Resumo
Este artigo analisa a gestão do estigma no trabalho sexual, argumentando que esse processo se baseia em anseios por reconhecimento e não somente em expectativas de validação e normalização do trabalho maculado. Ele se embasa nos debates sociológicos contemporâneos sobre dirty works, que visam compreender o impacto das máculas morais nos trabalhadores e as estratégias para gerenciamento de estigmas. A análise é realizada no universo do trabalho sexual no webcamming, um lócus central para compreender demandas por reconhecimento devido à amplitude de sua mácula. O estudo se alicerça em etnografia digital conduzida de 2016 a 2020 e 15 entrevistas em profundidade com trabalhadoras sexuais. Conclui-se que as trabalhadoras buscam desenvolver uma autorrelação positiva e conquistar estima social através do gerenciamento do estigma atribuído a seu labor e a si mesmas, demonstrando narrativamente como o trabalho sexual contribui para seu autodesenvolvimento e possui função social para além da obtenção de renda.
trabalho sexual; dirty work; reconhecimento; estigma; divisão moral do trabalho
Abstract
This paper analyzes the stigma managing in sex work, arguing that this process is based on a longing for recognition and not merely on expectations to validate and normalize the dirty work. It uses contemporary sociological debates about dirty works, which aim to understand the impact of moral taints on workers and the strategies for stigma management. The analysis is developed in webcamming sex labor, a central locus to understand demands for recognition due to the breadth of its taint. The study relies on digital ethnography conducted between 2016 and 2020 and on 15 in-depth interviews with sex workers. The paper concludes that workers aim to develop a positive self-relation and acquire social esteem by managing the stigma attributed to their work and to themselves, demonstrating narratively how sex labor contributes to their self-development and has a social role besides earning income.
sex work; dirty work; recognition; stigma; moral division of work
Résumé
Cet article examine la gestion de la stigmatisation dans le travail sexuel, en faisant valoir que ce processus est basé sur les aspirations à la reconnaissance et non pas seulement sur les attentes de validation et de normalisation du travail entaché. Il s’appuie sur les débats sociologiques contemporains sur les dirty works, qui visent à comprendre l’impact des défauts moraux sur les travailleurs et les stratégies de gestion des stigmates. L’analyse est effectuée dans l’univers du travail sexuel sur le webcamming, un secteur central pour comprendre les demandes de reconnaissance en raison de l’ampleur de sa macula. L’étude s’appuie sur l’ethnographie numérique menée de 2016 à 2020 et sur 15 entretiens approfondis avec des travailleuses du sexe. Il s’ensuit que les travailleuses cherchent à développer une relation positive avec elles-mêmes et à acquérir une estime sociale en gérant la stigmatisation attribuée à leur travail et à elles-mêmes, démontrant de manière narrative comment le travail sexuel contribue à leur développement personnel et a une fonction sociale au-delà de l’obtention de revenus.
travail sexuel; dirty work; reconnaissance; stigmatisation; division morale du travail
Resumen
Este artículo analiza la gestión del estigma en el trabajo sexual, argumentando que este proceso se basa en el deseo de reconocimiento y no solo en las expectativas de validación y normalización del trabajo manchado. Se basa en los debates sociológicos contemporáneos sobre dirty works, que pretenden comprender el impacto del estigma moral en los trabajadores y las estrategias para gestionar el estigma. El análisis se realiza en el universo del trabajo sexual en webcam, un locus central para comprender las demandas de reconocimiento debido a la amplitud de su mancha. El estudio se basa en una etnografía digital realizada entre 2016 y 2020 y en 15 entrevistas en profundidad con trabajadoras del sexo. La conclusión es que las trabajadoras del sexo intentan desarrollar una relación positiva consigo mismas y ganar en estima social gestionando el estigma que se atribuye a su trabajo y a ellas mismas, demostrando narrativamente cómo el trabajo sexual contribuye a su autodesarrollo y tiene una función social más allá de la obtención de ingresos.
trabajo sexual; dirty work; reconocimiento; estigma; división moral del trabajo
Introdução
Nos últimos anos, despontaram estudos que buscaram ampliar a compreensão sobre processos de gestão de estigmas em atividades laborais de baixo status social, refletindo sobre como a divisão moral do trabalho na contemporaneidade afeta a identidade de trabalhadores. Guiados pela noção de dirty work1
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. Optou-se por manter a grafia original no inglês por se tratar de um termo técnico que passou a ser utilizado correntemente mesmo na literatura nacional. Para além disso, aciona-se a ideia de trabalho maculado como um sinônimo para o termo original que conserva seu sentido.
cunhada por Hughes (1958)Hughes, Everett. (1958), Men and their work. New York: Free Press., tais investigações diagnosticaram como trabalhadores lidam com a mácula de seu trabalho a fim de fundamentarem uma identidade estimada e se posicionarem como pessoas dignas (Ashforth et al., 2007Ashforth, Blake et al. (2007), "Normalizing dirty work: Managerial tactics for countering occupational taint". Academy of Management Journal, v. 50, n. 1, pp. 149-174. Disponível em: https://psycnet.apa.org/doi/10.5465/AMJ.2007.24162092
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). O enfoque é dado ao processo de normalização e validação (Ashforth, Kreiner, 1999) de ocupações maculadas. Esforços analíticos mais recentes têm buscado ampliar o escopo dos dirty works, questionando sobre os aspectos socioculturais e morais responsáveis por atribuir o adjetivo dirty a determinadas ocupações. Assim, trabalhos historicamente feminizados e racializados passaram a ser incluídos nas pesquisas (Hui, Kambhampati, 2020; Bosmans et al., 2016Bosmans, Kim et al. (2016), "Dirty work, dirty worker? Stigmatisation and copying strategies among domestic workers". Journal of Vocational Behavior, n. 92, pp. 54-67. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.jvb.2015.11.008
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; Duffy, 2007Duffy, Mignon. (2007), "Doing the dirty work. Gender, race, and reproductive labor in historical perspective". Gender & Society, v. 21, n. 3, pp. 313-336. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0891243207300764
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), abrangendo também o trabalho sexual (Kong, 2006Kong, Travis. (2006), "What it feels like for a whore: The body politics of women performing erotic labour in Hong Kong". Gender, Work and Organization, v. 13, n. 5, pp. 409-434. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1468-0432.2006.00315.x
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; Grandy, Mavin, 2012). Como desdobramento, conclui-se que para determinadas ocupações o estigma recai na atividade e nos indivíduos que a exercem (sendo assim duplamente maculadas), dificultando e complexificando dinâmicas de normalização e validação. Esses estudos apontam para os modos de resistência diante de trabalhos de baixo status, sublinhando que as dimensões do pessoal e da identidade assumem lugar central já que movimentar os trabalhadores nas escalas valorativas é condição para reposicionar o trabalho maculado.
Ainda que a literatura supramencionada tenha avançado na compreensão de como trabalhadores em ocupações duplamente maculadas gerenciam os estigmas de si mesmos e de sua atividade laboral, pouco se discutiu para além das dinâmicas de normalização e validações desses dirty works. Ademais, ainda são escassas as análises que demonstram as formas de antagonismo próprias a trabalhos socialmente maculados, que em muitos casos destoam das coalizões coletivas e refletem esforços pessoais de resistência. Este artigo visa aprofundar a compreensão dos mecanismos acionados por trabalhadores para lidarem com a mácula moral de seus trabalhos para além do par validação/normalização e avançar na compreensão sobre as formas de antagonismos disponíveis em trabalhos duplamente maculados. A discussão é baseada em pesquisa etnográfica de quatro anos (2016 a 2020) e 15 entrevistas em profundidade no universo do trabalho sexual de webcamming no Brasil. O webcamming (também conhecido como camming) é um trabalho sexual que despontou no país a partir de 2002 (Caminhas, 2020Caminhas, Lorena. (2020), Webcamming erótico comercial no contexto brasileiro: organização, estruturação e dinâmicas internas. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas.) e consiste na performance de práticas erótico-sexuais via webcam, transmitidas aos consumidores via streaming de vídeo (Bleakley, 2014Bleakley, Paul. (2014), "500 tokens to go private: Camgirls, cybersex and feminist entrepreneurship". Sexuality & Culture, v. 8, n. 4, pp. 892-910. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s12119-014-9228-3
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). Esse serviço é predominantemente ofertado em plataformas digitais que fornecem espaços para construção de perfis de trabalhadoras sexuais que pretendem produzir shows de webcam para uma ampla audiência. A indústria erótica de webcam já é expressiva no Brasil, contando com duas grandes plataformas nacionais – Câmera Privê e Câmera Hot – que abrigam cerca de cinco mil profissionais ativos e 100 milhões de usuários por mês. A atividade é exercida majoritariamente por mulheres cisgênero de classes médias e situadas no sul e sudeste do país (Caminhas, 2020Caminhas, Lorena. (2020), Webcamming erótico comercial no contexto brasileiro: organização, estruturação e dinâmicas internas. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas.). Apesar de o camming ser uma modalidade de trabalho sexual indireto (que não envolve contato físico com os clientes), ele continua sendo profundamente marcado pelo estigma da prostituição (W. Silva, 2014Silva, Weslei. (2014), O sexo incorporado na web: cenas e práticas de mulheres strippers. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil.), constituindo-se como uma prática física, social e moralmente maculada. Como pontua Da Silva (2015)Da Silva, Ana Paula. (2015), "Trabalho sexual: entre a conquista de direitos e o processo de vitimização". Novos Debates, v. 2, n. 1, pp. 223-231., a mácula da prostituição diz também das pessoas que exercem o trabalho sexual, configurando o webcamming como um caso extremo de dirty work (Kong, 2006Kong, Travis. (2006), "What it feels like for a whore: The body politics of women performing erotic labour in Hong Kong". Gender, Work and Organization, v. 13, n. 5, pp. 409-434. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1468-0432.2006.00315.x
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), em que há ampla profundidade e larga amplitude do estigma.
