RESUMO
Ao focalizar o métier do professor, verifica-se que, para concretizar o real da atividade, esse profissional usa e ensina a linguagem. Ocorre que, muitas vezes, ele pode encontrar dificuldade na execução de tarefas cotidianas por não ter se apropriado de gêneros do discurso inerentes a seu fazer. Imerso nas temáticas de linguagem e formação docente (Bakhtin, 2011; Rojo, 2015; Kleiman, 2008), este estudo busca inventariar os gêneros do discurso que constituem o trabalho do professor nos quatro níveis de ensino e refletir sobre a importância desses textos na concretização do fazer docente. A pesquisa se justifica pelo potencial que tem de contribuir para as discussões sobre os currículos de formação do professor, considerando a necessidade de se (re)conhecer o relevante papel desses gêneros do discurso em sua prática. A partir de um levantamento empírico, foi possível inventariar os gêneros utilizados no exercício da docência e organizá-los em quatro funções discursivas: atividade rotineira, comunicação interpessoal, planejamento e documentação.
Palavras-chave: Inventário de Gêneros; Gêneros do Discurso; Letramentos; Discurso Docente; Métier Docente
ABSTRACT
When focusing on the teacher’s metier, it appears that, in order to perform the real of the activity this professional uses and teaches language. It happens that, many times, he may find difficulties in performing daily tasks due to the fact that he may not have appropriated discourse genres inherent to his doing. Immersed in the themes of language and teacher training (Bakhtin, 2011; Rojo, 2015; Kleiman, 2008), this study seeks to inventory the discourse genres that constitute the teacher’s work at the four levels of education and reflect on the importance of these texts to the concreteness of the teacher’s working. The research is justified by the potential it has to contribute to the discussions about teacher education curricula, considering the need to recognize the relevant role of these discourse genres in practice. From the empirical research, it was possible to inventory the genres used in teaching practices and organize them in four discoursive functions: routine activity, interpersonal communication, planning and documentation.
Keywords: Genre Inventory; Discourse Genres; Literacies; Teacher’s Discourse; Teacher’s job
1. Introdução
Para além da interação interpessoal, o professor, em sua atuação cotidiana, utiliza a linguagem como instrumento3 de trabalho e de construção do saber. Isto significa dizer que ele usa a linguagem e ensina a linguagem (Machado & Lousada, 2010; Clot, 2001, 2010). A apropriação dos textos da prática docente é, pois, necessária para o desenvolvimento do professor e de seu trabalho (Kleiman, 1995, 2008), em um processo de letramento continuado. Diante dessa constatação, que aponta para a necessidade do compromisso com uma prática mais abrangente, é necessário refletir sobre o lugar dos gêneros do discurso no real da atividade docente, que é constantemente modificada.
No caminho das formações inicial e continuada, o trabalho com os textos é, muitas vezes, deixado à margem, afetando a condução da rotina pedagógica do professor, pois dele é demandada, constantemente, a produção de textos com os quais ele pode não ter tido contato no percurso da formação. No caso da Educação Infantil, por exemplo, a atividade de conduzir reuniões com pais (em grupos ou atendimentos individuais) pressupõe elaboração de pauta, apresentação oral no encontro, registros diagnósticos dos alunos e, até, se for o caso, assinatura online4, podendo representar uma exposição da competência do agir do professor e, também, de suas fragilidades. Demandas semelhantes ocorrem com docentes de outros níveis educacionais. No Ensino Fundamental, eles necessitam, por exemplo, de produzir requerimentos diversos e lidar com textos documentais, para a realização de atividades fora do ambiente escolar; no Ensino Médio, carecem de elaborar relatórios do desempenho de turmas e de fazer sustentações orais em reuniões de conselhos de classe; no Ensino Superior, precisam elaborar projetos diversos e orientar pesquisas.
Tais demandas, tão comuns à rotina do professor, evidenciam a necessidade de pôr o tema em relevo, uma vez que elas podem interferir negativamente na condução dos processos de construção do conhecimento e na imagem de si que o professor constrói perante seus pares, superiores, alunos e família.
Comprometido com esse terreno de formação5, que associa inexoravelmente a linguagem ao fazer docente, este estudo tem como objetivos: inventariar os gêneros do discurso que constituem o trabalho do professor nos quatro níveis de ensino e refletir sobre a importância desses textos na constituição do fazer docente.
De cunho exploratório, esta pesquisa assume uma perspectiva dialógica e sociocultural da linguagem (Bakhtin, 2011) e adota uma abordagem qualitativa das informações empíricas. Essas foram coletadas ao longo da nossa vida profissional e, de modo mais organizado, no período de janeiro a abril de 2019, quando passamos a realizar o registro das interlocuções com os participantes em diário de campo. Os diálogos envolveram professores dos quatro níveis do ensino brasileiro: Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior, representando instituições públicas e privadas, tendo sido acionados por entrevista aberta.
Convencidas, portanto, da relevância deste empreendimento de pesquisa, passamos a apresentar, neste artigo, os suportes teóricos que o sustentam, o inventário dos gêneros que levantamos na pesquisa empírica, com a respectiva análise, assim como as considerações finais em que discutimos sobre a importância dos gêneros do discurso profissional na concretização do fazer docente.
