Open-access A Formação da Classe Média Rural: A Política de Colonização da Ditadura Empresarial-Militar*

The Making of Rural Middle Class: The Colonization Policy of the Corporate-Military Dictatorship

La Formation de la Classe Moyenne Rurale : La Politique de Colonisation de la Dictature Entreprise-Militaire

La Formación de la Clase Media Rural: La Política de Colonización de la Dictadura Militar-Empresarial

Resumo

A política de colonização interna no Brasil pós-Independência foi continuamente acionada e transformada ao longo dos séculos XIX e XX a fim de controlar populações insubmissas e territórios. A partir da análise bibliográfica e documental de um conjunto de projetos e experiências de colonização foi possível reconstruir o quadro interpretativo desta política, dando ênfase ao período da ditadura empresarial-militar e ao seu sentido de transformação do campesinato em classe média rural. Buscou-se identificar os principais elementos que constituem esse estrato, suas características e expectativas com base no conjunto de valores, interesses e pressupostos do complexo tecno-empresarial-militar a partir da política de colonização em sua formação. As continuidades e reconfigurações desta política nos permitem afirmar que colonizar é o verbo oculto do tratamento dado à questão agrária nacional.

questão agrária; política de colonização; reforma agrária; Ditadura Empresarial-Militar; classe média rural

Abstract

The internal colonization policy in post-Independence Brazil was continuously activated and transformed throughout the 19th and 20th centuries in order to control unsubmissive populations and territories. From the bibliographic and documentary analysis of a set of colonization projects and experiences, it was possible to reconstruct the interpretative framework of this policy, emphasizing the period of the corporate-military dictatorship and its meaning of transformation of the traditional peasantry into the rural middle class. We sought to identify the main elements that constitute this stratum, its characteristics and expectations based on the set of values, interests and assumptions of the techno-corporate-military complex, highlighting the role of the colonization policy in its formation. The continuities and reconfigurations of this policy allow us to state that talking about colonizing while it is the hidden verb of the treatment given to the national agrarian question.

agrarian question; colonization policy; agrarian reform; Corporate-Military Dictatorship; rural middle class

Résumé

La politique de colonisation interne au Brésil après l’Indépendance a été continuellement activée et transformée au cours des XIXe et XXe siècles afin de contrôler les populations insoumises et les territoires. À partir de l’analyse bibliographique et documentaire d’un ensemble de projets et d’expériences de colonisation, il a été possible de reconstruire le cadre interprétatif de cette politique, en mettant l’accent sur la période de la dictature entreprise-militaire et sur son sens de transformation des paysans en classe moyenne rurale. Nous avons cherché à identifier les principaux éléments constitutifs de cette couche sociale, ses caractéristiques et ses attentes en fonction de l’ensemble des valeurs, intérêts et présupposés du complexe techno-entreprise-militaire à partir de la politique de colonisation dans sa formation. Les continuités et reconfigurations de cette politique nous permettent d’affirmer que coloniser est le verbe caché dans le traitement de la question agraire nationale.

question agraire; politique de colonisation; réforme agraire; Dictature Entreprise-Militaire; classe moyenne rurale

Resumen

La política de colonización interna en el Brasil posterior a la independencia se activó y transformó continuamente a lo largo de los siglos XIX y XX con el fin de controlar a las poblaciones y territorios insumisos. A partir de un análisis bibliográfico y documental de una serie de proyectos y experiencias de colonización, fue posible reconstruir el marco interpretativo de esta política, haciendo hincapié en el periodo de la dictadura empresarial-militar y su transformación del campesinado en clase media rural. Se buscó identificar los principales elementos que componen este estrato, sus características y expectativas, con base en el conjunto de valores, intereses y supuestos del complejo tecno-empresarial-militar desde la política de colonización en su formación. Las continuidades y reconfiguraciones de esta política nos permiten afirmar que la colonización es el verbo oculto en el tratamiento de la cuestión agraria nacional.

cuestión agraria; política de colonización; reforma agraria; Dictadura Empresarial-Militar; clase media rural

Introdução

O foco deste artigo é a política de colonização da ditadura empresarial-militar (1964-1985)1, apreendendo sobretudo a década de 1960. Essa política foi impulsionada após a criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)2, a fim de orientar processos de ocupação territorial, fixação de populações e produção agropecuária tanto para o abastecimento de mercados locais já existentes quanto para a formação de mercados potenciais, bem como a criação de novas cidades, expandindo a malha administrativa do Estado. A literatura acadêmica deu destaque para o papel dessa política na expansão da fronteira agrícola na Amazônia Legal durante os anos 1970 e 1980, destacando ainda, via colonização pública e privada, a expansão da grilagem como método de expropriação e composição territorial que violou inúmeros direitos de populações indígenas, tradicionais, camponesas e periféricas (Ianni, 1979; Santos, 1993; Oliveira, 2016; Prieto, 2020). Contudo, ainda no início dos anos 1960 podemos apreender as principais preocupações que orientaram a formulação da política de colonização desse período, identificando alguns de seus principais sentidos que articularam essa forma de intervenção estatal (Brito, 2022a).

Apesar das discussões e mobilizações sociais que orientaram o debate sobre a questão agrária no pré-1964 se voltarem para as possibilidades e definições da reforma agrária (Camargo, 2007; Medeiros, 1983), a colonização foi efetivamente o principal instrumento de resolução e intervenção estatal adotado. Se sua intenção oficial era servir ao desenvolvimento econômico e social do campo, seu funcionamento se deu de modo a evitar a resolução das desigualdades sociais no Brasil, profundamente marcadas pelo monopólio e acesso desigual à terra. Esta política, portanto, deve ser inserida nas discussões e alternativas colocadas à questão agrária, tomada enquanto problema público que demanda solução técnica e política. A questão agrária é aqui entendida como interpretação e apreensão de “problemas” que envolvem o uso, a posse, a propriedade e a ocupação da terra e suas múltiplas formas de realização, exploração e expropriação do trabalho. Além da constituição de problemas que serão tornados públicos, ela também envolve o estabelecimento de prerrogativas, práticas e “soluções” que se tornam normas, legislações, medidas administrativas, expectativas coletivas e valores. A questão agrária é, portanto, tensionada por projetos políticos e de classe distintos que disputam a interpretação da realidade social e estabelecem mecanismos que buscam lhe dar resolução.

Dentre os objetivos da política de colonização a serem discutidos, darei destaque ao seu sentido “civilizatório”, orientado para a transformação dos homens e mulheres do campo em pequenos proprietários de terra, identificados como classe média com mentalidade empresarial. “Civilizar” é entendido como processo de alteração dos comportamentos, das relações sociais e das percepções dos indivíduos e dos grupos que integram ou são integrados pela expansão das redes de interdependência e que articula a negação do outro, realizando-se de diversas formas: coerção física centralizada no Estado moderno, fortalecido pela sua expansão territorial; monopólio dos tributos e administração centralizada de seus gastos; construção e inculcação de formas de se comportar, pensar e sentir a partir da educação formal e informal, tomadas como legítimas e “boas” pelos grupos de maior poder, implicando uma percepção que rebaixa os grupos sujeitos à necessidade de serem civilizados (Elias, 1993). Ao analisar a constituição da classe média de perfil empresarial a partir de formas específicas de intervenção estatal no campo é possível apreender a política de colonização em suas relações com os debates e proposições políticas nacionais e internacionais dos anos 1950 e 1960. Esses debates foram orientados para a superação do “atraso” através do desenvolvimento econômico, entendido não só enquanto ampliação das relações de mercado, como também transformação subjetiva das populações-alvo a fim de evitar formas mais radicais de organização e alteração da sociedade, sobretudo após a Revolução Cubana de 1959 (Escobar, 2007; Natividade, 2018). Conforme destacado mais à frente, a transformação subjetiva das populações rurais passou pela constituição de diferentes formas de assistência, tais como técnica, financeira, sanitária, habitacional e educacional. Buscava-se, desse modo, civilizar populações consideradas como atrasadas através da ação de técnicos extensionistas, do contato com estrangeiros e da inculcação de modelos empresariais de organização da produção.

O artigo está dividido em quatro seções. A primeira trata da política de colonização do período pós-Independência e seu lugar privilegiado como forma de intervenção na questão agrária nacional, abarcando os séculos XIX e XX, a fim de reconstruir um quadro de longa duração que possibilite sintetizar seus principais sentidos a serem apreendidos na ditadura. Na segunda seção o foco recai na concepção de técnicos administrativos e diferentes institutos estatais e de planejamento para a intervenção no campo durante a ditadura empresarial-militar, identificando seus sentidos de realização, sobretudo na formação de um agente para o campo dotado de subjetividade e racionalidade empresarial. Ainda nesta seção são analisados os projetos de colonização de Alexandre de Gusmão, na Área Prioritária de Brasília e o de Caxangá, na Área Prioritária do Nordeste, além de algumas considerações sobre o de Papucaia, na Área Prioritária do Rio de Janeiro. Conforme sinalizado, esses projetos foram considerados como as principais ações do Ibra e buscaram seguir os critérios estabelecidos no ET, legislação responsável pelas normativas dadas às políticas de colonização, reforma agrária e desenvolvimento agrícola do regime militar. A investigação das fontes se voltou para a intencionalidade de sua produção, bem como para as suposições e atributos implícitos inscritos a fim de apreender seus contextos e as distintas experiências e formas do ser social que podem ser percebidas no documento e nos eventos analisados (Ginzburg, 1989; Thompson, 2021). Desse modo, o tratamento da documentação buscou identificar termos, conceitos e interpretações que se inserem em práticas e disputas por formas de ver e dar significado ao mundo social entre diferentes grupos, reconstituindo um quadro interpretativo mais amplo sobre as formas de intervenção na questão agrária e projetos de desenvolvimento.

