RESUMO
Este trabalho tem como objetivo compreender as projeções valorativas, como reação-resposta aos já-ditos, na produção oral discente de uma notícia radiofônica escolar, sob o viés da concepção dialógica da linguagem. À Luz da Linguística Aplicada, a pesquisa pauta-se nos pressupostos teóricos do Círculo de Bakhtin e em pesquisadores que seguem esta vertente. Trata-se de uma pesquisa qualitativo-interpretativa, de cunho etnográfico e de natureza aplicada, caracterizada como pesquisa-ação, em que foi elaborada e implementada uma proposta de intervenção, a partir da tríade oralidade, leitura e escrita, em uma turma de 1ª série do Ensino Médio de uma escola pública do município de Belém-PA. A proposta resultou na produção textual oral de 17 notícias radiofônicas escolares, sendo uma delas selecionada para este artigo. Os resultados da análise do enunciado concreto oral selecionado evidenciam que, entre fios discursivos orais e os valores humanos, a contrapalavra discente refrange marcas de autoria e projeções valorativas, a desvelar o relatar e o posicionamento axiológico da discente.
Palavras-chave: oralidade; gênero discursivo oral; notícia radiofônica escolar; dialogismo
ABSTRACT
This work aims to understand the evaluative projections, as a reaction-response to what has already been said in student oral production of school radio news, under the bias of the dialogical conception of language. In the light of Applied Linguistics, the research is based on the theoretical assumptions of the Bakhtin Circle and researchers who follow that trend. This is a qualitative-interpretive research, of ethnographic and applied nature characterized as action research, in which an intervention proposal was developed and implemented, based on the triad: orality, reading and writing, in a 1st grade group of high school, at a public school in the city of Belém-PA - BR. The proposal resulted in the oral textual production of 17 school radio news, one of which was selected for this article. The results of the analysis of the selected concrete oral utterance show that, between oral discursive threads and human values, the student’s counterword reflects marks of authorship and evaluative projections, revealing the report and the student’s axiological positioning.
Keywords: orality; oral discursive genre; school radio news; dialogismo
1. Introdução
Ao iniciarmos a tessitura deste diálogo, destacamos que a oralidade, enquanto elo discursivo, precisa ser compreendida em um processo vivo, na língua viva, pois se materializa nos enunciados concretos orais entre sujeitos. Dessa maneira, ancoradas na teoria do Círculo de Bakhtin (Bakhtin, 2003; 2016; Volóchinov, 2019; 2021) e em pesquisadores que seguem esta vertente (Costa-Hübes & Menegassi, 2021; Acosta Pereira & Costa-Hübes, 2021; Polato & Oliveira, 2015; Ohuschi, 2013, dentre outros), compreendemos que a oralidade “deve ser entendida como uma ponte que liga os sujeitos, como expressão de relação dialógica” (Storto & Brait, 2021, p. 53). Portanto, neste estudo, as concepções de oralidade e de gêneros discursivos orais abordadas, sob a perspectiva dialógica da linguagem, visam a um trabalho no qual as práticas orais estejam diretamente relacionadas aos aspectos axiológicos da linguagem - extraverbal, entonação valorativa e juízo de valor - (Volóchinov, 2019), com destaque para a entonação valorativa. Tal conceito é imprescindível à produção textual oral/escrita, à leitura/escuta no processo de ensino e aprendizagem de língua(gem).
Em virtude disso, pensar as práticas orais enquanto elo, enunciados concretos orais, requer “olhar para a língua viva se manifestando em enunciados produzidos para atender a diferentes situações e contextos de interação” (Acosta Pereira & Costa-Hübes, 2021, p. 18). Nesse sentido, realizamos uma pesquisa mais ampla (Nogueira, 2023)3 que consiste em um estudo teórico-prático sobre as projeções valorativas no gênero discursivo notícia radiofônica escolar, a partir do trabalho com alunos da 1ª série do Ensino Médio, em uma escola pública situada em área periférica do município de Belém-PA. A escola é cadastrada no Núcleo de Tecnologia Educacional (NTE) do município, a partir do qual recebe suporte pedagógico e apoio no desenvolvimento da alfabetização radiofônica de discentes e docentes, por conter uma Rádio Escolar. Ressaltamos que a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa e obteve o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) sob o número 55455421.4.0000.0018.
Nesse contexto, após a realização e a análise de uma atividade diagnóstica4, elaboramos e implementamos na turma uma proposta de intervenção que consistiu em uma sequência de atividades, a contemplar as práticas oralidade, leitura e escrita de forma integrada. Como resultados, 17 notícias radiofônicas escolares foram produzidas pelos discentes e veiculadas na rádio escolar. Para este estudo, selecionamos a notícia radiofônica escolar intitulada Diva Guimarães relata caso de racismo que sofreu em sua infância, produzida pela autora-locutora com pseudônimo Harriet Tubman.
Nas seções a seguir, discorremos sobre a palavra enquanto signo ideológico e a constituição da valoração; a oralidade em perspectiva dialógica; a análise dialógica do enunciado selecionado, com foco nas marcas linguístico-enunciativas e, sobretudo, nas entonações valorativas e movimentos discursivizados.
2. A palavra enquanto signo ideológico e a constituição da valoração
Partimos do princípio de que os fenômenos naturais (e sociais), os objetos únicos e os instrumentos de produção podem se transformar em signos, desde que recebam o colorido expressivo, avaliativo dos grupos sociais. Tal colorido, isto é, a ênfase valorativa e ideológica acontece a partir do momento que ultrapassa sua significação particular. De acordo com Volóchinov (2021, p. 111), assim, o signo “poderá entrar no mundo da ideologia, tomar forma e nele consolidar-se”. Esses fenômenos ampliam a “importância da interação verbal como atividade constitutiva de consciências, ideologias e sujeitos” (Freitas, 1999, p. 14). Logo, o signo ideológico, “além de refletir o mundo, reproduzindo-o, como num espelho, [...] refrata-o, perpassando-o, atravessando-o, saindo de outra forma, modificado” (Ohuschi, 2013, p. 30). É nesse viés que o signo deixa de ser “neutro” e passa a ter muitos outros sentidos, valores, avaliações sociais.