Partindo do caso empírico, este artigo argumenta que trabalhadores em atividades duplamente maculadas se direcionam à demanda por reconhecimento, buscando conquistar estima social para si e para seu trabalho e desenvolver uma autorrelação positiva. A discussão sobre reconhecimento baseia-se centralmente em Honneth (2008)Honneth, Axel. (2008). "Trabalho e reconhecimento: tentativas de uma redefinição". Civitas, v. 8, n. 1, pp. 46-67. Disponível em: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2008.1.4321
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, que compreende o mundo do trabalho como uma arena de disputas normativas por estima e respeito. Em consonância à literatura sobre dirty work, a visada honnethiana considera que o trabalho traz impactos à identidade de trabalhadores, impactos esses que podem ser deletérios à sua valorização social e vida psicológica (Deranty, 2009Deranty, Jean-Philippe. (2009), "What is work? Key insights from the psychodynamics of work". Thesis Eleven, v. 98, n. 1, pp. 69-87. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0725513609105484
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). É exatamente o sofrimento no trabalho que impulsiona as demandas por estima social, buscando reverter os padrões de denegação de reconhecimento. Vale assinalar que a interpretação da estima social está em acordo com Renault (2019)Renault, Emmanuel. (2019), "Reconhecimento e trabalho". Trabalho & Educação, v. 28, n. 2, pp. 51-62. Disponível em: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2019.14730
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, para quem ela inclui a autorrelação dos trabalhadores, embasada sobretudo na autorrealização e na autoestima. A principal conclusão deste estudo é que as trabalhadoras do webcamming experimentam o sofrimento no trabalho ao se depararem com o estigma da prostituição, vendo-se tratadas com desprestígio e desprezo social, tomadas como pessoas menos dignas. É exatamente essa situação de desrespeito que as impulsiona a gerirem a mácula de si mesmas e sua atividade, em busca de assumir o trabalho sexual que elas exercem de modo digno. Para tanto, elas avançam uma dinâmica da normalização mediada por demandas por reconhecimento, demandas essas que aparecem em narrativas sobre o autodesenvolvimento pessoal e a autossegurança proporcionados pelo camming. Ainda que elas apostem em uma estratégia individual e voltada à sua identidade, este estudo argumenta que essa é uma forma de resistência no universo de ocupações duplamente maculadas como o trabalho sexual. Como evidenciam os estudos sobre o tema, uma das marcas do antagonismo no trabalho sexual são exatamente as formas de enfretamento individuais e pessoais ao estigma (Weitzer, 2017Weitzer, Ronald. (2017), "Resistance to sex work stigma". Sexualities, v. 0, n. 00, p. 1-13. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1363460716684509
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), que precisam ser seriamente consideradas na literatura sobre trabalho de modo mais amplo.
Dirty Works: Em Direção às Ocupações Duplamente Maculadas
Debates contemporâneos na sociologia do trabalho e das profissões têm retomado a noção de dirty works de Everett Hughes para refletir sobre a divisão moral do trabalho, concentrando-se na hierarquia de status das ocupações e sua reverberação na formação da identidade profissional e pessoal de trabalhadores. Os dirty works são trabalhos considerados física, social e moralmente repugnantes ou degradantes, marcados por uma mácula que os posiciona desfavoravelmente no regime de atribuição de status e valor social (Hughes, 1958Hughes, Everett. (1958), Men and their work. New York: Free Press.). Eles compõem o conjunto dos trabalhos maculados. Como demonstra Hughes (1962)Hughes, Everett. (1962), “Good people and dirty work”. Social Problems, v. 10, n. 1, pp. 3-11. Disponível em: https://doi.org/10.2307/799402
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, pessoas que atuam nesses trabalhos são estigmatizadas em sua identidade profissional e pessoal, envolvendo-se em processos e estratégias de gestão da identidade para conseguirem lidar com a desvalorização social de sua atividade laboral, de sua posição profissional e de si mesmas.
Dentre os trabalhos pioneiros a recuperar a ideia de dirty work estão Ashforth e Kreiner (1999)Ashforth, Blake; Kreiner, Glen. (1999), "How can you do it? Dirty work and the challenge of constructing a positive identity". The Academy of Management Review, v. 24, n. 3, pp. 413-434. Disponível em: https://doi.org/10.2307/259134
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, Kreiner et al. (2006)Kreiner, Glen et al. (2006), "Identity dynamics in occupational dirty work: Integrating social identity and system justification perspectives". Organization Science, v. 17, n. 5, pp. 619-636. Disponível em: https://psycnet.apa.org/doi/10.1287/orsc.1060.0208
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e Ashforth et al. (2007)Ashforth, Blake et al. (2007), "Normalizing dirty work: Managerial tactics for countering occupational taint". Academy of Management Journal, v. 50, n. 1, pp. 149-174. Disponível em: https://psycnet.apa.org/doi/10.5465/AMJ.2007.24162092
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. Tais textos questionam as possibilidades de conquista de uma identidade social estimada para trabalhadores de dirty works, demonstrando as estratégias individuais e coletivas desenvolvidas para lidar com o status social do trabalho e sua mácula moral. A principal contribuição dos autores foi chamar a atenção para os desafios em construir identidades estimadas em trabalhos maculados e para os múltiplos processos envolvidos na normalização de dirty works. A inclusão da profundidade e amplitude dos estigmas realizada por Kreiner et al. (2006)Kreiner, Glen et al. (2006), "Identity dynamics in occupational dirty work: Integrating social identity and system justification perspectives". Organization Science, v. 17, n. 5, pp. 619-636. Disponível em: https://psycnet.apa.org/doi/10.1287/orsc.1060.0208
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complexifica as dinâmicas de normalização, demonstrando os diferentes obstáculos para a produção de identidades positivadas em dirty works. Tal discussão inclui o conceito de estigma segundo Goffman (1988)Goffman, Erving. (1988), Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar., compreendido como um processo de valoração moral dos sujeitos a partir de categorias normativas que definem atributos negativos e deletérios de determinadas identidades. Sujeitos estigmatizados se deparam com obstáculos às interações e à estima social, sendo apartados das relações de valorização moral constituídas socialmente. A noção salienta outros dois pontos cruciais: a possibilidade de manuseio das identidades estigmatizadas com vistas a minimizar os impactos do estigma sobre os sujeitos e a centralidade das identidades pessoais como motores de lutas sociais (Goffman, 1988Goffman, Erving. (1988), Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar.; Ashforth, Kreiner, 1999). A partir desse arcabouço, os estudos pioneiros afirmaram que estratégias individuais de normalização de dirty works compunham o escopo dos antagonismos desenvolvidos no mundo do trabalho (Ashforth et al., 2007Ashforth, Blake et al. (2007), "Normalizing dirty work: Managerial tactics for countering occupational taint". Academy of Management Journal, v. 50, n. 1, pp. 149-174. Disponível em: https://psycnet.apa.org/doi/10.5465/AMJ.2007.24162092
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). Destarte, eles salientaram que dinâmicas de identificação, desidentificação e identificação ambivalente de trabalhadores em relação aos seus dirty works eram modos de se posicionar politicamente e responder às pressões sociais e laborais associadas aos trabalhos maculados.
Ainda que as pesquisas pioneiras tenham sido fundamentais para demonstrar a complexidade das hierarquias de prestígios envolvidas na divisão social do trabalho e para evidenciar as principais estratégias adotadas por trabalhadores para conter a mácula moral dos dirty works, elas perdem de vista aspectos socioculturais fundantes de trabalhos maculados, que concorrem para permitir ou impedir a gestão dos estigmas e das identidades (Simpson et al., 2012Simpson, Ruth et al. (2012), "Introducing dirty work, concepts and identities", in R. Simpson et al. (orgs.), Dirty work: concepts and identities. London: Palgrave McMillian, pp. 1-19.). Uma contribuição central nessa direção vem de autores que buscaram ampliar a gama dos trabalhos considerados “dirty”, dentre os quais estão trabalhos feminizados e racializados como o doméstico (Jervis, 2001Jervis, Lori. (2001), "The pollution of incontinence and dirty work of care giving in a UN nursing home". Medical Anthropology Quarterly, v. 15, n. 1, pp. 84-99. Disponível em: https://doi.org/10.1525/maq.2001.15.1.84
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; Duffy, 2007Duffy, Mignon. (2007), "Doing the dirty work. Gender, race, and reproductive labor in historical perspective". Gender & Society, v. 21, n. 3, pp. 313-336. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0891243207300764
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) e de cuidado (Stacey, 2005Stacey, Clare. (2005), "Finding dignity in dirty work: The constraints and rewards of low-wage home care labour". Sociology of Health & Illness, v. 27, n. 6, pp. 831-854. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1467-9566.2005.00476.x
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; Noon, Blyton, 2007), além do trabalho sexual (Brewis, Linstead, 2000; Kong, 2006Kong, Travis. (2006), "What it feels like for a whore: The body politics of women performing erotic labour in Hong Kong". Gender, Work and Organization, v. 13, n. 5, pp. 409-434. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1468-0432.2006.00315.x
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; Grandy, 2008Grandy, Gina. (2008), "Managing spoiled identities: Dirty workers' struggle for a favourable sense of self". Qualitative Research in Organizations and Management, v. 3, n. 3, pp. 176-198.; Grandy, Mavin, 2012). Tal literatura questiona a constituição da categoria dirty work, argumentando que marcadores sociais da diferença são fundantes de trabalhos maculados. Marcadores de gênero, raça, sexualidade e classe fundamentam o status social de determinados trabalhos e de seus trabalhadores (enquanto profissionais e sujeitos sociais). A contribuição desses estudos é avançar a compreensão das várias camadas de produção dos dirty works, que incluem a posição social da atividade laboral em si e daqueles que tradicionalmente a executam.
