discursiva dos detentos passava pelo corpo subjugado, recodificando as relações estabelecidas na prisão através da explicitação dos afetos e interesses, das dinâmicas negociadas e dos benefícios gerados pela economia punitiva. Embora o horizonte descortinado pelo GIP tenha enfatizado a escala microfísica do poder (Salle, 2004; Karlsen e Villadsen, 2014), a presunção de um continuum normativo entre as diversas instituições, da fábrica à escola, do hospital à prisão, tomadas como aparelhos repressivos de classe (Salle, 2004:12), expôs uma outra perspectiva, muito mais radical do que pôde propor a posterior genealogia foucaultiana das disciplinas. Há que se concordar, então, com a ideia de que as situações relatadas pelo GIP eram muito distintas do conjunto de características do panóptico benthamiano ou mesmo da morfologia disciplinar do poder consagrada por Foucault (Alford, 2000; Wech, 2011), o que desautorizaria completamente a vinculação direta entre o conhecimento das condições contemporâneas das prisões e a formulação conceitual de Vigiar e punir. A lembrança e referência ao discurso e saber dos detentos retraçam as vias de um entendimento talhado por uma gravitação mais próxima daquela professada pela teoria marxiana. Em outras palavras, a figuração gipeana impunha uma formalização do poder, mas de um modo paradoxalmente descritivo e testemunhal. Transcritos nos boletins e pequenas brochuras, os relatos e dados eram publicados e distribuídos pela impressa e com o apoio da rede de comunicação dos grupos “gauchistas”. Entretanto, a finalidade de cada enquete transbordava os limites do universo penitenciário ao lhe atribuir uma função de dominação de classe e ao ser “ela mesma uma luta” (Groupe d’Information sur les Prisons, 2003e:72). Razão última das atividades do GIP: “Definir: quem vai à prisão e segundo quais mecanismos de classe?” (Groupe d’Information sur les Prisons, 2003a:53-54). Por isso a coerência contida no mote implícito, difundido amplamente pelo grupo, de que a prisão possuiria um valor de paradigma (Groupe d’Information sur les Prisons, 2003e:72). Ainda que houvesse influência dos maoístas, os efeitos de significação teórica foram inesperados ao aproximarem-se das formas marxistas canônicas, em especial a da luta de classes. Nas prisões, as relações de força assumiriam um nível de concentração e assimetria a ponto de participarem de uma espécie de exercício de totalização do poder, passível de uma representação dicotômica da dominação de classe, similar à “justiça popular”20, um contrassenso ao que será em breve a teoria esquadrinhada pelo arcabouço conceitual da “governamentalidade”, mas que Foucault admitiria abertamente nos cursos de 1971-1972 (Théories et Institutions pénales) e 1972-1973 (La Société punitive).

Os episódios narrados pelos detentos carregavam as apreciações e análises de Foucault em direção às correntes caudalosas do imaginário da luta de classes. A intensificação do engajamento certamente não passava pelos dogmas e crenças marxistas. No entanto, o esquadro teórico das estratégias gipeanas era significativamente afetado pela conjuntura política da época, a despeito do seu discurso não se submeter à legitimação marxista dos agrupamentos da esquerda extraparlamentar. A defesa da natureza instrumental do GIP esvaziava a eficácia de todas ideologias de matriz revolucionária, desmobilizando-as em favor da conversão do testemunho prisional em realismo político, um procedimento orientado para “produzir novas condições de enunciação” (Deleuze, 2003a:260), cujo efeito teórico não poderia ser outro que o surgimento, em última instância, de uma problematização a respeito de uma ontologia do poder e suas modalidades históricas de exercício. A galvanização de um determinado estado de equilíbrio entre as relações de força manifestaria os processos e os espaços de sedimentação normativa que teriam determinado a possibilidade das lutas e estratégias no contexto da sociedade capitalista. O curso do biênio 1972-1973, que cobriu parte do período de atuação do GIP, refletia questões similares às vivenciadas pelo coletivo militante, em especial o forte acento marxiano com que era pronunciada a tese de que a função do sistema penal seria, desde o século XIX, de liberar “de todo entrave as condições de utilização da força de trabalho”, de maneira que fossem protegidas a materialidade do aparelho de produção e o vigor das forças de produção” (Foucault, 2013:179). Ao contrário do arcabouço conceitual mobilizado pela análise da “sociedade disciplinar”, a influência de Marx na abordagem de Foucault permitiu a proposição de um poder exercido com vistas à sua multiplicação, quase intransitiva, através dos corpos. Zonas nas