2. Sobre os gêneros do discurso, a atividade docente e a linguagem como trabalho
Para recortar e iluminar as inúmeras faces da complexidade do real, recorremos às teorias que, como afirma Faraco (2015), são recursos indispensáveis em nossas atividades cognitivas. No entanto, conforme esse mesmo autor, “a beleza interna das construções teóricas nos seduz a tal ponto, que chegamos a esquecer o que, de fato, interessa, ou seja, seus vínculos com a vida” (Faraco, 2015: 7). É nesse momento que precisamos encontrar caminhos que nos possibilitem “trazer os pés de volta ao chão da vida” (idem, p.7).
As teorias dos gêneros do discurso têm iluminado aspectos de nossas atividades de produção e circulação dos discursos desde a Grécia Antiga e, no Século XX, ganharam força e sofisticação, a partir das propostas do filósofo russo Mikhail Bakhtin. No Brasil, essas teorias fazem parte de um conjunto de esforços de reorganização e melhoria do trabalho de formação docente e de outras profissões. No entanto, a transposição didática da teoria para a prática (Chevallard, 1991), nem sempre, tem alcançado os objetivos que, teoricamente, poderiam lograr.
É preciso, portanto, parar para refletirmos criticamente sobre nossas ações. Precisamos conjugar o conhecimento teórico com os desafios da prática docente, buscando explorar as potencialidades que as teorias nos oferecem para a compreensão e a organização das atividades do fazer do professor com duplo olhar. Se por um lado, é necessário mantermos sempre uma luz de alerta contra os excessos teóricos e fragmentados, que podem nos seduzir pela beleza interna das teorias, por outro, não podemos nos satisfazer com soluções simplistas e imediatistas para o enfrentamento dos problemas relativos às rotinas do professor.
Na busca desse equilíbrio, esta seção de fundamentos teóricos foi construída a partir de um compromisso inicial com a perspectiva discursiva bakhtiniana, especificamente, no que tange aos gêneros do discurso e às esferas da atividade humana. Posteriormente, afunilamos o nosso olhar para a esfera da complexa atividade docente (Rojo & Barbosa, 2015; Machado; Lousada, 2010) para, na sequência, buscarmos compreender o trabalho docente com o apoio de pressupostos da Clínica da Atividade (Clot, 2010), focalizando a linguagem como trabalho concreto do professor.
O termo “gênero do discurso” foi cunhado por Mikhail Bakhtin, no adendo do livro Estética da criação verbal, publicado em Moscou, em 1979. Tal obra chegou ao Brasil em 1997 e, a despeito das polêmicas em torno da autoralidade da sua obra, o fato é que tal concepção ganhou terreno e força no campo do estudos da linguagem. Diz Bakhtin que a “utilização da língua efetua-se em forma de enunciados, orais e escritos, concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana” (2011, p. 261). Para ele, tais enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, por meio do conteúdo temático, do estilo verbal (recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais) e da construção composicional. Para o filósofo:
Esses três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. [...] Cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso o que denominamos gêneros do discurso (Bakhtin, 2011: 262).
Em termos bakhtinianos, o aspecto mais importante do gênero é o tema, que deriva de diferentes apreciações de valor. É ao tema que devemos reagir responsivamente. Estilo e forma de composição estão, muitas vezes, a serviço de fazer ecoar o tema, o qual depende da situação de produção, dos propósitos de quem enuncia, da posição sócio-histórico-cultural-ideológico-epistemológica de cada um. Assim, o estilo, as escolhas linguísticas intencionais que fazemos (de léxico, sintaxe, registro etc.) para dizer o que queremos dizer e gerar o sentido desejado, assim como a forma de composição, de organização e acabamento de todo o enunciado - (macro, super) estrutura do texto, progressão temática, de coerência e coesão que servem para marcar a fronteira do enunciado e passar a palavra ao outro - são aspectos formais que estão a serviço de fazer ecoar o tema, são marcas linguísticas das apreciações valorativas do autor (Rojo & Barbosa, 2015: 86-94 - passim).
Comprometidos com uma abordagem sociocultural, os estudos sobre o gênero do discurso difundiram-se, fundamentados (ou não) na obra bakhtiniana. O fato é que tais pesquisas se apoiam na materialidade semiótica e linguística dos enunciados em situações concretas de enunciação, em âmbitos pessoal, público e/ou profissional. Sendo produções individuais e renováveis a cada situação social de interação verbal, os enunciados contribuem para a constituição e a permanente continuidade/mudança dos gêneros, a depender, também, da esfera de comunicação a que estejam vinculados, da situação de ação, dos motivos e das intenções de quem enuncia.
Essas esferas configuram-se, no entendimento de Rojo e Barbosa, como “um amplo leque de possibilidades: um rico repertório de gêneros variados que se amplia à medida que a esfera/campo se expande” (2015: 68). Tal diversidade de repertório é observada nas várias esferas de atividade (jornalística, acadêmica, literária, jurídica, pessoal etc.) e se configuram também como parte do contexto de produção.