Como demonstram Simpson et al. (2012)Simpson, Ruth et al. (2012), "Introducing dirty work, concepts and identities", in R. Simpson et al. (orgs.), Dirty work: concepts and identities. London: Palgrave McMillian, pp. 1-19., o baixo status de determinadas ocupações nas hierarquias da divisão social do trabalho se relaciona diretamente com a baixa estima social dos próprios trabalhadores. A partir dessa constatação, o problema da gestão da identidade em trabalhos maculados ganha outros contornos. Esse processo passa a depender de como determinados indivíduos marcados por gênero, raça, classe, sexualidade etc. vão ser capazes de mobilizar recursos simbólicos e morais para resistir aos estigmas e construir uma identidade estimada (Stacey, 2005Stacey, Clare. (2005), "Finding dignity in dirty work: The constraints and rewards of low-wage home care labour". Sociology of Health & Illness, v. 27, n. 6, pp. 831-854. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1467-9566.2005.00476.x
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; Kong, 2006Kong, Travis. (2006), "What it feels like for a whore: The body politics of women performing erotic labour in Hong Kong". Gender, Work and Organization, v. 13, n. 5, pp. 409-434. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1468-0432.2006.00315.x
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). Os trabalhadores, portanto, precisam lidar com os limites morais e simbólicos das diferenças e desigualdades estabelecidas por marcadores sociais a fim de serem tomados como “boas pessoas” exercendo “dirty works” (Grandy, Mavin, 2012). Desse modo, complexifica-se as dinâmicas de antagonismos discutidas pela literatura pioneira, evidenciando as pressões adicionais trazidas por marcadores sociais da diferença. Como pontuam Simpson et al. (2012)Simpson, Ruth et al. (2012), "Introducing dirty work, concepts and identities", in R. Simpson et al. (orgs.), Dirty work: concepts and identities. London: Palgrave McMillian, pp. 1-19., dirty works atravessados por marcadores demandam uma junção de estratégias que incluam a identidade dos trabalhadores como elemento central das disputas morais no mundo do trabalho.
No trabalho sexual, objeto deste estudo, há outras duas dimensões fundamentais a serem consideradas. Brewis e Linstead (2000)Brewis, Joanna; Linstead, Stephen. (2000), Sex, work and sex work. eroticizing organization. London and New York: Routledge. e Kong (2006)Kong, Travis. (2006), "What it feels like for a whore: The body politics of women performing erotic labour in Hong Kong". Gender, Work and Organization, v. 13, n. 5, pp. 409-434. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1468-0432.2006.00315.x
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argumentam que esse é um trabalho liminar, situado na fronteira entre o trabalho e o não trabalho. Consequentemente, lida com a falta de status de trabalho, fator que compõe sua posição como dirty work. Adicionalmente, no trabalho sexual, os trabalhadores serão considerados maculados por aquilo que eles fazem, mas também por aquilo que eles são (Grandy, Mavin, 2012). Isso se traduz no estigma da prostituta, que reúne as máculas física, social e moral (Brewis, Linstead, 2000; Da Silva, 2015Da Silva, Ana Paula. (2015), "Trabalho sexual: entre a conquista de direitos e o processo de vitimização". Novos Debates, v. 2, n. 1, pp. 223-231.), tornando o trabalho sexual um caso extremo de dirty work (Kong, 2006Kong, Travis. (2006), "What it feels like for a whore: The body politics of women performing erotic labour in Hong Kong". Gender, Work and Organization, v. 13, n. 5, pp. 409-434. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1468-0432.2006.00315.x
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). Nesse estigma, congrega-se um conjunto de degradações que se voltam ao trabalho, ao trabalhador e à toda a indústria do sexo, complexificando ainda mais a condição de trabalhadores sexuais buscarem uma identidade social e laboral estimada. Em ocupações duplamente maculadas, estratégias individuais de resistência assumem uma posição primordial. Pesquisas dedicadas a compreender os mercados de sexo e erotismo têm demonstrado que trabalhadores sexuais administram o estiga ao separar a vida profissional e pessoal (Dewey et al., 2020Dewey, Susan et al. (2020), "Control creep and the multiple exclusions faced by women in low-autonomy sex industry sectors". Vibrant, v. 17, pp. 1-25. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1809-43412020v17d457
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; da Silva, 2015Da Silva, Ana Paula. (2015), "Trabalho sexual: entre a conquista de direitos e o processo de vitimização". Novos Debates, v. 2, n. 1, pp. 223-231.; da Silva, Blanchette, 2011), salientar as qualidades e vantagens do trabalho sexual (Grittner, Walsh, 2020; Guimarães, Merchán-Hamann, 2005; Fonseca, Pasini, 1998), sublinhar os benefícios pessoais e financeiros (Grittner, Walsh, 2020; Kingston, 2013Kingston, Sarah. (2013), Prostitution in the community. Attitudes, action and resistance. London: Routledge.; França, 2017França, Marina. (2017), "A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares". Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 25, pp. 134-155. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2017.25.07.a
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; Pasini, 2005Pasini, Elisiane. (2005), "Sexo para quase todos: a prostituição feminina na Vila Mimosa". Cadernos Pagu, n. 25, pp. 185-216. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-83332005000200008
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) e contrastar a venda de sexo e erotismo com outras ocupações socialmente normalizadas, evidenciando suas similaridades (Benoit et al., 2018Benoit, Cecilia et al. (2018), "Prostitution stigma and its effects on the working conditions, personal lives, and health of sex workers". The Journal of Sex Research, v. 55, n. 4-5, pp. 457-471. Disponível em: https://doi.org/10.1080/00224499.2017.1393652
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; Weitzer, 2017Weitzer, Ronald. (2017), "Resistance to sex work stigma". Sexualities, v. 0, n. 00, p. 1-13. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1363460716684509
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). Tais táticas são produzidas majoritariamente individual e discursivamente, sendo socializadas nas trocas interpessoais e íntimas entre trabalhadores sexuais (Weitzer, 2017Weitzer, Ronald. (2017), "Resistance to sex work stigma". Sexualities, v. 0, n. 00, p. 1-13. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1363460716684509
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). Mesmo os estudos centrados nas coalizões de trabalhadores sexuais (majoritariamente em associações) reconhecem a centralidade e a relevância dessas resistências granulares e individualizadas (Rodrigues, 2021Rodrigues, Marlene. (2021), "Prostituição, neoconservadorismo e pandemia. o movimento de prostitutas e os desafios da Covid-19". Em Pauta, v. 19, n. 48, pp. 169-182. Disponível em: https://doi.org/10.12957/rep.2021.60304
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; Murray et al., 2018Murray, Laura et al. (2018), "Rites of resistance: Sex worker's fight to maintain rights and pleasure in the centre of the response to HIV in Brazil". Global Public Health, v. 14, n. 6-7, pp. 939-953. Disponível em: https://doi.org/10.1080/17441692.2018.1510020
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).
Dentro do panorama investigativo apresentado, busco ampliar a compreensão dos mecanismos acionados por trabalhadores sexuais para gerirem a mácula de seu trabalho e fundamentarem uma identidade laboral e pessoal estimada. Tomo as formas de resistência e antagonismo individuais, pessoais e discursivas como estratégias de disputa no mundo do trabalho. Argumento que a dimensão do reconhecimento tal como pensada em Honneth (2008)Honneth, Axel. (2008). "Trabalho e reconhecimento: tentativas de uma redefinição". Civitas, v. 8, n. 1, pp. 46-67. Disponível em: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2008.1.4321
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é crucial, pois trabalhadores sexuais buscam mais que a validação social de si mesmos e de suas atividades, procurando conquistar uma estima que prevê a valorização de quem são e de suas capacidades, reverberando, consequentemente, em autoestima e autoconfiança. A contribuição deste trabalho à literatura sobre dirty works é avançar na compreensão dos desdobramentos do gerenciamento da identidade em ocupações maculadas, descentralizando a dimensão de validação (enfoque central de Ashforth e Kreiner, 1999Ashforth, Blake; Kreiner, Glen. (1999), "How can you do it? Dirty work and the challenge of constructing a positive identity". The Academy of Management Review, v. 24, n. 3, pp. 413-434. Disponível em: https://doi.org/10.2307/259134
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) e desvelando a de valorização individual (pessoal) e do trabalho. Ademais, considerando o trabalho sexual como um caso extremo de dirty work, este artigo evidencia como as estratégias desenvolvidas por trabalhadores visa a conquista de autoestima e autoconfiança (indo muito além de apenas reverter ou reconfigurar a mácula).
Reconhecimento e Mundo do Trabalho
A fim de refletir sobre a dimensão do reconhecimento em dirty works, este artigo se baseia primordialmente nas reflexões de Honneth (2008)Honneth, Axel. (2008). "Trabalho e reconhecimento: tentativas de uma redefinição". Civitas, v. 8, n. 1, pp. 46-67. Disponível em: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2008.1.4321
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, que apontam o mundo do trabalho como uma arena de demandas com caráter normativo com potencial de produzir um avanço moral das relações sociais e laborais. Por conseguinte, o trabalho enquanto atividade humana é tomado para além de seu significado para a subsistência, considerando seu papel para a satisfação e autorrealização dos indivíduos. Como Honneth (1982)Honneth, Axel. (1982), "Work and instrumental action: On the normative basis of critical theory". Thesis Eleven, v. 5-6, n. 1, pp. 162-184. Disponível em: https://doi.org/10.1177/072551368200500112
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propõe, o trabalho congrega um potencial de autodesenvolvimento e autoconsciência do trabalhador enquanto um sujeito social. O autor atenta para o vínculo entre as dimensões coletivas e individuais no mundo do trabalho, enfatizando o processo de formação do self que ocorre em meio às demandas normativas que podem ser desdobradas desde o indivíduo. Fazendo coro ao argumento honnethiano, Deranty (2009)Deranty, Jean-Philippe. (2009), "What is work? Key insights from the psychodynamics of work". Thesis Eleven, v. 98, n. 1, pp. 69-87. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0725513609105484
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afirma que a experiência laboral impacta o trabalhador de forma prática e subjetiva, incidindo sobre sua identidade. O trabalho, portanto, provoca um rearranjo da vida psicológica que pode potencialmente ser fonte de libertação por meio de autoafirmação e autorrealização (Deranty, 2009Deranty, Jean-Philippe. (2009), "What is work? Key insights from the psychodynamics of work". Thesis Eleven, v. 98, n. 1, pp. 69-87. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0725513609105484
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).