quais o poder é mais concentrado, mais intenso (Idem:211), esses corpos encontram na prisão um dos seus espaços mais funcionais. A descontinuidade que caracteriza essa “reintensificação” e “reconcentração” do poder envolve, ainda segundo o argumento do curso, diferentes níveis de cristalização das relações de força e a distribuição igualmente diferenciada entre seus agentes. Por isso a hipótese de poderes disjuntos dos processos pelos quais eles próprios foram gestados. O penitenciário não seria uma mera extração da lei penal, assim como o poder que porta o diretor de uma prisão não representaria o poder do magistrado. A dominação de classe poderia estar na origem das prisões, contudo sua realidade não necessariamente lhe seria reflexiva, mediada que estava pela heterogeneidade das relações de poder que a atravessam e a configuram de acordo com um regime normativo próprio. Dessa perspectiva, a análise genealógica reconstituiria a formação histórica da racionalidade política contra a qual o GIP levantou resistência, questão alçada ao centro do pensamento foucaultiano a partir de Vigiar e punir, sendo melhor acabada em A Vontade de saber:

As resistências não se reduzem a uns poucos princípios heterogêneos; mas não é por isso que sejam ilusão, ou promessa necessariamente desrespeitada. Elas são o outro termo nas relações de poder; inscrevem-se nestas relações como interlocutor irredutível. Também não são, portanto, distribuídas de modo irregular: os pontos, os nós, os focos de resistência disseminam-se com mais ou menos densidade no tempo e no espaço, às vezes provocando o levante de grupos e indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos do corpo, certos momentos da vida, certos tipos de comportamento. Grandes rupturas radicais, divisões binárias e maciças? Às vezes. É mais comum, entretanto, serem pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e os remodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis. (Foucault, 1985:91-92)

“Regiões irredutíveis”, “estratégias anônimas, quase mudas” (Idem:91), certamente, mas cada vez mais focadas nas relações corporais. Sua objetivação mereceu a mesma preocupação por parte do GIP e os estudos subsequentes de Foucault, inclusive a significação estratégica de resistência através dos corpos, que encontrou seu momento mais dramático com a onda de suicídios nas prisões, desencadeada paralelamente ao crescimento da repressão após os levantes e rebeliões por direitos no início da década de 1970. Daí a derradeira investida do GIP sobre essa política que mimetizava o núcleo da eficácia dos dispositivos carcerários. Os suicídios estariam intimamente correlacionados à “vida da prisão”, expressando a “luta contra o sistema penitenciário”, sendo “parte da revolta nesses homens que não têm senão seus corpos para resistir e lutar” (Groupe d’Information sur les Prisons, 2013c:272). Todavia, é fundamental destacar a diferença entre a problematização gipeana da totalização do poder através das rotinas de sujeição nas instituições e a conceitualização foucaultiana das disciplinas. A linearidade e continuidade atribuídas por diversos estudos, em sua maioria respaldados por informações biográficas, entre a prática militante e o trabalho teórico de Foucault devem ser fortemente relativizadas. Como o saber dos detentos, o que poderia ser chamado de teoria gipeana foi resultado das práticas militantes do grupo e suas interações com o campo “gauchista” por meio da produção estratificada dos discursos e, consequentemente, pela ampliação e diversificação de sua circulação, fatores que, em conjunto, foram responsáveis pela mobilização de setores e segmentos do espectro social e político antes considerados como marginais ou pouco relevantes. A ressonância do GIP não incidiu diretamente sobre a obra foucaultiana e tampouco pôde ser traduzida conceitualmente por ela, ainda que existam comparações possíveis, preponderâncias temáticas comuns. Isto porque a teoria gipeana se definiu, antes de mais nada, como um saber militante sobre a dessubjetivação da ação política, ao passo que o discurso dos detentos, uma vez constituído, procurava manejar a realidade de uma subjetivação integral dos princípios normativos que regiam os mecanismos penitenciários, cuja face extrema seria o protesto suicida. Entre a dessubjetivação como saber e a subjetivação como discurso, o pensamento foucaultiano pôde transitar abstratamente, mediante seu regime híbrido de modulação prático-conceitual, pelas camadas de sedimentação das estratégicas e pela inventividade deslizante dos dispositivos de poder. Não sem motivo, essa atitude assumiu o tempo do arquivo e o espaço do confronto corporal como seus pressupostos epistemológicos, donde o esforço de Foucault em inventariar e alinhar, retrospectivamente, as noções dispersas e as categorias de significação ad hoc presentes em seus livros, a partir de um movimento claramente condicionado pela tentativa de bloquear a exegese filológica de seus textos e, sobretudo, para que sua teoria se transformasse em uma autêntica discursividade estratégica:

De fato, entre relação de poder e estratégia de luta, existe atração recíproca, encadeamento indefinido e inversão perpétua. A cada instante, a relação de poder pode tornar-se, e em certos pontos se torna, um confronto entre adversários. A cada instante também as relações de adversidade, numa sociedade, abrem espaço para o emprego de mecanismos de poder. Instabilidade, portanto, que faz com que os mesmos processos, os mesmos acontecimentos, as mesmas transformações possam ser decifrados tanto no interior de uma história das lutas quanto na história das relações e dos dispositivos de poder. Não serão nem os mesmos elementos significativos, nem os mesmos encadeamentos, nem os mesmos tipos de inteligibilidade que aparecerão, apesar de se referirem a um mesmo tecido histórico e apesar de que cada uma das duas análises deve remeter à outra. E é justamente a interferência das duas leituras que faz aparecer estes fenômenos fundamentais de “dominação” que a história apresenta em grande parte das sociedades humanas. A dominação é uma estrutura global de poder cujas ramificações e consequências podemos, às vezes, encontrar, até na trama mais tênue da sociedade; porém, e ao mesmo tempo, é uma situação estratégica mais ou menos adquirida e solidificada num conjunto histórico de longa data entre adversários. Pode perfeitamente acontecer que um fato de dominação seja apenas a transcrição de um dos mecanismos de poder de uma relação de confronto e de suas consequências (uma estrutura política derivada de uma invasão); também pode ocorrer que uma relação de luta entre dois adversários seja o efeito do desenvolvimento das relações de poder com os conflitos e as clivagens que ela encadeia. Porém, o que torna a dominação de um grupo, de uma casta ou de uma classe, e as resistências ou as revoltas às quais ela se opõe um fenômeno central na história das sociedades é o fato de manifestarem, numa forma global e maciça, na escala do corpo social inteiro, a integração das relações de poder com as relações estratégicas e seus efeitos de encadeamento recíproco. (Foucault, 1995:248-249)

Tais apreciações tardias, já ao final de um longo período de pesquisa sobre as relações de poder no registro genealógico do problema das subjetivações, revelam o esforço foucaultiano de localização estratégica do discurso teórico e desenham o arco de uma intenção política abrangente e, até então, constrangida pela centralidade dada a um historicismo defendido como crítico justamente porque anacrônico. Antifilosofia atirada à atualidade dos processos e modalidades de luta pelos quais o poder se cristaliza e desloca sua eficácia contra e através das resistências e liberdades, dando, assim, nova centralidade à figura de passado polêmico e avesso às correntes intelectuais que tomaram a cena cultural após os tempos áureos do existencialismo sartreano: o sujeito. Nesse momento de proposição retrospectiva, de intensa e contraditória inspiração nos seus últimos cursos e livros, o conjunto da obra foucaultiana se unifica sob uma mesma “problematização” a respeito da história dos “modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos” (Idem:231). Na sua derradeira modulação, a valência do pensamento ganha pronúncia etificante, passando a desalojar a radicalidade das lutas concretas e suas correspondências, forçadas e inscritas pelo movimento real das estratégias na textualidade do conceito crítico. O sujeito recupera, ainda que pelo avesso do lugar que lhe era delegado pela tradição iluminista, seus títulos e sua honra; recupera, sobretudo, a autonomia política que lhe fora subtraída desde a hegemonia estruturalista. Mas isso sem reformas ou arcaísmos e segundo a lógica de uma reversibilidade posicional com o poder. Agente no interior de uma concepção surpreendentemente entrópica, o sujeito toma combustão nas lutas e estratégias, contudo sua atualidade requer a garantia de um mundo objetivo, isto é, a esfera da repercussão das relações de força, dimensão mesma do “exercício do poder”, “maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações.” (Ibidem:243). Daí a importância da noção de “conduta”, vinculada ao “ato de conduzir os outros (...) e a maneira de se comportar num campo mais ou menos aberto de possibilidades”, e do conceito de “governo”, ato de “estruturar o eventual campo de ação dos outros.” (Ibidem:243-244).