Restringindo o nosso olhar ao foco deste estudo, tomamos o discurso do métier do professor como objeto de observação e deparamo-nos com uma diversidade de textos que constituem essa atividade social. Para exemplificar como cada texto se encontra encaixado no bojo da atividade docente, Rojo e Barbosa (2015) mencionam uma sequência de atividades de um professor para dar aulas. Para elas:
o professor deverá, primeiro, organizar um planejamento de curso para a escola na qual trabalha. Em seguida, deverá escolher ou analisar o material didático com o qual trabalhará com os alunos (livros didáticos, apostilados, fascículos, cadernos - dependendo do tipo de escola em que trabalha -, que, por sua vez, apresenta diversos gêneros inerentes: crônicas, poemas, notícias, artigos de opinião, instruções, questões, definições etc.). O professor, então, organizará e ministrará suas aulas. Em certo momento, os alunos deverão elaborar trabalhos - como redações escolares, seminários - ou se submeterem a uma prova para avaliar seu aprendizado. Essa avaliação será publicada no formato de um diário de classe, que inclui a lista de notas e frequência em formulário próprio (Rojo & Barbosa, 2015: 19, grifos no original).
Esse exemplo demonstra, com clareza, o quanto a atividade do professor é imbricada nos gêneros do discurso, que a organizam em sua concretude. Nessa seara, Bathia (1994) advoga que membros especialistas de qualquer comunidade profissional devem ter não só o conhecimento de sua área específica, mas também o da estrutura dos gêneros que utilizam em seus textos. Segundo o autor, tais textos ganham um caráter de estrutura interna convencionalizado. O autor menciona que, embora o profissional tenha liberdade para usar os recursos linguísticos da melhor forma que lhe convém, ele deve atender a certos padrões que limitam e estabelecem certas formas mais apropriadas aos gêneros do discurso por ele redigidos. Para o autor, o profissional pode utilizar as regras e convenções de um gênero para alcançar seus objetivos profissionais e intenções particulares. No entanto, ele não pode deixar tais regras e convenções totalmente; pois, dessa forma, corre o risco de redigir algo absurdo segundo suas intenções de interação.
Segundo Bathia (1994), existem restrições ao operacionalizar uma intenção, posicionar e estruturar um gênero em um texto profissional específico e isso, provavelmente, seja o motivo de muitos profissionais tenderem a estruturar gêneros particulares de formas mais ou menos idênticas, dado o caráter relativamente estável dos gêneros. Cabe, portanto, aos membros de uma determinada comunidade profissional dominar um conhecimento sobre os gêneros do discurso a serem utilizados, que os ditos “leigos” naquele específico trabalho não possuem. Tal investimento é observado, por exemplo, no processo de formação de jornalistas e juristas, cujos gêneros relativos ao real da atividade são tomados como objetos de ensino. Tais profissões, assim como a docência, têm a linguagem como seu objeto de trabalho.
No processo de formação docente, contudo, essa abordagem é, muitas vezes, deixada à margem, afetando a condução da rotina pedagógica do professor. É nessa perspectiva que acreditamos, juntamente com Lopes (2018), na necessidade de
reorganização das práticas formativas que considerem, por um lado, o papel dos gêneros discursivos a serviço do desenvolvimento de capacidades dos sujeitos para a reflexividade intrínseca à profissionalização; por outro, a relevância de espaços de interação em que, pelos processos de discursivização, seja dada voz aos graduandos, futuros docentes, a fim de apreender o processo de produção de conhecimentos relevantes e indispensáveis para o exercício da docência (Lopes, 2018: 215).
Compreendemos que, ao longo das últimas quatro décadas, muitos pesquisadores têm dispensado a necessária atenção aos gêneros acadêmicos, constitutivos do trabalho acadêmico e escolar, relativamente às esferas escolar e universitária. Dentre eles, podemos destacar os esforços empreendidos em pesquisas com ênfase nos gêneros acadêmicos como relatórios de estágio, resenhas, resumos, artigos de pesquisa etc. (Assis, 2015; Fiad; Silva, 2009; Lopes, 2018; Oliveira et al., 2019 e outros), que têm atendido a exigências próprias do contexto universitário, como as relativas à pesquisa, mas que, também, contribuem para a formação docente.
Aproximando-se mais do objeto deste estudo, Machado e Lousada (2010) focalizam a formação docente por meio de gêneros orais e escritos, entendendo-os como artefatos para a atividade, sem ainda especificar as atividades e os respectivos gêneros por meio dos quais elas se realizam. Nessa mesma direção, entendemos que o professor em formação deva “apropriar-se” também dos gêneros do discurso que circulam nas esferas escolar e universitária para que possa realizar as atividades interacionais requeridas nesses espaços. Assim, em consonância com Machado e Lousada (2010), entendemos que apropriar-se de alguma coisa é:
adaptar alguma coisa a um uso ou a uma finalidade determinada; atribuir alguma coisa a si mesmo, fazer com que ela seja SUA (algumas vezes, até mesmo de modo indevido). […] Em outras palavras, não se trata de simplesmente utilizar o artefato como mandam as prescrições, mas de usá-lo de modo que ele seja útil para o próprio trabalhador e adaptado por ele mesmo às diferentes situações em que precisa utilizá-lo. […] Em relação aos gêneros, eles só poderão servir de mediadores para a comunicação e para o desenvolvimento linguageiro se forem apropriados pelo sujeito (Machado & Lousada, 2010: 623, grifos no original).