Nesse sentido, a palavra enquanto signo ideológico “revela-se, desde o início, o mais puro fenômeno ideológico” (Volóchinov, 2019, p. 312), já que se torna “palavra somente na comunicação social viva, no enunciado real” (Volóchinov, 2019, p. 315). Logo, criar uma “palavra” está para além da base acústica e fisiológica, ela precisa significar algo, refletir e refratar a consciência individual e social, bem como os fenômenos em geral (Volóchinov, 2019). A palavra tem “relação direta com o conceito de signo ideológico, que constitui, reflete e refrata uma situação” (Beloti et al., 2020, p. 121), ou seja, nas interações discursivas, nas relações dialógicas, as palavras - enquanto signos ideológicos - refletem e refratam valores, pontos de vista, avaliações sobre o mundo e para o mundo.
Portanto, o signo “não é somente uma parte da realidade, mas também reflete e refrata uma outra realidade, sendo por isso mesmo capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto de vista específico” (Volóchinov, 2021, p. 93). Dessa maneira, ele passa a ser ideológico e social, pois é constituído por valores e avaliações que fazem parte das consciências sociais e individuais. É justamente essa materialização e refração de valores que tornam um signo vivo, tão concreto quanto o contexto histórico e social que o gerou.
O enunciado é, portanto, compreendido como ideológico, ou seja, como uma unidade de sentido axiológica, pois é repleto de projeções valorativas e avaliações. Assim, “valorar” é emitir uma opinião, um juízo de valor diante das temáticas sociais engendradas nos enunciados concretos (escritos ou orais). Tais enunciados são únicos, reais e irrepetíveis, já que o contexto de produção, a finalidade discursiva, o sujeito serão outros. Para compreender os valores e avaliações, discorremos, brevemente, sobre os três conceitos axiológicos, extraverbal, entonação valorativa e juízo de valor.
Para Volóchinov (2019), o conceito de extraverbal refere-se ao que não está visível, nem marcado linguisticamente, contudo, sua compreensão é possível aos sujeitos que conhecem a situação, como coparticipantes que valoram/avaliam a situação (próxima e ampla) para que a interação aconteça. Tal elemento axiológico, concebido como subentendido, configura-se em “três aspectos: a) o horizonte espacial comum dos falantes (...); b) o conhecimento e a compreensão da situação comum aos dois; c) a avaliação comum dessa situação” (Volóchinov, 2019, pp. 118-119). Assim, ressaltamos a importância de compreender o que está para além do verbal, de modo a construir e enunciar suas avaliações sociais e ideológicas.
Quanto ao conceito de entonação, Volóchinov (2019) pontua que “sempre está no limite entre o verbal e o extraverbal, entre o dito e o não dito. A palavra entra em contato direto com a vida” (Volóchinov, 2019, p. 123). É a materialização da valoração e da avaliação na e pela entonação - “a entonação estabelece uma relação estreita da palavra com o contexto extraverbal: é como se a entonação viva levasse a palavra para fora dos seus limites verbais” (Volóchinov, 2019, pp. 122-123).
Já o juízo de valor surge apenas na concretização da enunciação, porque “a emoção, o juízo de valor e a expressão são estranhos à palavra da língua e surgem unicamente no processo de seu emprego vivo em um enunciado concreto” (Bakhtin, 2016, p. 51). É o ato-agir a partir de um determinado grupo social, de uma posição axiológica, de um contexto social, histórico, que foi constituído a partir das vivências e dos valores historicamente compartilhados.
3. A oralidade em perspectiva dialógica da linguagem
Em perspectiva dialógica, as práticas de linguagem oralidade, leitura e escrita são trabalhadas de forma integrada no processo de ensino e aprendizagem de língua materna, associando ainda aos aspectos axiológicos. Tais práticas, apesar de apresentarem suas especificidades, complementam-se, constituem-se, dialogam. Contudo, neste trabalho, discorremos apenas sobre a concepção de oralidade, bem como sobre o trabalho de tal prática a partir dos gêneros discursivos orais. Destacamos que o trabalho com oralidade, em viés dialógico, está em processo de caracterização, mas já podemos apresentar direcionamentos de forma sistematizada, contínua, dialógica e significativa.
Pensar a oralidade enquanto ponte que liga os sujeitos (Volóchinov, 2021; Storto & Brait, 2021), como intercâmbio discursivo oral, possibilita-nos compreender que falamos, isto é, que nos comunicamos a partir de enunciados relativamente estáveis - gêneros discursivos - os quais sugerem os encadeamentos e tipos composicionais. Nesse sentido, trabalhar com as práticas orais enquanto enunciados vivos, concretos, de interação entre os sujeitos, requer “olhar para a língua viva se manifestando em enunciados produzidos para atender a diferentes situações e contextos de interação” (Acosta Pereira & Costa-Hübes, 2021, p. 18).
Dessa maneira, ao compreendemos a oralidade “enquanto fio discursivo oral de uma cadeia enunciativa muito maior” (Nogueira, 2023, p. 76), é imprescindível considerarmos a interação, a língua viva, a consciência social, a alteridade, as relações dialógicas. Tal fio discursivo oral enuncia o mundo e para o mundo, ao refratar muitos outros discursos, os já-ditos via entonação valorativa, devido à essencial dialógica que o engendra, afinal, a oralidade precisa ser ponte, elo continuum da comunicação discursiva entre os sujeitos, a completar, a discordar, a estabelecer interação. Por isso, Acosta Pereira e Costa-Hübes (2021) postulam que, ao trabalhar a oralidade no processo de ensino e aprendizagem, precisamos partir de sua ancoragem na teoria dos gêneros do discurso.