Na terceira seção são discutidas as concepções teóricas e os pressupostos básicos do modelo de intervenção da política de colonização nos anos 1960, identificando a defesa da propriedade privada como elemento transformador das relações do campo e garantia de desenvolvimento econômico e social. Pode-se, então, estabelecer um balanço sobre o significado da classe média rural para o complexo tecno-empresarial-militar. Como identificado mais à frente, o termo é trabalhado a partir da caracterização que Dreifuss (1981) faz para o golpe e o regime iniciados em 1964. Além de identificar o período como “empresarial-militar”, esse autor também sinalizou para a articulação entre técnicos, burocratas, planejadores, engenheiros, intelectuais, empresários, militares e seus diferentes mediadores políticos, religiosos e de classe na composição e planejamento do golpe e suas principais reformas. Identificamos, assim o conjunto de atores que se fizeram Estado e implementaram programas econômicos, sociais e políticos que lhes beneficiassem e que organizassem a sociedade brasileira em determinado sentido. Ao final do artigo são feitas algumas considerações sobre as formas sutis de violência promovidas pela ditadura e que compõem a experiência de classe do campesinato atual. Esse conjunto de vivências passa pelas diferentes configurações da colonização ao longo do tempo, inclusive suas possíveis atualidades e reverberações em formas contemporâneas de intervenção e valorização do perfil empresarial.

A política de colonização oficial pós-Independência e a questão agrária

Ainda no século XIX, com a chegada da Família Real ao Brasil, a política de colonização passa a ser constituída como uma forma de intervenção estatal orientada para o controle de fluxos migratórios, fixação de populações em áreas de importância geopolítica e de segurança nacional e constituição de pequenos produtores, assentados em pequenas propriedades de terra e com produção para o mercado interno (Brito, 2022a). Mantendo-se o padrão desigual de controle, uso e apropriação da terra, apreendido como elemento de configuração e organização social, econômico e político, observa-se que a política de colonização empreendida nos mais diversos contextos históricos, geográficos e institucionais dos séculos XIX e XX multiplicaram suas tendências e sentidos ao voltar-se para a ocupação e controle territorial interno. Conforme indicado por Luxemburg (1985), a colonização é um violento processo de conquista de terras e populações que busca, através de mecanismos cada vez mais militarizados, desestruturar as formas coletivas de organização e produção, expropriando-as e tornando-as passíveis de exploração através do mercado de trabalho e constituindo a separação entre os produtores e seus meios de produção e organização. Pode-se identificar, a partir do século XIX, uma interiorização da política de colonização que refrata o seu sentido externo, apontado por Prado Jr. (2011) e Novais (1989) enquanto a satisfação das necessidades dos mercados internacionais por mercadorias primárias, imprimindo um padrão de concentração e monopólio da propriedade e da riqueza gerada, de controle administrativo e político, de exploração da mão de obra e de formação de uma pequena produção voltada para o abastecimento interno de mercados locais.

A política de colonização expandiu o controle estatal sobre o território e as populações de modo a centralizar a administração e ampliar as formas de dominação e expropriação. Trata-se de uma política na qual podem ser identificados elementos do colonialismo interno analisado por González Casanova (2007) e Cusicanqui (2010, 2021). Há um saber estatal de conquista e controle de territórios e populações que se identifica com a constituição do nacional e que reconfigura a estratificação interna da nova sociedade nacional através da persistência de estruturas coloniais de longa duração que fizeram da heterogeneidade étnica um fator de desigualdade e exploração. Estes elementos podem ser identificados nas primeiras experiências com trabalhadores rurais e artesãos europeus e suas famílias a fim de torná-los pequenos proprietários que produzem para o abastecimento do mercado interno em expansão, mas que também buscaram orientar fluxos migratórios para regiões de interesse geopolítico e/ou para a substituição da mão de obra negra escravizada pelo trabalho livre de famílias europeias, buscando também “civilizar” a população local via contato com trabalhadores europeus e embranquecer a população (Martins, 1973, 2018; Costa, 1989; Seyferth, 2002; Ramos, 2006).

Após a Lei de Terras de 1850, esta política recebe novos estímulos para estabelecer um fluxo migratório entre trabalhadores rurais europeus e as áreas cafeicultoras (Martins, 2018). A perspectiva de tornar a terra equivalente de mercadoria e condicionar o seu acesso ao colono mediante pagamento monetário esteve na base das políticas de colonização que se orientaram para a constituição de produtores familiares, fixados em pequenas propriedades e voltados para a produção complementar à da grande propriedade. Diferentes experiências sinalizam para formas de endividamento e dominação, além de abandono estatal e dificuldades de reprodução social e material nos pequenos lotes de terra, fazendo da migração contínua e das múltiplas formas de combinação entre trabalho pago e pequena produção características do campesinato formado por pequenos produtores através da política de colonização (Santos, 1993; Seyferth, 2009; Martins, 2018; Brito, 2022a).

A regularização das posses3 e a consolidação da grilagem na segunda metade do século XIX acentuam a concentração fundiária (Silva, 1996), sendo a política de colonização apresentada enquanto mecanismo capaz de contornar alguns desses efeitos negativos em meio às tensões sociais vividas no início do século XX. As guerras populares no interior do Brasil, tais como Canudos (1896-1897) e Contestado (1912-1916), as greves de 1917, o movimento tenentista, o crescimento das ideias e organizações anarquistas e comunistas, as crises de abastecimento e a ascensão de Getúlio Vargas dão novo conteúdo à política de colonização (Brito, 2022a). A partir de então essa política passa a privilegiar a presença de trabalhadores nacionais, buscando não apenas reorientar os processos de migração dos grandes centros para as regiões Centro-Oeste e Norte, como também diminuir conflitos sociais, produzir alimentos para os centros urbanos e industriais em expansão e ocupar regiões de fronteira (Lenharo, 1986).

Além do sentido civilizatório e de formação de um campesinato com base no modelo familiar cuja produção se volta para o abastecimento interno, orientações que se aproximam cada vez mais da classe média rural, já há aqui outro sentido importante a ser retido: a política de colonização tem significado selecionar e fixar famílias em áreas rurais determinadas, sobretudo em terras públicas, a fim de ampliar o povoamento em áreas específicas e/ou ampliar a produção de alimentos para o consumo interno, constituindo não apenas novos territórios como novos atores sociais. Trata-se, portanto, de uma forma de intervenção pontual e não estrutural acionada em situações de conflito, buscando reduzir as tensões que se avolumam ao longo do século XX em todas as regiões do país, retirando o trabalhador nacional das áreas de conflito e valorização fundiária e realocando-o em áreas menos valorizadas.

Os mecanismos do colonialismo interno são aqui reforçados, reatualizando estruturas coloniais de dominação e organização da sociedade em novos momentos históricos e orientados para a constituição do território e da população nacionais. É preciso sinalizar que a opção por trabalhadores nacionais não deixou de conter pressupostos racistas (Seyferth, 2002), consolidando no imaginário político o mito do colono associado às experiências de colonização no Sul e, ao longo dos anos 1970, a partir da identidade do “gaúcho”. Para Abreu (2015), esse seria o modelo ou o ideal de colono, pressupondo sua descendência europeia e que se perpetua no ideal de parceleiro do regime militar: o colono “gaúcho” ou “do Sul”, civilizado, pioneiro e bem-sucedido, integrado ao mercado e às práticas modernas de produção e de uso racional e lucrativo da terra. O “gaúcho” é contraposto ao migrante “nordestino” ou “nortista”, tomado como pouco afeito à ética do trabalho, atrasado, indisciplinado e sem pensamento prospectivo. Essa contraposição, se nem sempre se fundamenta em contornos raciais explícitos, contém distinções e hierarquizações étnicas e regionais que se baseiam na qualificação do nordestino como negro ou mestiço e das gerações de colonos desde a imigração da Europa para o Brasil. Conforme Cusicanqui (2021), a contínua vivência de uma situação de colonialismo interno é marcada por diferentes formas de internalização dos valores dos grupos dominantes, desestruturando e alterando modos de vida e percepções de si. A contraposição racial e étnica se encontra no cotidiano administrativo, na alocação de recursos, na maior presença de empresas colonizadoras do Sul, nas discriminações cotidianas e no próprio racismo estrutural e seus discursos que ao longo do século XX silenciaram sobre a subjugação política, econômica e cultural das populações negras no Brasil.

Segundo Arezzo (1982), a primeira definição legal de “colonização” se encontra no Decreto-Lei no 7.967, de 27 de agosto de 19454. Segundo este decreto, que dispõe sobre a imigração e a colonização, “Colonizar é promover a fixação do elemento humano ao solo, o aproveitamento econômico da região e a elevação do nível de vida, saúde, instrução e preparo técnico dos habitantes das zonas rurais” (Art. 46), podendo ser realizada “pelo povoamento de áreas baldias ou de fraca densidade demográfica” ou “pela divisão de terrenos rurais em lotes para venda ou doação e a concessão, entre outras, de facilidades para aquisição de terras ou benfeitorias” (Art. 48, Incisos 1 e 2). Neste decreto a ênfase da colonização recai sobre a “fixação” do homem à terra, tomada enquanto elemento necessário para o aproveitamento econômico das áreas rurais mais afastadas ou de baixa densidade demográfica5. O decreto de 1945 encontra-se em consonância com as preocupações referentes à população nacional observada em legislações anteriores, contudo parece ser o primeiro a definir legalmente o ato de colonizar (Brito, 2022a:87).