Em diferentes perspectivas, as autoras realçam o papel do gênero do discurso como forma de ação, destacando a necessidade de os profissionais de diferentes esferas saberem usar os gêneros correlatos a seu fazer em diferentes situações. Contudo, o realce dado à importância do tema ainda não se concretizou em estudos mais específicos sobre os gêneros do discurso do métier docente.
Tais estudos perpassam, indiscutivelmente, as discussões sobre práticas de letramento dos professores, associadas a diferentes linguagens sociais, aos mais variados contextos de trabalho e às necessárias adequações dos gêneros. Partimos do pressuposto de que o exercício da docência requer processo de formação continuada, inserido em práticas e eventos de letramentos que, normalmente, ocorrem em situação real da atividade.
Soares (2004, p. 45) entende o letramento como o “estado ou condição de indivíduos ou grupos sociais de sociedades letradas que exercem efetivamente as práticas sociais de leitura e escrita”. Na mesma direção, Kleiman (2008, 2016) advoga o letramento como prática social em que a escrita é um sistema simbólico e tecnológico usado em contextos específicos, para objetivos igualmente específicos, que possibilita a capacidade de agir. Avançando um pouco mais nessa perspectiva, Street (2003) defende que um único conceito de letramento não seja suficiente para abranger toda estrutura social, considerando a grande heterogeneidade das sociedades, das atividades desenvolvidas e das mudanças contínuas dos artefatos discursivos. Em virtude disso, o autor propõe o uso de “letramentos”, no plural (Street, 2003, p. 81), contemplando as práticas discursivas nos variados contextos sócio-históricos em que os sujeitos estão inseridos, ou seja, os letramentos são múltiplos.
No encaminhamento desse raciocínio, em algum momento da formação, os gêneros do discurso profissional deveriam ser apresentados ao professor como os especiais instrumentos de trabalho que são, uma vez que, por meio deles, concretizam-se as atividades docentes. Ao contrário disso, o que se vê é uma grande lacuna na formação docente (inicial ou continuada), no que tange ao uso social da escrita em eventos comunicativos específicos do métier profissional Machado e Lousada (2010), engajadas que são nos estudos da linguagem como atividade, descrevem o trabalho do professor como constituído de múltiplas atividades, desenvolvidas em diferentes situações e realizadas por meio da linguagem. Entendem que a situação de trabalho se configura a partir de toda uma rede de discursos proferidos os quais se responsabilizam, em última instância, pelo(s) sentido(s) produzido(s), ou seja, o trabalho realizado.
Nessa perspectiva, para melhor compreendermos o que se passa com o uso dos gêneros utilizados pelo professor em seu métier, é necessário apresentar como concebemos o trabalho docente. Para isso, inspiramo-nos, tal como Machado e Lousada (2010), em aportes da Clínica da Atividade (Clot, 2010) para afirmar que o professor mobiliza seu ser integral, em múltiplas dimensões, para desenvolver o seu trabalho e ocupar o seu nicho.
Esse trabalho é permeado pela interação com outros actantes, principalmente com seus alunos, mas também com vários outros sujeitos que fazem parte direta ou indiretamente da imensa rede de pessoas e instituições com as quais os professores precisam interagir para desenvolver o seu trabalho. Para isso, ele utiliza “instrumentos materiais ou simbólicos, oriundos da apropriação, por si e para si, de artefatos disponibilizados pelo seu meio social” (Machado & Lousada, 2010: 627) inseridos em contextos mais amplos, como demonstrado na Figura 1.
Como se vê na Figura 1, para além de conteúdos e metodologias, a atividade do professor é, também, orientada por prescrições institucionais de diferentes níveis e por modelos de agir advindos do coletivo de trabalho. Essas inúmeras prescrições, que incidem na ação docente, devem ser vistas como artefatos disponibilizados para o professor que dão forma às suas ações e podem facilitar o seu trabalho. Como aponta Amigues (2004), tais artefatos normalmente são reconcebidos e adaptados pelo professor a seu contexto particular de trabalho. Acreditamos, contudo, que eles permitem ao professor guiar e pensar suas ações, não apenas em situação de ensino, mas em todas as situações requeridas pela atividade, uma vez que, para exercer a sua profissão, o professor deve mobilizar diferentes gêneros do discurso em diferentes situações da atividade.
Para ampliar a nossa compreensão da rede de discursos que materializa as diversas situações de usos da linguagem em situação de trabalho, apoiamo-nos em estudos que vêm sendo desenvolvidos por estudiosos como Rojo e Barbosa (2015), Amigues (2004) e Nouroudine (2002). Eles apontam para as relações existentes entre a linguagem e o trabalho, como aqualas apresentadas por Nouroudine (2002): (i) a linguagem como trabalho, que é a utilizada durante/para a realização da atividade de trabalho; (ii) a linguagem no trabalho, que caracteriza a linguagem relacionada à situação geral de trabalho (excluindo a linguagem durante/para a realização da atividade), e (iii) a linguagem sobre o trabalho, relacionada à produção de saber sobre o trabalho.