As dinâmicas de busca por reconhecimento se iniciam baseadas em um sofrimento dentro do mundo do trabalho que impulsiona os sujeitos a questionarem os padrões a partir dos quais eles e sua atividade são avaliados (Smith, Deranty, 2012). Assim, em primeira instância, é a denegação de reconhecimento o propulsor central das dinâmicas conflitivas de contestação (Honneth, 1996Honneth, Axel. (1996), "Reconocimiento y obligaciones morales". Revista Internacional de Filosofía Política, n. 8, pp. 5-17. Disponível em: https://doi.org/10.17533/udea.espo.16430
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). Em dirty works, está claro que a mácula socialmente atribuída a ocupações nesse estrato é identificada como uma forma de sofrimento que necessita ser gerida para que os trabalhadores não permaneçam sendo desrespeitados e inestimados. As práticas de gestão da identidade descritas por Ashforth e Kreiner (1999)Ashforth, Blake; Kreiner, Glen. (1999), "How can you do it? Dirty work and the challenge of constructing a positive identity". The Academy of Management Review, v. 24, n. 3, pp. 413-434. Disponível em: https://doi.org/10.2307/259134
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e Ashforth et al. (2007)Ashforth, Blake et al. (2007), "Normalizing dirty work: Managerial tactics for countering occupational taint". Academy of Management Journal, v. 50, n. 1, pp. 149-174. Disponível em: https://psycnet.apa.org/doi/10.5465/AMJ.2007.24162092
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vão em direção à estima, se inscrevendo no terreno do reconhecimento. A correção da falta de reconhecimento ocorre, para Honneth (2003Honneth, Axel. (2003), Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34., 2008Honneth, Axel. (2008). "Trabalho e reconhecimento: tentativas de uma redefinição". Civitas, v. 8, n. 1, pp. 46-67. Disponível em: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2008.1.4321
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), pela contestação das concepções predominantes de atribuição de valor, embasando novas expectativas normativas de reconhecimento. E essas expectativas relativas ao universo do trabalho se constroem sobretudo no âmbito da estima social. Vale pontuar que a busca por estima é um empreendimento histórico de trabalhadores sexuais (Benoit et al., 2018Benoit, Cecilia et al. (2018), "Prostitution stigma and its effects on the working conditions, personal lives, and health of sex workers". The Journal of Sex Research, v. 55, n. 4-5, pp. 457-471. Disponível em: https://doi.org/10.1080/00224499.2017.1393652
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; Agustín, 2007Agustín, Laura. (2007), Sex at the margins. migration, labour markets and the rescue industry. London: Zed Books.). Como pontua Weitzer (2017)Weitzer, Ronald. (2017), "Resistance to sex work stigma". Sexualities, v. 0, n. 00, p. 1-13. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1363460716684509
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, porque a mácula moral recai diretamente sobre a identidade pessoal, trabalhadores sexuais buscam desenvolver estratégias para reposicionarem seu self a fim de agregar valor social a seu trabalho. O autor demonstra que profissionais do sexo congregam individual e coletivo em seus esforços para gerirem o estigma, estabelecendo processos de diálogo com o social no processo de ressignificar sua posição nas escalas valorativas. Em suma, parte-se de um deslocamento dos sentidos sobre o si mesmo para reivindicar um posicionamento moral coletivamente valorizado.
A estima se constrói em meio a um sistema referencial valorativo que informa sobre o mérito das capacidades particulares de pessoas ou grupos (Honneth, 2003Honneth, Axel. (2003), Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34.). Tal sistema é partilhado intersubjetivamente no seio da sociedade e, afirma Renault (2019)Renault, Emmanuel. (2019), "Reconhecimento e trabalho". Trabalho & Educação, v. 28, n. 2, pp. 51-62. Disponível em: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2019.14730
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, é materializado na divisão social do trabalho. Ele também está na base da definição dos dirty works e incide nos mecanismos de resistência à mácula incutida nessas ocupações (Simpson et al., 2012Simpson, Ruth et al. (2012), "Introducing dirty work, concepts and identities", in R. Simpson et al. (orgs.), Dirty work: concepts and identities. London: Palgrave McMillian, pp. 1-19.). Kong (2006)Kong, Travis. (2006), "What it feels like for a whore: The body politics of women performing erotic labour in Hong Kong". Gender, Work and Organization, v. 13, n. 5, pp. 409-434. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1468-0432.2006.00315.x
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e Selmi (2012)Selmi, Giulia. (2012), "Dirty talks and gender cleanliness: an account of identity management practices in phone sex work", in R. Simpson et al. (orgs.), Dirty work: concepts and identities. London: Palgrave McMillian, pp. 113-125. evidenciam que o horizonte de valores compartilhados é particularmente importante nos processos de normalização do trabalho sexual, impelindo trabalhadores sexuais a administrarem suas identidades de modo a flexibilizar as fronteiras do estimado e do inestimado. Objetivando serem incluídos no âmbito da estima social, trabalhadores sexuais buscam conferir uma expressão social às suas pretensões de subjetividade (Honneth, 2003Honneth, Axel. (2003), Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34.) ao referirem-se a si mesmos como sujeitos autorrealizados, autorrealização essa obtida no seio de seu trabalho. Nesse processo, eles impulsionam uma autorrelação positiva a partir de um deslocamento do trabalho sexual da categoria de dirty work. Assim, seu valor pessoal e o valor de seu trabalho é fundamentado. Por fim, o caso do trabalho sexual dialoga com o apontamento de Renault (2019)Renault, Emmanuel. (2019), "Reconhecimento e trabalho". Trabalho & Educação, v. 28, n. 2, pp. 51-62. Disponível em: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2019.14730
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sobre o reconhecimento como estima no mundo do trabalho. Para além da estima social, há a dimensão da autorrelação dos trabalhadores, que se embasam na autorrealização e na autoestima para resistirem ao sofrimento (e os estigmas) no universo laboral. Esse ponto é primordial para a análise empreendida aqui, uma vez que a busca por estima anda de mãos dadas com a necessidade de fomentar uma autorrelação positiva.
Metodologia
Este artigo se baseia em pesquisa etnográfica realizada entre 2016 e 2020 na indústria erótica de webcams brasileira. O estudo se dividiu em duas etapas. A primeira consistiu em etnografia digital realizada nas duas principais plataformas de webcamming brasileiras, Câmera Hot e Câmera Privê. Optou-se por uma observação não participante visando não perturbar as dinâmicas laborais das trabalhadoras, bem como não expor as participantes do estudo através de eventuais rastros deixados pela pesquisadora em campo (Abidin, 2020Abidin, Crystal. (2020), "Somewhere between here and there: negotiating researcher visibility in a digital ethnography of the influencer industry". Journal of Digital Social Research, v. 2, n. 1, pp. 56-76. Disponível em: https://doi.org/10.33621/jdsr.v2i1.20
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). Ademais, conforme sugere Díaz-Benítez (2009)Díaz-Benítez, María. (2009), Nas redes do sexo: bastidores e cenários do pornô brasileiro. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil., a observação não participante é um método central para acessar as indústrias eróticas brasileiras. Nessa primeira etapa foram observadas as rotinas laborais e a formatação do trabalho sexual nas plataformas. A segunda etapa consistiu em entrevistas em profundidade com trabalhadoras do camming. Este artigo se concentra no material das entrevistas, a ser detalhado na sequência.
Foram realizadas 15 entrevistas em profundidade com trabalhadoras mulheres cisgênero. As entrevistas individuais foram conduzidas entre 2017 e 2018 e as participantes foram selecionadas a partir de amostra de bola de neve (Atkinson, Flint, 2001). Apenas mulheres cisgênero compuseram o corpus do estudo porque elas constituíam a maior parcela da força de trabalho do camming nacional à época das entrevistas. Homens cisgênero, bem como mulheres e homens transgênero, ainda estavam ingressando no webcamming nacional, o que tornou inviável contactá-los para as entrevistas. Todas as entrevistas foram realizadas via Skype, respeitando a preferência das participantes, e todas as interlocutoras assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido concordando em participar voluntariamente do estudo. Pseudônimos escolhidos aleatoriamente pela pesquisadora substituíram o nome das entrevistadas. As 15 participantes tinham entre 20 e 47 anos, com predominância de mulheres de 20 a 25 anos e a maioria não tinha experiência prévia nos mercados de sexo – apenas uma entrevistada trabalhava como “garota de programa”. O tempo de trabalho no camming variava de um a cinco anos. Baseado em autoidentificação, 13 entrevistadas são brancas e apenas duas são negras2 2 . A divisão racial das entrevistadas espelha a composição racial da indústria erótica de webcam no Brasil. Dados levantados pela pesquisa revelam que tal indústria privilegia pessoas brancas e apostam nelas para sua expansão (Caminhas, 2022). (Quadro 1).
: Perfil das trabalhadoras entrevistadas3 3 . A classe social das trabalhadoras não foi tratada durante as entrevistas. Por conseguinte, esse dado não consta na pesquisa.
As questões abordaram as condições de trabalho no camming, as rotinas e dinâmicas laborais e a percepção das trabalhadoras acerca de sua participação na indústria erótica. As perguntas elaboradas consideraram a presença de marcadores como idade, raça e gênero. Entretanto, nas respostas, tais marcadores foram pouco salientes, aparecendo de modo proeminente apenas durante a discussão sobre as estratégias comerciais e técnicas das plataformas para gerenciarem o trabalho sexual. Os diálogos tiveram cerca de uma hora, foram gravados e transcritos literalmente. As entrevistas foram analisadas a partir de codificação textual aberta, distribuindo as respostas em três eixos temáticos: a entrada na indústria de webcamming e os desafios do trabalho; as condições laborais nas plataformas; e a percepção sobre os estigmas no trabalho erótico e seus impactos na autoestima e autopercepção das trabalhadoras.
Gestão do Estigma e Reconhecimento no Trabalho Sexual
Nas entrevistas com as trabalhadoras do camming, duas questões se destacaram. Primeiro, as interlocutoras enfatizam o estigma de seu trabalho e o preconceito que sofrem por serem tidas como “prostitutas virtuais”. Elas argumentam que esse processo deteriora sua autopercepção, mina sua autoestima e impacta em suas relações sociais e íntimas. Segundo, as trabalhadoras buscam demonstrar como o camming oferece oportunidades para a autorrealização e para o reequilíbrio de sua autoestima e autoconfiança. Com essa narrativa, elas buscam afirmar seu trabalho e elas mesmas como dignas de estima social, desvelando o camming como uma atividade socialmente valiosa. Assim, elas desafiam a constituição do camming como dirty work e buscam conquistar um espaço simbólico em que ele seja tido como um trabalho digno (Renault, 2019Renault, Emmanuel. (2019), "Reconhecimento e trabalho". Trabalho & Educação, v. 28, n. 2, pp. 51-62. Disponível em: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2019.14730
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) que proporciona dignidade às trabalhadoras. Destarte, a análise acompanha Honneth (2003)Honneth, Axel. (2003), Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34., para quem são as experiências de desrespeito que movimentam demandas por reconhecimento. No caso analisado, o desrespeito é fortemente sentido no self e na identidade pessoal, que precisam ser (re)valorizados para que seja possível produzir uma ressignificação do próprio dirty work.