A oralidade, portanto, é concebida como um elo continuum da comunicação discursiva oral, que é sempre destinada a alguém e, dessa maneira, refrata e reflete valores, pontos de vistas, acentuações avaliativas acerca das temáticas sociais e históricas evidenciadas nas situações amplas e imediatas, já que, em toda “fala viva, são ditos ou escritos em relação a certa ênfase valorativa” (Volóchinov, 2021, p. 233). Por isso, a oralidade é fundamental para o desenvolvimento do sujeito enquanto sociedade que age (entona) frente aos já-ditos (e já-escutados) e que marca sua posição axiológica no mundo.
Logo, ao falar sobre oralidade, é imprescindível compreender a entonação valorativa, pois, para Bakhtin (2016, p. 47), “um dos meios de expressão da relação emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala é a entonação expressiva que soa nitidamente na execução oral”. Volóchinov (2019) acrescenta que o tom está atrelado, ou seja, apoia-se no caráter compartilhado e subentendido das avaliações. Assim, o discurso/enunciado vivo tece seus registros entonacionais.
A partir de tais premissas, nossa discussão volta-se para o processo de ensino e aprendizagem de língua materna, que, com base no documento mais atual e de caráter normatizar, Base Nacional Comum Curricular - BNCC - (Brasil, 2017), há o Eixo da Oralidade, que é compreendido a partir das “práticas de linguagem que ocorrem em situação oral com ou sem contato face a face, como aula dialogada, webconferência, mensagem gravada, spot de campanha, jingle, seminário, debate, programa de rádio, entrevista”, dentre outras (Brasil, 2017, pp. 78-79).
É possível ressaltarmos que, se a BNCC discorre sobre as práticas de linguagem que ocorrem em situações orais, significa que precisamos partir dos enunciados orais (gêneros discursivos orais) - como ponto de partida e ponto de chegada (Geraldi, 1997 [1991])), para que não seja desenvolvido um ensino “fragmentário das práticas de linguagem” (Acosta-Pereira & Costa-Hübes, 2021, p. 17). Para tanto, como forma de sistematização e progressão de algumas habilidades orais, apresentamos a Figura 1 (Nogueira, 2023), a partir da relação que estabelecemos entre os objetivos traçados por Carvalho e Ferrarezi JR. (2018), a compreensão de alguns aspectos da BNCC (Brasil, 2017) e a concepção dialógica da linguagem.
É importante frisar que, em consonância com Carvalho e Ferrarezi Jr. (2018) e Storto e Brait (2021), trabalhar oralidade e gêneros discursivos orais requer partir de “atividades mais simples, menos planejadas e monitoradas, mediante gêneros presentes no cotidiano dos alunos (como a conversa), a fim de chegar a atividades mais complexas, formais, tensas, planejadas e monitoradas, recorrente a gêneros secundários” (Storto & Brait, 2021, p. 54).
Nessa direção, é possível desenvolver um trabalho com a oralidade de forma progressiva, coerente, sistematizada, dialógica e significativa. Para isso, elencamos três dimensões: “a) Escuta e compreensão, valorativamente e com autonomia; b) relação entre fala e escrita; c) produção e análise de textos-enunciados orais pertencentes a gêneros orais e formais” (Nogueira, 2023, p. 71), associando aos conceitos axiológicos da linguagem.
As habilidades 1 e 2, destacadas na Figura 1, correspondem à primeira dimensão - Escuta e compreensão, de forma valorativa e autônoma. Ao partirmos da concepção de que a linguagem se efetiva no intercâmbio discursivo, na interação entre sujeitos, precisamos proporcionar aos discentes momentos de reflexão sobre as situações/contextos nas quais os gêneros discursivos orais (e escritos) nascem, se perpetuam e/ou se ressignificam. É nesse momento que os educandos são inseridos nos contextos reais de comunicação, que compreendem o extraverbal engendrado, que refletem sobre as finalidades sociais, discursivas e a importância de determinados gêneros discursivos orais. Eles passam a situar o gênero discursivo oral “na vida e na história (onde, quando, quem, por que, para quem está sendo produzido), explorando seus aspectos sócio-histórico e ideológicos” (Acosta Pereira & Costa-Hübes, 2021, p. 17).
Ademais, é possível desenvolvermos a habilidade 2 contemplada ainda na primeira dimensão. No processo de escuta ativa, os discentes são levados à compreensão dos efeitos de sentidos que são refratados nos desenhos entonacionais, bem como a partir dos elementos sonoros, como as pausas, o volume, as vinhetas, a intensidade, o timbre de voz associados ao extraverbal e ao juízo de valor. É dessa maneira que o trabalho de compreensão de um gênero discursivo oral se delineia em paralelo às etapas de compreensão textual oral.
Quanto à segunda dimensão, configura-se na relação entre fala e escrita contempladas nas habilidades 3 e 4. Ressaltamos que fala e escrita são consideradas autônomas, mas que estabelecem vínculos, relações dialógicas em diferentes gêneros discursivos e práticas sociais, como em um programa de rádio ou quando entrevistamos alguém com base nas entrevistas escritas. Em nosso estudo, por exemplo, os discentes estabeleceram semelhanças e diferenças entre notícia escrita e notícia radiofônica (oral), bem como elementos expressivos e valorativos próprios de cada um desses gêneros discursivos.
Nesse direcionamento, frisamos que é indispensável para o desenvolvimento de habilidades de leitura em inter-relação com a oralidade, a habilidade 4 - oralização da escrita via entonação valorativa - proposta por Costa-Hübes e Menegassi (2021). Os autores propõem que os docentes tenham formação inicial voltada para a oralidade, a partir da oralização da escrita via entonação valorativa, com “vistas às ações e atos didático-pedagógicos futuros em sala de aula” (Costa-Hübes & Menegassi, 2021, p. 173). A partir de tal argumento, acreditamos que os discentes também podem desenvolver tal habilidade, pois compreendemos que oralização do texto escrito via entonação valorativa configura-se como uma etapa que explora a leitura em voz alta de um texto escrito ou da transcrição de um texto oral e possibilita a compreensão dos efeitos de sentido, das projeções valorativas manifestadas por meio da entonação valorativa.