Essa noção, consonante com o conceito de gênero do discurso de Bakhtin (2011), refere-se a determinados gêneros compartilhados por trabalhadores de determinada área. Assim, professores compartilham uma série de “modos de agir, de fazer etc.” que não precisam de prescrições, já que são conhecidos e esperados no fazer profissional, tais como gestão dos tempos na sala de aula, elaboração de planejamentos, apostilas etc. Nesse sentido, chamamos a atenção do leitor para os inúmeros desafios encontrados pelo professor que, ao ingressar no campo do trabalho, desconhece parte dos gêneros do discurso inerentes à sua profissão, dos quais necessita para realizar o seu trabalho. São os gêneros demandados para que ele possa ensinar, diferentemente, daqueles gêneros que ele ensinará.
3. Os gêneros do discurso e o real da atividade: inventariando os gêneros do métier docente
Mais conhecido no meio jurídico como um documento em que se relacionam os bens deixados por alguém, o inventário tem sido, também, usado em pesquisas exploratórias, quando se pretende fazer um “levantamento de dados para a construção de um panorama acerca de determinado assunto” (Brasileiro, 2016: 97). Assim, no intuito de construir um inventário de gêneros do discurso que constituem o trabalho docente em cada nível de ensino, registramos, ao longo da nossa experiência docente, os inúmeros gêneros do discurso necessários para o ensino. Buscando a sistematização da coleta dos dados, procuramos listar tais gêneros no período de janeiro a abril de 2019, junto a professores da Educação Infantil e ensinos Fundamental, Médio e Superior, sem nos restringirmos a qualquer área de formação, visto que todo professor, independentemente da área em que atua, carece de produzir determinados textos em suas práticas profissionais.
Encaminhamos, então, por escrito, via WhastApp ou e-mail, uma entrevista de pergunta única a vinte professores, sendo cinco da Educação Infantil (EI); cinco do Ensino Fundamental (EF); cinco do Ensino Médio (EM); e cinco do Ensino Superior (ES), de instituições públicas e privadas e de contextos socioeconômicos diversos. A pergunta foi: Que gêneros textuais você precisa dominar para que possa exercer o seu trabalho de professor? As primeiras respostas obtidas do grupo de professores evidenciaram um equívoco em relação ao objeto da pergunta. Os participantes não informaram os gêneros que indicavam a linguagem como trabalho, nas palavras de Nouroudine (2002), o que eles trouxeram a apontavam como instrumento utilizado no trabalho. Os fragmentos apresentados na sequência tiveram a fonte identificada com um P, de professor, seguido de numeração arábica (P1, P2, P3...) e das iniciais do nível de ensino a que esse professor se vincula:
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(1) Listas, receitas, poemas, canções, cartazes, parlendas, tabelas... isso te ajuda? (P4EI).
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(2) Eu trabalho com jornais, revistas, folhetos, com suas diferentes variedades (notícias, reportagens, artigos diversos, anúncios etc.). Incluímos também a correspondência, embora possa haver cartas que se encaixariam melhor num modelo literário (P5EF).
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(3) Nossa! São tantos! Textos jornalísticos, folhetos de propagandas, textos científicos, e-mail (é um gênero?)... (P8ES).
Esses exemplos ilustram uma ocorrência geral entre os entrevistados. Ao mencionar listas, receitas, poemas, folhetos de propaganda, textos científicos e outros, os docentes relacionavam aqueles gêneros selecionados para a realização da aula em si, em sua atividade rotineira, sendo, portanto, a linguagem no trabalho (Nouroudine, 2002), referindo-se aos gêneros a ensinar. Além disso, os dados iniciais indiciavam certa confusão entre gêneros do discurso (notícia, reportagem...) e os respectivos suportes (jornais, revistas...6).
Embora compreendêssemos tais equívocos como problemáticos, do ponto de vista da Linguística Aplicada, resolvemos enfatizar apenas o objetivo da pesquisa e esclarecer, a cada um dos professores, o foco da pergunta. Em virtude disso, refizemos a questão para: “Em sua rotina profissional, que textos você precisa produzir para que possa exercer o seu trabalho de professor, tais como prova, sequência didática, bilhete etc.?”. Essa reformulação possibilitou-nos a coleta das informações de interesse do estudo.
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(4) É o que eu preciso saber para me comunicar com pais e instituição ou trabalhar com os alunos, como um plano de ensino ou, até mesmo, um simples bilhete, não é? Então, em relação aos gêneros textuais, acredito que o professor precise saber escrever relatórios de avaliação individuais, bilhetes, cartas, painel, convites, pauta de reuniões, planejamentos (diário, por etapas), e-mails, sínteses de atendimentos realizados com as famílias de alunos e profissionais que os atendem, listas e cronogramas. Atividades de sala e para-casa também seriam gêneros textuais? Bom, pensei um pouco no meu cotidiano e nas pastas de arquivo do meu computador para te responder... e espero ter ajudado. Se precisar de algo, é só chamar, viu? (P7EI).
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(5) Atas de reuniões (com pares, de pesquisa, com a comunidade escolar, com orientandos), formulários, projetos de pesquisa, artigos, ofícios administrativos, relatórios de atividades acadêmicas. É isso? São muitos! (P3ES).