A principal preocupação era definir o espaço onde se realizaria a colonização, indicando a preocupação com a intervenção no meio, apontando para um padrão de governamentalidade que busca controlar as formas de ação e relação de grupos sociais específicos (Foucault, 2008). Ainda em relação a esse padrão, a colonização é um meio de controle e conformação populacional que busca, pela reorientação de fluxos migratórios, pela seleção e fixação de famílias com determinado perfil étnico e social e pelas formas de assistência e repressão compor determinado quadro demográfico como modelo ideal e típico a ser constituído. A preocupação com a população permite apreender essa política dentro de um enquadramento mais amplo de formas de interpretação e intervenção que abarca as principais questões das Economias Política e Neoclássica ao longo dos séculos XIX e XX, como será indicado mais adiante (Escobar, 2007; Foucault, 2008; Marx, 2011).

O período da década de 1950 é marcado pelo acirramento dos conflitos fundiários devido à continuidade e aprofundamento da grilagem, à valorização especulativa da terra, à modernização da agricultura e à formação de organizações coletivas de diversas expressões do campesinato que se constituíram na luta pela terra e pelos direitos trabalhistas (Medeiros, 1995). Nesta década e no período ditatorial a política de colonização é apresentada como solução técnica, forma racional de atuação e intervenção do Estado capaz de regular os conflitos, modernizar e aumentar a produção de alimentos e melhorar a qualidade de vida das populações urbana e rural. Conforme Escobar (2007), esse período histórico é marcado, em toda a América Latina, pela institucionalização do discurso de desenvolvimento. Neste discurso, influenciado pelas teorias da modernização e pela Economia Neoclássica, o uso de formas de planejamento para intervir sobre as populações e nações pobres seria o mecanismo essencial de progresso econômico. No centro dessa concepção estão elementos etnocêntricos e racistas de inferiorização das populações a serem assistidas por programas internacionais e/ou pelas intervenções estatais, além de negligência em relação às populações indígenas cujos territórios constituíam-se nas áreas em que os projetos de colonização aconteceram. A necessidade de planejamento e de maior racionalização das ações públicas foi central nos governos brasileiros dos anos 1950 e 1960, influenciando na constituição da linguagem, dos objetivos e das formas de ação do Estado (Dreifuss, 1981).

Conforme aponta Medeiros (2018), surgem no debate público diversas propostas de intervenção estatal no campo. Com as pressões por reforma agrária, entre 1959 e 1964 diferentes governos estaduais buscaram soluções de colonização em um momento de acirramento de conflitos e debates sobre a reforma agrária, podendo-se citar o Plano de Colonização e Aproveitamento de Terras Devolutas, do governo Roberto Silveira (RJ), em 1959; o Plano de Revisão Agrária, do governo Carvalho Pinto (SP), em 1961; a criação da Companhia de Revenda e Colonização em 1959, do governo Cid Sampaio (PE); o Instituto Gaúcho de Reforma Agrária criado em 1961 no governo Leonel Brizola (RS)6.

Estas diferentes práticas de intervenção vivenciaram processos de acirramento de conflitos, marcados por novos cercamentos de terras através do despejo e da grilagem promovidas por grandes proprietários e pela capilarização de múltiplas formas de resistência e organização (Medeiros, 1995, 2018; Brito, 2022a). Estas propostas de intervenção na estrutura fundiária buscavam responder às correlações de força locais e às demandas por distribuição de terras, disputando os sentidos de colonização e reforma agrária em um período de intenso debate sobre essas ações e de mobilizações coletivas que pressionavam na direção de reformas estruturais. As ações desses governos estaduais significaram “fundamentalmente a proposta de uso de terras devolutas e o desejo de intervenções pontuais” (Medeiros, 2018:67), estabelecendo um limite à ação e às demandas das organizações envolvidas com as lutas no campo, indicando um padrão de resposta e intervenção estatal que se aproxima da lógica da colonização. Além disso, deve-se atentar para a preocupação em formar uma camada média de proprietários rurais integrados aos mercados locais e com capacidade de gerenciar sua propriedade e produção familiares de forma planejada e racional, entendendo por estes adjetivos não só a habilidade de auferir lucros como a identificação com os valores da modernização. Essa preocupação, conforme será aprofundado a seguir, sintetiza o objetivo dado à colonização e à reforma agrária empreendidas pela ditadura empresarial-militar.

Entre a instituição total e a comunidade: formando a classe média rural

A produção acadêmica sobre o tema da política de colonização deu atenção à colonização das regiões Norte e Centro-Oeste, tanto no período da Marcha para Oeste dos anos 1930 e 1940 quanto na colonização da Amazônia Legal empreendida nos anos 1970. Minha análise pretende apreender as motivações e o enquadramento desta política ainda no início do governo militar, entendendo que o regime estava especialmente interessado em desfazer as ocupações e os movimentos camponeses do Nordeste e dos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo e entorno de Brasília, áreas definidas como prioritárias para a realização de reforma agrária no Decreto no 59.456, de 1966 (Brasil, 2007a:359). Ainda em 1964, Paulo de Assis Ribeiro7 estabeleceu em texto para a imprensa que estas áreas seriam alvo de reforma agrária por estarem marcadas com “forte pressão demográfica” e “focos de insatisfação social”8.

O golpe de 1964 interrompeu o processo de pressão e radicalização pela reforma agrária, identificada pelos movimentos camponeses como alternativa possível para a alteração da estrutura fundiária (Medeiros, 2014). Ainda em 1964, a ditadura empresarial-militar estabeleceu pelo ET uma política de reforma agrária que assegurava a desapropriação de terras em caso de conflito e interesse coletivo. Contudo, conforme Martins (1984), a recorrência da violência contra as organizações sindicais e camponesas e a relação entre empresários e militares bloqueou a presença ativa dos grupos camponeses e seus mediadores nos processos de decisão política, participação na administração das terras e resolução dos conflitos.

O ET é a lei que normatizou as formas de uso e apropriação da terra e estabeleceu as diretrizes referentes ao desenvolvimento rural, à colonização e à reforma agrária, aprovada em 1964 pelo governo militar9. Segundo Bruno (1995), o ET foi elaborado pelo Grupo de Trabalho sobre o Estatuto da Terra (Gret), responsável pelo estudo e apresentação dos fundamentos e princípios gerais da lei de reforma agrária. Estiveram presentes no Gret atores que representam os grupos sociais envolvidos no golpe: o grupo reformista do Ipes, coordenado por Paulo de Assis Ribeiro; os remanescentes da experiência paulista de Revisão Agrária, em especial José Gomes da Silva; representantes técnicos e políticos dos principais ministérios; o ministro Roberto Campos; a tutela do general Golbery do Couto e Silva, já então chefe do Serviço Nacional de Informação (SNI); e o acompanhamento do então presidente Castelo Branco. A composição deste grupo também permite apreender a configuração social daqueles que empreenderam a mudança de regime em 1964 e o termo “ditadura tecno-empresarial-militar” proposto por Dreifuss (1981), o que possibilita dar maior realce aos elementos técnicos e de engenharia social impulsionadores da política agrária e realça o caráter de classe do golpe e dos interesses sociais a ele ligados.

No que se refere à questão agrária, a ditadura atuou em duas frentes. De um lado, a política agrícola foi orientada para a modernização do aparato produtivo, facilitação do financiamento creditício e difusão de práticas tidas como modernas via serviços de assistência e extensão, respondendo às demandas das elites rurais e possibilitando a elas retirarem do latifúndio o estigma de improdutivo e atrasado (Medeiros, 1983; Delgado, 2010). No que se refere aos problemas estruturais de acesso à terra, o mecanismo privilegiado de intervenção foi a colonização, e não a reforma agrária. Segundo Ianni (1979:77; 79), a política de colonização do regime militar “tinha por objetivo distribuir alguma terra para não distribuir as terras”, dando sua “conotação de uma contrarreforma agrária”. Esta análise é reveladora do quanto a não alteração da estrutura fundiária é central no tratamento dado à questão agrária. Contudo, classificar a colonização como negação da reforma agrária não permite apreender aquilo que ela pretendeu realizar: transformar o homem do campo atrasado em um pequeno agricultor familiar, dotado de mentalidade empresarial por meio de migrações e fixação no campo e das assistências financeira, técnica, educacional e sanitária.

A colonização não exige alterações institucionais profundas, sendo possível apreender o colonizar como verbo oculto10 do tratamento dado à questão agrária brasileira e a colonização como fio condutor de um período de longa duração, indicando que seu modo de atuação e interpretação estão contidos ou influenciam a política de reforma agrária. A interpretação de um verbo oculto pretende apreender o conjunto de orientações institucionais e práticas de Estado que conduzem resoluções e normativas à questão agrária nacional, entendendo o colonizar enquanto princípio organizador da questão agrária. Colonizar é sobretudo estabelecer a conquista e o controle sobre as populações e os territórios almejados e, deste modo, se vincula a outras políticas que buscam estabelecer a tutela de populações tomadas como incapazes de se autogovernar e seus territórios a serem administrados por dispositivos estatais, extrapolando, inclusive, a delimitação de áreas rurais (Souza Lima, 2002). Trata-se, portanto, de uma característica ampla e não exclusiva apenas à questão agrária, de modo que é preciso apreendê-la dentro do enquadramento estatal brasileiro (Brito, 2022a).