O estigma da prostituta no camming
Tomado como um problema e uma desvantagem central do camming, o estigma tem peso distinto para as trabalhadoras. Ele está atrelado a como as mulheres encaram a atividade que exercem (como elas a compreendem e a classificam) e como lidam com a imagem social de seu trabalho (comumente interpretado como “programa virtual”). Piscitelli (2007)Piscitelli, Adriana. (2007), "Shifting boundaries: sex and money in the North-East of Brazil". Sexualities, v. 10, n. 4, pp. 485-500. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1363460707080986
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argumenta que nos mercados de sexo e erotismo o estigma assume diferentes feições a depender dos componentes materiais e simbólicos atrelados ao serviço ofertado. Em todos os casos, a identidade de quem exerce o trabalho sexual é fundamental. No camming, esse fator se destaca por ser uma atividade exercida majoritariamente por mulheres jovens e brancas, que se deparam com uma mácula que acreditam não fazer parte de seu universo. Ainda que o camming seja baseado em performances via streaming e mediado por computadores e webcams, sendo uma prática realizada sem toque físico, socialmente ele é interpretado como “prostituição virtual” e frequentemente usuários desse serviço buscam por sexo presencial com as trabalhadoras. Adicionalmente, a literatura acadêmica sobre o camming reforça essa interpretação, a exemplo dos trabalhos de W. Silva (2014)Silva, Weslei. (2014), O sexo incorporado na web: cenas e práticas de mulheres strippers. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil., W. Silva e Jayme (2015)Silva, Weslei; Jayme, Juliana. (2015), "Strip-tease virtual: representações e práticas ou 'isso' é sexo?". Contemporânea, v. 13, n. 2, pp. 311-328. Disponível em: https://doi.org/10.9771/contemporanea.v13i2.13991
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, A. Silva (2016), inclusive definindo as plataformas como “proxenetas virtuais” (Saldanha, 2017Saldanha, Rafael. (2017), Você Só Precisa Clicar: Sexo Virtual e Masculinidades Refletidas pelas Webcams. Tese (Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas), Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil.). Portanto, não é estranho que o estigma da prostituta acompanhe o cotidiano das trabalhadoras do camming e seja um importante vetor de desrespeito a elas como profissionais e como pessoas. Como discutem Hughes (1962)Hughes, Everett. (1962), “Good people and dirty work”. Social Problems, v. 10, n. 1, pp. 3-11. Disponível em: https://doi.org/10.2307/799402
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e Ashforth e Kreiner (1999)Ashforth, Blake; Kreiner, Glen. (1999), "How can you do it? Dirty work and the challenge of constructing a positive identity". The Academy of Management Review, v. 24, n. 3, pp. 413-434. Disponível em: https://doi.org/10.2307/259134
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, indivíduos envolvidos em dirty works estão inscritos em um sistema que distingue, hierarquiza e desprestigia sua identidade, situando-os como outros abjetos. O trabalho sexual, tomado como “prostituição”, é considerado o espaço da degradação e da exploração física, simbólica e moral, pontuando a corrosão dos valores, do bem-estar físico, da moralidade e da identidade de trabalhadoras sexuais (Da Silva, 2015Da Silva, Ana Paula. (2015), "Trabalho sexual: entre a conquista de direitos e o processo de vitimização". Novos Debates, v. 2, n. 1, pp. 223-231.).
Angélica (27 anos, branca) argumenta que o estigma no camming se relaciona à “marginalização da objetificação feminina”, que seria o mecanismo através do qual toda troca comercial erótico-sexual conduzida por mulheres é tomada como moralmente corrompida. Dentro desse mecanismo está a associação do camming com a prostituição e das trabalhadoras como “garotas de programa virtuais”. Jeniffer (27 anos, branca) reforça esse argumento, afirmando que o preconceito com o trabalho erótico é comum em todos os ramos. Em suas palavras, “muita gente taxa a gente de vagabunda, acham que isso é putaria, trata a gente como se fosse vagabunda”. Lúcia (20 anos, negra) complementa tal interpretação, dizendo que “as pessoas acham que por você estar em um site de cam, você se vende, você não tem caráter, da mesma forma que julgam as garotas de programa”. Eliane (35 anos, branca) explica que “existe muito preconceito com a garota de programa, as pessoas julgam isso errado, ‘nossa, você tá se vendendo, você tá vendendo seu corpo’”. E no camming também é assim: “existe essa ligação, que o que você faz ali é como garota de programa fazendo no real, sempre tem aquele cliente que vai querer que você faça programa”. Tais narrativas aparecem quando as trabalhadoras comentam sobre as desvantagens do camming. As modelos4 4 . O termo modelo é usado comumente no universo do camming e fora dele para se referir às pessoas que atuam na indústria erótica de webcams. O termo se popularizou por ser mais fácil de pronunciar do que a palavra de origem inglesa camgirl que também faz referência às trabalhadoras desse serviço. demonstram que a imagem do trabalho como uma forma de prostituição as atinge diretamente, afetando como elas são vistas e avaliadas socialmente. Tal percepção atravessa a experiência das entrevistadas e o estigma é visto como pervasivo, atingindo todas as trabalhadoras ainda que entre elas haja diferenças de raça, idade e tempo de atuação no camming. Em seus discursos, o desrespeito é tomado como uma forma de sofrimento injusto, relacionado a julgamentos sociais sobre as pessoas que trabalham com sexo comercial.
O discurso de Denise (24 anos, branca) é representativo da posição de parte significativa das entrevistadas. Segundo ela, o ideal seria trabalhar em plataformas estrangeiras, nas quais quase não há usuários brasileiros. Ela relata que inicialmente “eu preferi ir para um site estrangeiro, porque né, eu não quero de repente um amigo meu, alguém da escola ou faculdade, me veja né. É uma coisa que eu realmente não quero”. Denise pôde fazer essa escolha porque ela tem domínio suficiente do inglês para interagir com a audiência internacional – o que não corresponde à situação da maioria das entrevistadas. Mesmo após ingressar em plataformas nacionais, Denise afirma não querer “que ninguém que eu conheça me veja. Como eu morei em três cidades, eu bloqueei aquelas cidades”. Sua decisão se deve ao fato de que “as modelos sofrem muitos preconceitos sim, porque se eu não achasse isso eu assumiria. (...) eu nunca falei para ninguém para ver qual seria a reação, mas eu acho que não seria bem-visto”. O caso de Denise pontua que o peso do estigma incide na decisão de revelar ou esconder o trabalho no camming para pessoas de convívio próximo, inclusive na decisão de onde e como trabalhar. Destarte, o caso evidencia mais uma dimensão em que o estigma promove desrespeito, impelindo as modelos a se “esconderem” porque “nenhuma menina quer ser vista como garota de programa”. Também demonstra como o estigma afeta as oportunidades laborais, já que as trabalhadoras precisam limitar sua participação no mercado erótico para evitarem o desrespeito.
Os desdobramentos do estigma na vida das modelos ficam patentes na fala de Jennifer: “no começo eu tinha muita vergonha (...) não é fácil, tem muita gente que se afasta, a família não aceita, algumas têm dificuldade de arranjar namorado”. Muitas trabalhadoras relatam ter enfrentado o preconceito de frente, destacando como a avaliação social estigmatizante atinge suas identidades pessoais (e não apenas a laboral). Beatriz (19 anos, branca) conta que muitas pessoas próximas a taxaram pejorativamente de prostituta. Em suas palavras, “na verdade, alguns amigos demoraram a entender, porque stripper virtual é muito comum fora do país, mas aqui é complicado”. Ela afirma ter se afastado de muitas pessoas e ter enfrentado muitas barreiras para revelar seu trabalho à família. Sua narrativa pontua que a venda de performances sexuais online causou muitos prejuízos à sua vida social e familiar, mas também à sua autopercepção, dado que ela precisou negociar consigo mesmo sua posição como camgirl para decidir se afastar de determinadas convivências. Cibele (21 anos, branca) traz relato similar. Segundo ela, modelos de cidades pequenas “sofrem muito preconceito pela vizinhança que vê elas como prostitutas mesmo, como menos gente”. Assim, essas trabalhadoras preferem esconder o rosto, bloquear a cidade em que vivem, acobertar seu trabalho e, em casos mais severos, romper relações de amizade, familiares e íntimas para não sofrerem com o estigma. Essas estratégias estão, frequentemente, inseridas em um processo de reflexão das modelos sobre quem elas são e como elas querem se posicionar, buscando afirmar uma posição menos estigmatizada. Assim, elas lidam com um ajuste de suas identidades, buscando encontrar modos e brechas de enquadrá-las para além do preconceito com seu trabalho e consigo mesmas, o que implica correntemente o rompimento de laços e convivências. Nas entrevistas, o estigma da prostituição foi diretamente relacionado à identidade de gênero das modelos; contudo, a identidade racial não foi mencionada5 5 . Vale notar que isso se deve à homogeneidade das entrevistadas no que diz respeito à raça, sendo a maioria branca. Adicionalmente, isso se relaciona à homogeneidade da própria indústria de webcams à época da investigação. Salienta-se que as discussões sobre raça foram levantadas durante as entrevistas e foram amplamente comentadas pelas entrevistadas no que tange à entrada e permanência no mercado, bem como aos mecanismos de controle do trabalho utilizados pelas plataformas. Entretanto, em relação ao estigma, o fator racial não foi trazido à tona como um agravante ou um diferencial em termos da experiência de desrespeito. Reconhece-se que essa pode ser considerada uma limitação deste estudo e de suas conclusões. . Isso se explica porque o enfoque das narrativas recaiu na ideia de que o preconceito é embasado em uma subversão dos papéis de gênero provocada por todas as mulheres que comercializam sexo.