A composição conceitual resultante, baseada em um certo pragmatismo ontológico, fez ressaltar ainda mais a pretensão foucaultiana de constituir uma teoria estratégica das estratégias (e não simplesmente uma teoria das estratégias) a partir de um distanciamento permanente de sua participação no GIP e seus efeitos de dessubjetivação política. Apesar de sua fisionomia histórica e regional, a luta se transforma em princípio ontológico e a liberdade, em seu postulado prático, o que explica a consequente generalização da “provocação permanente” e da “incitação recíproca” de um “agonismo” estendido para todos os tempos e lugares. Proposta durante o curso de 1976, a polarização como forma estratégia de uma matriz bélica historicamente identificada reduz-se, agora, a um “antagonismo essencial” (Ibidem:244-245), cujas propriedades também seriam atribuídas ao marxismo, mas não mais para incluí-lo em uma linhagem que remontaria à crítica aristocrática ao poder régio no final do século XVII e no XVIII. Uma década distante de sua militância gipeana, Foucault encontraria, nos modos de subjetivação das relações agonísticas de poder, uma resposta para as contradições às quais teria se exposto, causadas pelo persistente resíduo marxiano no estatuto genealógico conferido globalmente às práticas, discursos e saberes. E assim Foucault também exporia o seu legado aos riscos das modulações neoliberais dos espaços desregulamentados de ação (Ota, 2017), estimulados por uma concorrência igualmente não antagonista, intensamente relacional e de “incitação recíproca”. Atualidade teórica à mercê do pêndulo entre dois extremos políticos21, já profetizada nas entrelinhas do programa genealógico apresentado no primeiro volume da História da sexualidade. No mesmo ano em que Foucault incluiu o marxismo, lhe retirando sua prerrogativa estratégica, na matriz histórica do “discurso da guerra”, a racionalidade do poder passaria para o lado do conceito e a resistência, para o da possibilidade de uma constante reversibilidade posicional. Fim do efeito GIP sobre a problematização foucaultiana.

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  • 1
    . Todas as traduções são de minha autoria e responsabilidade. Um agradecimento especial a Mariana Raupp pela ajuda com os termos e jargões jurídicos contidos em alguns documentos citados.
  • 2
    . Para uma abrangente discussão sobre os modelos de intervenção política dos intelectuais franceses do pós-segunda guerra, cf. Sapiro (2009). A despeito de suas indiscutíveis virtudes, o texto de Sapiro capitula diante da força dessa matriz, chegando ao ponto de classificar o ativismo foucaultiano como representante do modelo do “intelectual específico”, uma leitura não apenas equivocada, mas também sintomática do consenso formado em torno dos sentidos que supostamente carregaria a militância do autor de Vigiar e punir.