Todavia, acreditamos que o trabalho com a oralidade delineia-se para além da oralização de um texto escrito via entonação valorativa. A oralidade constitui-se num processo de comunicação discursivo vivo, cultural, ideológico e histórico, atravessado por acentuações valorativas e que marcam a posição social e axiológica dos sujeitos. Por isso, compreendemos que a oralidade de cada sujeito é uma marca linguística, individual e social, repleta de valores humanos e que precisa ser desenvolvida nos discentes.
Elencamos, também, a terceira dimensão - Produção e análise de textos-enunciados orais pertencentes a gêneros orais e formais. Em uma sequência de atividades, tal dimensão possibilita desenvolver a habilidade 5, “produzir e analisar textos-enunciados orais pertencentes a diversos gêneros orais, considerando-se aspectos relativos ao planejamento às condições de produção, à situação mais próxima e ampla de interação social, específicas, interlocutor e quanto às axiologias da linguagem” (Nogueira, 2023, p. 73), a partir da BNCC (Brasil, 2017) e da concepção dialógica da linguagem. Dessa maneira, é possível trabalhar tal prática de linguagem em inter-relação com os valores humanos, ideológicos, culturais que são materializados na entonação expressiva.
Ao desenvolver propostas referentes à produção textual oral, os discentes, inseridos em contextos reais de comunicação, necessitam considerar para além dos aspectos composicionais, como os relacionados ao planejamento do roteiro de um enunciado oral, às condições de produção, ao interlocutor-ouvinte, à situação próxima e ampla de comunicação. Esse direcionamento é necessário, já que produzir textos-enunciados orais é dar vida à palavra, é “olhar a língua viva se manifestando em enunciados” (Acosta Pereira & Costa-Hübes, 2021, p. 18).
Em linhas gerais, a oralidade, em contexto educacional, “é compreendida em um processo vivo, na língua viva, que se manifesta nos enunciados concretos orais entre sujeitos” (Nogueira, 2023, p. 82), isto é, configura-se como um elo, uma ponte de expressão valorativa entre os sujeitos. Dessa forma, ao proporcionarmos atividades que colaborem para o desenvolvimento de habilidades orais, almejamos que elas ultrapassem as salas de aula, que os discentes “compreendam a importância do planejamento da enunciação oral, seja quanto à entonação, ao volume, ao ritmo, ou seja, que tenham consciência de certas acentuações axiológicas” (Nogueira, 2023, p. 81) materializadas nas interações discursivas.
4. A tessitura da contrapalavra discente no gênero notícia radiofônica escolar
Conforme já explicitamos, a proposta de intervenção foi implementada em uma escola pública estadual de região periférica da capital paraense, onde se desenvolvem projetos de rádio escolar, com apoio pedagógico do NTE. Ao serem inseridos em um contexto real de comunicação, os discentes da 1ª série do Ensino Médio participaram de uma sequência de atividades, de forma sistematizada, dialógica e significativa, na qual foram contempladas as práticas oralidade, leitura e escrita.
Tal contexto proporcionou aos educandos entonarem (agirem) como “jornalistas” de sua própria rádio escolar sobre os já-ditos, os já-escutados (fatos) que envolvem as temáticas “racismo” e “educação antirracista na escola”, discutidas ao longo da nossa proposta de intervenção. Ressaltamos que as notícias radiofônicas escolares produzidas pelos discentes foram direcionadas à comunidade escolar. Logo, precisaram refletir sobre fatos de interesse do público-alvo. Com base nas orientações dadas, os alunos realizaram, primeiramente, o planejamento do roteiro de suas notícias radiofônicas, a fim de compreenderem que as produções textuais orais também apresentam “etapas que vão desde o planejamento até a última versão de reescrita” (Menegassi & Gasparoto, 2019, p. 113). Nesse sentindo, os discentes passaram por algumas etapas até desenvolverem suas contrapalavras, as quais sistematizamos na Tabela 1:
Dessa forma, selecionamos apenas um enunciado concreto oral, intitulado “Diva Guimarães relata caso de racismo que sofreu em sua infância”5 (2ª versão), da discente que escolheu o pseudônimo Harriet Tubman, como forma de preservar sua identidade. Tal escolha é valorada e ideológica, pois refrata um colorido expressivo de empatia e de empoderamento racial, visto que, ao acionarmos o plano extralinguístico, destacamos que Harriet era uma mulher negra, que foi escravizada e sofreu durante sua infância, mas se libertou e contribuiu para que muitos escravizados conseguissem sua liberdade, tornando-se uma referência na luta contra o racismo. A partir da escolha do pseudônimo, observamos a avaliação, a valoração já se constituindo na notícia radiofônica escolar da aluna.
Ademais, com base nas etapas de produção textual oral (Tabela 1), destacamos que a discente, no processo de planejamento do seu roteiro, recupera um (fato) já-dito, ou seja, internaliza o relato de Diva Guimarães e o refrata, de outra forma. Para tanto, seleciona algumas palavras, fazendo uso de palavras-chave, de esquematização de palavras, como um suporte para o desenvolvimento de sua contrapalavra, em um processo vivo, que se manifesta em enunciado concreto oral. Na sequência, como forma de armazenar tal enunciado concreto oral, utiliza o gravador de áudio de seu próprio aparelho celular. Tal processo foi realizado por mais de duas vezes, pois, como não tínhamos uma sala com acústica apropriada, às vezes, ouvíamos barulhos externos, o que dificultava a gravação da produção textual oral. Após registrar o texto oral produzido a partir do uso de palavras-chave, foi necessário passar por algumas etapas de revisão e (re)escrita textual oral, como a autoavaliação, a avaliação entre pares e a avaliação realizada pela docente, com a finalidade de sanar possíveis problemas quanto ao conteúdo, à organização, aos aspectos orais (volume, timbre, pausas, intensidade etc.). A seguir, apresentamos o roteiro da discente.