As trabalhadoras compreendem a conjuntura sociocultural em que o estigma se materializa. Segundo elas, o trabalho sexual assume o estrato mais baixo nas hierarquias de valoração social, marcando aquelas pessoas que o exercem como menos dignas de respeito. Em seus discursos, há o reconhecimento de que as divisões e os papeis sociais de gênero têm um importante papel na estigmatização do trabalho sexual (Da Silva, 2015Da Silva, Ana Paula. (2015), "Trabalho sexual: entre a conquista de direitos e o processo de vitimização". Novos Debates, v. 2, n. 1, pp. 223-231.). Gisele (19 anos, negra) afirma que “tem aquela coisa de achar que todo mundo é puta no Brasil”, usando essa alcunha para identificar todas as mulheres que desrespeitam as convenções sociais de gênero e sexualidade. Fernanda (26 anos, branca) avança esse argumento, enfatizando que o preconceito vem “desse modelo patriarcal, o tipo de religião né, que fundamentou nosso modelo social, que mostra que a mulher tem que ser recatada, de que o nosso corpo tem que tá sempre tampado né”. Devido a esse fato, trabalhadoras sexuais são “marcadas como pessoas menos dignas, sofrendo bastante preconceito. Nós somos vistas como pessoas menos dignas porque a gente expõe totalmente a nossa sexualidade”. Apesar de reconhecerem a fonte do estigma e compreenderem sua injustiça, as modelos admitem que ele impacta em como elas agem no trabalho e no cotidiano e até mesmo em como elas se veem e se apresentam. Pegando emprestado os termos de Honneth (2003)Honneth, Axel. (2003), Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34., elas buscam evidenciar como padrões valorativos têm sido responsáveis por desrespeitar e degradar a condição de vida de trabalhadoras sexuais. Formular uma identidade que se dissocie do estigma da prostituta é fundamental porque, como afirma Fernanda, “eu penso: ‘poxa, amanhã, depois eu posso precisar de outro emprego, (...), tem essa preocupação, de quem eu vou ser ou como vou ser vista”. Fernanda revela que ser taxada de prostituta, em tom pejorativo, tem impacto social e pessoal, criando impedimentos reais em suas possibilidades de buscar outras ocupações e outras posições na sociedade.
Enfrentar o estigma
O impacto do estigma na vida das trabalhadoras é minimamente mitigado quando elas conseguem administrá-lo de modo a ressignificar o seu trabalho para além da mácula e estabelecer uma relação positiva consigo mesmas. A literatura sobre trabalho sexual assinala que esse processo de administração da mácula é central às trabalhadoras sexuais, sobretudo para as mulheres (Da Silva, 2015Da Silva, Ana Paula. (2015), "Trabalho sexual: entre a conquista de direitos e o processo de vitimização". Novos Debates, v. 2, n. 1, pp. 223-231.; Guimarães, Merchán-Hamann, 2005). É no processo de enfrentamento que elas conseguem reconhecer a fonte do desrespeito e a necessidade de suplantá-la, procurando aí desdobrar suas pretensões de reconhecimento (Deranty, 2009Deranty, Jean-Philippe. (2009), "What is work? Key insights from the psychodynamics of work". Thesis Eleven, v. 98, n. 1, pp. 69-87. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0725513609105484
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). Como evidenciam Honneth (2008)Honneth, Axel. (2008). "Trabalho e reconhecimento: tentativas de uma redefinição". Civitas, v. 8, n. 1, pp. 46-67. Disponível em: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2008.1.4321
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e Smith e Deranty (2012)Smith, Nicholas; Deranty, Jean-Philippe. (2012), "Work and the politics of misrecognition". Res Publica, v. 18, pp. 53-64. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s11158-012-9185-3
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, ter tais pretensões atendidas é essencial para o bem-estar subjetivo e no trabalho, criando possibilidades de trabalhadores se autorrealizarem. Anelise (22 anos, branca) contou que escondeu seu trabalho por um ano, mas atualmente “não escondo de ninguém”. A consequência disso foram “mudanças psicológicas e no meu rendimento, o rendimento no sentido de lidar com as situações, sabe”. Só assim ela pôde “ter orgulho do que eu faço e não ter vergonha, porque não é algo de se envergonhar”. Somente após gerir o estigma de modo a interpretar o camming como um trabalho digno (e não como um vetor de degradação), Anelise pôde posicionar a si mesma como alguém que não precisa se esconder e se envergonhar. Assumir seu trabalho permitiu que a modelo também se reposicionasse para além da mácula voltada à prostituta. Angélica passou por processo similar e começou a assumir sua atuação no camming quando “eu comecei a ver que aquilo não correspondia, não era a opinião de ninguém, eu comecei a não me importar mais com o que as pessoas fossem pensar”. O camming correspondia, para a modelo, à sua experiência como trabalhadora e não à mácula atribuída externamente. Ao confrontar a estigmatização, ela afirma que “eu vejo que eu tenho uma resposta que me conforta, entende”, resposta essa que dependeu de gerenciar a representação de seu trabalho e a representação de si mesma enquanto uma pessoa que exerce tal trabalho.
Fernanda também vê o ato de assumir seu trabalho publicamente como uma tática de enfrentamento e como uma forma de demandar uma reavaliação do valor e do status do camming. Em suas palavras, “eu tenho uma preocupação em relação ao impacto social [de se exibir nua na webcam]”, mas “eu também estou aprendendo a obter esse desapego né, desse impacto social com o passar dos meses, vendo com mais naturalidade, falando com mais naturalidade do trabalho né”. A modelo enfatiza que “ali é uma exposição minha, e é natural, eu tô fazendo uma coisa natural pra mim”. Em sua narrativa, ela demonstra que o potencial emancipatório de afirmar seu trabalho como algo “natural”, no sentido de ser uma escolha laboral como tantas outras. Jeniffer igualmente prefere sustentar sua identidade como trabalhadora do camming, opondo-se ao sofrimento de ceder ao estigma. Para ela, “hoje em dia, a maioria das pessoas que eu conheço sabe o que eu faço, algumas pessoas se afastaram”; entretanto, “as pessoas mais importantes na minha vida estão sempre comigo, elas não me julgam”. Ela relata que o apoio foi essencial para que ela continuasse no camming e conseguisse interpretá-lo como uma atividade que permitia seu autodesenvolvimento. De todas as entrevistadas, Jennifer é a que mais chama a atenção para a centralidade desse processo de enfrentamento para a constituição de sua identidade e para a sua autoconfiança.
As quatro modelos apresentadas acima representam o caso de trabalhadoras que passaram por um período de transição entre esconder e assumir seu trabalho, obtendo com esse processo uma paulatina autoconfiança ao serem capazes de gerenciar a mácula do camming. Elas demonstram que esse processo é fundamental para reinterpretar o trabalho que exercem e a si mesmas, sendo capazes de “assumirem quem são”. Essas narrativas demonstram que a busca por uma estima social depende, antes, de uma autorrelação positiva que permita as modelos enfrentarem as hierarquias de valoração social (Renault, 2019Renault, Emmanuel. (2019), "Reconhecimento e trabalho". Trabalho & Educação, v. 28, n. 2, pp. 51-62. Disponível em: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2019.14730
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). Em contraposição, há casos de modelos que sempre buscaram assumir seu trabalho no erotismo, reconhecendo que só assim elas poderiam enfrentar a mácula desse universo. Cibele (21 anos, branca) afirma nunca ter tido problema em ser reconhecida e em dizer que trabalha com camming. Para ela, “se você que realmente ganhar dinheiro e viver livre, não tem por que você ficar se escondendo. É triste você viver uma vida dupla”. Milena (25 anos, branca) concorda com Cibele e enfatiza: “não estou fazendo nada de errado, nem mal para ninguém. Então não tenho por que me esconder!”. Nicole (20 anos, branca) e Lúcia também optaram por tornar pública sua atuação no camming. Segundo Nicole, “eu nunca precisei me esconder, eu tô fazendo isso e ninguém tem nada a ver, então eu vou fazer sendo eu mesma”. Lúcia concorda: “eu nunca tive essa questão de me esconder ou mentir. A maioria das camgirls não mostra o rosto, eu coloco fotos do meu rosto, eu nunca tive problema”. Essas modelos relatam terem falado abertamente para familiares e amigos sobre sua entrada no camming, considerando essa a única forma de resistir às pressões do estigma para que elas se envergonhassem do seu trabalho e de si mesmas.
Entretanto, vale assinalar que assumir uma postura de enfrentamento tem um impacto direto na vida social e psicológica das trabalhadoras. Lúcia conta que “como eu sempre deixo bem aberto o que eu sou, as pessoas têm um certo receio para se relacionarem, outras julgam você sem te conhecer, usam isso para falar uma coisa que na verdade você não é”. E complementa: “alguns conhecidos que me julgaram, que me criticaram, eu simplesmente deletei da minha vida”. Assim, se revelar como trabalhadora do camming abalou as possibilidades de novos relacionamentos e até mesmo interveio em relações estabelecidas, gerando rompimentos. Tais rompimentos não ocorrem sem sentimento de rejeição e perda para as trabalhadoras, mas figuram como efeitos colaterais de um processo necessário para resistir à mácula de seu trabalho. Nicole igualmente relata ter sofrido com sua postura combativa: “se para fotos nuas as pessoas já têm um tabu, imagina quem tá ali se exibindo em uma webcam e se masturbando ainda por cima, a maior parte das pessoas não aceitam isso e te julgam né: tá fazendo isso porque é puta”. Para Nicole, além do rompimento de relações íntimas, pesou muito a vulnerabilidade a assédios e perseguições no online e fora dele – uma das principais consequências de se assumir trabalhadora do camming. Essas trabalhadoras pontuam a necessidade de conquistar estima para que suas estratégias de enfrentamento funcionem. Ainda que elas tenham tido a coragem de resistir ao estigma, elas ainda sofrem suas consequências exatamente por serem vistas como pessoas moralmente inferiores. Como os entraves à gestão da mácula se sobressaem, cabe a elas demonstrar os processos de autorrelação positiva permitidos por e no trabalho, tal como pontua Renault (2019)Renault, Emmanuel. (2019), "Reconhecimento e trabalho". Trabalho & Educação, v. 28, n. 2, pp. 51-62. Disponível em: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2019.14730
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, como condição de fundamentar um campo no qual a estima social possa ser auferida.