Para Paulo de Assis Ribeiro, a colonização deve ser pensada e realizada de modo a “propiciar os meios a uma fixação definitiva do homem ao solo, tornando-o economicamente uma força social produtiva (...), visando em última análise, tornar o ‘colono’ autossuficiente após determinados anos de esclarecida orientação técnica e auxílio financeiro” e solucionar “sérios problemas sociais” decorrentes do povoamento sem planejamento11. Ao sinalizar a importância de um povoamento racional e marcado pela tutela do “colono”, posteriormente denominado de “parceleiro” pelo ET12, Ribeiro articula a transformação do indivíduo dependente em agricultor autossuficiente a partir de orientação técnica e auxílio financeiro. Ainda que já seja possível apreender um caráter civilizatório dado à colonização, em texto posterior Ribeiro realçou essa dimensão, vinculando a reforma agrária e a colonização ao “desenvolvimento da comunidade” através do estímulo à formação de associações econômicas, sociais e culturais, estimulando o homem do campo a tomar decisões e amadurecer sua consciência política, evitando a entrada de ideologias subversivas que estimulassem a luta de classes e o socialismo13. Por esses meios, a colonização “é peça importante de uma reforma agrária democrática”, pois visa “precisamente à criação de uma classe média rural”, constituindo-se em “implantação do maior número possível de agricultores e de suas famílias numa região, através das propriedades familiares organizadas em núcleos coloniais”14.

Presente em Ipes (1964:45) e definida por Ribeiro em um texto de divulgação de 1963, o modelo de uma reforma agrária democrática é definido em distinção ao modelo autoritário ou socialista15. O modelo democrático tem em seu centro a propriedade privada, sua função social e base da formação de uma classe média rural dotada de racionalidade empresarial. A reforma agrária utilizaria os mecanismos de tributação e desapropriação em áreas delimitadas e pontuais, nas quais se constituiriam planos de colonização e formas de organização coletiva, tais como as cooperativas e formação de associações diversas16. É significativo apontar que esta definição influenciou a estrutura burocrática militar, sendo apresentada na Mensagem no 33, texto que encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei do ET (Brasil, 2007b:121).

Deste modo, tanto na colonização quanto na reforma agrária o objetivo parece ser a transformação do homem do campo em classe média rural. Tornadas sinônimas, a colonização ganha relevo por ser uma intervenção menos estrutural. A ação planejada e racional busca constituir um novo agente, relacionando a reforma agrária a um processo de “aperfeiçoamento, através da educação física, intelectual, moral social e política, objetivando dar ao homem uma personalidade”17. Dar “personalidade” significa moldar, por diversas instituições sociais, as características mais íntimas dos indivíduos. Tais avanços permitiriam facilitar o “ajuste” do homem ao mundo em transformação, levando em conta a necessidade de selecionar os “mais fortes e sadios, pois além de estarem aptos para trabalhos físicos pesados, terão um futuro mais promissor”18. A perspectiva desta transformação civilizatória, que correlaciona o planejamento do uso da terra à necessidade de desenvolvimento social a partir de avanços na educação e saúde, se encontra de forma velada na ênfase do elemento de “aproveitamento econômico” do ET e do Decreto no 59.428 de 1966 (Brasil, 2007a).

Se no ET essa transformação civilizatória está menos visível, documentos posteriores do Ibra revelam essa preocupação, que se intensifica conforme a ação cotidiana da instituição encontra dificuldades e resistências. Uma série de denúncias contra despejos, violências e intimidações promovidas nos Núcleos Coloniais do Estado do Rio de Janeiro em 1966 (Brito, 2022a) levaram Paulo de Assis Ribeiro a redigir uma carta ao presidente Castelo Branco, sinalizando um “Roteiro de Ação” com três itens: 1. Manutenção das desapropriações de algumas áreas, abrigando os ocupantes em condições de se tornarem parceleiros e “desalojando-se os que não tivessem condições para isso”; 2. Revogação das áreas não admitidas como em condições para aproveitamento de projetos de reforma agrária, buscando acordo direto dos ocupantes com os proprietários ou a “retirada pelo IBRA dos ocupantes que se instalaram no imóvel após a data de desapropriação”; 3. “A adoção, se necessário, de atitudes firmes por parte das autoridades competentes, ao desalojarem os ocupantes sem condições de se tornarem parceleiros”19.

Em documento anterior o Ibra já havia sinalizado como “ação saneadora” o desalojamento de ocupantes dos Núcleos Coloniais que não portassem titulação legítima, que estivessem abandonados ou utilizados em desacordo com as finalidades estabelecidas20. Tanto o Roteiro quanto a deliberação interna apontam para o despejo de lavradores considerados inadequados, reproduzindo com agentes estatais, em grande parte militares reformados, práticas de violência associadas a grileiros e grandes proprietários de terra. Uma norma do mesmo ano nos dá indicações dos critérios de seleção e classificação dos parceleiros nos principais núcleos de colonização que seriam promovidos pelo Ibra21. Além de critérios como boa conduta, residência na área e ausência de posse de outras propriedades, o Ibra assume a preferência por um perfil de espírito empresarial disciplinado e passa a considerar: idade, ausência de deficiências físicas e mentais, “complexão física adequada aos trabalhos do campo”, “qualidades ótimas de higidez”, ambiente familiar “regular sob os aspectos moral, religioso e educativo”, capacitação empresarial avaliada pelo grau de instrução, experiência em atividades agropecuárias, capacidade financeira, possibilidade de ganhos e pelas qualidades de “Disciplina, Assiduidade ao Trabalho, Estabilidade no Trabalho e vocação para as atividades agropecuárias”.

As indicações são significativas para se apreender o perfil de parceleiro ideal e sua conexão com a classe média rural. Dentre os critérios há, explicitamente, um perfil familiar heteronormativo e uma hierarquia de gênero bastante definida, associando o ambiente familiar à família nuclear, com preferência pelos casais com filhos solteiros, elemento de seleção também presente na colonização do século XIX (Martins, 1973; Santos, 1993). Na avaliação de parceleiros, as mulheres, crianças e idosos recebiam uma pontuação inferior à de homens adultos. Esta avaliação hierarquizada também se relaciona com a pretensa capacidade produtiva, indicando uma diferenciação etária e de gêneros que quantifica e qualifica os parceleiros conforme um ideal que também deve corresponder à produtividade e, portanto, à capacidade de auferir lucros e renda da produção familiar. Com base nesses critérios “racionais” de seleção seria possível chegar aos objetivos centrais da colonização, indicando

(...) uma arma poderosa contra latifúndios improdutivos e poderá ser a solução definitiva dos problemas já criados pela tensão social existente em todas cidades brasileiras, causada pela insatisfação do não acesso à terra, da grande maioria de pessoas. [...] Através destes estabelecimentos, a produção será aumentada (...)22.

O enquadramento geral no qual se insere a política de colonização buscou modernizar o latifúndio e incrementar a produção agrícola, sem se preocupar em realizar uma reforma agrária com democratização da estrutura fundiária e das relações de poder que nela se sustentam. Ressalto na citação anterior a ideia de dar “solução definitiva” aos problemas de tensão social a partir da colonização. O controle das populações urbanas e rurais por intermédio do deslocamento forçado, buscando deste modo alcançar níveis mais harmônicos de integração econômica e social se encontra no centro da política de colonização.

A fim de transformar e capacitar o indivíduo carente e frequentemente influenciado por ideologias subversivas, a política de colonização pode ser identificada como uma mescla entre o ideal de construção da comunidade (Tönnies, 1973), marcada pelos laços comunitários e pela vida em comum não afetada pelos males da modernidade, e a definição de instituição total dada por Goffman (1974:18), salientando seu caráter total, tutelar e reformulador da individualidade através do “controle de muitas necessidades humanas pela organização burocrática de grupos completos de pessoas”23. Para Goffman (1974), as equipes destas organizações tendem a criar uma teoria ou ideologia da natureza humana que racionaliza a atividade e se baseia na diferenciação moral e social entre os internados e a equipe dirigente. No que se refere à colonização, essa diferenciação pode ser identificada na percepção de uma população rural composta por homens e mulheres “atrasados” e que precisam da intervenção e assistência do Estado, a fim de adquirirem comportamentos e padrão de vida mais satisfatórios e civilizados ou, como indicado anteriormente, dar-lhes “personalidade”. A constituição de saberes e práticas específicos de um corpo administrativo que se volta para o controle de uma determinada população é um elemento central da tutela e da formação do Estado nacional, conquistando e controlando territórios e populações (Souza Lima, 1995). No caso da colonização, o padrão civilizatório a ser suscitado é identificado com “a criação do espírito empresarial” por meio da assistência técnica, tal como estabelece o ET (Art. 75, § 4o, item C) e pode ser apreendido nos relatórios dos projetos de colonização de Alexandre de Gusmão, na Área Prioritária de Brasília, e o de Caxangá, na Área Prioritária do Nordeste, a serem analisados a seguir. Esses dois projetos e o de Papucaia, na Área Prioritária do Rio de Janeiro, foram considerados as principais ações do Ibra24.

O relatório sobre o projeto Alexandre Gusmão25 é apresentado como exemplo da metodologia a ser adotada e reproduzida nos demais projetos do órgão, podendo-se destacar os seguintes aspectos considerados essenciais: constituição de serviços comunitários e administrativos, incluindo assistências educacional, sanitária, social, técnica e creditícia; constituição da Cooperativa Integrada de Reforma Agrária, com integração efetiva dos parceleiros; obras de infraestrutura, sistema viário, distribuição de energia e serviços de irrigação são entendidos como condição indispensável para introduzir outras tecnologias nas formas de exploração; educação de base e “treinamento para formação do espírito empresarial daqueles futuros empresários” a partir da seleção e capacitação de parceleiros; obediência ao plano de exploração técnico-econômico das parcelas.