  • 3
    . Segundo a precisa observação de Deleuze: ”Se Foucault, até o fim de sua vida, confere tanta importância às suas entrevistas, na França e mais ainda no estrangeiro, não é por gosto pela entrevista, é porque ele aí traçava essas linhas de atualização que exigiriam um outro modo de expressão que as linhas assimiláveis nos grandes livros. As entrevistas são diagnósticos. (...) A obra completa de Foucault, tal como a concebem Defert e Ewald, não pode separar os livros que marcaram a todos nós, e as entrevistas que nos preparam em direção a um futuro, a um devir: os estratos e as atualidades“. (Deleuze, 2003b:324-325)
  • 4
    . Em inúmeras oportunidades, Foucault reconheceu o valor estratégico das análises de Marx, inclusive diretamente para militantes marxistas, como na entrevista, não publicada em vida, dada ao grupo trotskista do jornal Rouge, em 1977: ”Eu não me sinto na obrigação de fidelidade. Mas quando você olha as análises concretas que faz Marx sobre o 1848, de Luís Bonaparte, a Comuna, mais nos textos históricos do que nos textos teóricos, eu acredito que ele desloca apropriadamente as análises de poder para o interior de qualquer coisa que é fundamentalmente a luta de classe e que ele não faz da luta de classe uma rivalidade pelo poder. A rivalidade pelo poder, ele a analisa no interior dos diferentes grupos precisamente. Nenhum dos grandes comentadores marxistas, apesar de tudo, apreciou Marx ao nível das análises concretas que ele fez da situação. Eles não o fizeram por mil razões, mas sobretudo porque Marx não cessou de fazer predições falsas, não parou de se equivocar de mês em mês. E ele produziu, no entanto, uma análise política e histórica que se pode assim mesmo considerar como verdadeira, pelo menos muito mais verdadeira que qualquer outra“. INSTITUT MÉMOIRES DE L’ÉDITION CONTEMPORAINE. Fonds Michel Foucault. FCL.82. Discussion avec la Ligue Communiste Révolutionnaire destinée au journal Rouge. A transcrição realizada por Christian Laval, um dos entrevistadores, nos serviu de referência para ajustes das notas tomadas no IMEC. Cf. https://questionmarx.typepad.fr/files/entretien-avec-michel-foucault-1.pdf. Sobre o contexto dessa entrevista, ver Laval (2004).
  • 5
    . Para uma fina e instigante análise do desenvolvimento foucaultiano da relação entre “luta”, “batalha” e “poder”, ver Chevallier (2004).
  • 6
    . Como faz Hoffman (2007:770-771), ao afirmar que o ativismo militante de Foucault teria determinado sua formulação sobre a “guerra de raças”, na mesma linha do que havia dito a biografia escrita por James Miller, para quem, por trás do aristocrata da época de Luís XIV, Henry de Boulainvilliers, analisado no curso de 1976, estaria a voz do autor de Vigiar e punir, uma verdadeira “ventriloquia intelectual”. Cf. Miller (1993).
  • 7
    . Conceito semelhante a esta noção foi proposto, na mesma época, por Deleuze e Guattari (1972). Para uma análise política e teórica de sua emergência na militância de Guattari, com impactos na obra de Foucault, ver Ota (2018).
  • 8
    . Sua experiência de ensino na Tunísia, em pleno maio francês de 68, fará Foucault lembrar e reconhecer a possibilidade do marxismo contemporâneo, nas suas vertentes terceiro-mundistas, mobilizar seus militantes em direção a esse limite extremo (Foucault, 2001c:898).
  • 9
    . Esta ideia pode ser observada no documento considerado como manifesto de fundação do GIP: ”Não nos cabe sugerir uma reforma. Nós queremos apenas fazer conhecer a realidade. E fazer conhecê-la imediatamente, quase dia a dia, já que o tempo urge. Trata-se de alertar a opinião e de tomá-la em alerta. Tentaremos utilizar todos os meios de informações cotidianas, periódicos, revistas mensais. Faremos, então, apelo a todas as tribunas possíveis“ (Foucault, 2003:44). Anos mais tarde, em 1977, Foucault manteria a mesma posição, tornando explícitas, contudo, a função política dessa recusa e a direção de sua conduta crítica: ”Minha posição é que não temos de propor. No momento em que “propomos”, propomos um vocabulário, uma ideologia, que só pode ter efeitos de dominação. O que é preciso apresentar são instrumentos e ferramentas que julgamos serem úteis. Constituindo grupos para tentar, precisamente, fazer essas análises, conduzir essas lutas, utilizando esses instrumentos ou outros, é assim, finalmente, que as possibilidades se abrem“ (Foucault, 2010:142).