A partir do planejamento de seu roteiro, a autora-locutora desenvolve sua contrapalavra, o que nos possibilita compreendê-la como uma “reação-resposta a outros enunciados concretos” (Gomes & Ohuschi, 2021, p. 21). Além disso, ressaltamos que foi necessário o uso do gênero discursivo entrevista, com a finalidade de obter mais dados, informações sobre o fato relatado. Para tanto, a discente realiza uma entrevista com a professora Ana Paula Silva (pseudônimo), uma voz social que tem propriedade para falar sobre a temática educação antirracista na escola. Na Figura 3, apresentamos o registro de um excerto dessa etapa.
Com o roteiro da notícia radiofônica e a entrevista realizados, a autora-locutora tece oralmente sua notícia radiofônica escolar, isto é, sua contrapalavra oral. Ao analisarmos o contexto de produção, evidenciamos que a aluna considera o período de polarização política e de desigualdade racial, os projetos de leis que foram sancionados (como o Estatuto de Igualdade Racial, em Belém, e a lei 10.639/2003). Quanto ao tema, Volóchinov (2021, p. 228) postula que é “tão concreto quanto o momento histórico ao qual ele pertence”, ou seja, a discente recupera um caso de 2017 sobre racismo, que é tão concreto, vivo, que nos convida à reflexão e à luta, ainda no momento atual - 2024 - e, na sequência, faz uso do discurso alheio para discorrer sobre a educação antirracista na escola, como uma “manobra linguística”, com a finalidade de apresentar sua visão, seus valores sobre a temática solicitada. Quanto ao estilo do gênero, faz uso de fios discursivos orais curtos, da terceira pessoa do discurso e de verbos, em sua maioria, no tempo presente do indicativo, além de manter uma linguagem simples, o que caracteriza um estilo adequado ao gênero solicitado. Quanto à construção composicional, apresenta todos os elementos que constituem uma notícia radiofônica escolar, como abertura, lide, detalhes e fechamento, como ilustramos na Figura 4.
Na sequência, apresentamos a transcrição da contrapalavra da aluna, materializada em notícia radiofônica escolar.
Transcrição da produção textual oral - 2ª versão
00:00:00
NoTÍcias raPOso...
DIVA Guimarães RELATA caso de raCISmo... ((breve barulho externo)) que SOFREU em sua infância...
No FLIP 2017... Diva Guimarães... conta a história de sua infância em que as freiras passavam nas ruas prometendo educaÇÃO às crianças... quando chegavam lá
00:00:16
contavam a história de que DEUS CRIOU... os:::... HOMENS BRANCOS, TRABALHADORES e ESFORÇADOS. Já as PESSOAS NEGRAS seriam PREGUIÇOSAS... as freiras prometiam educação...mas quando na verdade pegavam as crianças para trabalhar
00:00:34
porque... de acordo com elas...a PESSOA BRANCA seria uma raça SUPERIOR... já as NEGRAS... deveriam servir a elas. De acordo com a professora... Ana Paula Silva...
00:00:46
“uma EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA COMBATE ativamente toda e qualquer... expressão de preconceito além de VALORIZAR a contribuição histórica africana na formação cultural do Brasil MAS para isso... é preciso a participação de TODA a comunidade”
00:01:02
para a educadora uma EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA “é FUNDAMENTAL para a cons::..trução:::... de uma sociedade mais igualitária... GARANTINDO TAMBÉM direito à educação de QUALIDADE a todos os indivíduos”
00:01:16
“A comunidade precisa se RECONHECER e fazer com que nossas crianças cresçam nutridas de segurança emocional e donas de sua própria HISTÓRIA através do conhecimento de sua cultura.” “Opiniões contrárias a essa.... dizem que não deveria ser necessário já que a própria história nos mostra
00:01:34
Então as pessoas já deveriam saber::... e ter::::... consciência de suas PRÓprias AÇÕES”
Raposo NoTÍcias... ((barulho externo)) de Harriet Tubman
Ressaltamos que os enunciados concretos (orais/multimodais e escritos) materializados em gêneros discursivos (Bakhtin, 2016) são compreendidos como reações frente aos já-ditos, visto que os sujeitos enunciam e (re)enunciam seus projetos discursivos e vozes alheias, respectivamente, na intenção de compartilhar seus valores, suas ideias, suas visões de mundo, enfim, suas avaliações sociais e valorativas. Tais avaliações evidenciam que os valores estão presentes, implicitamente, até nos enunciados concretos que são sócio-historicamente concebidos como “neutros”, imparciais, como as notícias.
Desse modo, a notícia (escrita ou oral) é, essencialmente, dialógica. Nessa direção, acrescentamos que a notícia radiofônica escolar é concebida como um gênero discursivo oral que apresenta suas especificidades quanto à abertura e ao fechamento, bem como considera seus interlocutores. Logo, o enunciador-locutor relata um fato relevante para a comunidade escolar, a partir do uso de escolhas de determinadas marcas linguístico-enunciativas, bem como de “manobras linguísticas”, ao recorrer aos discursos alheios na intenção de manter certa imparcialidade e validar o que está sendo relatado. Portanto, a notícia radiofônica escolar também é essencialmente dialógica, além de refratar acentuações ideológico-valorativas.
Após essas considerações mais gerais, nossa análise volta-se para as duas faces que constituem os gêneros discursivos (Bakhtin, 2016), a verbal e a extraverbal, que engendram o enunciado concreto oral em análise. Ressaltamos que os dados gerados suscitaram quatro entonações valorativas e três tipos de movimentos discursivizados, os quais denominamos princípios orientadores, explicitados no decorrer da análise.
Ao selecionarmos o excerto I, DIVA Guimarães relata caso de RACISMO ((barulho externo)) que SOFREU em sua infância, que corresponde à manchete da notícia radiofônica escolar, destacamos a marca linguístico-enunciativa “Diva”, que apresenta significados que estão além do registrado no Minidicionário contemporâneo da língua portuguesa: Caldas Aulete (2011, p. 308), “sf. 1 Deusa. 2 Cantora ou atriz notável”. Tal marca adquire um colorido expressivo, um tom avaliativo e valorativo, já que está inserida em um contexto real de enunciabilidade. A palavra passa a ser concebida como um signo ideológico, logo, é pronunciada de forma avaliativa e valorativa, já que “a emoção, o juízo de valor e a expressão são estranhos à palavra da língua e surgem unicamente no processo de seu emprego vivo em um enunciado concreto” (Bakhtin, 2016, p. 51).