A partir de respostas obtidas como as produzidas por P7EI e P3ES, que revelaram o métier do professor em diferentes níveis, instâncias e circunstâncias, configurou-se o material necessário para a produção do inventário, relativo aos gêneros para ensinar. Os dados, muitas vezes repetidos de um para outro professor, foram, inicialmente, compilados e agrupados por níveis de ensino. Ao observar algumas pistas deixadas pelos professores, voltamos os nossos olhares aos conteúdos temáticos dos gêneros relacionados a essa esfera de atividade. Essa observação possibilitou-nos identificar diferentes funções dos textos exercidas pelos enunciados, as quais se vinculam ao conteúdo temático do gênero. Seguindo o raciocínio de considerar as funções exercidas por tais enunciados, tomando a linguagem como trabalho (Clot, 2010; Nouroudine, 2002), sugerimos, para este estudo, a categorização dos gêneros em quatro grupos que traduzem o real da atividade do professor: atividade rotineira, comunicação interpessoal, planejamento e documentação.
As atividades rotineiras referem-se às várias tarefas inerentes à rotina da sala de aula, diretamente vinculadas ao contexto didático particular institucional. São práticas didáticas que materializam grande parte do processo de construção do conhecimento, por possibilitarem registros dos saberes (ou não-saberes) dos alunos. São exercícios formais, provas, atividades de para-casa, jogos lúdicos e outros (Figura 2).Os gêneros foram dispostos em fluxogramas e organizados pelos objetivos discursivos. Nos fluxogramas, buscamos evidenciar as interseções nos níveis de ensino, já que alguns gêneros são específicos de determinados níveis e outros são comuns a mais de um ou a todos eles.
Observando pelas características dos gêneros do discurso propostas por Bakhtin (2011), verificamos que esses artefatos possuem estrutura composicional e estilo distintos. No entanto, eles se aproximam pelo conteúdo temático que, em termos bakhtinianos, também dependerá da situação de produção e recepção, que, nesse caso, está intrinsecamente ligado aos níveis educacionais, às redes de ensino, ao contexto em que os sujeitos estão inseridos. De tais fatores, advêm particularidades estilísticas, estruturais e temáticas a serem consideradas pelos autores dos textos.
Um portfólio, por exemplo, gênero utilizado pelo professor em todos os níveis de ensino, tem como propósito comunicativo a apresentação, por meio da catalogação de atividades, dos processos de construção de determinados conhecimentos, de forma cronológica, sendo este, normalmente, o seu conteúdo temático. Entretanto, a estrutura e o estilo desse gênero alteram-se de acordo com o contexto de produção, o que demanda certo letramento do professor para fazer as devidas adaptações no texto.
Os gêneros orais e escritos reunidos na categoria comunicação interpessoal veiculam conteúdos temáticos diversos inerentes à interação do professor com a família, os alunos, os pares e os profissionais administrativos da escola. Por apresentar uma exposição maior do professor, enquanto representante institucional, esse campo de atividade discursiva, normalmente, é merecedor de atenção especial dos dirigentes escolares. Textos como bilhetes, cartas, circulares, convocações, convites, advertências... (Figura 3) devem ser construídos pensando no modo como o outro vai receber, uma vez que interferem na construção da imagem profissional e institucional de quem os emite.
A comunicação interpessoal é usada na interação, oral ou escrita, do professor com a comunidade da qual faz parte. Essa incidência requer uma demonstração, por parte do docente, de que ele se apropria desse saber de linguagem, para além do saber disciplinar da sala de aula. Esse fator de natureza contextual influencia diretamente na construção do gênero em todos os aspectos. No entanto, tais gêneros não são contemplados como objetos de ensino e aprendizagem nos processos de formação docente.
O convite, por exemplo, um texto comum no real da atividade do professor, precisa se distinguir daquele convite construído na esfera pessoal, como advertido por Bathia (1994), ao mencionar as restrições da produção de texto profissional específico, no intuito de conseguir operacionalizar uma intenção. No contexto da atividade docente, é normal que se espere certo nível de criatividade em relação à estrutura composicional de um convite. Por outro lado, embora as escolhas linguísticas que compõem o estilo devam ser comprometidas com a formalidade do contexto, o conteúdo temático do convite pode incidir sobre essa expectativa, dizendo respeito às apreciações valorativas do autor (Rojo & Barbosa, 2015). Dessa forma, podemos afirmar que, se o professor tiver um domínio desse conjunto de gêneros, ele pode favorecer a construção de parcerias positivas entre os sujeitos do contexto escolar, uma vez que é parte do processo de apropriação, o desenvolvimento de adequações, que considerem os interlocutores, a situação comunicativa e a própria intenção de quem fala (Machado & Lousada, 2010).
Na categoria planejamento, foram agrupados textos produzidos com função de prescrever o trabalho (Nouroudine, 2002), a ser realizado, neste caso, em sala de aula, tais como plano de aula, sequência didática, projeto de aplicação pedagógica, plano de ensino etc. Esses gêneros dialogam com todas as instâncias educacionais, desde a realidade local e seus documentos oficiais, até os documentos parametrizadores nacionais (Machado & Lousada, 2010). O contexto em que tais produções circulam requer a adoção de um estilo formal e uso da variante padrão da língua (Figura 4), seja qual for o nível ou a rede de ensino.