Devido ao crescimento populacional e do desemprego após o esfriamento do setor de construção civil, o Distrito Alexandre Gusmão teria como objetivo “A ocupação da terra, a orientação das correntes migratórias para a zona rural do Distrito Federal e o abastecimento do mercado de Brasília, aliados às dificuldades que as condições naturais oferecem, impõem uma ação integrada pioneira imediata”, que busque “transformar o homem, sem tradição de propriedade, exploração racional e tecnificada da terra, em empresário, dentro de novos relacionamentos socioeconômicos”. Segundo Bruno (1976), os núcleos coloniais de Brasília estavam associados às tendências de formação da agroempresa, de mecanização e modernização produtivas, da substituição da produção para consumo próprio pelo cultivo de produtos de alto valor comercial e de utilização da mão de obra assalariada. Dentre seus objetivos, pode-se identificar alguns dos principais sentidos da colonização, tais como a produção para abastecimento interno, a regulação de fluxos migratórios e a constituição de um campesinato modernizado e integrado ao mercado através de assistências diversas e intervenções do Ibra, inserindo e estimulando um espírito empresarial.

Caxangá apresenta algumas particularidades que a tornaram mais “complexa e de difícil implantação” do que os projetos Alexandre Gusmão e Papucaia, devido à estrutura fundiária com predomínio da monocultura, “evidente atraso econômico e social”, falências de usinas da região e tensões sociais vividas nos anos de 1963 e 1964, com greves de trabalhadores26. Como no caso do Rio de Janeiro (Brito, 2022a), a Usina Caxangá, situada no município de Ribeirão (PE), fora marcada por tensões e conflitos com trabalhadores rurais (Carneiro, Cioccari, 2011:43-48, 67-69). Devido ao quadro de tensões, entre 1965 e 1966 foram desapropriados 38 engenhos e se consolidou o Distrito de Caxangá, abarcando os municípios de Ribeirão, Joaquim Nabuco, Cortês, Amaraji e Escada na zona canavieira de Pernambuco.

Diferente do pioneirismo colocado para Alexandre Gusmão, em Caxangá se estabeleceu um “projeto de revisão total”27, no qual era fundamental o sucesso do Ibra para garantir a transformação da estrutura fundiária, econômica e social do Nordeste. Dentre os fins estabelecidos pelo ET e Ibra, a metodologia do projeto previa:

  • Proporcionar ao lavrador (parceleiro) condições econômicas e sociais para que, tendo acesso à terra, se torne um empresário rural;

  • introduzir novas técnicas agrícolas e melhorar as existentes, de modo a se obter maior produtividade por hectare;

  • criar e disciplinar estruturas de mercado segundo normas cooperativistas, visando a obter maior rentabilidade econômica, maior produção a baixo custo, possibilitando a um maior número de famílias participar de maiores padrões socioeconômicos28.

Em diversas passagens são estabelecidas relações entre “falta de tradição empresarial”, “baixo nível social, cultural, educacional e sanitário”, “[i]ncredulidade generalizada entre a População Rural na existência de Programas de Governo que possam melhorar substancialmente suas condições de vida”, “resistência às ideias de mudança” e “inércia diante da ação transformadora”29. Mais detalhado que o relatório de Alexandre Gusmão, a análise do projeto Caxangá apresentava um quadro complexo de intervenção que deveria atuar sobretudo na transformação do assalariado rural em empresário produtor de alimentos para o mercado interno, rompendo com a tradição de baixa produtividade, exportação e baixos salários da monocultura canavieira, além de frear o movimento migratório e reduzir as tensões sociais causadas pela estrutura fundiária desigual e formas de trabalho com elevada exploração.

Ainda que breves, essas indicações reforçam os sentidos buscados pela ditadura empresarial-militar a partir da política de colonização. Cada projeto estabelecia uma “previsão detalhada e sistematizada de atividades e providências a serem executadas”, envolvendo a organização territorial, social e econômica da vida coletiva nos projetos de colonização (Arezzo, 1982:49-52). A pretensão e amplitude do planejamento da política de colonização indicam formas mais sutis de violência sobre os camponeses e mecanismos centrais na atuação do Estado. A modernização dos métodos de produção e o incremento da produtividade associados a medidas creditícias e de assistências capazes de incentivar o espírito empresarial foram apontadas como formas de constituir cinturões verdes de abastecimento que também funcionassem como cinturões de pacificação das regiões de conflito.

Pode-se observar a pretensão de ser uma instituição total da política de colonização na medida em que, em suas normas universalizantes, ela busca abarcar a vida associativa e produtiva dos parceleiros, estabelecendo as melhores culturas a serem produzidas com base nas condições climáticas e topográficas, a existência de escolas, postos de saúde, instituições religiosas, assistência técnica, cooperativas e associações “benéficas” ao funcionamento dos projetos. Paralelo à pretensão de controle e planejamento da vida encontra-se o ideal de comunidade. O conjunto de preocupações de Ribeiro na definição da colonização o fez associar esta forma de intervenção a uma comunidade, centrada no trabalho familiar, no associativismo via cooperativa, na seleção criteriosa, na assistência e na tutela. Como em Tönnies (1973) e Weber (1999), a forma de associação da comunidade é pensada em termos positivos, marcada pela ausência de conflito e centrada nos laços orgânicos de reciprocidade. A comunidade é constituída, sobretudo, enquanto contraponto às situações de tensão e conflitos insufladas por problemas estruturais e por subversões ideológicas. É significativa a aproximação com a instituição total, pois se buscou estabelecer relações orgânicas de laço comunitário através de medidas racionais e artificiais, associadas ao tipo de laço contratual e potencialmente conflitivo da sociedade30.

A base real da classe média rural: a propriedade da terra

A família está no centro da noção de comunidade e, junto dela a de produção e propriedade familiares. Segundo Bruno (1995), a propriedade familiar31 estabelecida no ET permitiria ao lavrador aglutinar as funções de proprietário, gerente e trabalhador sem eliminar as grandes propriedades rurais, agora alvo de políticas de modernização produtiva. A fonte dessa análise é o próprio Ipes (1964:70), que em sua publicação indicou essa união harmônica entre funções através de formas planejadas de intervenção estatal e assistência, não observando, portanto, a existência de classes opostas em conflito, harmonizando o campo a partir do fundamento da propriedade privada articulada às formas mais modernas e planejadas de produção. Como expressou José Arthur Rios, sociólogo vinculado ao Ipes e ao Gret: na unidade familiar “o proprietário é ao mesmo tempo o capitalista, o homem que investe, prevê, que pensa na poupança; é o gerente da propriedade, distribui os seus recursos de trabalho, prevê a aplicação de novas técnicas e, geralmente, executa o trabalho, juntamente com pessoas de sua família”32.

Segundo o Ipes (1964:63), o objetivo da reforma agrária estava na expansão do mercado interno e do poder aquisitivo das populações rurais, realizando-se pela formação e consolidação da propriedade privada, base formativa da classe média rural, organizada no cooperativismo. A importância da propriedade privada está na sua capacidade de formar “qualidades básicas de previsão e capacidade administrativa, bem como se dissemina uma forte motivação de melhoria educacional e de progresso cultural”, opondo-se ao modelo totalitário no qual a propriedade é inviabilizada e se instituem formas de arrendamento e assalariamento (Ipes, 1964:67). Como indicado anteriormente, a disseminação da propriedade privada é o elemento caracterizador do modelo democrático, entendendo-a como condição para o desenvolvimento e para a industrialização, meio pelo qual “a indústria encontraria no meio rural o poder aquisitivo, a fonte de poupança e a capacidade gerencial indispensáveis à sua expansão” (Ipes, 1964:67). E conclui-se mais à frente:

Finalmente, admitindo a hipótese proposta neste ensaio de uma reforma agrária democrática, isto é, cujo principal objetivo seja a implantação de uma classe média rural, sobretudo através da propriedade familiar, isto só poderá ser feito através de dois processos: uma tributação progressiva da terra e a desapropriação limitada de áreas prioritárias, de latifúndios e minifúndios, pela implantação de projetos de colonização (Ipes, 1964:100).

Trata-se, portanto, de um “plano de reforma agrária baseado na colonização”, “implantados por desapropriação e seleção dos agricultores e suas famílias e organizados em forma de cooperativa” em áreas próximas a grandes centros consumidores com a finalidade de melhorar os níveis e reduzir os custos de alimentação dos centros urbanos, criar consumidores de produtos industriais e com o “efeito político” de reduzir a radicalização encontrada nas regiões (Ipes, 1964:100). A partir da elaboração de um índice global de prioridade da reforma agrária, apenas 5% do território brasileiro seriam considerados como zonas com necessidade de planos intensivos que envolviam a desapropriação por interesse social33. Conforme apontam: “Em termos humanos a criação de uma classe média rural significa ampliação da capacidade gerencial, em última análise, formação de um número maior de pessoas aptas a dirigir, a prever, a inventar, a criar” (Ipes, 1964:100). Essa classe média rural gera demanda de serviços, entrada e estímulo no mercado de trabalho e de consumo, impulsionando a industrialização pelo consumo e pelo reinvestimento da poupança. Com poder aquisitivo, oriundo da previsão e da gestão, a maior demanda de serviços e a ampliação do mercado interno, torna-se possível a criação de comunidades com laços estáveis e permanentes e a própria unidade nacional.