Nessa direção, ao acionarmos o plano extraverbal, é possível compreendermos que “Diva” Guimarães: “a) é uma mulher negra; b) sofreu racismo na infância; c) é neta de escravizados; d) é professora aposentada; e) defende a educação de qualidade como forma de resistência e luta contra o racismo e o preconceito racial” (Nogueira, 2023, p. 227). Assim, a marca linguístico-enunciativa “Diva” refrata importância histórica, racial e social, porque trata de um caso de racismo. É uma maneira de reforçar que o fato sobre o relato da Diva Guimarães merece ser ouvido pela comunidade escolar a qual faz parte. Acreditamos que a ausência de um aposto sobre a Diva Guimarães, na própria construção da notícia radiofônica escolar, foi proposital, como uma manobra linguística para que os discentes-ouvintes permaneçam atentos. Portanto, essa marca linguístico-enunciativa refrata um juízo de valor positivo, que é compartilhado com seus ouvintes.
A marca linguístico-enunciativa “raCISmo” também é pronunciada, de maneira valorativa, seguida de uma breve pausa, o que nos direciona para uma Entonação valorativa de repúdio ao racismo (princípio orientador 1). Tal avaliação e valoração parte, também, da escolha da palavra “sofreu”, no tempo pretérito, bem como pelos casos nos quais há: “a) falsa ideia de que a sociedade é dividida em raças e que, por isso, uma raça é superior à outra; b) ação discriminatória; c) consequência do período da escravização dos povos negros principalmente; d) sistema de opressão enraizado, estrutural na sociedade brasileira” (Nogueira, 2023, p. 227), ao acionarmos o plano extralinguístico. Portanto, a discente refrata um juízo de valor negativo, de repúdio diante do que aconteceu com a Diva Guimarães.
Quanto ao lead (lide) da notícia, no excerto II, No FLIP 2017... DIVA Guimarães... conta a hisTÓria de sua INFÂNCIA em que as FREIRAS passavam nas ruas PROMETENDO educaÇÃO às crianças... quando chegavam lá..., a autora-locutora recupera dados importantes a respeito do relato de Diva Guimarães - ocorrido em 2017 - na FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). Nesse fragmento, destacamos a palavra “freiras” - signo ideológico - pois é (re)enunciada com Entonação valorativa de crítica à postura das freiras (princípio orientador 3), já que elas encantavam as crianças “PROMETENDO” educação, porém pegavam as crianças para TRABALHAR, excerto IV. Ao analisarmos o verbo “prometendo” no gerúndio, construímos efeitos de sentido que direcionam para noção de que era algo contínuo, sendo totalmente o oposto ao que se espera de um membro de grupos religiosos. Essa é uma questão muito relevante, visto que os valores sociais e humanos constituintes de uma sociedade é que formam os valores presumidos/compartilhados entre os sujeitos/interlocutores de uma enunciação oral. Por isso, de acordo com Menegassi e Cavalcanti (2020), enunciados que divergem desses conhecimentos/valores presumidos são acentuados e (re)avaliados de maneira contrária.
Na sequência, Harriet Tubman acrescenta que as freiras [...] contavam a história de que DEUS CRIOU... os:::... HOMENS BRANCOS, TRABALHADORES e ESFORÇADOS... Já as PESSOAS NEGRAS... seriam PREGUIÇOSAS..., excerto III, que corresponde às informações secundárias sobre o fato. Nesse excerto, os adjetivos utilizados pelas freiras para diferenciar homens brancos dos homens negros refratam em práticas de segregação racial, em uma hierarquização, resquícios do período da escravização dos povos negros, africanos. Além disso, tais valores e avaliações evidenciam que as freiras apresentavam valores contrários ao que se espera de um membro religioso. Dessa maneira, é possível reforçarmos que os enunciados concretos orais/multimodais (e escritos) são como pontes, elos da comunicação discursiva de um campo de atividade humana, como a religiosa. Destarte, esses elos se conectam, completam-se ou se repelem, como “uma resposta aos enunciados precedentes” (Bakhtin, 2016), os já-escutados pela autora-locutora, bem como pelo grupo social ao qual ela faz parte. Portanto, a retomada histórica é indispensável, já que o horizonte espacial comum dos interlocutores pode “ampliar-se tanto no espaço quanto no tempo” (Volóchinov, 2019, p. 121).
Essa retomada histórica estabelece relação dialógica com os já-ditos e evidencia que havia uma espécie de soberania entre homens brancos e negros - que eram estigmatizados. Por isso, a autora-locutora recupera [...] PESSOAS NEGRAS... seriam PREGUIÇOSAS..., reflexo do período da escravização. Nessa direção, de acordo com Rado (2009) e Stadler (2018), a igreja e a classe dominante da época contribuíram para construção da imagem dos negros/escravizados. O discurso religioso, então, camufla a visão racista da freira, num período em que tal discurso era aceito pelo coro de apoio (missionários, médicos etc.). Contudo, ao recuperar tal enunciado em outra época - século XXI, a autora-locutora o refrata, de forma modificada, e materializa sua avaliação em uma Entonação valorativa de repúdio ao racismo, às práticas de preconceito racial e de discriminação racial (princípio orientador 1), a ser confirmada pela palavra “sofreu” na manchete da notícia. Tal signo ideológico contribui para a construção da compreensão de que Diva Guimarães passou por uma situação repugnante e imprime um juízo de valor negativo, de desaprovação dos valores refratados pela freira. É esse ponto de vista, materializado na entonação, que ganha destaque no enunciado concreto oral.