Os textos dessa categoria privilegiam, na estrutura composicional, a topicalização de informações e, em seu interior, marca-se a multimodalidade, uma vez que em um planejamento, podem ser vistos cronogramas, textos instrucionais, exercícios, textos de divulgação científica, charges, tabelas, textos literários, didáticos, religiosos, jurídicos e outros, podendo ser apresentados em variados suportes. No entanto, pela natureza documental desses textos, os dados coletados para esta pesquisa não revelaram gêneros orais. Por suas funções prescritivas, o conteúdo temático deles, normalmente, responde a algumas questões necessárias em um planejamento: o que fazer? Por quê? Como? Com quem? Para quê? Em que condições espaciais, temporais, materiais? Muitas vezes, são essas condições a que estamos sujeitos é que orientam a construção desse conteúdo temático.
O tema meio ambiente, por exemplo, pode ser trabalhado, em uma sequência didática (Schneuwly & Dolz, 2004), desde a Educação Infantil ao Ensino Superior. Tal sequência, para ser efetiva com relação à construção do conhecimento, precisa se ater às condições sócio-econômico-culturais da comunidade escolar/universitária, à faixa etária, aos recursos a que se tem acesso, aos conhecimentos prévios dos alunos, ao tempo disponível para a sequência etc. Todos esses fatores incidem na construção do texto e nos mobilizam a perceber que ensinar um gênero ultrapassa questões de mera descrição formal ou estrutural, daí, novamente, a emergência de um letramento docente voltado para a apropriação dos textos que constituem o seu fazer.
A categoria documentação reúne os textos cujo objetivo é registrar o trabalho docente: o trabalho realizado (Nouroudine, 2002). Tais documentos (Figura 5) circulam em gêneros como relatórios da prática docente, portfólios, boletins, fichas e relatórios descritivos individuais dos alunos, dentre outros, assim como apontam Rojo e Barbosa (2015).
Como conteúdo temático, essa documentação serve para: o professor atestar o que foi feito e o que fundamentou o fazer; a escola acompanhar o desempenho docente e discente e fazer intervenções cabíveis; e a família inteirar-se da vida escolar do seu filho, principalmente, na Educação Básica. De igual modo à categoria planejamento, esses textos adotam estilo formal e variante padrão da língua, também devido à força documental que têm perante a comunidade escolar/acadêmica. No que diz respeito à construção composicional, a instituição pode adotar padrões que tornem as estruturas desses gêneros menos flexíveis.
Tomamos, por exemplo, o relatório avaliativo individual, também denominado de relatório descritivo por Hoffmann (2006). Trata-se de um gênero utilizado, frequentemente, na Educação Infantil, com o objetivo de retratar o desenvolvimento da criança. Em um texto predominantemente descritivo, com extensão média de duas páginas, o professor apresenta ao leitor a criança e o sentido das intervenções que ele faz, em função do desenvolvimento das capacidades motoras, afetivas, sociais e cognitivas dessa criança, imprimindo nele um caráter individualizado. Assim, são demandadas em sua composição, as sequências tipológicas (Marcuschi, 2008) narrativa (por ser um relatório), argumentativa (por defender uma metodologia, inter-relacionar objetivos, áreas temáticas trabalhadas etc.), injuntiva (por orientar, direta ou indiretamente, as ações da família e da própria escola) e, também, expositiva (por apresentar situações vivenciadas pelo aluno).
Usando a variante padrão da linguagem, o professor constrói um discurso realista, porém, afetivo e otimista, a fim de que o relatório não seja recebido pela família como um problema, mas um processo que está sendo conduzido com humanidade, coerência e segurança teórico-metodológica por parte do professor. Para isso, ele precisa agenciar mecanismos enunciativos adequados ao dizer, tais como: operadores argumentativos, vocabulário preciso, modalizadores e outros. Todos esses movimentos discursivos fazem do relatório uma oportunidade de apresentação e reflexão acerca do processo educacional da criança. Especificamente, revela e expõe o próprio professor como sujeito avaliador, sua formação, suas filiações teóricas, sua competência com o seu trabalho e com um dos instrumentos principais: a linguagem, nesse caso, na modalidade escrita.
Diante dos dados levantados, avaliamos ser importante, para efeito de leitura, a construção de um instrumento que pudesse apresentar, de modo mais abrangente, o inventário levantado. Reunimos, então, todos os gêneros que foram identificados na Figura 6, associando-os, concomitantemente, ao nível de ensino em que atua o professor e aos objetivos discursivos que exercem no cotidiano docente.
Considerando a complexidade do trabalho do professor e as adequações necessárias aos diferentes contextos sócio-históricos em que ele atua, assumimos que: (i) a listagem ora apresentada ainda está incompleta, embora entendamos que todos esses gêneros constituam o cotidiano do trabalho docente; (ii) esses instrumentos apenas poderão servir como artefatos de intervenções para o desenvolvimento das capacidades dos alunos7, se forem, de fato, apropriados pelos professores, em um processo de letramento formal e continuado, de modo que eles possam usar e adaptar dentro da sua realidade. Em tempo de comunicação online, em que é demandada do docente a habilidade de se comunicar com os mais diversos interlocutores e nas mais diversas situações de interação, é fundamental que os professores sejam, formalmente, capacitados pela linguagem, não apenas de modo acidental. É essencial, também, que abandonemos o falso pressuposto de que o licenciando já domina determinados gêneros do discurso, necessários para ensinar, e partamos da asserção de que é necessário ensiná-los.