As indicações teóricas de Ribeiro e Ipes (1964) apontam para a Economia do Desenvolvimento em sua leitura neoclássica, profundamente marcada pela naturalização e desejabilidade da propriedade privada, pela ação do Estado como garantidor da economia e harmonia de mercado, a percepção do indivíduo e da família como agentes racionais e maximizadores de seus interesses em busca de vantagens e lucros e a necessária industrialização da economia como elemento de desenvolvimento e superação do atraso. É fundamental sinalizar para a presença e expansão desse discurso no contexto mundial do período, sobretudo pelas ações da Aliança para o Progresso (Alpro), que estabeleceu a reforma agrária como condição necessária à industrialização e ao desenvolvimento econômico e social, compreendendo essas ações e reformas como um mecanismo para frear movimentos sociais de transformação social (Escobar, 2007; Natividade, 2018). A Alpro existiu entre 1961 e 1969, integrada à conjuntura da Guerra Fria e com amplos investimentos no Brasil, operando através da United States Agency for International Development, composta por empresários e intelectuais que deram o tom e o direcionamento dos programas de ajuda. Segundo Natividade (2018), o programa foi estruturado para conter o comunismo na América Latina, sobretudo após a Revolução Cubana de 1959, centrando-se em programas de assistência técnica e financeira que prometiam abundância e desenvolvimento econômico a partir de atuações menos militarizadas e mais “racionais” e “científicas”. A autora identifica na atuação da Alpro a presença da teoria da modernização e estratégia contrarrevolucionária preventiva, agindo para garantir as condições econômicas e políticas de expansão do capitalismo avançado, sinalizando a importância de controle dos sindicatos e organizações de camponeses e operários e de construir programas de educação e mudança de hábitos culturais, a fim de constituir novos centros de socialização no e para o trabalho associados à visão de desenvolvimento. O relatório voltado para a região do Nordeste, ainda em 1961, sinalizou a necessidade de constituir organizações trabalhistas autênticas, em contraposição às Ligas Camponesas, a fim de harmonizar as ações de trabalhadores aos empreendimentos agropecuários nacionais e estrangeiros. No centro da proposta estava o uso da educação como capaz de adestrar e disciplinar a força de trabalho no campo.

Conforme sinalizam Hunt e Lautzenheiser (2013), no conjunto dos pressupostos da Economia Neoclássica e nas análises do Desenvolvimento estavam presentes um forte anticomunismo e a percepção de indivíduos racionais que interagem como em relações de troca, ignorando e, em grande medida, ocultando, as relações de poder, exploração e dominação presentes. Não deixa de ser interessante a leitura de Marx, para quem a Economia Política pode ser lida como anatomia da sociedade burguesa, como sua forma de autoexplicação e autojustificação. A leitura do livro do Ipes (1964) se fundamenta na compreensão de um novo homem racional e prospectivo constituído na “base real” (Marx, 2008) da propriedade privada. Contudo, a perspectiva do Ipes oculta relações de dominação e poder próprias da estrutura do modo de produção capitalista, identificando e naturalizando todos os indivíduos como agentes racionais, ou a serem tornados racionais, que se relacionam a partir do paradigma da troca.

Conforme apontado, a pretensa maleabilidade das populações rurais está no centro do tratamento estatal orientado a esses grupos. A colonização dos séculos XIX e XX no Brasil pós-Independência apresentou um ímpeto civilizador desejoso de modificar comportamentos tradicionais, tomados como infrutíferos para a exploração econômica e o aumento da produtividade nas áreas rurais, e estabelecer formas de conduta mais racionais, marcadas pelo espírito competitivo, pela administração da propriedade e pelo raciocínio prospectivo. Percebida pelo complexo tecno-empresarial-militar a partir de sua maleabilidade e, portanto, como uma população enfraquecida por suas condições de miserabilidade e incapaz de organização coletiva e política própria e de expressar suas indignações, esses grupos são tomados como objeto da ação burocrática planejada e racional, podendo ser incentivada tanto pela assistência técnica quanto por militantes de esquerda e suas ideologias “subversivas”.

A noção de uma maleabilidade do homem rural, fundamentada numa interpretação sobre a imaturidade intelectual e política destes atores, permite apreender um ponto-chave na conexão entre técnicos, empresários e militares e seu “medo histórico” acerca da atuação organizada e radical das classes despossuídas (Fernandes, 2020:434). No caso da interpretação militar, Golbery do Couto e Silva (1981) fundamentou a compreensão da Doutrina de Segurança Nacional a partir da percepção de uma “guerra total” na qual era preciso dispor das capacidades espirituais e materiais e a totalidade dos meios econômicos, políticos, psicossociais e militares, articulados pela ação dominante e total das Forças Armadas, também responsáveis pela condução da democracia. Esta visão tutelada da democracia, presente também em Castelo Branco (1967), na qual se entende que a sociedade civil ainda é imatura para conduzir por si mesma o processo político, se vincula ao perigo da subversão comunista e da guerra total. Nesse sentido, destaca-se a doutrina da guerra revolucionária que orientou as Forças Armadas nas disputas “das mentes e corações” contra as pretensas ameaças comunistas ou formas de organização, realçando-se sua presença nas Ações Cívico-Sociais (Teló, 2019).

Essa visão elitista e dirigista encontra ampla tradição política no Brasil, podendo-se identificá-la em autores do pensamento social e político brasileiro que remontam às tradições positivista e autoritária (Ianni, 1984; Souza Lima, 2002; Lamounier, 2006). Também o Ipes (1964:43) apresenta esse elitismo, ao sinalizar que a distinção entre modelos autoritário e democrático de condução da política não está na participação popular, mas sim na participação empresarial. Essa tradição imprime no Estado brasileiro sua característica autocrática (Fernandes, 2020; Brito, 2022b), marcada pela busca prévia de formatação das organizações, instituições, desejos e reivindicações das camadas populares, buscando impedir e filtrar sua autonomia.

Na visão do coronel Ferdinando de Carvalho (1967), os comunistas encontravam-se infiltrados em todos os âmbitos estatais e ações organizativas da sociedade. Segundo ele, “[o] campesinato, manipulado por agitadores audaciosos, transformara as suas justas reivindicações, em bandeira da agitação armada, intensificando os ódios incompatíveis com o racionalismo das soluções honrosas e legais” (Carvalho, 1967:360). Para estes atores militares, a organização política e a radicalização do campesinato só se explicam pela infiltração e manipulação de comunistas. Frente esta população pobre e suas “justas reivindicações” atuaram o braço armado e assistencialista da ditadura, ambos em nome da segurança nacional, condição entendida também como necessária para a estabilidade dos lucros e dos negócios. O caráter civilizatório e evolutivo da transformação do lavrador em classe média rural está no cerne da política agrária militar e militarizada voltada para a modernização da produção e o aumento da produtividade mediante assistência técnica e acesso a crédito. As discussões que estabeleceram as normativas de uso e posse da terra e dos mecanismos de colonização e reforma agrária substituíram a questão da redistribuição da propriedade e seu uso fundamentado na função social pela questão da produtividade e modernização técnica (Medeiros, 1983; Bruno, 1995).

O aumento da produção e da produtividade agrícola, a vinculação a uma propriedade familiar, a inculcação do espírito empresarial mediante ações de extensão e assistência rurais, o aprendizado no gerenciamento do crédito e na administração da produção estiveram e ainda estão no centro das formas de intervenção do Estado com os pequenos proprietários rurais34. Há uma vinculação entre a intervenção em novos territórios a serem organizados também com a instituição da propriedade da terra e a formação de atores e suas subjetividades. Tais elementos podem ser observados em fala de Cesar Cantanhede35 quando recém-empossado presidente do Ibra em 1967, em palestra na Escola Superior de Guerra:

É do espírito da reforma agrária transformar progressivamente os trabalhadores do campo, os arrendatários e os parceiros numa classe média rural, incentivando a criação de pequenas propriedades, congregadas em cooperativas, que possam se responsabilizar pela pequena industrialização agropecuária, e que estimularão e incentivarão, técnica e financeiramente, a iniciativa privada, fortalecendo a modernização e a democratização das médias e grandes empresas rurais, visando sempre ao aumento da produtividade.36

Creio ser possível identificarmos um conjunto de elementos característicos da noção de classe média rural, intensamente mobilizada desde os anos 1960 no debate político e econômico brasileiro. É importante indicar que se trata de um conceito frequentemente tomado como dado: elemento normal da sociedade brasileira, o termo “média” evoca o sentido de interesses essenciais da nação e da sociedade, classe que, portanto, se encontraria no ponto ótimo. Contudo, é possível apreender dos textos e das análises alguns elementos que aqui sinalizamos: trata-se de uma classe a ser despolitizada, sem identificação e organização autônoma, sendo composta fundamentalmente por ações estatais como as assistências técnicas e educacionais e as formas de organização previamente estabelecidas, como o cooperativismo; além disso, trata-se de classe identificada de forma positiva com a propriedade privada, desejosa de a adquirir e preocupada com seus ganhos e rendimentos, afeita e socializada no pensamento prospectivo e na capacidade de cálculo, ou seja, socializada dentro da racionalização capitalista e dotada de “espírito empresarial”; trata-se de uma classe integrada economicamente, mas também simbolicamente, aos mercados privados de terra, trabalho e consumo, sobretudo voltada aos interesses do setor industrial e à produção de matérias primas e alimentos. Inserida na concepção de comunidade, sempre refletida como harmônica, a classe média empresarial representaria, desse modo, os interesses gerais da nação, abstratos e universalizados porque não referentes às posições específicas das classes trabalhadoras.

O complexo tecno-empresarial-militar que pretendeu formar a classe média rural buscou intervir e construir a comunidade nacional, constituindo-a enquanto estrato social identificado com a propriedade privada da terra, tomando determinado modelo de família e de indivíduo como agentes racionais e maximizadores de desejos, interesses e lucros. Seu processo de formação indica tentativas de incutir novos significados à estratificação social, ressignificando o conteúdo político de conceitos e identidades como camponês e trabalhador rural, identidades que trazem consigo a percepção de relações de dominação e exploração constitutivas do modo de produção e apropriação da terra.

Considerações finais – formas sutis de violência

Ao retomar os debates do ET e da criação da classe média rural através das políticas de colonização e reforma agrária é possível apreender o enquadramento dado à questão agrária pelo regime militar, identificando o conjunto de interpretações e práticas do complexo tecno-empresarial-militar. Este grupo pautou as normativas e realizações da política agrícola, orientando-a para o desenvolvimento do modelo dominante de produção rural, persistindo ainda hoje.