A partir do excerto VI, De acordo com a professora...::: Ana Paula Silva.. [...] uma EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA COMBATE ativamente toda e qualquer... expressão de preconceito [...], há a (re)enunciação de uma voz social, de uma professora - Ana Paula Silva - em discurso direto - com a finalidade de construir efeitos de autoridade e de credibilidade sobre a temática educação antirracista. Tal (re)enunciação delineia-se como Movimento discursivizado de enquadramento do discurso alheio (princípio orientador 5) e “engendra-se nos aspectos estilístico-composicionais da notícia radiofônica escolar na intenção de manter pressuposta imparcialidade, além de refutar o que está sendo noticiado, bem como apresentar uma possível “solução”, para “combater” ou minimizar os casos de racismo” (Nogueira, 2023, p. 231). Ademais, a expressão “combate ativamente” - pronunciada, a partir de uma Entonação valorativa de aprovação da educação antirracista (princípio orientador 2) - constrói sentidos e ideias de que é possível combater expressões preconceituosas, pois a educação antirracista possibilita a compreensão, a construção de conhecimento sobre o protagonismo negro, bem como sobre o período da escravização. Portanto, com a (re)enunciação da voz alheia, a autora-locutora valora, de maneira positiva, a educação antirracista. Afinal, a entonação é “a expressão sonora da avaliação social” (Volóchinov, 2019, p. 287).
Ao partirmos da compreensão de que o discurso alheio é concebido como um “elemento construtivo do discurso autoral” (Volóchinov, 2021, p. 250), identificamos que a (re)enunciação do discurso alheio materializa a subjetividade, os valores, a expressividade da autora-locutora, comprovando a essência dialógica do enunciado oral materializado em gênero discursivo oral. Essa compreensão é importante, pois a discente acrescenta [...] além de VALORIZAR a contribuição histórica africana na formação cultural do Brasil...MAS para isso... é preciso a participação de TODA a comunidade, excerto VII, a respeito da educação antirracista, ou seja, realiza outra manobra linguística - Movimento discursivizado de avaliação positiva do discurso alheio (Acosta Pereira, 2013) - materializado pelo uso da expressão “além de VALORIZAR”. Tal expressão gera efeitos de concordância com a educação antirracista - Movimento discursivizado de avaliação positiva do discurso alheio (princípio orientador 7), já que alguns recursos da língua funcionam como “índices avaliativos” (Acosta-Pereira, 2013, s/p).
Essa concordância delineia-se como uma (re)construção, um novo ponto de vista sobre as práticas antirracistas, compreendidas como formas de combater, minimizar os casos de racismo. Esse novo ponto de vista refrata em uma mudança quanto aos estereótipos sobre o homem negro, muitas vezes, silenciado nos contextos sociais e educacionais. Observamos a avaliação da autora-locutora a refratar valores totalmente contrários ao racismo e a toda forma de preconceito racial. Na sequência, a discente faz uso da conjunção adversativa “MAS”, de forma valorada, o que reforça a concepção de que a comunidade escolar precisa se apropriar, ter uma educação antirracista, a fim de entender o processo de escravização, que se estudem leis contra o racismo, bem como se discutam sobre palavras transvertidas de valores discriminatórios.
Além disso, no excerto VIII, para a educadora... uma EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA [...] é FUNDAMENTAL para a cons::..trução:::... de uma sociedade mais igualitária... GARANTINDO TAMBÉM direito à educação de QUALIDADE a todos os indivíduos [...], a autora-locutora apresenta mais detalhes, que refratam valores mais justos e humanos, sobre a educação antirracista. O uso do discurso alheio da professora (para a educadora) como propósito para elencar a relevância da educação antirracista, gera efeitos de validação, de autoridade, delineando-se como um Movimento discursivizado de enquadramento do discurso alheio - efeitos de autoridade e validação (princípio orientador 5). A concordância com os efeitos da educação antirracista, ao recuperar a voz alheia, constitui-se como Movimento discursivizado de avaliação positiva do discurso alheio (princípio orientador 7), a refletir e refratar um juízo de valor positivo. Para Volóchinov (2019, p. 316), “toda palavra, falada ou pensada, não é um simples ponto de vista, mas um ponto de vista avaliador”. Logo, tal argumento avaliador, de forma implícita, é comprovado, também, a partir da marca “é”, que materializa a certeza de que a educação antirracista é imprescindível para a construção de uma sociedade tecida por valores humanos, justos, antirracista, já que a autora-locutora (re)enuncia também a marca “fundamental”.
Entretanto, ao entonar enfaticamente a marca linguístico-enunciativa “cons::..trução:::...”, seguida de uma breve pausa, compreendemos que a autora-locutora entra em contato com o ouvinte, na intenção de reforçar a ideia de que a sociedade precisa ser ressignificada, construída e se pautar nos valores mais igualitários, humanos, justos e antirracistas, afinal, “o falante entra em contato com os ouvintes justamente por meio da entonação” (Volochinov (2019, p. 123). Essa entonação valorativa é “social par excellence” (Volóchinov, 2019, p. 123) e engendra o discurso (re)enunciado a fim de refratar esperança, de que há caminhos para que a sociedade se constitua de forma mais humana, empática, além de garantir uma educação de qualidade, conforme postula a autora-locutora: GARANTINDO tamBÉM direito à educação de QUALIDADE a todos os indivíduos, excerto VIII. Assim, a discente emite um juízo de valor positivo sobre a temática, além de refratar esperança na construção de uma sociedade mais humana. Portanto, concordamos que “quanto maior a presença desses movimentos, mais a notícia se inclina à parcialidade” (Polato & Oliveira, 2015, p. 587), ou seja, a notícia radiofônica escolar, além de relatar um fato, passa a apresentar uma opinião, uma posição axiológica, implicitamente, sobre a temática.
Ao fazer uso das marcas linguístico-enunciativas “educadora” e “professora”, nos excertos De acordo com a professora... Ana Paula Silva... e para a educadora uma EDUCAÇÃO, há outra manobra linguística, já que funcionam como Movimento discursivizado de retomada textual do assunto (princípio orientador 6). Para Acosta-Pereira (2013, s/p.), são recursos linguísticos que servem de orientação sobre o que está sendo relatado. Tal movimento acontece também no excerto as freiras prometiam educação com o excerto de acordo com elas...
