O Caso do Bacharelado Interdisciplinar da UFBA3
Apesar de a UFBA ter implementado protocolos para validação das autodeclarações raciais dos estudantes que se candidataram a ingresso nos cursos oferecidos pelo Sistema de Seleção Unificada (SISU), os mesmos não se aplicavam aos concluintes dos Bacharelados Interdisciplinares (BI) que se candidatavam aos cursos regulares tradicionais. A universidade introduziu procedimentos de validação nesse processo de seleção em 2021, depois de um escândalo de cotas e ampla mobilização estudantil. Joana, uma das protagonistas, foi entrevistada para esta pesquisa. Ela relatou ter sido vítima de fraude quando se candidatou a uma das vagas reservadas no curso de Medicina para estudantes negros provenientes de escola pública e de baixa renda. Apenas duas vagas haviam sido oferecidas e Joana ficou em terceiro lugar. Ela ficou muito desapontada e diz ter se sentido ainda pior quando identificou as duas estudantes que haviam conseguido ingressar no curso, pois, segundo ela, ambas eram brancas.
Indignada, mas sem saber o que fazer, Joana entrou em contato com conhecidos de sua irmã no movimento negro. Seguindo sua orientação, ela apresentou uma queixa formal à Ouvidoria da UFBA e, simultaneamente, buscou ajuda junto à Secretaria de Promoção de Igualdade Racial do Estado da Bahia (Sepromi).
Na Sepromi, ela foi colocada em contato com uma advogada do Coletivo de Advogados Negros e Negras da Bahia (Canneba), que a ajudou a redigir um recurso à universidade, demandando a instalação de uma “comissão de validação racial” para todos os candidatos, o que Joana considerava como o caminho legítimo e mais seguro para assegurar a vaga para cotistas. Em seguida, ela foi colocada em contato com um jornalista do jornal Correio da Bahia, a quem concedeu uma entrevista.
Dois dias depois, foi publicada a primeira reportagem sobre o caso intitulada “UFBA abre investigação para apurar suspeita de fraude em sistema de cotas”. A repercussão na comunidade universitária foi imediata. Joana recebeu mensagens acusatórias por parte das pessoas que haviam sido denunciadas. Contudo, isso também serviu para ampliar o movimento, pois outros estudantes se mobilizaram para investigar a admissão de egressos dos BI para outros cursos, como Direito, Engenharia, etc., o que levou à constituição de um dossiê contendo outras alegações de fraude que foi encaminhado à Defensoria Pública (DP), conforme aconselhado pelos advogados da Canneba.
Nesse ponto, a mobilização estudantil já tinha como propósito iniciar uma ação coletiva. Indo além do caso de Joana e das ocorrências daquele ano, o objetivo passou a ser obter da universidade um compromisso com a instalação de procedimentos rotineiros de validação da autodeclaração dos candidatos para aquele processo específico. Pouco depois disso, a DP entrou com uma ação coletiva contra a UFBA no Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª região. A assessoria de imprensa da DP divulgou a ação em seus canais na internet e foi procurada por jornalistas da principal rede de televisão do estado, interessados em entrevistar as estudantes. No dia seguinte, o jornal local da rede apresentou uma reportagem sobre o caso. Ao mesmo tempo, a ação coletiva foi transformada em ação civil pública.
Dois dias depois, o pró-reitor de graduação respondeu ao recurso de Joana protocolado na Ouvidoria, afirmando que “a UFBA realizará a aferição étnico-racial antes da matrícula dos aprovados na transição BI. De fato, menos de um mês depois da primeira denúncia realizada por Joana, a UFBA convocou os candidatos classificados no processo seletivo de egressos do BI em 2020 a se submeter a um procedimento de aferição da autodeclaração.
Após o processo, Joana conseguiu se matricular no curso de Medicina, pois as duas estudantes que tinham ficado à sua frente tiveram suas autodeclarações indeferidas. A partir daí, foi instituído um procedimento rotineiro de validação das autodeclarações.
O caso da Universidade Federal de Sergipe4
A demanda por validação da autodeclaração apresentadas por candidatos às vagas reservadas para estudantes pretos e pardos para ingresso na graduação na Universidade Federal de Sergipe (UFS) foi iniciada pelo Coletivo Negro Beatriz Nascimento da UFS (CNBN–UFS). Criado em 2018, o coletivo passou a organizar ações para acolhimento de ingressantes negros nesse mesmo ano. Segundo as entrevistadas, ao preparar o primeiro evento, os estudantes ficaram surpresos com o pequeno número de ingressantes que poderia ser reconhecido como negros, levando-os, segundo elas, a duvidar da eficiência do “controle de entrada dos cotistas”.
Entre o final de 2018 e início de 2019, o coletivo propôs à UFS o que chamou de “conversas institucionais” para tratar dessas preocupações. Na primeira conversa, que contou com a participação da vice-reitora e de pró-reitores, os estudantes sugeriram que a universidade implementasse procedimentos para validação da autodeclaração dos candidatos antes da matrícula. As autoridades universitárias concordaram, mas, depois de meses sem que alguma iniciativa fosse anunciada, a administração comunicou ao coletivo que seria impossível implementar os procedimentos, uma vez que a UFS cumpria a Lei de Cotas que previa apenas a autodeclaração.
Diante disso, após consultar alguns professores, o coletivo decidiu encaminhar uma denúncia ao Ministério Público Federal. Ao fazer isso, descobriu que o MPF já havia aberto um inquérito para investigar a questão. A denúncia do coletivo foi, então, anexada ao mesmo. Pouco tempo depois, representantes do órgão entraram em contato com o coletivo para discutir o caso e este, por sua vez, convidou outras entidades do movimento negro para participar das conversas. Essas organizações apoiavam a criação de protocolos de validação das autodeclarações e as reuniões tinham como objetivo juntar forças e formular argumentos para pressionar a universidade a adotá-los5. Em janeiro de 2020, foi firmado um Termo de Ajustamento de Conduta entre o Ministério Público e a universidade, assumindo esta o compromisso de implementar protocolos para validação das autodeclarações em todos os processos de ingresso por cotas, tanto na graduação, quanto na pós-graduação.
Apesar disso, em maio de 2020 o protocolo ainda não havia sido implantado, em parte devido à crise sanitária que havia tido início em março. Nessa época, um perfil criado no Twitter passou a denunciar nominalmente estudantes supostamente fraudadores, o que rapidamente encontrou eco na mídia. A partir daí, o debate sobre as fraudes saiu dos muros da universidade, criando um “escândalo social’’, nas palavras de Célia, uma das estudantes entrevistadas, o que fez a universidade retomar o assunto. Foi criado, então, um novo Grupo de Trabalho (GT) coordenado por um professor associado ao Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi). Em 3/2/2021, o Conselho Universitário publicou a Resolução no 5 criando e regulamentando a Comissão de Heteroidentificação complementar, procedimento que passava, assim, a se tornar rotineiro para ingressantes.