Acionada em um contexto de repressão aos trabalhadores/as rurais e suas formas de organização, a colonização também pretendeu controlar suas expectativas e anseios com a possibilidade da propriedade da terra e das assistências. Em diversos casos os camponeses foram enquadrados como massa miserável e atrasada que deveria ser controlada e assistida, impedindo o avanço de ideologias consideradas subversivas à segurança nacional. Este enquadramento, entendido na perspectiva da dominação burocrática como administração de massas de objetos e pessoas (Weber, 1999), se fortaleceu na medida em que incontáveis trabalhadores e trabalhadoras foram perseguidos, presos, violentados, silenciados e amedrontados (Sauer et al., 2015; Medeiros, 2018).

A pretensão de construir uma comunidade sem os conflitos de classe e os problemas oriundos da exploração e da desigualdade esbarrou no fato de que a propriedade da terra, legal ou ilegalmente constituída, significa capacidade de influir legitimidade e autoridade nas relações de poder e nas configurações sociais estabelecidas no campo e na cidade. O planejamento, entendido enquanto instrumentalização da razão, oculta os efeitos de dominação da natureza e da sociedade. Esta forma encontra terreno fértil na tradição burocrática brasileira, marcada por concepções autoritárias e por uma estrutura social desigual que continuamente se voltaram contra as tentativas de democratizar o controle das decisões políticas. Os elementos apresentados representam tendências na política e organização social brasileiras, para além das áreas rurais. O colonizar como verbo oculto indica o esforço político, até agora vitorioso, de controle da mudança social e monopólio de seus efeitos positivos, além de explicitar percepções e práticas autocráticas, entendendo-as como a imposição de formas de organização e modelação aos grupos sociais subalternos.

Contudo, a análise aqui proposta pretende apreender a colonização como processo social. A colonização gera contradições que precisam ser apreendidas, pois ao mesmo tempo que visou à ampliação da propriedade privada e à expansão da fronteira agrícola às grandes empresas, estruturou novas experiências organizativas de trabalhadores rurais (Santos, 1993; Brito, 2022a). Trata-se de uma contradição não prevista pelo planejamento racional, mas que reproduziu as condições sociais de conflito. A colonização solidificou entre as expectativas dos camponeses a possibilidade real da propriedade da terra e da autonomia, desvinculando-se da subordinação aos proprietários de terra, ao mesmo tempo que passaram a reclamar pela garantia de direitos estabelecidos e pela desapropriação da terra com base no interesse social, tal como definidos no ET. Este processo, marcado pelo trabalho contínuo e molecular das organizações sociais do campo, socializou frustrações e expectativas e fez delas novas experiências organizativas (Medeiros, 2014).

Ao formar a classe média, o bloco tecno-empresarial-militar se deparou com a retomada de organizações e ações camponesas que formavam a si próprias nos conflitos, marcados pela continuidade da desigualdade estrutural de acesso à terra e às condições de sua reprodução. Parceleiros, posseiros, trabalhadores precarizados, pequenos proprietários e trabalhadores sem-terra viam na colonização alguma possibilidade de conquistar uma terra, de alcançar algum nível de autonomia produtiva e social. Técnicos administrativos viram nessa política um meio, mesmo que limitado, de realizar e impulsionar alguma forma de redistribuição de terras. Essas diversas experiências e expectativas que se configuram junto à colonização foram elaborados nos anos 1970 e 1980, constituindo um conjunto de críticas ao modo como a questão agrária foi sendo tratada (Medeiros, 1989; Santos, 1993). De certa maneira, a constituição da bandeira unificadora da reforma agrária ampla, massiva e imediata articulada por diferentes movimentos sociais e sindicais se constrói em contraposição à política de colonização da ditadura.

Espero ter apontado a presença da colonização na questão agrária brasileira com base na discussão sobre a transformação do homem do campo “atrasado” em classe média rural dotada de mentalidade empresarial. Seus termos ainda estão presentes no debate da reforma agrária e da agricultura familiar, revelando-se o verbo oculto do tratamento da questão agrária no Brasil. Conforme identificado anteriormente, a reatualização das estruturas coloniais pelo colonialismo interno se realiza a partir da manutenção de formas predeterminadas de organização, reconhecimento e ação impostas aos grupos subalternizados, generificados, racializados e/ou etnicamente hierarquizados, agindo sobre suas formas de percepção de si, usos do território e organização social, no qual o controle da terra e, portanto, das formas de produção e reprodução material e social são fundamentais (González Casanova, 2007; Cusicanqui, 2010, 2021). Termos e sentidos da política de colonização ecoam atualmente nas políticas de assentamento em terras públicas e no baixo índice de desapropriação de terras privadas, no assentamento baseado em deslocamento populacional, fundamentado na pequena propriedade familiar, na modernização produtiva, na produtividade e na assistência técnica orientadas para constituir a classe média rural, identificada pela integração aos mercados de terra e consumo, adoção de formas ditas modernas de produção e administração e acesso e uso de crédito, sendo valorizada e tipificada como modelo de empreendimento e de sucesso. A persistência destes termos revela a importância de entender sua sociogênese, mas também revela características formadoras das experiências e dos modos de organização coletiva do campesinato.

Uma versão prévia desse trabalho foi apresentada no 9o Encontro da Rede de Estudos Rurais (Brito, 2021). Agradeço aos/às pareceristas anônimos, às organizadoras do Grupo de Trabalho, Leonilde Servolo de Medeiros e Regina Coelly Fernandes Saraiva, e aos participantes pelas discussões e comentários, fundamentais para a elaboração desse artigo, resultado das reflexões e pesquisas documentais realizadas em minha tese de doutorado (Brito, 2022) e que teve apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