No excerto IX, ainda a partir do uso do discurso alheio - educadora Ana Paula -, [...] A comunidade precisa se RECONHECER e fazer com que nossas crianças cresçam nutridas de segurança emocional e donas de sua própria HISTÓRIA através do conhecimento de sua cultura, a autora-locutora traz mais informações sobre a educação antirracista. Ademais, faz uso do Movimento discursivizado de avaliação positiva do discurso alheio (princípio orientador 7) ao pronunciar, de forma valorada, a marca linguístico-enunciativa “RECONHECER”, o que possibilita a construção de sentido de que a comunidade, enquanto sociedade, precisa conhecer a sua história, ou seja, adquirir conhecimento racial e combater práticas racistas. Assim, o empoderamento racial contribui para que crianças cresçam nutridas de segurança emocional, bem como sejam donas de sua própria HISTÓRIA, de acordo com a autora-locutora da notícia radiofônica em análise.
No excerto X, Opiniões contrárias a essa.... dizem que não deveria ser necessário já que a própria história nos mostra, compreendemos que o efeito de sentido construído e compartilhado com o ouvinte é o de crítica aos discursos que acreditam que não é necessário mais discutir sobre casos de racismo, isto é, a partir de uma Entonação valorativa, que refrata uma crítica às pessoas que pensam de forma contrária (princípio orientador 3), visto que as consequências do período da escravização, como o racismo, o preconceito, a discriminação racial, ainda persistem nos diversos contextos sociais. De acordo com Assis (2017), desfazer os estereótipos criados para representar o negro é bem complexo, pois essa construção “se deu de forma tão intrínseca que se naturalizou no meio social e, portanto, desfazê-las trata-se de um trabalho árduo” (Assis, 2017, p. 124). Desse modo, a autora-locutora refrata um juízo de valor negativo diante dos enunciado-discursos contrários às práticas antirracistas. Por isso, reforça que, caso tivéssemos conhecimento sobre a nossa história, sobre o período de escravização, [...] as pessoas já deveriam saber::... e ter::::... consciência de suas PRÓprias AÇÕES.... Tais ações nem sempre acontecem, já que os negros ainda são os mais citados quando se trata de desigualdade racial e social. Volóchinov (2019, p. 124) postula que “o caráter partilhado das avaliações principais subentendidas é o tecido no qual o discurso humano vivo borda os seus desenhos entonacionais”, isto é, os valores presumidos e compartilhados é que direcionam, que dão o tom expressivo de um enunciado concreto oral. Aqui, entonar sobre relevância da educação antirracista, implicitamente, pulsa como uma forma de incitar a mudança, a transformação da sociedade, para que seja mais humana, antirracista.
Por fim, a marca linguístico-enunciativa DIVA Guimarães relata caso de racismo... também refrata um tom de empatia, ou seja, a palavra aciona uma Entonação valorativa de empatia (princípio orientador 4) com o relato da professora Diva Guimarães. Tal empatia acontece também pelo fato de a discente já ter passado por um caso de racismo, bem como seus colegas de classe (seu interlocutor) já terem presenciado e/ou sofrido preconceito e racismo no dia a dia. As duas, então, estabelecem relações históricas, dialógicas, já que “cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados” (Bakhtin, 2003, p. 272). Além disso, um aspecto importante subentendido nessas relações históricas e dialógicas refere-se ao fato de apontarem a educação (de qualidade e antirracista) como forma de combater o racismo.
5. Considerações finais
A oralidade, em perspectiva dialógica, é uma prática de linguagem que precisa ser compreendida em um processo vivo de língua(gem), já que se delineia em enunciados concretos orais. Nesse sentido, a oralidade enquanto fio (elo) discursivo reflete e refrata avaliações e valorações ideológicas via entonação valorativa. Por conseguinte, é direcionada a alguém, pois “opera como um elo continuum da comunicação discursiva oral” (Nogueira, 2023, p. 82). Além disso, em contexto escolar, pode ser trabalhada de forma sistematizada, contínua, dialógica e significativa, proporcionando o desenvolvimento de habilidades orais, a fim de que os estudantes consigam dar vida às palavras “num processo de comunicação vivo, histórico, cultural e ideológico” (Nogueira, 2023, p. 81).
Portanto, ressaltamos que a discente da 1ª série do Ensino Médio projeta valorações e marcas de autoria na notícia radiofônica escolar - contrapalavra oral - a partir da recuperação dos já-ditos (enunciado de 2017 sobre racismo). Tal recuperação passa por um processo de (re)acentuação, (re)avaliação, isto é, a ressignificação acontece a partir da escolha das palavras (tanto no roteiro quanto no desenvolvimento da produção textual oral), bem como as entonações valorativas que demarcam o posicionamento ideológico e social da autora-locutora (contrária ao racismo). Ademais, há a incorporação de vozes alheias sobre a educação antirracista (como uma solução contra o racismo), concebidas como movimentos discursivizados engendrados nos aspectos estilístico-composicional, comprovando a essência dialógica da notícia radiofônica escolar. Tal movimento é consciente, ativo e evidencia a pressuposta “imparcialidade”, assim como a “veracidade” do que está sendo relatado. Assim, a discente refrange valores mais humanos, antirracistas.
Referências
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3
Dissertação de Mestrado defendida em 04/12/2023, pelo Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL-UFPA).
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4
A análise diagnóstica teve como corpus a produção inicial de notícias radiofônicas escolares sobre a educação antirracista e ofereceu subsídios para a elaboração da proposta de intervenção.
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5
Para ouvir a notícia radiofônica em análise, recomendamos acessar ao banco de dados das autoras pelo link: https://drive.google.com/drive/folders/1LSuSrLnTJ8r8vvFHj5rW7S8yiZYj5B4t
Disponibilidade de dados
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
15 Abr 2024 -
Aceito
14 Jun 2024