Vale assinalar que são três fatores principais que fazem com que parte das entrevistadas possuam segurança suficiente para se revelarem como trabalhadoras sexuais, contrapondo-se às pressões do estigma. Primeiro, a divisão social do trabalho sexual, que é estabelecida em escalas que determinam a amplitude e a profundidade do estigma. Como explica Kong (2006)Kong, Travis. (2006), "What it feels like for a whore: The body politics of women performing erotic labour in Hong Kong". Gender, Work and Organization, v. 13, n. 5, pp. 409-434. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1468-0432.2006.00315.x
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, ainda que todo trabalho sexual seja dirty work, aqueles serviços que envolvem mais contato físico e proximidade com os clientes tendem a ser mais maculados. Portanto, porque o camming é uma atividade remota e se baseia mais na estimulação sexual (Bleakley, 2014Bleakley, Paul. (2014), "500 tokens to go private: Camgirls, cybersex and feminist entrepreneurship". Sexuality & Culture, v. 8, n. 4, pp. 892-910. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s12119-014-9228-3
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), ele se posiciona em um patamar mais elevado nas escalas valorativas. Segundo, as trabalhadoras consideram o camming como um trabalho de fato, que responde a uma demanda social por erotismo e sexo. Assim, elas agem em consonância com a posição profissional que elas acreditam ocupar: como trabalhadoras especializadas em estimulação sexual. Terceiro e último, o camming aparece como um terreno de desenvolvimento pessoal, que permite desenvolver a autoestima e a autoconfiança das trabalhadoras como profissionais e como mulheres. É justamente esse último elemento que as impele ressignificar seu trabalho, colocando-o como um espaço valoroso para as trabalhadoras não apenas como fonte de renda, mas como fonte de autorrealização.
Autorrealização e autoestima
As narrativas de minhas entrevistadas consideram os estigmas como mecanismos de depreciação de sujeitos e grupos, responsáveis por corroer as relações sociais e a autorrelação individual. As trabalhadoras pontuam a mácula da prostituição e suas consequências diretas: rompimento de relações íntimas, dificuldades para estabelecer novos relacionamentos, restrições autoimpostas, encobertar atividade profissional, medo de violências física e simbólicas. Por conseguinte, elas relatam um processo de ausência de estima social que acompanha a mácula, que tem como consequência uma profunda desvalorização de sua ocupação e de si mesmas. A saída que elas encontraram para a denegação de estima é ressignificar o trabalho e as trabalhadoras de modo a demonstrar seus valores. Tal saída está afinada ao universo do sexo comercial, em que estratégias individuais de enfrentamento do estigma são cruciais (Weitzer, 2017Weitzer, Ronald. (2017), "Resistance to sex work stigma". Sexualities, v. 0, n. 00, p. 1-13. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1363460716684509
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). Ainda assim, a vocalização das demandas por estima soa em coletivo porque atravessa o conjunto das trabalhadoras. Ademais, é fundamental pontuar que o foco na estima e na ação individual se relaciona à atomização e dispersão do próprio trabalho de camming, mediado por plataformas digitais (Woodcock, 2021Woodcock, Jamie. (2021), The fight against platform capitalism: An Inquiry into the Global Struggles of the Gig Economy. London: University of Westminster Press.). Em contextos de ocupações plataformizadas, formas individuais de resistência e de gerenciamento tendem a assumir o primeiro plano (Woodcock, 2021Woodcock, Jamie. (2021), The fight against platform capitalism: An Inquiry into the Global Struggles of the Gig Economy. London: University of Westminster Press.). Assim, o modo como o trabalho sexual se encontra com as plataformas configura um certo contexto em que possibilidades de antagonismo específicas vão sendo gestadas. Ainda que formas coletivas possam vir a despontar, as modalidades individuais ainda se destacam no camming.
A estima aparece nos relatos das entrevistadas como uma dimensão de dupla face: ela é socialmente atribuída e articulada e também se faz presente na autorrelação. Assim, as trabalhadoras empregam continuados esforços para maximizar as qualidades do camming, contestando discursos que depreciam a atividade a fim de demonstrar a reverberação positiva do trabalho em suas vidas. Empreendimentos similares são percebidos em Selmi (2012)Selmi, Giulia. (2012), "Dirty talks and gender cleanliness: an account of identity management practices in phone sex work", in R. Simpson et al. (orgs.), Dirty work: concepts and identities. London: Palgrave McMillian, pp. 113-125., Grandy e Mavin (2012)Grandy, Gina; Mavin, Sharon. (2012), "Doing gender in dirty work: Exotic dancers' construction of self-enhancing identities", in R. Simpson et al. (eds.), Dirty work: Concepts and identities. London: Palgrave McMillian, pp. 91-112. e Kong (2006)Kong, Travis. (2006), "What it feels like for a whore: The body politics of women performing erotic labour in Hong Kong". Gender, Work and Organization, v. 13, n. 5, pp. 409-434. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1468-0432.2006.00315.x
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. Esse alto investimento visa a conquista de reconhecimento, apelando a uma audiência uma determinada leitura do camming enquanto trabalho valioso, considerando que o reconhecimento é intersubjetivamente estabelecido, tal como pontua Honneth (2003)Honneth, Axel. (2003), Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34.. A partir de suas narrativas, as trabalhadoras centralizam a autoestima e a autorrealização como a principal marca do camming.
O desenvolvimento da autoestima é um pressuposto para as pessoas que se engajam no camming, como contou Denise. A própria plataforma afirma que “você conhece muito mais o seu corpo, você fica com uma autoestima maior”. O camming “é uma forma de você elevar a autoestima, conhecer seu corpo, se divertir, de conseguir dinheiro seguro”. Ao ser questionada se o trabalho já havia impactado sua autoestima, Denise foi enfática: “eu sempre me achei bonita e desejável, mas nunca fui de explorar minha sexualidade sozinha e com o exibicionismo eu fiz. Antes eu nunca tinha me realizado (sexualmente) sozinha, me tocar sozinha e gozar nessa proporção foi só depois de ser camgirl”. A fala de Denise pontua como o camming é uma oportunidade única de se conhecer e aprimorar sua sexualidade, descobrindo a si mesma e o próprio corpo. O sentido da autoestima na fala de Denise vai ao encontro das narrativas de outras entrevistadas, que veem na realização sexual e no autoconhecimento uma forma de conquistar autonomia.
Angélica traz narrativa similar à de Denise. Ela diz se considerar uma mulher bonita e atraente, que ficou muito mais segura e confiante e com autoestima elevada após entrar para o camming. Em suas palavras, “eu correspondo a um padrão, eu sou uma mulher branca, loira, alta, magra, bonita. Mas sem dúvidas eu sou muito mais segura, melhorou 100% minha vida sexual, eu sou muito mais bem resolvida com a minha aparência”. Aqui, a modelo insere a variável da autoconfiança, demonstrando que não se trata apenas da aparência física, mas da confiança subjetiva para realizar seu trabalho. E explica: “porque você tem que ter uma autoestima muito elevada para tá ali numa cam. Então você tem que estar muito segura de si”. Para ela, o camming proporciona uma melhoria substancial na autoconfiança e uma “oportunidade para desenvolver isso e ter esclarecimento suficiente para suportar o que estiver por vir, para julgar isso ou me prejudicar de alguma forma”. O desenvolvimento da autoestima e da autossegurança são interpretados como desdobramentos do engajamento no camming, um trabalho sexual que permitiria auferir uma segurança subjetiva em si mesmas. Vale salientar que tal segurança é o que estimula a busca por estima, como explica Renault (2019)Renault, Emmanuel. (2019), "Reconhecimento e trabalho". Trabalho & Educação, v. 28, n. 2, pp. 51-62. Disponível em: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2019.14730
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. Para o autor, a partir de uma autorrelação positiva é possível estabelecer uma relação social com os demais baseada na estima e no respeito. As entrevistadas parecem compreender essa dinâmica, partindo de seu próprio desenvolvimento pessoal para demonstrar que são dignas de estima como trabalhadoras e como pessoas.
Outra entrevistada a enfatizar a importância da ampliação da autoestima foi Cibele. Ela conta que “depois que eu comecei a transmitir na plataforma como camgirl, (a autoestima) melhorou 100%: eu me sinto muito bonita mesmo e me valorizo muito, é como se nada me abalasse, entende”. Para ela, “eu aprendia a amar meu corpo em cada detalhe e principalmente eu mesma, e me valorizar ainda mais. Não deixar ninguém falar que eu sou desinteressante. Tenho muito mais confiança em mim”. Beatriz também demonstra os impactos que a mudança em sua autoestima teve em sua vida pessoal: “eu sempre me senti bem comigo mesma, mas desde que entrei, passei a me valorizar mais e um pouco mais meu tempo”. Segundo ela, “quando alguém me chama para sair e a pessoa não parece interessante, eu já comparo com a plataforma, porque eu penso que eu sou paga para conversar”. A modelo acredita que “meu tempo é literalmente dinheiro sabe, então cada minuto que eu tô fora fazendo algo que eu não gosto, eu prefiro trabalhar”, porque o trabalho é interpretado como uma forma de desenvolvimento pessoal. Gisele pensa como Beatriz. Para ela, o camming é ideal para pessoas com problemas com autoestima e autoconfiança: “para pessoas que tiveram um passado difícil, tipo adolescência é sempre difícil, eu acho bacana, trabalha bem a autoestima da pessoa”. Assim, o camming torna-se mais que um meio de sobrevivência financeira, mas uma forma de se autodesenvolver, melhorando ou conquistando autoestima e autossegurança.
