Apresentação
Em Análise do Discurso, muito já se falou sobre a produção dos discursos, a forma como o sentido é condicionado pelas instituições histórico-sociais e ideológicas de onde provém. Torna-se cada vez mais importante estudar a circulação desses discursos, a maneira como são incorporados pelos sujeitos enunciadores e coenunciadores, como se propagam, como se transformam.
O interesse em pensar sobre os modos de circulação dos discursos reside nas possibilidades analíticas que se abrem ao considerarmos a produção dos sentidos como fundamentalmente interdiscursiva e o interdiscurso como anterior e ulterior aos discursos, que se textualizam sempre "encarnando" meios e materiais que não são neutros nem anódinos, são concretude dos dizeres, que se impõe às interpretações.
Se consideramos que os sentidos das palavras não são definíveis a priori, mas construídos por aproximações a outros termos, conforme as condições de produção do que se enuncia, entendemos que o que um texto "quer dizer" não é nunca algo retomável gratuitamente, como uma unidade de significação fixa, reproduzível com perfeita exatidão. Mas também não é uma variação espraiada ao indizível, posto que todo texto está balizado pelas memórias que evoca ao se pôr numa dada forma de aparecimento.
Essa totalidade apreensível é feita de vários elementos distinguíveis e de instâncias diversas. No caso de um texto escrito, podemos pensar em expedientes como a paragrafação ou a forma de organizar tópicos, títulos e subtítulos, enumerações e nas relações entre esses expedientes; podemos pensar em cores (ou na falta delas), nos formatos de letra, tamanhos, efeitos gráficos, e nos suportes de circulação; podemos pensar também em modos de abrir e de encerrar um fluxo textual; há ainda o tom do texto, o momento em que é proferido, o tempo que toma do leitor, os esforços de interpretação que exige e todas as suas reverberações e ressonâncias. E não há planos privilegiados, uma vez que o eventual privilégio de algum desses elementos é já um efeito de sentido que encontrará ratificações em outros planos, como a falta de relevo de certos outros elementos.
E, então, se podemos pensar em um discurso como um conjunto de restrições semânticas indissociáveis de um conjunto de práticas sociais e históricas, entendemos que é sempre multimodal, em alguma medida, a composição dos materiais textuais que circulam socialmente, e que por isso vibra neles uma força que caracteriza uma dada comunidade discursiva: nos textos, linearizações de discursos, pulsa uma vitalidade que lhes confere, nas suas formas de inscrição, uma identidade social.
É disso que tratam os artigos que compõem este número temático, que começaram a existir em discussões do Centro de Pesquisa Fórmulas e Estereótipos: teoria e análise (FEsTA), sediado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da UNICAMP, do qual participam muitos dos autores aqui reunidos, pesquisadores em diferentes universidades.
Todos os artigos discutem a circulação dos discursos, que muitas vezes mobiliza fórmulas e estereótipos, sua manutenção e seus deslocamentos. A questão do regime aforizante frequentemente perpassa as análises, bem como a transformação dos discursos em diferentes mídias e a problematização do conceito de autoria. Os campos abarcados são diversos, incluindo o artístico, o religioso, o político, o educacional, o publicitário, o humorístico, o empresarial e o midiático.
Assim, examinando as diversas transações que se estabelecem entre os textos e o "mundo social", podemos considerá-los como objetos culturais. O que lhes dá coesão, unidade, identidade é mais do que uma organização estritamente linguística; aliás, logo percebemos que a própria organização linguística não se basta, que sua autonomia é relativa, está submetida a muitas coerções que são de outra ordem - a do discurso.
As organizadoras agradecem à DELTA pela oportunidade de publicação deste número especial.
Ana Raquel Motta
Luciana Salazar Salgado
M. Cecília P. Souza-e-Silva
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
12 Mar 2014 -
Data do Fascículo
2013