  • 10
    . A noção de “intelectual específico” surgiu durante as atividades do GIP e sua origem pode ser localizada na pessoa da psiquiatra da prisão de Toul, Dra. Édith Rose, que manifestara suas críticas no depoimento dado ao inspetor geral da administração penitenciária após as rebeliões de dezembro de 1971, encaminhando-as também, sob a forma de relatório, para o Presidente da República. Foucault identificou no discurso de Rose a própria materialidade dos fatos denunciados, o que implicava sua especificação e, consequentemente, o reconhecimento da própria perspectiva a partir da qual ela se punha a emitir seu julgamento: “Ela não recorre às estruturas, à sua miséria. Ela diz: 'Tal dia, em tal lugar, eu estava ali e vi; a tal momento, alguém me disse... e eu o ouvi; eu fiz tal pedido; aqui está o que me foi respondido pelo diretor e eu presto um testemunho sob juramento'. Escute bem o tremor dessa voz que não hesita mais; é uma voz singular e que não havíamos jamais escutado nos arredores da prisão. Nossas instituições fingem protestar quando, do interior, criticam-nas; mas elas se acomodam. (...) o que elas não toleram é que alguém de repente lhes dê as costas e se coloque a gritar para o interior: 'Eis o que eu acabo de ver aqui, agora, eis o que se passa. Aqui está o acontecimento'” (Foucault, 2001f: 1105).
  • 11
    . Para uma leitura crítica do funcionamento dessa função performativa, ver Brich (2008).
  • 12
    . Cf. Loi no 70-480 du 8 juin 1970 tendant à réprimer certaines formes nouvelles de délinquance.
  • 13
    . BIBLIOTHÈQUE DE DOCUMENTATION INTERNATIONALE CONTEMPORAINE. Mémoire 68. Fonds Gauche Prolétarienne. F delta rés 576 5/5/1. Déclaration des emprisonnés politiques, Septembre 1970.
  • 14
    . BIBLIOTHÈQUE DE DOCUMENTATION INTERNATIONALE CONTEMPORAINE. Mémoire 68. Fonds Gauche Prolétarienne. F delta rés 576 5/5/1. Déclaration des prisonniers politiques. Janvier 1971.
  • 15
    . Sobre a história e o contexto de criação do Secours Rouge, cf. Etienne (2003).
  • 16
    . O modelo das enquetes operárias tem origem no trabalho proposto por Marx, em 1880, com o intuito de conhecer a “situação da classe operária na França”. Os resultados deveriam servir para uma “série de monografias especiais”, que seriam publicadas na Revue Socialiste. Cf. Marx (1982 [1880]:249-250).
  • 17
    . O exemplo mais simbólico talvez tenha sido o uso indireto e não declarado de inúmeros elementos do engajamento maoísta por parte da École Freudienne de Paris, instituição fundada e liderada por Jacques Lacan. Cf. Roudinesco (1986) e Ota (2016b).
  • 18
    . Como o conduzido por um dos mais notórios foucaultianos, Paul Veyne (2008).
  • 19
    . Nas reivindicações dos detentos de La Santé, fez-se conhecer, por exemplo, as paixões que condicionavam comportamentos e mecanismos específicos de sujeição, segundo as diferenças funcionais entre os agentes penitenciários (Groupe d’Information sur les Prisons, 2013a:239-240).
  • 20
    . Ao contrário do “sistema penal”, que divide a plebe em “proletária” e “não-proletária” para combater as sedições de massa, a “justiça popular”, lembrará Foucault, é binária e concreta, ela toma a experiência como perspectiva e, portanto, sua juridicidade não envolve nenhuma noção de “terceiro” isento, alocado em um “aparelho de Estado”, e nem suas sentenças postulam qualquer universalidade. Por isso a contradição intrínseca à própria concepção de um tribunal popular. Cf. Foucault (2001o:1214-1219).
  • 21
    . O que faz com que até mesmo a experiência do GIP venha sendo, recentemente, interpretada como parte dos dispositivos neoliberais. Cf. Winnubst (2016).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2015
  • Aceito
    29 Nov 2018
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