Dentre os inúmeros desafios existentes no processo de formação docente, evidencia-se, a partir deste trabalho, mais um deles. Tão importante quanto saber o quê, por quê e para quê ensinar, é saber “como”. E, para que esse “como” aconteça, o professor precisa se apropriar de artefatos discursivos capazes de concretizar o trabalho. Essa apropriação ultrapassa o mero conhecimento do gênero, em estilo, conteúdo temático e construção composicional, pois demanda a mobilização e a adaptação do instrumento adequado à realidade vivida, que não devem continuar sendo desenvolvidas no momento exato da necessidade do uso.
4. Considerações finais
Perseguindo o objetivo inicial de inventariar os gêneros do discurso que constituem o trabalho do professor, realizamos um levantamento com profissionais que atuam nos quatro níveis de ensino de instituições públicas e privadas e, a partir dele, investimos em reflexões sobre a importância desses textos no cotidiano da atividade docente.
Como suporte teórico, operamos, principalmente, com os pressupostos de gênero do discurso, como proposto por Bakhtin (2011), compreendendo o trabalho como linguagem (Clot, 2010) e a complexidade do métier docente, a partir dos estudos de Rojo e Barbosa (2015) e Machado e Lousada (2010). Além disso, dialogamos com os estudos de Bathia (1994), acerca da importância da apropriação das convenções de determinados textos para que um profissional possa operacionalizar o seu trabalho.
Para a pesquisa empírica, utilizamos a expertise de professores dos quatro níveis de ensino para que eles pudessem nos revelar os gêneros do discurso que compõem o seu nicho de trabalho e fizemos o levantamento dos dados. Ao analisá-los, conseguimos agrupar os textos de acordo com as atividades exercidas por eles. Isso nos levou à categorização dos gêneros em quatro grupos, o que nos pareceu pertinente, em função de indiciarem a rotina do trabalho do professor, por meio das diferentes funções discursivas apropriadas pelos gêneros, que materializam muitas das atividades docentes.
As categorias identificadas foram: as atividades rotineiras, relativas à rotina da sala de aula e vinculadas ao contexto didático particular institucional; a comunicação interpessoal, inerente à interação do professor com a família, os alunos, os pares e a administração escolar; o planejamento, referente aos textos produzidos com função de prescrever o trabalho a ser realizado; e a documentação, concernente aos textos que visam ao registro do trabalho realizado.
Apresentamos, então, o inventário dos textos, em formato de fluxogramas, que foram organizados por diferentes níveis de ensino, evidenciando que grande parte desses gêneros é comum ao trabalho dos professores, em todos os níveis de ensino, mas que existem, também, aqueles que são específicos de determinado nível, configurando semelhanças e diferenças na prática docente, as quais foram demonstradas, nos fluxogramas, por interseções. Neste ponto, realçamos a contribuição deste trabalho para uma frente dos estudos de Linguística que possam se dedicar (i) à ampliação desses resultados, (ii) à descrição e à tipologização dos diversos gêneros do discurso, nos mais variados contextos e atividades educacionais, (iii) à distinção entre gêneros a ensinar e gêneros demandados para ensinar e (iv) à discussão que possa contribuir para (re)pensar os currículos de formação inicial e continuada de professores.
Para concluir, pretendemos evidenciar o quanto o investimento nessa temática pode contribuir para o campo da Linguística Aplicada, como subsídio aos processos de práticas formativas de professores (Lopes, 2018), de qualquer campo disciplinar, possibilitando a construção de saberes, na sala de aula, daquilo que constitui o mais importante do trabalho de um professor, o desenvolvimento do seu aluno.
Referências
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3
O termo instrumentalização presente no título deste artigo justifica-se pelo sentido de artefato semiótico, representado pelos gêneros do discurso profissional, que são utilizados no real da atividade docente. Entendemos que a apropriação desses gêneros contribui para a leitura e a escrita críticas do professor e que, embora não sejam suficientes, por si só, para a prática cotidiana, configuram-se instrumentos para o trabalho do professor.
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4
Neste texto, usamos o termo assinatura online para nos referirmos à assinatura de uma ata produzida por um educador no decorrer de um atendimento a responsáveis por uma criança, como forma de documentação e concordância com o registro feito.
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5
Embora não seja o objetivo final deste estudo, esperamos que o saber ora construído possa subsidiar processos de formação do professor.
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6
Para Marcuschi (2008), o suporte textual é o ambiente em que os textos são veiculados.
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7
Alguns gêneros exercem funções diretamente ligadas ao desenvolvimento de capacidades e outros atuam indiretamente. Exemplo: o requerimento para a liberação de uma turma para uma excursão é uma forma de intervenção indireta, que resultará na construção de determinados conhecimentos.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Jun 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
29 Jun 2020 -
Aceito
24 Nov 2020