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Notas

  • 1
    . A caracterização do golpe, do regime ditatorial e sua duração ainda são objeto de análises e discussões dentro da historiografia (Melo, 2014; Motta, 2021). Identificar o golpe de Estado e o período entre 1964 e 1985 como “empresarial-militar” qualifica de forma mais detalhada os grupos sociais que atuaram decisiva e organizadamente em seu planejamento, realização, implementação de reformas e práticas baseadas nos interesses das classes empresariais do campo e da cidade, nacionais e internacionais (Dreifuss, 1981; Melo, 2014). Ao apontar categoricamente o caráter de classe desses eventos, sem com isso diminuir a importância de setores militares, espera-se superar as dificuldades colocadas pelo termo “civil”, mais genérico do que o termo “empresarial”.
  • 2
    . Criado através do Decreto-Lei n 1.110, de 9 de julho de 1970, o Incra substituiu e integrou as atuações do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda), ambos criados em 1965. O Ibra e o Inda substituíram a Superintendência da Política Agrária (Supra) criada em 1962 pelo governo João Goulart, cuja orientação era a desapropriação de terras por interesse social e a reforma agrária, dialogando com os movimentos camponeses da época. A criação dos institutos estava prevista no Estatuto da Terra (Lei n 4.504, de 30/11/1964; doravante ET), mas só se efetivou em 31/3/1966 pelos Decretos 55.889 e 55.890. Ressalto as diferentes hierarquias e subordinações, pois indicam o nível de importância dado à questão: a Supra e o Ibra estavam diretamente ligados à Presidência da República; o Inda e o Incra estiveram ligados ao Ministério da Agricultura.
  • 3
    . Entre o fim da concessão de sesmarias em 1822 e a Lei de Terras de 1850 o Brasil ficou sem mecanismo legal de regularização da posse da terra. Esse período foi marcado pelo crescimento das formas de apossamento, aprofundando o desconhecimento das demarcações entre terras privadas e públicas e se agravando com a expansão das plantations de açúcar e café e a consequente demanda por força de trabalho livre (Silva, 1996).
  • 4
    . Apesar de o termo já estar presente em legislações anteriores, como a Lei de Terras de 1850, ainda não se tinha dado uma definição legal ao ato de colonizar. O Decreto-Lei n 7.967, de 27 de agosto de 1945 está disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del7967impressao.htm>. Acessado em 2/7/2021.
  • 5
    . Segundo Maia (2012), a representação do território como amorfo, porém vasto e repleto de riquezas que aguardam exploração racional e que é ocupado por populações percebidas como “atrasadas” e nômades marcou as concepções do Estado brasileiro no século XX. Se retomarmos o imaginário edênico da colonização é possível traçar um tempo mais longo para essa representação. Segundo Holanda (2010), este imaginário inclui as imagens da terra fértil, da mudança de vida, da superação dos males da pobreza consubstanciados na noção de um Paraíso terrestre, continuamente presente no esforço de colonização português, mas também no período imperial e republicano. Em Brito (2022a) apontou-se a continuidade desse imaginário, caracterizando-se pela imagem da terra fértil e vazia, local de enraizamento e sua articulação com concepções do poder tutelar presentes nas políticas indigenista (Souza Lima, 1995) e de imigração (Ramos, 2006). Por fim, a imagem da terra vazia desconsidera e tem sido associada a práticas de violência e expulsão de populações indígenas que já estavam presentes nesses territórios.
  • 6
    . Para uma explicação mais extensa desses e de outros casos, sobretudo no estado do Rio de Janeiro, ver Brito (2022a). No caso dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo foi fundamental a organização e atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), responsável pela organização e formação de associações locais de lavradores, posseiros e trabalhadores assalariados na defesa pela reforma agrária e direitos trabalhistas entre 1940 e 1960. Em Pernambuco destacou-se a atuação das Ligas Camponesas nos anos 1950 e 1960, e no Rio Grande do Sul a ação do Movimento dos Agricultores sem Terra (Master) na década de 1960. As três organizações detinham projetos políticos e estratégicos distintos, mas que no pré-1964 convergiram no uso das ocupações como forma de ação coletiva para pressionar pela desapropriação e reforma agrária, combinando-a com outras ações (Medeiros, 1995).
  • 7
    . Engenheiro de formação, Ribeiro teve importante participação na formulação de planejamentos estatais para as áreas de educação, economia, colonização e reforma agrária nas décadas de 1940 e 1960. Participou e atuou na Fundação Brasil Central, no Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes), na formulação do ET e foi presidente do Ibra entre 1965 e 1967 (Bruno, 1995; Brito, 2022a). A documentação aqui analisada está alocada no Acervo Paulo de Assis Ribeiro (PAR), sob guarda do Arquivo Nacional (AN) e pode ser consultada em: <https://sian.an.gov.br>. A preocupação com essa documentação se volta para o que ela pode nos informar da política de colonização enquanto mecanismo de tratamento da questão agrária no Brasil durante o regime militar.
  • 8
    . “Notas preparadas para entrevista do Dr. Paulo de Assis Ribeiro em 5/10/64”. AN/PAR, Caixa 57, Pasta 4, p. 6.
  • 9
    . O ET será citado em seus artigos e parágrafos, tomando como texto de referência Brasil (2007b:126-172).
  • 10
    . Trata-se de uma análise livremente inspirada em Martins (2003), para quem o camponês tem sido o “sujeito oculto da reforma agrária”, frequentemente silenciado. Aqui, “colonizar” tornou-se o verbo oculto da reforma agrária.
  • 11
    . “Anotações ligeiras sobre um trabalho de política de colonização e recolonização para o Estado de Goiás”. AN/PAR, Caixa 27, Pasta 1, pp. 1-2 (ênfases nossas). Documento escrito entre 1962 e 1964.
  • 12
    . Terminologia dos beneficiados pelas políticas de colonização e ações de reforma agrária. Refere-se àquele que “venha a adquirir lotes ou parcelas em áreas destinadas à Reforma Agrária ou à colonização pública ou privada” (ET, Art. 4, VII). O termo substituiu a categoria colono, historicamente utilizada para se referir aos que praticavam ou se beneficiavam da política de colonização.
  • 13
    . “Plano de Emergência do IDAGO – Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás” (1964). AN/PAR, Caixa 20, Pasta 1, p. 58.
  • 14
    . “Plano de Emergência do IDAGO – Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás” (1964). AN/PAR, Caixa 20, Pasta 1, p. 99.
  • 15
    . De modo breve, o modelo socialista/totalitário se caracteriza pela transferência imediata das propriedades para o Estado e pelo trabalho dos lavradores nestas terras. Ribeiro caracteriza este modelo de forma negativa, ressaltando a eliminação da liberdade de iniciativa. A distinção entre modelos democrático e totalitário e a ênfase no planejamento estão relacionadas à obra de Mannheim (1972), citado por Ribeiro no “Plano de Emergência do Idago”. Contudo, Mannheim não classifica como sinônimos os modelos socialista e totalitário.
  • 16
    . “Recorte do jornal O Globo de 30 de julho de 1963”. AN/PAR, Caixa 54, Pasta 1, 1963, p. 141.
  • 17
    . “Plano de Emergência do IDAGO – Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás” (1964). AN/PAR, Caixa 20, Pasta 1, p. 52.
  • 18
    . “Anotações ligeiras sobre um trabalho de política de colonização e recolonização para o Estado de Goiás”. AN/PAR, Caixa 27, Pasta 1, p. 7.
  • 19
    . “E.M. n 35”. Rio de Janeiro, GB, 20/8/1966. AN/PAR, Caixa 382, Pasta 1, pp. 66-69.
  • 20
    . “Deliberação n 11-A, 07 de abril de 1966”. Ibra. Boletim de Serviço n 33, ano II, 10/06/1966. AN/PAR, Caixa 346, Pasta 2, p. 42.
  • 21
    . “Norma 531 – 3/1. Da seleção e classificação de candidatos a parceleiros nos projetos dos Núcleos Coloniais dos Distritos de Caxangá (NE), Alexandre Gusmão (BR) e Papucaia (RJ). Início de vigência: 13/3/1966. Aprovada em reunião de Diretoria em 12/3/1966”. AN/PAR, Caixa 350, Pasta 2, pp. 264-273.
  • 22
    . “Anotações ligeiras sobre um trabalho de política de colonização e recolonização para o Estado de Goiás”. AN/PAR, Caixa 27, Pasta 1, p. 7 (ênfases nossas).
  • 23
    . Trata-se de uma inspiração a partir da análise de Goffman, pois as instituições analisadas por ele se voltam para indivíduos em condições de internados, elementos que não correspondem à prática e nem ao alvo dos núcleos de colonização, orientados para as famílias e com maior grau de autonomia. Para o caso da colonização, o conceito permite apreender as formas de planejamento do cotidiano, a intervenção e proposta de novas formas de subjetivação, o papel do corpo de funcionários e suas formas de percepção de si e do outro a ser assistido e seu caráter técnico, especializado e burocrático. Contudo, é preciso sinalizar que se trata mais de uma instituição que se quer total do que propriamente “total”. Foram inúmeras as resistências de técnicos, parceleiros, sindicatos, movimentos sociais, mediadores políticos e religiosos contra essa pretensão (Brito, 2022a).
  • 24
    . Até o momento não foi possível encontrar o relatório do Ibra sobre Papucaia. Contudo, através de outros documentos trabalhados em Brito (2022a) foi possível apontar os elementos que coincidem entre as diferentes ações.
  • 25
    . Ibra. Relatório Distrito Alexandre Gusmão, Distrito Federal, Brasil, 1966. Brasil: 1967. AN/PAR, Caixa 283, Pasta 2, p. 44. Mais à frente, citação das páginas 59 e 60.
  • 26
    . ETAS Ltda. GEOS S.R.L. Distrito de Colonização Caxangá (s.d.). AN/PAR, Caixa 344, Pasta 2, p. 5.
  • 27
    . ETAS Ltda. GEOS S.R.L. Distrito de Colonização Caxangá (s.d.). AN/PAR, Caixa 344, Pasta 2, p. 70.
  • 28
    . ETAS Ltda. GEOS S.R.L. Distrito de Colonização Caxangá (s.d.). AN/PAR, Caixa 344, Pasta 2, p. 72.
  • 29
    . ETAS Ltda. GEOS S.R.L. Distrito de Colonização Caxangá (s.d.). AN/PAR, Caixa 344, Pasta 2, pp. 75, 89, 90.
  • 30
    . Não será possível aprofundar esta indicação, porém é significativa a força dos Estudos de Comunidade neste período, considerando especialmente a formação intelectual e profissional destes agentes de Estado. A Comunidade era não apenas um elemento de preocupação teórica e intelectual, mas um elemento de intervenção e planejamento. O termo também remete à tradição católica e à doutrina da solidariedade cristã, presente na concepção de diversos agentes do complexo tecno-empresarial-militar (Brito, 2022a).
  • 31
    . Segundo o ET (Art. 4; § 2), “Propriedade Familiar” é o “imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalho com a ajuda de terceiros”.
  • 32
    . “Conferência de José Arthur Rios sobre ‘Reforma Agrária’” (1963). AN/PAR, Caixa 52, Pasta 1, p. 242.
  • 33
    . O índice foi calculado levando em consideração a ocupação jurídica do solo, a presença de grandes e pequenos estabelecimentos, a densidade rural, o tamanho da população e o potencial econômico da Zona fisiográfica (Ipes, 1964:XIII). As áreas sinalizadas foram: Minas Gerais (Zona da Mata), Nordeste (Zona da Mata e Agreste), Vale do Paraíba, Rio de Janeiro (Litoral), entorno da cidade de São Paulo, Noroeste do Rio Grande do Sul e Sudoeste de Santa Catarina (Esteves, 2011:112). Um índice semelhante foi elaborado para caracterizar as zonas de intervenção a partir dos critérios estabelecidos no ET (Brito, 2022a).
  • 34
    . É imprescindível não tomar o aparato estatal de forma unitária, e nem mesmo os órgãos voltados para a questão agrária. Ao observar diferentes perfis de funcionários do Incra, Wolford (2016) aponta a existência de uma memória e identidade marcadas pela eficiência técnica e burocrática de atuação do instituto, elementos que reverberam as preocupações iniciais de controle e alteração dos territórios e populações aqui analisadas. Contudo, também como indicado por Bruno (2012), tal institucionalização não se realizou sem conflitos internos e sem a busca de efetivação da reforma agrária como democratização do acesso à terra nas condições possíveis de realização.
  • 35
    . Cesar Reis Cantanhede e Almeida foi, segundo Dreifuss (1981:77, 85) um tecnoburocrata, ou seja, um intelectual com trânsito no Estado e capaz de articular, com discurso técnico e pretensamente neutro e científico, os sentidos da burguesia multinacional, legitimando e internalizando seus interesses em formas de planejamento e direcionamento da economia. Ele foi membro do conselho da Fundação Getulio Vargas no início dos anos 1960, presidente da Organização de Engenharia S.A., e participou da Consorcio Brasileiro de Produtividade junto de Paulo de Assis Ribeiro.
  • 36
    . Palestra proferida na Escola Superior de Guerra por Cesar Cantanhede, Presidente Ibra, junho de 1967. AN/PAR, Caixa 82, Pasta 1, p. 9.
  • *
    Uma versão prévia desse trabalho foi apresentada no 9o Encontro da Rede de Estudos Rurais (Brito, 2021).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    6 Out 2022
  • Revisado
    4 Abr 2023
  • Aceito
    10 Maio 2023
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