O impacto do desenvolvimento da autoestima e da autossegurança fica ainda mais patente nos casos de trabalhadoras que revelaram ter uma autorrelação corroída antes do camming. Anelise é um caso paradigmático: “eu não vou negar, a minha vida mudou totalmente, fez eu me aceitar melhor, porque eu tinha muito problema de aceitação do meu corpo”. Antes do camming, “eu achava que eu tinha que ser um padrão, antigamente eu não aceitava de jeito nenhum e hoje em dia eu já acho o meu corpo bonito, afinal eu tenho 1,57 de altura e 55 quilos, é um corpo normal, não padrão”. E completa: “mas hoje em dia eu gosto dele, quando eu vou me arrumar para entrar na plataforma, eu já me sinto bem intensa, eu gosto do que eu vejo”. A sua sexualidade também se desenvolveu: “antigamente eu tinha receio de muita coisa, mas hoje em dia a única coisa que eu sei que eu não posso fazer é me limitar, eu tenho que experimentar tudo que eu tiver vontade”. Anelise associa a sua autoaceitação com a abertura para experimentar sua sexualidade, vendo ambos os processos como partes integrantes da experiência do trabalho no camming. A narrativa dessa trabalhadora demonstra que antes da aceitação de si mesma como uma pessoa valiosa, ela não era capaz de ter uma autorrelação positiva. Vale frisar que foi nesse processo de ver a si mesma como valorosa que a modelo passou a assumir publicamente seu trabalho.
Fernanda pontua que o processo de autoconhecimento destravado no camming leva à autoaceitação. Ela conta como passou a aceitar seu corpo: “eu achava que minha vagina não era legal, e eu tenho até hoje um retorno estrondoso, é unânime, todos falam ‘nossa, é muito bonita sua vagina’, entre outras partes do corpo né”. Em seu relato, a aceitação do corpo e da fisionomia afetou sua personalidade: “porque eu não acreditava em mim, então eu passei a acreditar em mim, a me conhecer, e são muitos pontos positivos”. Fernanda evidencia como trabalhar no camming afeta seu desenvolvimento pessoal, inclusive sua própria percepção de quem ela é. Eliane argumenta na mesma direção de Fernanda. Em sua experiência, “eu ainda aprendo coisas sobre meu corpo, sobre minha sexualidade, tem dias que eu me surpreendo com os tipos de sensação, com os tipos de orgasmos que eu consegui chegar”. O camming “faz você querer se cuidar também, você quer tá bem, faz você trabalhar esse seu lado, de se sentir bem”. Jeniffer concorda: com o camming, “eu aprendi a me valorizar mais, a me cuidar mais, tanto do físico quanto de dentro para fora, de saber que eu sou incrível”. E conclui: “comecei a cuidar mais de mim, eu fui me valorizando, aquele universo fez realmente bem”. Conforme Carolina, o camming “vale à pena, a cada dia você melhora”. Essas narrativas sobre o desenvolvimento pessoal das entrevistadas vieram em contraposição ao estigma que elas precisaram gerir. Elas enfatizam que o gerenciamento do estigma faz com que as trabalhadoras passem a pensam em como seu trabalho agregou valor a sua identidade pessoal, um valor expresso em termos de uma autoconfiança estabelecida e ampliada e uma autoestima que vem de se sentirem valorosas e dignas. É essa dignidade que elas pretendem demonstrar ao conjunto do social, conquistando estima. Como asseveram Honneth (2008)Honneth, Axel. (2008). "Trabalho e reconhecimento: tentativas de uma redefinição". Civitas, v. 8, n. 1, pp. 46-67. Disponível em: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2008.1.4321
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e Renault (2019)Renault, Emmanuel. (2019), "Reconhecimento e trabalho". Trabalho & Educação, v. 28, n. 2, pp. 51-62. Disponível em: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2019.14730
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, na esfera do trabalho há uma centralidade da comunidade de valores que leva à estima social como valorização de si e de suas capacidades. É por intermédio do trabalho, e pela gestão do estigma em dirty works (Kreiner et al., 2007), que os indivíduos são capazes de valorizar suas habilidades e lhes conferir uma utilidade social. Daí que as próprias trabalhadoras também possam se deslocar nas escalas valorativas, adentrando à categoria de “boas pessoas” (Hughes, 1962Hughes, Everett. (1962), “Good people and dirty work”. Social Problems, v. 10, n. 1, pp. 3-11. Disponível em: https://doi.org/10.2307/799402
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), isto é, pessoas dignas da estima de si e dos outros.
Considerações Finais
Este estudo buscou demonstrar como a dimensão do reconhecimento é fundamental em processos de gestão do estigma em dirty works. Por conseguinte, ele avança na compreensão de tal processo, demonstrando que para além da normalização e validação de dirty works e seus trabalhadores, há um anseio por reconhecimento que se desdobra na estima social e na autorrelação positiva. O caso discutido nesse artigo tem uma particularidade: a busca por reconhecimento não ocorre em agrupamentos coletivos ou movimento de trabalhadores, tal como tipicamente essa demanda é articulada. Ela aparece nas vozes individuais de várias trabalhadoras sexuais que têm pouco ou nenhum espaço para coletivizar suas reivindicações, e que tradicionalmente não contam com estruturas grupais para se associarem. Apesar disso, argumenta-se que há uma socialização de seu sofrimento e de suas demandas por reconhecimento na medida em que elas expõem o desrespeito do estigma e as formas de superá-lo em suas interações cotidianas. Pesquisas anteriores com dirty works (Ashforth et al., 2007Ashforth, Blake et al. (2007), "Normalizing dirty work: Managerial tactics for countering occupational taint". Academy of Management Journal, v. 50, n. 1, pp. 149-174. Disponível em: https://psycnet.apa.org/doi/10.5465/AMJ.2007.24162092
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; Simpson et al., 2012Simpson, Ruth et al. (2012), "Introducing dirty work, concepts and identities", in R. Simpson et al. (orgs.), Dirty work: concepts and identities. London: Palgrave McMillian, pp. 1-19.) demonstram que, frequentemente, trabalhadores gerem os estigmas individualmente, mas coletivizam suas estratégias e reivindicações em trocas informais. Isso ocorre porque essas reivindicações têm natureza moral (Kreiner et al., 2006Kreiner, Glen et al. (2006), "Identity dynamics in occupational dirty work: Integrating social identity and system justification perspectives". Organization Science, v. 17, n. 5, pp. 619-636. Disponível em: https://psycnet.apa.org/doi/10.1287/orsc.1060.0208
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), o que dificulta que elas sejam estruturadas em movimentos organizados em dirty works. Ainda assim, a ânsia por reconhecimento se perpetua em trabalhos maculados, sendo particularmente saliente em casos extremos de dirty work, tal como o trabalho sexual.
O argumento desenvolvido neste artigo aponta que demandas por reconhecimento no trabalho têm vínculo direto com o universo laboral no qual elas se instauram. O camming é uma junção entre trabalho sexual e trabalho por plataformas, sendo configurado por uma atomização e uma dispersão que têm impactos nas possibilidades de antagonismos coletivos. Como demonstrado, trabalhadores sexuais têm historicamente se utilizado de estratégias individuais que se voltam à sua identidade para lidar com a mácula moral e auferir estima (Piscitelli, 2007Piscitelli, Adriana. (2007), "Shifting boundaries: sex and money in the North-East of Brazil". Sexualities, v. 10, n. 4, pp. 485-500. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1363460707080986
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; Guimarães, Merchán-Hamann, 2005). Também em trabalhos por plataformas há uma aposta na gestão individual das pressões laborais (Woodcock, 2021Woodcock, Jamie. (2021), The fight against platform capitalism: An Inquiry into the Global Struggles of the Gig Economy. London: University of Westminster Press.). Em ambos os casos, as associações e coalizões existem e são possíveis, mas não se configuram como a única e principal opção de ação para os trabalhadores. Em se tratando de dirty works, tal como ocorre com o camming, as estratégias individuais de valorização de si e do trabalho despontam como um caminho em que o reconhecimento é concebível. A discussão pretendeu chamar a atenção para renovadas formas de gestão do estigma e seu potencial de tensionar universos laborais e morais contenciosos. Este estudo convida o avanço de análises aprofundadas sobre a relação entre mercados específicos e modos de gerenciamento de estigmas e convoca investigações futuras que possam esclarecer outras dinâmicas que interpõem o anseio de trabalhadores por reconhecimento.
Agradecimentos
*A pesquisa e os resultados são derivados da tese de doutorado da autora “Webcamming erótico comercial no contexto brasileiro: organização, estruturação e dinâmicas internas” defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2020. A pesquisa teve financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (88882.434932/2019-01) e a escrita do artigo contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) (2020/02268-4).
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Notas
-
1
. Optou-se por manter a grafia original no inglês por se tratar de um termo técnico que passou a ser utilizado correntemente mesmo na literatura nacional. Para além disso, aciona-se a ideia de trabalho maculado como um sinônimo para o termo original que conserva seu sentido.
-
2
. A divisão racial das entrevistadas espelha a composição racial da indústria erótica de webcam no Brasil. Dados levantados pela pesquisa revelam que tal indústria privilegia pessoas brancas e apostam nelas para sua expansão (Caminhas, 2022).
-
3
. A classe social das trabalhadoras não foi tratada durante as entrevistas. Por conseguinte, esse dado não consta na pesquisa.
-
4
. O termo modelo é usado comumente no universo do camming e fora dele para se referir às pessoas que atuam na indústria erótica de webcams. O termo se popularizou por ser mais fácil de pronunciar do que a palavra de origem inglesa camgirl que também faz referência às trabalhadoras desse serviço.
-
5
. Vale notar que isso se deve à homogeneidade das entrevistadas no que diz respeito à raça, sendo a maioria branca. Adicionalmente, isso se relaciona à homogeneidade da própria indústria de webcams à época da investigação. Salienta-se que as discussões sobre raça foram levantadas durante as entrevistas e foram amplamente comentadas pelas entrevistadas no que tange à entrada e permanência no mercado, bem como aos mecanismos de controle do trabalho utilizados pelas plataformas. Entretanto, em relação ao estigma, o fator racial não foi trazido à tona como um agravante ou um diferencial em termos da experiência de desrespeito. Reconhece-se que essa pode ser considerada uma limitação deste estudo e de suas conclusões.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Nov 2024 -
Data do Fascículo
Ago 2025
Histórico
-
Recebido
10 Fev 2022 -
Revisado
27 Jan 2023 -
Revisado
5 Jul 2023 -
Aceito
15 Nov 2023